SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. Teoria Pura do Direito e seus Princípios da Pureza - 2.1. Neutralidade - 2.2. Formalismo e Estrutura Lógica da Norma Jurídica - 2.3. Validade, Norma Fundamental, Constituição e Sistema Dinâmico de Normas Jurídicas - 2.4. Hermenêutica Jurídica e as Molduras das Normas Jurídicas.
1. INTRODUÇÃO
A Teoria Pura do Direito elaborada por Hans Kelsen é no mínimo o resultado de quarenta anos de estudos. Afinal, alguns pressupostos dessa teoria já aparecem no seu ensaio Problemas Relevantes de Teoria do Direito e do Estado (Hauptproblemen der Staatsrechtslehre), de 1911. Mas é tão somente nos anos 30 que surge a primeira edição da Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre, 1934). Anos depois, essa teoria do direito sofreu alterações significativas com as publicações da Teoria Geral do Direito e do Estado (General Theory of Law and State) em 1945 e da edição francesa Theórie Pure du Droit de 1953. O "burilamento final" da Teoria Pura do Direito só veio com a publicação da sua segunda edição em 1960.
Ao longo de algumas subseções procuramos entender como Hans Kelsen (2003, 2005) na sua Teoria Pura do Direito (TPD) consegue, em parte, conferir ao direito uma identidade epistemológica (ou, no mínimo, uma metodologia). O projeto epistemológico de Kelsen é articulado a partir de três “princípios de pureza metodológica do conhecimento científico-jurídico”, a saber:
(1) Neutralidade;
(2) Formalismo (conceitual e estrutural-lógico);
(3) Validade (técnica e social).
A seguir, estudamos cada um desses princípios, ao mesmo tempo que realizamos investigações pontuais sobre: os modelos de validade da norma jurídica; a estrutura lógica da norma jurídica; as ideias de norma fundamental e constituição; o sistema dinâmico de normas jurídicas e a noção hermenêutica de “moldura” das normas jurídicas, todos como delineados por Kelsen (2003, 2005, 2011).
2. TEORIA PURA DO DIREITO E SEUS PRINCÍPIOS DA PUREZA
Para Hans Kelsen a sua teoria pura do direito, enquanto uma “teoria do direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica específica” (KELSEN, 2003, p. 1) representa a tentativa de reconhecer algo de científico (ou de metodológico) no direito: conceitos, categorias, estruturas, princípios, métodos etc. compartilhados pelos mais variados sistemas jurídicos. Ou seja, Kelsen na TPD pretende realizar uma leitura epistemológica do direito. Com esse objetivo enuncia “princípios de pureza metodológica do conhecimento científico-jurídico” sem os quais entende não ser possível dizer o direito como um tipo de ciência (ou como um tipo de conhecimento que comporta uma metodologia). São eles:
(1) Neutralidade;
(2) Formalismo;
(3) Validade.
Em poucas linhas, os princípios (1)-(3) indicam que o direito-saber (a “ciência do direito” ou talvez, no mínimo, a “metodologia jurídica”) (1) deve ser enunciado(a) pelo jurista que está apto a dizer o “direito como ele é” (descrição do direito que não se vale de juízos de valor extrajurídicos); (2) deve apresentar um formalismo conceitual (vocabulário científico próprio ou metodologia própria) e lógico-estrutural (estrutura linguística e lógica das proposições jurídicas); (3) deve propor uma série de testes que permitam validar ou invalidar as normas jurídicas, sendo estes de ordem técnica (vigência) ou de ordem factual-social (eficácia). Analisemos, na sequência, com mais detalhes essa “metodologia da pureza”.
2.1. NEUTRALIDADE
Ao depararmo-nos pela primeira vez como o curioso título "Teoria Pura do Direito", com o qual Hans Kelsen nomeia o seu “projeto jurídico epistemológico”, somos tomados de imediato pela dúvida: afinal, o que é uma ``teoria pura'' do direito?
Para que possamos entender o porquê de Kelsen não nomear a sua investigação sobre o status científico do direito como “teoria do direito puro”, devemos antes esclarecer a distinção entre as modalidades de “estudo descritivo” e de “estudo prescritivo”.
No ensaio A Objetividade do Conhecimento nas Ciências Sociais e na Política (1904), publicado na obra Ensaios sobre a Teoria da Ciência (publicada em 1922), Max Weber apresenta uma distinção entre julgamentos de realidade e julgamentos de valor. Os primeiros (julgamentos claros, neutros, unívocos, “verdadeiros”) são estabelecidos de forma objetiva pelo cientista a partir de um “saber empírico” de validade incontestável, já os do segundo tipo (julgamentos de valor variável, fluídos, plausíveis) são de ordem subjetiva por estarem fundamentados nas crenças, valores, tradições ou hábitos culturais dos indivíduos. Aqueles que se valem de julgamentos de realidade para desenvolver pesquisa, realizam um estudo descritivo. Por outro lado, os que fundamentam um estudo em julgamentos de valor, produzem um estudo prescritivo. Para Weber, apenas os estudos descritos gozam de legitimidade científica.
Vamos imaginar que um antropólogo seja designado para estudar os costumes (modus vivendi) dos índios Yanomami. Esta comunidade tem o hábito de sacrificar os seus bebês que nascem com alguma deficiência física ou deficiência mental. Esse antropólogo, segundo Weber, pode realizar dois tipos de estudo sobre essa prática: um estudo descritivo ou um estudo prescritivo. No estudo descritivo o antropólogo formula uma descrição objetiva e imparcial do objeto de estudo, de tal maneira que consegue identificá-lo “como ele é”. Como estudo descritivo, por exemplo, temos o relato: “Os Yanomami têm por tradição sacrificar as suas crianças que nascem com algum tipo de deficiência física ou deficiência mental. Esses índios justificam o ato em questão ao afirmarem que essas crianças são membros amaldiçoados (ou membros improdutivos)”. Mas, no momento em que o antropólogo, como ativista dos direitos humanos e militante da tradição judaica-cristã, passa a avaliar tal prática à luz de alguma convicção pessoal ou segundo juízos de valor, produz um estudo prescritivo que diz o objeto de estudo “como ele deve ser”. Temos como exemplo de estudo prescritivo a passagem: “A prática de matar crianças inocentes é um ato de barbárie, uma vez que desrespeita o dever sagrado de amar ao próximo, o direito divino à vida e o preceito moral e político da dignidade da pessoa humana”.
Ao se associar a essa linha de raciocínio weberiana, Hans Kelsen fixa o seu primeiro “princípio da pureza” (ou condição de possibilidade do conhecimento científico-jurídico ou metodológico): a neutralidade do cientista. Para esse filósofo do direito só é possível modelar uma “ciência do direito” (direito-saber) ao se expurgar do conhecimento jurídico todos os elementos que lhe são estranhos e subjetivos: juízos psicológicos, juízos éticos, juízos teológicos, juízos políticos, entre outros [1]. Os juízos estranhos e subjetivos ao direito-saber surgem como “juízos de valor” enunciados pelos não-juristas, como psicólogos, filósofos, teólogos, sociólogos, cientistas políticos etc., ao longo das suas investigações sobre o que vem a ser o direito. Assim, por exemplo, filósofos por intermédio da lente da filosofia podem prescrever “erroneamente” o direito tão somente como uma “teoria da justiça”[2].
Kelsen entende que os não-juristas falham na tentativa de dizer “o que o direito é”, justamente por prescreverem o objeto de estudo: dizendo o que ele deve ser ao invés de afirmarem o que ele é. Ao fazerem isso, acrescentam ao direito características que não pertencem a sua “verdadeira natureza”, ou seja, características do direito que não são propriamente jurídicas. São elas, portanto, “impurezas epistemológicas”. Conclusão: o indivíduo que consegue suspender todo e qualquer juízo de valor, não se deixando influenciar por suas convicções pessoais, experiências de vida, valores, interesses, subjetividades, sentimentos de justiça ou formação intelectual (isto é, é neutro) está apto a descrever o direito como ele é. Em geral, Kelsen parece admitir que esse “ser iluminado e privilegiado” é o jurista (o cientista do direito), o qual, por outras palavras, não se deixar influenciar por pontos de vistas que não aqueles produzidos exclusivamente pela comunidade jurídica e, por conseguinte, pelos meios jurídicos. Logo, a “neutralidade” passa a ser considerada condição constitutiva sine qua non ao direito-saber (ou à teoria pura do direito como ciência do direito ou à pureza metodológica do direito). Todavia, devemos observar que a ideia de direito-objeto (conjunto de normas do ordenamento jurídico) não pode admitir a “neutralidade científica” como um requisito adequado a sua produção e interpretação.
Por outro lado, é possível ainda questionarmos: por que Hans Kelsen não identificou a sua pesquisa acerca do caráter científico (ou metodológico) do direito como se tratando de uma teoria do ``direito puro''?
É fácil percebermos que Kelsen toma como inapropriada qualquer tentativa de construção de uma “teoria do direito puro”. Afinal, no momento que pensamos o direito-objeto (objeto de estudo do direito-saber) como um “direito puro”, estamos cometendo o terrível engodo de entender o “direito posto” tão somente como (1) um conjunto de prescrições de origem dogmática estabelecido exclusivamente pela técnica (ou a partir do modus operandi das práticas dos juristas) ou (2) como um conjunto de normas de conhecimento de caráter científico fixados pela neutralidade cientifica dos juristas que não lhe atribuem elementos extrajurídicos (impurezas) advindos da moral, dos costumes, da política e assim por diante. Isso, evidentemente, não condiz com a realidade, já que o direito-objeto nasce em meio à política, à moral, aos costumes etc.
Essa leitura é equivocada, uma vez que o “direito posto” nasce nas tramas da vida social (política, moralidade, costumes, entre outras) que não podem ser totalmente reduzidas às leituras epistemológicas dos juristas e aos seus procedimentos técnicos. Isso é fácil de se observar, como veremos, nos processos de criação, interpretação (hermenêutica jurídica) e aplicação do direito.
Por fim, recapitulando: cabe ao jurista, em especial, formular um estudo descritivo do direito, evitando assim elaborar todo e qualquer tipo de estudo prescritivo do direito. O estudo descritivo do direito ocorre com a tomada de uma “posição privilegiada” por parte do jurista, mediante a qual esse consegue suspender todo tipo de juízo de valor (ou juízo pessoal). Para tanto, faz uso do Princípio da Neutralidade. O que lhe permite não interferir no objeto de estudo e, na sequência, dizer o direito como ele é. Por outro lado, sociólogos, políticos, filósofos, entre outros (aqueles que não são juristas), como sugere Kelsen, na melhor das hipóteses, parecem ser apenas capazes de realizarem estudos prescritivos do direito que enunciam o direito como ele deve ser. Isso ocorre porque esses estudos são elaborados com base em juízos de valor provenientes dos seus saberes: a sociologia, a política, a filosofia da justiça [3] etc. O que indica que cada qual diz à sua maneira o que o direito deve ser, não fazendo eles, portanto, uso do Princípio da Neutralidade. O resultado disso é a indesejável multiplicidade metodológica para o direito.
2.2. FORMALISMO E ESTRUTURA LÓGICA DAS NORMAS JURÍDICAS
Toda ciência faz uso de um formalismo de linguagem. Já no século XVII, por exemplo, Galileu Galilei elegeu como condição epistemológica essencial à física a linguagem matemática. Não fez isso sem motivação! A matemática mediante símbolos e regras retratam estruturas formais (números, formas geométricas, equações, relações, propriedades etc.), de modo que essa faz silêncio sobre se isto é bom ou mau, justo ou injusto, belo ou feio (não é possível enunciar juízos de valor por meio da linguagem matemática). Com a sua matematização, a física (a física-matemática) desenvolveu um discurso indiferente aos valores e manteve, em razão disso, por um dado tempo, a salvo o princípio da neutralidade [4]. Além do mais, o uso da matemática como linguagem científica oferece a vantagem de uma abordagem mais “enxuta” das teorias (escritas na forma de equações), bem como o seu simbolismo proporciona uma melhor manipulação das leis teorizadas.
O formalismo utilizado por Hans Kelsen (2003, p. 80 ss.) para demarcar alguma cientificidade ao direito se aproxima em vários aspectos do indicado acima, observada algumas particularidades. Kelsen, na verdade, adota na sua TPD um modelo mais modesto de formalismo: o formalismo linguístico e lógico das normas jurídicas. Procede assim na tentativa de garantir como válidos, entre outras condições, à ciência do direito (ou à TPD) o princípio da neutralidade e o princípio da universalidade. Vejamos.
Inicialmente, estipula a norma jurídica como objeto de estudo da ciência do direito. Para Kelsen a norma jurídica funciona como uma espécie de “esquema jurídico de interpretação da realidade”: “o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação normativa” (KELSEN, 2003, p. 02). Ao lermos a nossa Constituição de 1988, por exemplo, deparamo-nos com um conjunto de direitos fundamentais, tais como o direito à igualdade, o direito à liberdade, o direito à saúde e o direito à educação que propõem um mundo no qual todas as pessoas devem ser tratadas como iguais e livres; possam gozar de boa saúde e de uma educação de qualidade. Os direitos fundamentais promulgados pelos constituintes originários podem ser entendidos como “interpretações normativas” (interpretações expressas nas normas jurídicas) que determinam como devemos conceber a ideia de “Estado Brasileiro de Bem-estar Social”. Essas “interpretações normativas” ilustram bem o momento político vivido pelos brasileiros em 1988, os quais levados por uma comoção geral, clamavam aos seus representantes o desejo de viver tempos melhores, deixando dessa forma para trás as arbitrariedades da ditadura militar.
A parir desse paradigma, as autoridades competentes, por intermédio das suas prerrogativas de função (competências ou poderes previstos em lei) assumem a difícil missão de fazer valer o dever-ser contido no direito, resguardando-o das ilegalidades e injustiças da realidade vivida (o ser). Por exemplo, pense no juiz (autoridade competente) que faz uso da sentença (ato de competência) para obrigar o Estado a custear um tratamento de saúde caríssimo para o cidadão que sofre de uma doença rara não acoberta pelo seu plano de saúde ou pelo nosso Sistema Único de Saúde (SUS). Por conseguinte, a realização do tratamento mostra que o juiz faz valer (torna efetivo ou real) a “interpretação normativa” que diz como deve ser um “mundo mais justo”: o mundo no qual todos têm direito à saúde.
Por outas palavras, a norma jurídica é uma prescrição situada no plano do dever-ser que expressa o “ato de vontade da autoridade competente” (ato de vontade do juiz, cuja norma jurídica é a sentença; ato de vontade do legislador, o qual promulga como norma jurídica a lei, e assim por diante). Esse “ato de vontade” pode (1) impor como obrigatória, permitida ou proibida uma conduta ao cidadão (normas jurídicas de conduta) ou (2) pode atribuir poderes a autoridade para a produção de atos jurídicos (normas jurídicas de competência)10.
A norma jurídica (Rechtsnorm) ao registrar na forma de texto (ou na forma de outros signos) a vontade da autoridade competente admite uma contraparte linguística. A leitura lógica dos seus signos revela “relações lógicas” (nem sempre claras na linguagem natural) construídas por certo tipo de raciocínio: o “raciocínio jurídico” (que não é exclusivo dos juristas, mas é típico das autoridades competentes que fazem uso do direito para regulamentar a vida social). Essa matéria é objeto de estudo da lógica das normas jurídicas (em algumas situações nomeada como lógica deôntica). Segundo essa lógica, a norma jurídica pode ser entendida como uma proposição a ser inferida a partir de uma “sentença de palavras” (ou por intermédio de outro meio material, tal como uma placa de trânsito ou um gráfico). Os interpretes (magistrados, promotores, advogados, professores, cidadãos etc.) ao lerem os “significantes jurídicos” (gráficos, símbolos, sentenças ou enunciados contidos na lei, nos contratos, entre outros meios) podem construir um ou mais “significados jurídicos” (interpretações ou “proposições jurídicas”), como esclarece Hans Kelsen:
Proposições jurídicas (Rechtssatz) são juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem que, de conformidade com o sentido de uma ordem jurídica -- nacional ou internacional -- dada ao conhecimento jurídico, sob certas condições ou pressupostos fixados por esse ordenamento, devem intervir certas consequências pelo mesmo ordenamento determinadas. As normas jurídicas (Rechtsnorm), por seu lado, não são juízos, isto é, enunciados sobre um objeto dado ao conhecimento. Elas são antes, de acordo com o seu sentido, mandamentos e, como tais, comandos imperativos. Mas não são apenas comandos, pois também são permissões e atribuições de poder e competência (KELSEN, 2003, p. 80-81).
O direito como “técnica social específica de um ordenamento coercitiva” (KELSEN, 2005, p. 27) visa obter a conduta social desejada através da ameaça de uma medida de coação (sanção negativa[5]) a ser aplicada em caso de conduta contrária. Ao observar a importância da ideia de sanção para o jeito de ser e de funcionar do direito ocidental, Kelsen estipula de imediato que a estrutura lógica da norma jurídica deve ser pensada por influência dessa noção jurídica. Com base nisso, estipula à norma jurídica (ou melhor, à “norma jurídica de conduta”) uma forma lógica própria: a de proposição hipotética, na qual o consequente lógico designa a sanção jurídica.
A proposição jurídica na condição de “proposição hipotética” tem a seguinte estrutura lógica: Se A, deve-ser B. Por exemplo, a partir da leitura do artigo 121 do nosso Código Penal que tipifica o homicídio simples, cujo texto legal é “Matar alguém. Pena - Reclusão, de seis a vinte anos”, o agente pode inferir a proposição hipotética “Se X mata Y, deve-ser X preso”. Em símbolos, podemos escrever a proposição anterior na forma A —>B, tal que “—>” representa o princípio da imputação (expresso pela forma linguística “se..., dever-ser...”) que associa o antecedente fático “A” (tipo legal, fato-tipo ou facti species) ao consequente jurídico “B” (a sanção jurídica).
Conforme Kelsen (2003, p. 84-102), o princípio da imputação representa a possibilidade de se punir alguém pela sua conduta (ação ou omissão), a qual é regulamentada por direitos e deveres. Em termos lógicos, o princípio da imputação pode ser lido como uma espécie de “conectivo precário”. Veja que na proposição jurídica “Se X mata Y, deve-ser X preso” o antecedente fático “X mata Y” se liga de modo “mais ou menos forte” ao consequente jurídico “X preso”. Isso ocorre porque essa “proibição” (a obrigatoriedade de não praticar certa conduta) pode não gerar os efeitos previstos pela sanção, dado que, por exemplo, mesmo que X tenha matado Y é possível que X não esteja preso, podendo X ter fugido da prisão ou ter contratado um advogado habilidoso o suficiente para protelar o processo até o crime prescreva. Não há uma ligação necessária (ou ligação forte) entre o antecedente fático e a consequência jurídica.
Já na proposição lógica “Se ‘Sócrates é homem’ e ‘Todos os homens são mortais’, então ‘Sócrates é mortal’ ”, o vínculo lógico da implicação (cuja forma linguística é “se..., então ...'') que existente entre o antecedente e o consequente é “forte” (ou necessário), pois determina que é impossível pensar à luz das premissas a conclusão de outra forma (dado o antecedente, segue-se por necessidade lógica o consequente). Há, aqui, um determinismo intransponível! No direito não há uma razão lógica para que uma pessoa venha a ser condenada, mas, sim, uma razão jurídica. Essa “razão jurídica”, por sua vez, expressa-se por meio do ato de vontade de um agente competente que fixa um vínculo especial entre o “antecedente fático” e a “consequência jurídica”: a “imputação jurídica” (ou dever-ser jurídico).
A consequência jurídica B expressa uma sanção jurídica, através da qual é possível motivar o cumprimento, na maioria dos casos, de uma norma jurídica [6]. A sanção, nesse sentido, confere a norma jurídica certo grau de obrigatoriedade que gera uma padronização da conduta. Portanto, as normas jurídicas não podem ser consideradas meras sugestões de conduta (ou conselhos), devendo ser tomadas antes como prescrições que vinculam, na medida do possível, as vontades dos agentes às suas hipóteses normativas, de tal modo que eles se sentem fortemente comprometidos a praticá-las.
Por fim, notemos que o formalismo da estrutura lógica A —>B pode ser aplicável para tratar de qualquer conteúdo material do direito. Por exemplo, no Brasil o juiz pode sentenciar alguém por homicídio a pena restritiva de liberdade, enquanto no Estado americano do Colorado o juiz pode vir a atribuir ao homicida a “pena de morte”. Enquanto o judiciário brasileiro adota a proposição jurídica (1) “Se X mata Y, deve-ser X preso”, para os juízes americanos da corte do Colorado pode valer a proposição jurídica (2) “Se X mata Y, deve-ser condenado à pena capital”. Percebam que apesar dos conteúdos dessas proposições serem distintos, já que indicam diferentes “concepções de justiça” (razões que justificam a distribuição ou a restituição de bens jurídicos), são iguais com relação as suas formas lógicas, pois (1) e (2) são expressas formalmente como A —>B. É justamente em razão desse formalismo que Kelsen mostra que o conceito de sanção pode ser pensado como uma categoria universalmente válida no âmbito de qualquer sistema jurídico. Logo, o princípio na universalidade (uma condição de cientificidade) pode ser aplicado ao conhecimento jurídico que faz uso desse tipo de formalismo.
2.3 VALIDADE, NORMA FUNDAMENTAL E SISTEMA DINÂMICO DE NORMAS JURÍDICAS
2.3.1 MODELOS DE VALIDADE DAS NORMAS JURÍDICAS
A validade jurídica é um tema de estudo importante tanto para a teoria do direito como para a prática jurídica. Isso ocorre porquê a primeira busca compreender o “problema do fundamento das normas jurídicas”, já a segunda exige dos juristas que apliquem “normas jurídicas válidas” como solução aos casos jurídicos do cotidiano forense [7].
Duas questões se destacam, e se imbricam, no âmbito dessa investigação: o que podemos entender por “validade jurídica”? Quais são os “modelos de validade das normas jurídicas”? Como proposto na TPD, uma norma jurídica é válida quando cumpre dois “modelos de validade das normas jurídicas”: (1) o modelo de vigência e (2) o modelo de eficácia [8].
A “norma jurídica tem vigência” (validade formal ou validade técnica) quando “ela própria é produzida por um ato jurídico, que, por seu turno, recebe a sua significação de uma outra norma” (KELSEN, 2011, p. 04). Ou seja, para que uma norma seja juridicamente válida deve cumprir uma bateria de testes (“testes de vigência” ou “testes técnico-normativos”) impostos por normas jurídicas especiais do ordenamento jurídico, tais como as normas jurídicas de competência (as quais atribuem prerrogativas de função a um agente público), as normas jurídicas do processo legislativo (que indicam ao legislador os procedimentos necessários para a criação das leis) e os direitos fundamentais (no caso de controle de constitucionalidade). Por exemplo, tomemos a norma de competência do Art. 22, I, da nossa Constituição como um teste de vigência. Este dispositivo legal elucida que é de competência privativa da União legislar, por exemplo, legislar sobre direito do trabalho. Isso significa dizer que apenas os agentes públicos da União, como deputados federais e senadores, podem propor projeto de lei que regulamente assuntos dessa matéria. Portanto, mesmo que um vereador tenha a melhor das intenções ao propor uma lei, por meio de projeto-lei, que institua o décimo quarto salário para todo o seu eleitorado, caso seja publicada, essa deve ser considerada inválida, pois esse agente público é incompetente, isto é, ele não tem a prerrogativa de função para produzir tal ato legislativo (ou ato jurídico) segundo a lei maior.
Outro teste de vigência interessante é o que está proposto no artigo 69 da nossa Constituição de 1988. Até o presente momento não foi regulamentado no Brasil o direito de greve dos servidores públicos, cabendo a uma lei complementar prescrever as nuances desse direito (como propôs o constituinte originário). Um dos procedimentos exigidos pelo processo legislativo para que uma lei desse tipo passe a existir (ou ter vigência) como norma jurídica no ordenamento jurídico (isto é, passe a ser válida) é o que afirma que o quorum de votação de lei complementar é especial (deve contar com a maioria dos que compõe o senado ou a câmera dos deputados).
Já quanto ao segundo modelo de validade tratado na TPD, afirmamos que a “norma jurídica tem eficácia” (efetividade ou validade social) quando percebemos no mundo dos fatos (ou no âmbito das práticas sociais) que essa é realmente aplicada e praticada. Por exemplo, recentemente em alguns Estados da nossa Federação foram promulgadas leis que proíbem o uso de celular no interior dos bancos, talvez como medida protetiva contra assaltos aos caixas de banco. Poucas pessoas cumprem, de fato, essas leis. Logo, elas gozam de pouca eficácia social. Já a “vadiagem” (habitualidade da ociosidade), uma contravenção penal prevista no artigo 59 do decreto-lei 3.688/1941, cuja pena pode variar de 15 dias a três meses de prisão, há muito tempo deixou de ser acatado pelo judiciário das instâncias superiores.
Para Kelsen (2003, p. 12) há uma correlação importante entre a vigência e a eficácia de uma norma jurídica. A norma jurídica vigente deve comportar um “mínimo de eficácia”, sem o qual ela corre o risco de existir apenas no papel (ou em sentido formal). E mais, essa “letra morta da lei” pode até deixar de existir em qualquer plano, caso em que, por exemplo, por meio de uma revolução social todo o ordenamento jurídico é substituído (há uma troca global das normas jurídicas que delineiam a vigência). Por exemplo, superado os tempos difíceis de ditadura brasileira, após o movimento de redemocratização, ab-rogamos a Constituição de 1967, um dos principais símbolos legais desse regime político. Em seguida, aos poucos, buscamos eliminar todo corpo legal desse período. Um bom exemplo disso é o ab-rogação da “lei de imprensa” (lei n º 5250/1967) proposta na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n°130/2009. A lei de imprensa foi assinada pelo ex-presidente Castelo Branco meses depois da outorga da Constituição de 1967, quando o endurecimento do regime militar se iniciava, com o objetivo de restringir a liberdade de imprensa e controlar o fluxo de informações.
2.3.2 NORMA FUNDAMENTAL E CONSTITUIÇÃO
Outro teste de vigência importante que podemos citar como exemplo, sugerido por Kelsen na sua TPD, é aquele estabelecido pela “norma fundamental” (Grundnorm). No contexto do discurso epistemológico da TPD (um discurso que abomina argumentos de ordem metafísica, política ou moral), Hans Kelsen estabelece que a validade de uma norma jurídica não deve ser fundamentada, por exemplo, na ideia de “poder do povo” (argumento político) ou num dado “sentimento de justiça” (argumento de justiça ou argumento moral), mas no “procedimento normativo” que determina relações institucionais de poder: “o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma. Uma norma que representa o fundamento de validade de uma outra norma é figurativamente designada como norma superior, por confronto com uma norma que é, em relação a ela, a norma inferior” (KELSEN, 2003, p. 215). O que leva esse filósofo do direito a reafirmar a tese de Adolf Merkl: o direito pode ser pensado como um “sistema de elaboração de forma escalonada”.
O direito como um “sistema escalonado de normas jurídicas” se comporta como uma unidade, na medida em que todas as normas jurídicas (as suas partes) têm o mesmo fundamento de validade. O fundamento de validade de uma ordem normativa é, na opinião de Kelsen, a norma fundamental, pois dessa se retira a validade de todas as normas jurídicas pertencentes a essa ordem. Desse modo, “uma norma singular é uma norma jurídica enquanto pertence a uma determinada ordem jurídica, e pertence a uma determinada ordem jurídica quando a sua validade se funda na norma fundamental dessa ordem” (KELSEN, 2011, p. 33).
Sabemos, até aqui, que a norma jurídica A que representa o fundamento de validade de outra norma jurídica B é uma norma superiora (A < B). Se levarmos adiante esse raciocínio, devemos especular que a norma jurídica A (dita “superior” a B) deve “extrair” a sua validade de outra norma superior (ou seja, o seu conteúdo normativo deve estar em conformidade com o conteúdo normativo da norma superior), e assim por diante. Mas não faz sentido levar essa lógica até o infinito (regressus ad infinitum). O ideal é que tal investigação estabeleça um fundamento último de validade: “uma norma jurídica que se pressupõe como a última, ou seja, a mais elevada”. Como “norma mais elevada”, ela tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade cuja competência teria de se funda numa norma ainda mais elevada. Como a sua validade já não pode ser “derivada” de uma norma mais elevada, então o seu fundamento de validade não deve ser posto em questão. Esse tipo de norma, pressuposta como a mais elevada e válida em si, é designada por Kelsen (2003, p. 217) como “norma fundamental”.
Dito isso, fica fácil compreendermos que a “norma fundamental” não se confunde com a Constituição de um país, devendo a norma fundamental ser o fundamento de validade de toda e qualquer Constituição [9]. Por outras palavras, isso procede porque, com base no contexto da TPD, para Kelsen (2011, p. 125) a norma fundamental deve ser entendida como uma prescrição convencionada que funciona como um ponto de partida da validade de todo o ordenamento de normas jurídicas. Como “ponto de partida” da cadeia de validade das normas do sistema jurídico, a norma fundamental pode ser tomada como válida em si mesma, o que significa dizer que essa não pode ter como fundamento (1) outra norma jurídica e (2) um conteúdo político ou metafísico (tal como aquele que afirma que “todo poder emana do povo”). Caso isso ocorra, ela não pode ser considerada um “fundamento último de validade” de todo o ordenamento jurídico. Portanto, não devemos confundir a norma fundamental com os conteúdos do nosso texto constitucional que nos remetem aos ideais de “poder do povo” ou de “justiça social”.
A confusão de identificar a Constituição com a norma fundamental se deve ao fato que na prática da interpretação e aplicação do direito (política judiciária), observada a dificuldade de entender o significado ou a natureza da norma fundamental como fundamento de validade do ordenamento jurídico, a nossa dogmática jurídica (ou técnica jurídica) optou por adotar no dia a dia forense o entendimento (como uma espécie de convenção) que a cadeia de vigência se inicia com a própria Constituição. Desse modo, a nossa Constituição, como é fácil observar, contém um conjunto importante de testes de vigência que quando cumpridos validam as normas infraconstitucionais, tais como aqueles testes que regulamentam o processo legislativo e o controle de constitucionalidade (procedimento que requer que todas as situações jurídicas se “acomodem” aos princípios e regras jurídicas constitucionais).
Por exemplo, no ano de 2007 o nosso Superior Tribunal Federal (STF) discutiu a validade da Lei nº 12.755/05. Essa lei sugeria a criação da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos no Estado de Pernambuco. Na ocasião o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3569, questionava a alínea “c”, inciso IV, artigo 2º, da norma pernambucana que vincula a defensoria pública à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, o que seria inconstitucional (ou inválido), já que o artigo 134, parágrafo 2º da Constituição Federal, incluído pela Emenda Constitucional 45/04, assegura às defensorias públicas estaduais autonomia funcional e administrativa. A Defensoria Pública ao não estar vinculada a qualquer órgão, tem a possibilidade de atuar na esfera judicial em ações que litiguem em desfavor do município, do Estado ou mesmo da União, ressaltava o PTB. Ao final, a plenária do STF se valendo da visão que o direito é uma espécie de sistema escalonado de normas jurídicas declarou inconstitucional (ou como inválida) a lei infraconstitucional pernambucana (uma lei inferior à nossa Constituição) que ao desrespeitar a lei superior constitucional não lhe extraiu a validade jurídica necessária para existir como norma jurídica válida no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro.
2.3.3 DIREITO COMO SISTEMA DINÂMICO DE NORMAS JURÍDICAS
Para Kelsen (2003, p. 219) o direito é um sistema dinâmico de normas jurídicas. Neste tipo de sistema há uma norma fundamental que confere unidade ao todo de normas jurídicas [10] ao vincular as suas partes (as normas jurídicas) por meio de relações institucionais de poder. Ou seja, a validade das normas jurídicas desse tipo de sistema depende de “normas jurídicas de competência” ou de “normas jurídicas de estrutura” que conferem (1) poderes a uma autoridade competente para constituir normas jurídicas e/ou (2) validade as normas jurídicas produzidas por autoridades competentes. Ou seja, há, aqui, um “duplo movimento”, a saber. Se tivermos em mente o direito como um sistema escalonado de normas jurídicas, no qual uma norma jurídica extraí validade da norma jurídica que lhe é “superior”, no “sentido de cima para baixo (como convencionamos), percebemos uma atribuição de poderes (ou de competências), já no “sentido de baixo para cima” notamos o compromisso de obediência aos ditames das normas superiores.
Por exemplo, a nossa Constituição Federal prescreve que todos nós temos o direito à vida, o que sugere que temos “o direito de não morrermos injustamente”. Logo, por exemplo, com a permissão da Constituição, a autoridade competente promulgou uma lei (infraconstitucional) oferece mecanismos para inibir a prática do homicídio. Dizemos que de cima para baixo essa lei é válida porque foi produto da prerrogativa de função autorizada pela Constituição e que de baixo para cima ela é válida porque está em conformidade com o conteúdo legal da Constituição.
Para efeito de reconhecimento da validade do conteúdos das normas jurídicas pertencentes ao direito como um sistema dinâmico de normas jurídicas, não importando se são morais ou imorais, justos ou injustos, politicamente apropriados ou politicamente inapropriados etc., mas se o seu conteúdo não fere os ditames normativos de uma norma jurídica superior ou se se conservam as relações de competências delineadas ao longo das estruturas de poder do ordenamento jurídico.
Por outro lado, num sistema estático de normas os critérios de validade de suas normas são o axiológico e o dedutivo (ou analítico). As normas desse tipo de sistema são válidas em razão da dedução lógica inferida dos seus conteúdos normativos, os quais são legítimos por pertencerem a uma moralidade (moralidade juadaíca-cristã, moralidade ecológica etc.) ou certa tradição (social, política etc.). A norma fundamental de um sistema estático funciona como princípio que unifica as partes, formando um todo, ao fundamentar as conexões de significados extraídos dos conteúdos normativos de ordem moral, político, metafísico, entre outros. A moral é um bom exemplo desse tipo de sistema.
Por exemplo, pensemos na tradição deontológica imposta pela moralidade cristão que estabelece certo sistema normativo da moral (uma espécie de ordenamento de deveres morais). É possível estipular como prescrição basilar desse sistema a máxima: “Deves amar ao próximo”. O termo “amar”, presente no conteúdo axiológico dessa prescrição, que nos remete a ideia de amor (em sentido ágape) pode ser “quebrado” (analítica) em outros conceitos a ele relacionado: amizade, respeito, cuidado, entre outros. Ou seja, por outras palavras, é possível inferir (ou deduzir) da deia de amor, por exemplo, as noções de amizade, respeito, cuidado. Afinal, quem ama é temperante; quem ama é respeita e quem ama é cuidada. O interessante é que se você questionar qual é a norma fundamental que atribui validade a norma “Deves amar ao próximo!”, teremos possivelmente como resposta da tradição cristão a norma: “Deves acatar a vontade do Deus benevolente!” (um dogma ou norma tautológica, isto é, válida em si mesma). Assim, a cadeia de significado dos conteúdos prescritivos de cada norma desse sistema normativo moral nos permite justificar como válida a prescrição: “Não devemos causar lesão corporal ao próximo!”. Por outras palavras, se admitimos como válida a norma “Devemos amar ao próximo!”, e dela inferimos que “Quem ama o próximo, respeita ao próximo” e, por conseguinte, “deduzimos” que “Quem respeita ao próximo, não agride ao próximo”. Concluímos que a prescrição “Não devemos causar lesão corporal ao próximo!” é válida (a validade se conserva ao longo da cadeia de conteúdo).
Para os ilustres jusnaturalistas medievais Agostinho e Tomás de Aquino, que elegem a moral cristã como fundamento de validade do direito positivo, uma norma jurídica será válida (passível de ser aplicada como solução do caso jurídico) se o seu conteúdo for justo e, a contrassenso, será inválida se esse for injusto [11]. O critério adotado por eles para fixar a validade de uma norma jurídica consiste em deduzi-la de algum dos “princípios do direito natural” (máximas de justiça). Por exemplo, Tomás de Aquino defende que uma prescrição de direito positivo quando justa (ou válida) é derivada da lei natural, primeiro, por conclusão a partir de premissas ou, segundo, por meio de determinação de certas generalidades, como explica na sua Suma Teológica, (Q. 95, Art. II):
A primeira é igual àquela pela qual, nas ciências, as conclusões demonstradas são inferidas dos princípios; enquanto o segundo modo equipara-se àquele pelo qual, nas artes, as formas gerais são particularizadas em detalhes; desse modo, o artífice necessita determinar o aspecto geral de uma casa em certa forma específica. Logo, algumas coisas derivam dos princípios gerais da lei da natureza por meio de conclusões; por exemplo, que não se deve matar pode ser derivado como uma conclusão do princípio de que não se deve fazer mal a nenhum homem. Outras derivam por determinação; por exemplo, a lei da natureza dispõe que o malfeitor seja punido; mas que ele seja punido desta ou daquela maneira é uma determinação (...)" (AQUINO, 2001, p. 112).
Já no século XIX, o positivismo jurídico substitui esses princípios por normas de direito positivo.
2.4. INTERPRETAÇÃO JURÍDICA E AS MOLDURAS DAS NORMAS JURÍDICAS
Toda aplicação de um direito exige uma interpretação. Afinal, toda norma jurídica que foi aplicada (isto é, usada como meio de solução de um caso jurídico) teve o sentido do seu conteúdo normativo fixado pela autoridade competente julgadora. Sem dúvida, a interpretação como atividade é uma atividade essencial ao jurista. Como o direito é reconhecido por Hans Kelsen como um tipo de sistema escalonado de normas jurídicas, ele entende a interpretação como uma “operação mental que acompanha o processo de aplicação do direito no seu progredir de escalão superior para escalão um inferior” (KELSEN, 2003, p. 387). Vejamos.
Por exemplo, em 2009 foi ajuizada perante o STF, pelo partido político Democratas (DEM), uma ação questionando a validade jurídica do sistema de cotas raciais adotado pela Universidade de Brasília (UnB), programa que reservava 20% das vagas do vestibular para candidatos afrodescendentes. Na ação arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) n º 186, o DEM alagou que os atos administrativos da UnB, expressos numa resolução normativa (um tipo legal) que instituí o programa de cotas raciais como critério ingresso nessa instituição de ensino superior, descumpriram os artigos 1º, caput e inciso III; 3º, inciso IV; 4º, inciso VIII; 5º, incisos I, II, XXXIII, XLII, LIV; 37, caput; 205; 207, caput; e 208, inciso V, todos da nossa Constituição de 1988. Entretanto, a plenária do STF por unanimidade votou pela improcedência do pleito. Esse julgamento, em suma, orbitou em torno de uma questão central, a saber: será que o uso de programa de cotas raciais para ingresso em nossas universidades públicas fere o direito fundamental a igualdade de acesso à educação?
O relator do processo, o ministro Ricardo Lewandovski expôs em seu voto (ou sentença) algumas considerações valiosas sobre a polissemia da palavra “igualdade” presente no texto constitucional. Segundo Lewandovski, seguindo uma ampla tradição constitucionalista e filosófica do direito[12], a igualdade pode ser entendida em sentido formal ou em sentido material. No ato de distribuição (ou de restituição) de determinados bens jurídicos (direitos, deveres, cargo públicos etc.) baseado na igualdade formal, as partes são consideradas como absolutamente iguais, sem distinção de cor, de raça ou de sexo, por exemplo (como sugere o artigo 5º, caput, da nossa Constituição). Mas se esse ato de promoção da justiça adota como lógica a igualdade material, estão o julgador irá levar em consideração em seu julgamento as diferenças entre as partes (cor, raça, sexo, hipossuficiência etc.). A partir daí, o julgador passa a tratar os desiguais na medida das suas desigualdades, conforme certa regra de proporcionalidade (merocracia, vulnerabilidade, necessidade, finalidade, “correção das injustiças históricas”, e assim por diante) [13]. Essa linha de raciocínio é reconhecida, hoje, como justiça distributiva.
Lewandovsk, em seu voto (ou norma jurídica de decisão) prestigia a igualdade material ao defender a tese de que o Estado deve fazer uso de ações afirmativas que atendam às necessidades dos afro-brasileiros, atribuindo-lhes certos privilégios (ou direitos), ainda que por um tempo limitado, de modo a reverter as desigualdades decorrentes de cenários históricos particulares, tal como é o caso da terrível experiência da escravidão vivenciada no Brasil (a correção do quadro histórico brasileiro de desigualdades ocorre, assim, mediante um tipo de “justiça restaurativa”).
O ministro Ricardo Lewandovski parece realizar uma interpretação do direito que vai do “escalão superior para escalão um inferior”. Parte da interpretação dos artigos da nossa constituição, passando pelas regras infraconstitucionais (tal como a resolução da UNB que regulamenta o uso do sistema de cotas para a seleção de seus alunos) até a norma final: a norma de decisão (que pode ser a sentença de um juiz, o acórdão de um colegiado, e assim por diante).
Para Kelsen (2003, p. 388) a “norma do escalão superior tem, sempre em relação ao ato de produção normativa ou de execução que aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato”. Com certa frequência, deparamo-nos nas Constituições (e, em geral, no ordenamento jurídico) com molduras ou com palavras (ou expressões) que não são unívocas, ou seja, admitem certa pluralidade de significados jurídicos (dizemos que essas palavras ou expressões são polissêmicas), tais como “Dignidade da pessoa humana”, “interesse social”, “boa-fé”, “força maior” (Art. 1º, III, Art. 5º, XXIV, Art, 231, § 6º e Art. 34, V, a, todos da nossa Constituição Federal), entre outras. Isso ocorre, em especial, nas constituições por conterem regras jurídicas gerais e abstratas.
Por exemplo, na ADPF n º 186 é fácil identificar que o termo “igualdade” é a moldura da lei que comporta dois conteúdos: a igualdade material e a igualdade formal. Quem preenche a moldura, dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, é a autoridade judiciária competente (advogados, juízes, procuradores etc.), como podemos observar nesse caso.