Capa da publicação Perseguição, stalking ou assédio por intrusão – Lei 14.132/21
Capa: Mika Baumeister / Unsplash
Artigo Destaque dos editores

Perseguição, stalking ou assédio por intrusão – Lei 14.132/21

Exibindo página 3 de 5
03/07/2021 às 11:05
Leia nesta página:

6-TIPO SUBJETIVO

O crime de “Perseguição” é doloso, não havendo previsão de figura culposa. O dolo exigido é o dolo genérico, pois que não há descrição de especial fim de agir.

Tendo em vista a ampla acepção com que a ameaça é empregada no tipo penal, ensejando a aproximação com um conceito de “risco” que ultrapassa a restrita acepção de promessa de mal injusto e grave constante do crime de “Ameaça” (artigo 147, CP), seria de se concluir tratar-se de “crime de perigo” (perigo concreto). Porém, como bem aduz Gilaberte, “esta não é a melhor interpretação”, sendo o crime do artigo 147 –A, CP classificado como “crime de dano, por exigir uma lesão à liberdade individual”. [45]


7-CONSUMAÇÃO E TENTATIVA

 Tratando-se de crime habitual que exige a reiteração de atos de perseguição, não é possível a tentativa, tal qual ensina a grande maioria da doutrina.

Neste sentido vale o ensinamento tradicional de Mirabete:

“Nos crimes habituais, não se admite a tentativa, pois ou há reiteração de atos e, portanto, consumação, ou não há essa habitualidade e os atos são penalmente indiferentes”. [46]


8-PENA E AÇÃO PENAL

A pena prevista para o crime de “Perseguição” é de “reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa”.

Trata-se, como se vê, de infração de menor potencial ofensivo, sendo acessíveis aos seus autores os benefícios previstos na Lei 9.099/95, salvo quando se tratar de situação de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do artigo 41, da Lei 11.340/06, que então veda a aplicação dessas normas mais brandas, isso sem falar do aumento de pena previsto no artigo 147 – A, § 1º., II, CP que, por si só, já elevaria o patamar da pena máxima para além daquele admissível para infrações de menor potencial. Também é viável a aplicação de Acordo de Não Persecução Penal, desde que o crime não seja informado por violência ou grave ameaça, nos termos do artigo 28 – A, CPP com nova redação dada pela Lei Anticrime (Lei 13.964/19).  Relembre-se que a “ameaça” descrita neste tipo penal é mais ampla do que aquela que conforma o crime de ameaça, razão pela qual pode sim haver “Perseguição” sem que haja efetiva “violência ou grave ameaça” à vítima, tal como já exemplificado linhas volvidas.

Em ocorrendo causas de aumento de pena previstas no § 1º., do artigo 147 – A, CP, o crime não será mais de menor potencial, eis que pena máxima ultrapassará o patamar de dois anos. O mesmo se diga se houver concurso com crime de lesões corporais ou outros crimes violentos. Nesses casos, a lei manda aplicar o cúmulo material (concurso formal impróprio) e então novamente a pena resultante necessariamente será maior do que dois anos (vide artigo 147 – A, § 2º.). É oportuno lembrar que as Súmulas 723, STF e 243, STJ, estabelecem que no caso de concurso material ou formal de crimes ou mesmo crime continuado, a pena “in abstrato” considerada para benefícios da Lei 9.099/95 é aquela resultante da somatória (cúmulo material) ou do aumento aplicado (exasperação). Observe-se, porém, que em se tratando de vias de fato (artigo 21, LCP) não haverá cúmulo material, mas absorção ou consunção.

Não parece ter agido o legislador com o devido rigor que o crime mereceria. Para que a questão fosse tratada como infração de menor potencial em regra, não seria necessária a elaboração de legislação nova. O artigo 147 – A, CP, em virtude da pena irrisória prevista, parece poder ser considerado um exemplo de insuficiência protetiva.

Também critica a incoerência do legislador quanto à eleição do preceito secundário o autor Bruno Gilaberte:

Perceba-se a incoerência do legislador ao criar um tipo penal de menor potencial ofensivo (sanção máxima de dois anos), ao mesmo tempo em que comina pena de reclusão, ao invés da detenção, mais adequada à sua extensão temporal. Entendemos injustificada e desproporcional a opção. [47]

A inconsistência e erraticidade do legislador no estabelecimento da sanção penal são tamanhas que induzem a erro a melhor doutrina. No excelente trabalho de Costa, Fontes e Hoffmann, afirmam os autores que não seria possível o uso de interceptação telefônica para apuração do crime de “Perseguição”, uma vez que tal somente é permitido para crimes apenados com “reclusão”. [48] Mas, o crime enfocado é apenado com reclusão, cabendo, portanto, em tese, a interceptação! É evidente que os autores foram induzidos a equívoco pela atuação errática do legislador que cria uma infração de menor potencial com pena de reclusão. Uma pequena distração e a aplicação de um raciocínio de coerência, leva os autores a um equívoco de pensarem que o crime seria apenado com detenção. Afinal, pensar com coerência vai à contramão daquilo que norteou a conduta do legislador! Por outro lado, estão corretos os autores quando informam que não será possível o uso de captação ambiental, já que esta somente pode ser aplicada em crimes de pena máxima acima de 4 (quatro) anos, nos termos do artigo 8º. – A, II, da Lei 9.296/96. [49] E estão certos até mesmo se houver causas de aumento de pena previstas no artigo 147 – A, § 1º., I, II e III, já que o acréscimo é de metade e então a pena máxima chegaria somente a 3 (três) anos. A única hipótese em que poderia ser cabível, em tese, essa espécie de investigação, seria no caso do cúmulo material com violência, mesmo assim em se tratando de lesões graves, gravíssimas, seguidas de morte ou qualificadas por violência doméstica (inteligência do artigo 147 – A, § 2º. c/c artigo 129, §§ 1º. a 3º. e 9º., CP).

A ação penal é pública condicionada à representação do ofendido, nos termos expressos do artigo 147 – A, § 3º., CP.

O prazo decadencial de seis meses para representação começa a correr do conhecimento da vítima sobre a identidade do infrator (artigo 38, CPP). Portanto, em situações de atuação anônima em geral ou, como é bastante comum, em meios informáticos, o prazo decadencial somente passará a correr a partir da identificação do autor.

Mesmo nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher a ação penal é pública condicionada à representação da ofendida, pois que não houve qualquer excepcionalidade quanto a isso por parte do legislador. No entanto, se houver prática de violência física, ainda que com lesões corporais de natureza leve ou vias de fato, a ação penal será pública incondicionada, nos termos do artigo 101, CP (crime complexo) e de acordo com a Súmula 542, STJ (“A ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada”). No mesmo sentido decidiu o STF na ADI 4424 e ADC 19. [50] Além disso, quanto às vias de fato (artigo 21, LCP), STF e STJ têm reconhecido a abrangência de contravenções penais pela Lei 11.340/06, aplicando-se, portanto, as limitações do artigo 41 desse diploma e afastando a Lei 9.099/95 nos casos envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher. Conforme destaca Cunha:

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vem se manifestando quanto à natureza pública incondicionada da ação penal em caso de delitos de vias de fato praticados mediante violência doméstica e familiar contra a mulher” (AgRg no REsp 1.738.183/AM, Sexta Turma, j. 27/11/2018). [51]

Como já exposto, sabe-se que no caso das vias de fato a contravenção penal será absorvida pelo crime de Perseguição. Mas, isso não afasta, como se entende neste trabalho, a alteração da ação penal para incondicionada, já que se tratará de violência doméstica e familiar contra a mulher em situação de complexidade infracional, não se podendo olvidar que as vias de fato serão “elemento ou circunstância do tipo penal” do artigo 147 – A, CP (inteligência do artigo 101, CP).  


9-COMPETÊNCIA PARA PROCESSO E JULGAMENTO E ATRIBUIÇÃO DE POLÍCIA JUDICIÁRIA

A competência para o processo e julgamento do crime de “Perseguição” será, em regra, da Justiça Comum Estadual. A atribuição de Polícia Judiciária, portanto, será também em regra da Polícia Civil.

Como bem observam Costa, Fontes e Hoffmann, a competência poderá ser da Justiça Federal e a atribuição de investigação da Polícia Federal, acaso o crime seja perpetrado pela internet com característica de transnacionalidade, nos termos do artigo 109, V e 144, § 1º., I, CF. Também poderá ocorrer essa competência e atribuição federal se a vítima for agente público federal no exercício ou em caso relacionado à função, nos termos do artigo 109, IV e 144, § 1º., I, CF. Também mencionam os autores referidos o caso de atribuição da Polícia Federal (sem que a competência seja da Justiça Federal), quando o fato ocasionar “repercussão interestadual ou internacional e exigir repressão uniforme”, bem como se praticado contra mulher em caso de misoginia via internet (inteligência dos artigos 1º.,  III e VII da Lei 10.446/02 e artigo 144, § 1º., I, CF). [52]


10-CAUSAS ESPECIAIS DE AUMENTO DE PENA

No artigo 147 – A, § 1º., são previstas causas especiais de aumento de pena  da ordem de metade para o crime de “Perseguição”. São elas:

I-Crime cometido “contra criança, adolescente ou idoso”. A exasperação da reprimenda se justifica diante da hipossuficiência em geral de tais pessoas, bem como do tratamento constitucional e ordinário que lhes confere especial proteção. Crianças serão os menores de 12 anos e adolescentes aqueles com doze anos completos, mas menores de 18 anos, nos termos do artigo 2º., da Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Por seu turno, os idosos serão aquelas pessoas com 60 anos completos ou mais, de acordo com o artigo 1º., da Lei 10.741/03 (Estatuto do Idoso). Tendo em vista que ambas as causas de aumento têm razões etárias, sua comprovação nos autos deve dar-se pela juntada de documento comprobatório da idade da vítima (v.g. Certidão de Nascimento). Observe-se que não há necessidade de que o crime enfocado se dê em situação de violência doméstica e familiar para que esta causa de aumento de pena seja aplicada. Considera-se a situação de maior vulnerabilidade das pessoas ali elencadas em qualquer circunstância. É lamentável, conforme bem destaca Gilaberte, que o legislador tenha se olvidado dos deficientes, não sendo possível utilizar analogia para a aplicação do aumento. [53]

II-Crime cometido “contra mulher por razões da condição de sexo feminino, nos termos do § 2º. – A do art. 121 deste Código”. O aumento é aplicável sendo a vítima “mulher” e havendo a situação de violência doméstica e familiar ou misoginia em identidade ao tratamento dado à configuração da qualificadora do “Feminicídio”.

Não resta dúvida de que em sendo a vítima “mulher”, a exasperação deverá ocorrer independentemente da espécie de relação (heterossexual ou homoafetiva feminina). Lembra com percuciência Gilaberte que o conceito de gênero é acatado, com centralidade, pela Lei 11.340/06 para caracterização da violência doméstica e familiar contra a mulher. [54] Acrescente-se que a Lei Maria da Penha é explícita em estabelecer que a proteção especial à mulher independe de “orientação sexual” (artigo 2º., da Lei 11.340/06), conceituando a violência doméstica e familiar contra a mulher como ações ou omissões lesivas “baseadas no gênero”, enquanto cultura de dominação e discriminação da mulher (artigo 5º., “caput”, da Lei 11.340/06). Finalmente, é de se salientar que o artigo 5º., em seu Parágrafo Único, deixa claro o fato de que “as relações pessoais” tipificáveis como violência doméstica e familiar contra a mulher “independem de orientação sexual”. Portanto, não resta dúvida de que a mulher em relação homoafetiva que sofra “Perseguição” de parceira será especialmente protegida pela causa de aumento em estudo e isso não configura analogia “in mallam partem” contra a infratora, mas simplesmente uma interpretação sistemática que dá o devido alcance à norma.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Não obstante resta uma dúvida: estariam abrangidos nessa causa de aumento de pena os casos em que a vítima for um transexual do sexo masculino ou mesmo um travesti?

Nesses casos, não se trata propriamente de uma “mulher” ou de envolvimento de uma “condição do sexo feminino”, conforme a dicção legal e também não há menção na lei, como poderia ocorrer, de especial proteção aos transexuais e travestis.

Acontece que tendo em vista decisões do STF a respeito do tratamento a ser dado a transexuais e travestis, reconhecendo-os como “mulheres” por meio da simples impressão subjetiva externada, sem necessidade de sequer alteração do registro civil e/ou realização de cirurgia de redesignação sexual, é de se esperar que a maioria da doutrina e, com ainda mais certeza, a jurisprudência, equipare os transexuais e travestis para fins de configuração da causa de aumento em estudo, afastando a argumentação de analogia “in mallam partem” com relação ao condenado(a).

Essa posição que radicaliza a influência do gênero já era reconhecida em março de 2018 no julgamento pelo STF da ADI 4275, sendo fato que em data de 15.08.2018 (RE 670.422) foi firmada a seguinte tese por aquele Tribunal:

"O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa". [55]

Em que pese ser este o provável norte interpretativo predominante na doutrina e na jurisprudência, tendo em vista o “status quo” da mentalidade reinante, inclusive no mundo jurídico, moldada sob o influxo da chamada “Ideologia de Gênero”, discorda-se de tal orientação e considera-se que a causa de aumento de pena somente poderia ser aplicada sendo a vítima realmente uma “mulher” (sexo feminino) ou, no máximo, uma pessoa que teve seu registro civil alterado e agora, para todos os fins legais, é uma “mulher”, certamente havendo se submetido a procedimento de mudança de sexo. O mais configura malsã analogia “in mallam partem” escancarada.

É preciso não se deixar enredar por uma cômoda atitude que Anders denominaria de “congruísta”, ou seja, pensar e agir (por covardia, preguiça mental ou conveniência) da forma que lhe é imposta ou destinada pelo entorno sócio – cultural, deixar-se fazer o que quiser de si e sentir somente o que se espera que se sinta. [56] Enfim, entregar-se ao que o autor chama de um “monólogo coletivo”, caracterizado por uma sociedade “conformista” em altíssimo grau, a ponto de o conformismo não ser mais notado como tal, mas como se fora um elevado senso de responsabilidade. Isso nos faz sermos “duplamente não livres”, eis que “somos privados até da liberdade de perceber nossa falta de liberdade”. [57]

A “Ideologia de Gênero”, chamada de “Teoria” com pretensões “científicas” na área das “Ciências Humanas”, chega a ser histriônica, valendo lembrar a assertiva de Sertillanges:

“A ciência só é o que deve ser nas naturezas fortes. Em raras mãos ela é um cetro; nas outras não passa de um cetro de bobo”. [58]

Dip com razão manifesta sua estranheza quanto ao fato de que, de acordo com a “Ideologia de Gênero” a “identidade biológica, que é física, seja, segundo alguns, um construto social, mas a ‘identidade psicológica’, não, e que se possa preferir esta àquela, não somente num plano individual, senão que imposto a toda a sociedade”. [59]

Ocorre que, como acontece com toda ideologia, “a ideologia de gênero fundamenta-se não na realidade, mas numa concepção de mundo. Ela parte do ‘dever ser’ tal qual entendido por alguns, e não do mundo como ele é”. [60]

Exatamente por seu caráter ideológico essa linha de pensamento torna-se praticamente irrefutável (o que a afasta novamente de qualquer caráter científico). Afinal é sabido que a ideologia é invencível, não se permitindo atingir nem mesmo pela notoriedade do erro e tornando-se, dessa forma, “dogmática e fideísta”. Nesse passo é até mesmo difícil encontrar argumentos capazes de convencer seus adeptos de seu equívoco. Quanto mais absurda uma “teoria”, “impressão” ou “ideia”, mais difícil é demonstrar o erro para seus aderentes.  Não sem razão aduzem Oliveira e Serpentino ser “das atividades intelectuais mais difíceis, convencer alguém de que existem diferenças entre quadrados, círculos e triângulos”. Isso porque “se um simples olhar intelectualmente honesto não convence o indivíduo de que quadrados, círculos e triângulos são diferentes, há poucos argumentos (se é que haverá algum) capazes de convencê-lo”. O trabalho deletério da “desonestidade” ou da “deformação intelectuais” é de tal forma profundo “que argumentos (que pressupõem sempre a abertura do interlocutor ao convencimento) dificilmente o demoverão de sua posição”. [61]

Pode-se dizer que como na frase atribuída a Nelson Rodrigues, trata-se de um caso em que “o fracasso subiu à cabeça”. Acata-se como máxima insuperável de intelectualidade a adoção de uma espécie de nominalismo mágico que se mostra capaz, supostamente, de identificar o dever ser, ou pior, o querer ser com o próprio ser. O signo se confunde com o referente. O signo não é mais apenas um símbolo, uma forma de expressão linguística. Magicamente, ele se materializa na realidade da vida. Usam-se os signos “mulher” e “homem” sem mais necessidade de referentes concretos da vida real e nessa confusão de signo e referente também se perde o alcance do significado das palavras e sua correspondência ou não com as coisas ou as pessoas. Não é possível perder a capacidade de discernir entre o signo e a coisa em si sem perder a coerência. Necessário lembrar o dito atribuído a Aristóteles: “A palavra cão não morde”. [62] É claro que as palavras muitas vezes são dotadas de polissemia, mas isso ocorre em situações ou contextos nos quais é possível facilmente distinguir o sentido empregado. Trata-se exatamente do oposto de buscar uma identidade no que é diverso ou unicidade no que é plural. A função polissêmica das palavras serve exatamente para marcar seus diversos significados em circunstâncias ou contextos diferentes, não para homogeneizar aquilo que é distinto.

Essa diluição dos seres em uma espécie de massa indeterminada, desconsiderando seus componentes sexuais, biológicos, genéticos etc., não se adequa à vida concreta, gerando uma série de problemas (v.g. encarceramento em mesma cela de homens e mulheres com base no gênero; homens disputando lutas e levantamento de peso em prejuízo esportivo para mulheres, entre outras situações aberrantes). Em suma, a “Ideologia de Gênero” nunca satisfez e nem satisfará a prova proposta pelo filósofo Brunschvicg, qual seja, a de suportar o seu “próprio ideal”. [63]

Aplicar um “Princípio de Identidade” quando isso não corresponde à realidade é uma forma de criar deliberadamente um paralogismo, usando os esquemas lógicos para abrigar a insanidade e tentar justificá-la formalmente, olvidando ou ocultando o vazio material ou substantivo que ali se encontra. Essa espécie de racionalização sem sustento na “presença” real dos seres certamente seria capaz de fazer com que um filósofo do “Realismo do Bom Senso ou do Senso Comum”, como Thomas Reid, [64] se sentisse diante de uma barbaridade. Isso porque o primeiro alvo atingido de morte por essas “teorias” (sic) é exatamente o mais mínimo bom senso. E como nos lembra Dostoiévski, “é preciso ser um grande imbecil para saber resistir ao bom senso”. [65] Para Reid a filosofia “não tem outra raiz senão os princípios do bom senso; cresce desses princípios e tira sua nutrição deles”. O bom senso é para o mencionado autor “a experiência pré – teórica” fornecedora do material inicial para as teorias filosóficas, científicas, morais etc. Então, “o papel da filosofia é explicar por que é possível saber as coisas que já sabemos por experiência”. O conhecimento experiencial, por presença, serve para testar o erro de supostas teorias. Se um filósofo ou cientista elabora um sistema abstrato que é contraditório com “verdades evidentes por si mesmas”, pode-se ter certeza de que há algo de errado. Enfim, “adotar uma filosofia que nega as verdades conhecidas pela experiência é arrematada loucura”. [66] Como afirma Chesterton, com a sabedoria que lhe é peculiar, não é uma boa ideia tentar libertar um triângulo da suposta “prisão” de ter três lados. Isso pode ter efeitos nefastos. [67]

Não é que as pessoas sejam em sua maioria imbecis, incapazes, desdotadas de intelecto e do mais mínimo bom senso. Acontece que sofrem um influxo muito pungente e sutilmente constrangedor, o qual acaba moldando suas mentalidades, ainda que em prejuízo das noções mais notórias. Dessa forma, “há quem julgue estar voando, quando, na verdade, apenas serrou o galho sobre o qual estava sentado”. [68]

A situação é similar àquela descrita pelo personagem Laurent Pasquier do romance de Duhamel:

Ingeri, desde o começo, certas beberagens que me envenenaram para o resto dos meus dias. É preciso que me debata agora com uma razão pesada que me não satisfaz,  mas que me deu hábitos tirânicos, dos quais pressinto que nunca me verei livre. [69]

A falta de uma reação a demonstrar a absurdidade de certos malabarismos jurídicos levados a termo por um ativismo judicial injustificável permite até mesmo que legislações com conteúdo semântico bem determinado e induvidoso, sejam manipuladas diante de um público leigo e mesmo profissional inerte ou condescendente. E isso é derivado das circunstâncias “congruístas” do “monólogo coletivo” que a tantos atinge e domina, em prejuízo do exercício individual do simples bom senso. Está então exposta a fragilidade dos princípios e da autoridade da lei diante de condicionamentos os mais diversos, movidos por ideologias de toda sorte, ao ponto em que pensar em segurança jurídica já é algo quase inviável.

Como ensina Torres:

Os princípios de legitimidade são, diz Ferrero, fios de seda que seguram dragões. São inteiramente inúteis se a vontade livre dos homens se recusa a obedecê-los – surgem inesperadamente como fortíssimos nas horas solenes em que queremos justificar o direito de obediência que normalmente existe por força do hábito e de necessidade e pela ausência de meios da maioria para desobedecer. [70]  

Quando, com sustento em um suposto “Princípio de Legitimidade”, a própria legitimidade se sobrepõe à autoridade da lei ao ponto de perverter ou contradizer sua expressão semântica de forma grotesca, percebe-se, conforme ilustra Torres, citando Guglielmo Ferrero numa belíssima figura de linguagem, que a legitimidade como limite ao arbítrio equivale a “fios de seda que seguram dragões”. Nesse passo, ideologias, por mais estapafúrdias ou absurdas que sejam, podem desconstruir todos os alicerces do edifício jurídico baseado na legalidade, no rigor hermenêutico, na segurança jurídica possível e até mesmo na correspondência mínima entre a abstração legal e o mundo concreto.

Ciente de que a crítica ora exposta seja ainda menos que um “fio de seda”, é assim mesmo gratificante não se render à massificação de ideologias, propondo uma contenção da consideração das questões de gênero, cujo limite não permita a infração cega às ciências naturais e nem às ciências normativas, tal qual ocorre com o Direito no que tange à questão da analogia “in mallam partem” e da interpretação violadora da carga semântica da lei.

É preciso reconhecer e denunciar que a radicalização das questões de gênero é uma hipótese ideológica de caráter dogmático – religioso, informada por traços fideístas e fanáticos que se mostram irracionais e anticientíficos, pois perpetram, de um só roldão, um radical negacionismo injustificável de várias áreas do conhecimento, tais como a ontologia, a antropologia, a história, a biologia, a genética, a medicina, a fisiologia e até mesmo a anatomia. Tudo isso submetendo o objetivo ao meramente subjetivo e voluntarista e pretendendo que o primeiro e não o segundo seja produto de uma suposta “construção social”.

III-Crime cometido “mediante concurso de duas ou mais pessoas ou com o emprego de arma”. Tanto o concurso de agentes como o emprego de arma são circunstâncias que aumentam consideravelmente o potencial lesivo e intimidativo da conduta criminal, razão pela qual são também eleitos como causas especiais de incremento da pena.

Haverá concurso de agentes ainda que o coautor seja inimputável (menor de 18 anos ou alienado mental). É claro que o menor será processado e julgado por “ato infracional” no respectivo “Juízo da Infância e Juventude”. Quanto ao inimputável mental, poderá ser processado e julgado no juízo comum, mas receber absolvição imprópria, com aplicação de medida de segurança. Não obstante, esses fatores diferenciadores do procedimento não afastam o fato de que há concurso de “pessoas”, já que tanto o menor como o alienado não perdem sua personalidade devido à questão etária ou à doença mental. Também há de reconhecer o concurso quando apenas um dos envolvidos for responsável pelos atos de assédio ou perseguição, enquanto que o outro é o mandante ou autor intelectual do ilícito. Note-se que o inciso III em estudo menciona como causa de aumento o “concurso de pessoas”, de modo a abranger suas duas espécies (coautoria e participação). [71] Entretanto, há que mencionar o fato de que se um maior atuar em concurso de agentes com um menor, além de responder pelo crime majorado pelo concurso de pessoas, deverá ser responsabilizado pelo delito de “Corrupção de Menores” previsto no artigo 244 – B do ECA (Lei 8.069/90), em concurso formal. Não há falar em “bis in idem”, pois que os ilícitos perpetrados tutelam bens jurídicos diversos. O artigo 147 – A, CP tutela da liberdade individual e tem por vítima a pessoa objeto da perseguição. Já o artigo 244 – B, do ECA se refere à conduta de praticar infração penal com um menor, provocando sua corrupção moral, sendo, portanto, o bem jurídico visado a formação moral da criança ou do adolescente. Ademais, a vítima do artigo 244 – B, do ECA também é diversa, pois que é o próprio menor (criança ou adolescente) envolvido em atividade criminal. [72]

No que tange ao emprego de arma, o termo deve ser interpretado em um sentido amplo, abrangendo tanto armas próprias (pistolas, revólveres, facas militares etc.) como impróprias (faca de cozinha, machado, foice, enxada, tesoura etc.). [73] Também podem ser armas de fogo ou armas brancas, já que não há limitação na dicção legal.  No entanto, é necessário que a arma seja efetivamente utilizada na ação, ao menos através de seu porte ostensivo, intimidando a vítima. No que tange à arma de brinquedo, com o cancelamento do Súmula 174, STJ, entende-se que não serve para qualificar o crime. [74]

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Perseguição, stalking ou assédio por intrusão – Lei 14.132/21. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6576, 3 jul. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91385. Acesso em: 23 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos