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Rebus sic stantibus: teoria da imprevisão na pandemia.

A flexibilização do pacta sunt servanda é extraordinária, mas possível

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23/07/2021 às 15:46
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A pandemia como fenômeno imprevisível

Assentadas as premissas, vale experimentar o modelo numa ocorrência atual de alcance mundial, que é a pandemia da Covid-19[11]. Embora constitua fato notório, a situação foi oficialmente reconhecida pela OMS em 30 de janeiro de 2020[12].

Em 11 de março de 2020 a OMS declarou que a doença se tornou pandêmica. A diferença entre epidemia e pandemia é apenas de alcance geográfico, já que nesta a abrangência é de várias regiões do mundo. No Brasil, a Portaria 188, de 4 de fevereiro de 2020 declarou estado de “Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional”, com base nos critérios do Decreto 7.616/2011.

A autoridade máxima de saúde com competência para a gestão das ações relativas à pandemia é o Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública, capitaneada pela Secretaria de Vigilância em Saúde, sob as diretrizes diretas do Ministro da Saúde. A partir daí foi editada a Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020 (Lei da Covid-19), dispondo sobre as medidas[13] de enfrentamento da emergência e atribuindo ao Ministro da Saúde a competência para definir a  respectiva duração. A Portaria 356/2020 do Ministério da Saúde regulamentou a adoção das medidas pelos gestores locais. Depois disto diversas medidas provisórias e outras normas foram editadas sobre a matéria. Em 20 de março do mesmo ano foi publicado pelo Congresso Nacional o Decreto Legislativo 6, com o reconhecimento de estado de calamidade pública.

A pandemia constitui fato extraordinário e imprevisível, evidentemente. Também se pode verificar a excessiva onerosidade suportada pelo devedor. Como se fora um ambiente de guerra, o cenário é de doença e morte num ritmo avassalador; é também um panorama de desemprego generalizado e de empresas em estado falimentar. Claro que é necessário ponderar, a cada caso, se o contratante está em situação de onerosidade excessiva, dada a vulnerabilidade em que se encontra. Não há de ser qualquer empresa em qualquer caso, mas naqueles em que a capacidade econômica tiver sido efetivamente afetada.

Com relação ao requisito da vantagem em contrapartida, calha a lição de André Perin Schmidt Neto[14], que brilhantemente recorre a uma alegoria:

“Entendendo o equilíbrio contratual como uma balança, é possível metaforicamente compreender a desnecessidade deste requisito quando percebemos que, para desequilibrá-la, não é imprescindível que se transfira o peso de um prato para outro, basta que se retire de uma das bandejas da balança.”

Ou seja, se importa para a imprevisão o desequilíbrio, a lesão da parte torna despiciendo o excesso oposto. Mas ainda que fosse exigida a vantagem exagerada, esta deve ser verificada, como os demais requisitos, objetivamente, no momento da execução. Assim, se o credor já tiver cumprido sua parte no contrato e resta apenas a do devedor, a quem toca realizar o pagamento, há nítida diferença. Se o credor cumpriu sua parte antes da mudança circunstancial do contrato, está em vantagem no momento posterior, relativamente ao devedor, que ainda não o fez. Se ambos não tivessem ainda adimplido, então a relação estaria equilibrada, sem vantagem ou desvantagem; diversamente, o prévio cumprimento põe a parte em vantagem, já que não remanesce ônus.

De outra banda, e justamente por conta da pandemia, estão as restrições legais impostas às atividades econômicas. Em algum momento normas federais e estaduais reduziram total ou parcialmente as atividades econômicas não essenciais. Com força operacional pela metade, as empresas já não têm capacidade de honrar com seus compromissos financeiros.

Há, portanto, o fato (pandemia) e a consequência (crise econômica), e ambos se subsumem ao conceito da mudança circunstancial ao negócio[15]. Vê-se, então, que seja diretamente pela força maior da pandemia que interrompe o giro da Economia, seja pela restrição direta à atividade, de qualquer modo a empresa fica sem qualquer condição de funcionar[16] e está acionado o gatilho da teoria da imprevisão.


[1] Diz o texto: “§ 48 Se um awllum tem sobre si uma dívida e Adad inundou seu campo, ou a torrente carregou, ou por falta de água não cresceu grão no campo: naquele ano ele não dará grão a seu credor, ele umedecerá sua tábua e não pagará os juros daquele ano.” Tradução de E. Bouzon em O Código de Hamurabi. Vozes, 3ª ed, Petrópolis, 1980, p. 40. O autor explica que awllum era equivalente a cidadão, e Adad era o deus babilônico da tempestade. E contextualiza: “Os contratos babilônios eram redigidos em tábuas de argila, geralmente, secas ao sol. Se a superfície escrita era molhada o texto tornava-se ilegível e assim o contrato era anulado.”

[2] O termo “cláusula” aqui tem o sentido de preceito, e não subdivisão contratual. Daí porque a rebus sic stantibus se aplica desde que presentes os requisitos, prescindindo de uma previsão expressa no pacto. Neste sentido Walter Mujalli in Teoria Geral dos Contratos. Volume I. Bookseller: Campinas, 1998, p.54.

[3] Os filósofos romanos Cícero (106-43 a.C.) e Sêneca (4 a.C-65 d.C.) deixaram escritos princípios morais que faziam referência ao conceito da rebus sic stantibus. Séculos depois, há registros no Corpus Juris Civilis, mais especificamente no Digesto, um compêndio jurisprudencial do Direito Romano, por volta do ano 530, com passagens de Africano e Neratio (José Vicente Hurtado Palomino em La Clausula rebus sic stantibus em el contrato de compraventa de cosa futura esperada. Revista de Derecho, 44, 2015. Disponível em http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0121-86972015000200007 #num10. Acesso em 02.4.2020.) A expressão apareceu pela primeira vez muito depois com o Direito Canônico, no século XII, pelas mãos do monge Graciano na obra Concordia Canonum Discordantium. Mas foi do jurista italiano Andrea Alciati, no século XVI, a fórmula original da expressão que até hoje permeia os trabalhos doutrinários: “Contractus qui habent tractum successivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur” (Contratos que tem trato sucessivo e dependem de [cumprimento] futuro entendem-se estando assim as coisas). Daí a expressão rebus sic stantibus (estando assim as coisas).

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[4] CASTRO, Adriano Augusto Pereira de. Desconstruindo a teoria da imprevisão. Disponível em http://blog.newtonpaiva.br/ direito/wp-content/uploads/2012/08/PDF-D11-02.pdf. Acesso 02.4.2020.

[5] ZUNINO NETO, Nelson. Pacta sunt servanda x rebus sic stantibus: uma breve abordagem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n.31, 1°.5.99. Disponível em https://jus.com.br/artigos/641. Acesso em: 2 abr. 2020.

[6] Curso de Direito Civil. Saraiva: São Paulo, 1969, 6.ed., p. 12.

[7] Teoria Geral dos Contratos. Volume I. Bookseller: Campinas, 1998, p.53.

[8] Contrato. 2. Ed., Renovar: São Paulo, 2002, p.161.

[9] Código Civil anotado, Saraiva, SP, 2006, p. 443

[10] “Art. 898. Só pode obter moratória o comerciante que provar, que a sua impossibilidade de satisfazer de pronto as obrigações contraídas procede de acidentes extraordinários imprevistos, ou de força maior (art. 799), e que ao mesmo tempo verificar por um balanço exato e documentado, que tem fundos bastantes para pagar integralmente a todos os seus credores, mediante alguma espera.” Entende-se que esta parte, inobstante não revogada expressamente, tenha sido tacitamente pela Lei de Falências, hoje subsituída pela Lei da Recuperação Judicial.

[11] De acordo com a Organização Mundial da Saúde – OMS (www.who.int), o nome oficial do vírus é Sars-Cov-2, e da doença é Covid-19. Coronavírus é a família viral – e por isso vem sendo chamado de novo Coronavírus. Sars é o tipo (SARS: severe acute respiratory syndrome, ou “síndrome respiratória aguda grave”). Esse numeral 2 representa a variação descoberta agora. Em 2002 houve a Sars-Cov-1, na China.

[12] Conforme ata de reunião do Comitê de Emergência do Regulamento Sanitário Internacional, a OMS declarou que “o surto de 2019-nCov constitui um PHEIC”. PHEIC é a sigla de Public Health Emergency of International Concern, que significa “Emergência de Saúde Pública de Interesse Internacional”. Foi a sexta vez que esta emergência foi declarada (antes, H1N1 2009, Poliovírus 2014, Ebola 2014, Zika 2016 e Ebola 2018), mas nunca com a dimensão de agora.

[13] A lei dispõe sobre oito espécies de medidas para enfrentamento da emergência: a) isolamento; b) quarentena; c) exames e tratamentos compulsórios; d) estudos epidemiológicos; e) exumação e cremação cadavérica; f) restrições em rodovias, portos e aeroportos; g) requisição de bens e serviços particulares; h) importação excepcional de produtos sem registro na Anvisa. As medidas podem ser tomadas pelo Ministério da Saúde ou pelos gestores locais de saúde.

[14] Revisão dos contratos com base no superendividamento: do código de defesa do consumidor ao código civil. Porto Alegre, 2010. Disponível em https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183 /198750/000752555.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em 02 abr 2020.

[15] Diz o Enunciado 175 do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, sobre o art. 478 do Código Civil: “A menção à imprevisibilidade e à extraordinariedade, insertas no art. 478 do Código Civil, deve ser interpretada não somente em relação ao fato que gere o desequilíbrio, mas também em relação às conseqüências que ele produz.”

[16] O funcionar aqui se refere à plena atividade de uma empresa, que envolve o faturamento, a geração de receita. Isto porque é da natureza da empresa a atividade econômica (CC, art. 966), e integra o resultado do exercício a receita (Lei 6.404/76, art. 187).

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Sobre o autor
Nelson Zunino Neto

Advogado, pós-graduado em Direito Eleitoral e em Direito Ambiental, atuante principalmente em Direito Eleitoral, Empresarial, Administrativo e Civil. Autor do livro Tempo mínimo de propaganda eleitoral em rádio e tv, 2020.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZUNINO NETO, Nelson. Rebus sic stantibus: teoria da imprevisão na pandemia.: A flexibilização do pacta sunt servanda é extraordinária, mas possível. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6596, 23 jul. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/92015. Acesso em: 21 nov. 2024.

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