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Princípios da pureza metodológica da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen

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30/10/2021 às 15:25

Resumo:


  • A Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen procura conferir uma identidade epistemológica ao direito, baseando-se em princípios de pureza metodológica como neutralidade, formalismo e validade.

  • Kelsen define a norma jurídica como um esquema de interpretação da realidade, com uma estrutura lógica própria, e considera o direito um sistema dinâmico de normas jurídicas fundamentado em uma norma fundamental.

  • A interpretação jurídica é vista como uma operação mental essencial ao direito, que lida com molduras ou termos polissêmicos, preenchidos pela autoridade competente para aplicar a norma ao caso concreto.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4. INTERPRETAÇÃO JURÍDICA E AS MOLDURAS DAS NORMAS JURÍDICAS

Toda aplicação de um direito exige uma interpretação. Afinal, toda norma jurídica que foi aplicada (isto é, usada como meio de solução de um caso jurídico) teve o sentido do seu conteúdo normativo fixado pela autoridade competente julgadora. Sem dúvida, a interpretação como atividade é uma atividade essencial ao jurista. Como o direito é reconhecido por Hans Kelsen como um tipo de sistema escalonado de normas jurídicas, ele entende a interpretação como uma “operação mental que acompanha o processo de aplicação do direito no seu progredir de escalão superior para escalão um inferior” (KELSEN, 2003, p. 387). Vejamos.

Por exemplo, em 2009 foi ajuizada perante o STF, pelo partido político Democratas (DEM), uma ação questionando a validade jurídica do sistema de cotas raciais adotado pela Universidade de Brasília (UnB), programa que reservava 20% das vagas do vestibular para candidatos afrodescendentes. Na ação arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) n º 186, o DEM alagou que os atos administrativos da UnB, expressos numa resolução normativa (um tipo legal) que instituí o programa de cotas raciais como critério ingresso nessa instituição de ensino superior, descumpriram os artigos 1º, caput e inciso III; 3º, inciso IV; 4º, inciso VIII; 5º, incisos I, II, XXXIII, XLII, LIV; 37, caput; 205; 207, caput; e 208, inciso V, todos da nossa Constituição de 1988. Entretanto, a plenária do STF por unanimidade votou pela improcedência do pleito. Esse julgamento, em suma, orbitou em torno de uma questão central, a saber: será que o uso de programa de cotas raciais para ingresso em nossas universidades públicas fere o direito fundamental a igualdade de acesso à educação?

O relator do processo, o ministro Ricardo Lewandovski expôs em seu voto (ou sentença) algumas considerações valiosas sobre a polissemia da palavra “igualdade” presente no texto constitucional. Segundo Lewandovski, seguindo uma ampla tradição constitucionalista e filosófica do direito12, a igualdade pode ser entendida em sentido formal ou em sentido material. No ato de distribuição (ou de restituição) de determinados bens jurídicos (direitos, deveres, cargo públicos etc.) baseado na igualdade formal, as partes são consideradas como absolutamente iguais, sem distinção de cor, de raça ou de sexo, por exemplo (como sugere o artigo 5º, caput, da nossa Constituição). Mas se esse ato de promoção da justiça adota como lógica a igualdade material, estão o julgador irá levar em consideração em seu julgamento as diferenças entre as partes (cor, raça, sexo, hipossuficiência etc.). A partir daí, o julgador passa a tratar os desiguais na medida das suas desigualdades, conforme certa regra de proporcionalidade (merocracia, vulnerabilidade, necessidade, finalidade, “correção das injustiças históricas”, e assim por diante) 13. Essa linha de raciocínio é reconhecida, hoje, como justiça distributiva.

Lewandovsk, em seu voto (ou norma jurídica de decisão) prestigia a igualdade material ao defender a tese de que o Estado deve fazer uso de ações afirmativas que atendam às necessidades dos afro-brasileiros, atribuindo-lhes certos privilégios (ou direitos), ainda que por um tempo limitado, de modo a reverter as desigualdades decorrentes de cenários históricos particulares, tal como é o caso da terrível experiência da escravidão vivenciada no Brasil (a correção do quadro histórico brasileiro de desigualdades ocorre, assim, mediante um tipo de “justiça restaurativa”).

O ministro Ricardo Lewandovski parece realizar uma interpretação do direito que vai do “escalão superior para escalão um inferior”. Parte da interpretação dos artigos da nossa constituição, passando pelas regras infraconstitucionais (tal como a resolução da UNB que regulamenta o uso do sistema de cotas para a seleção de seus alunos) até a norma final: a norma de decisão (que pode ser a sentença de um juiz, o acórdão de um colegiado, e assim por diante).

Para Kelsen (2003, p. 388) a “norma do escalão superior tem, sempre em relação ao ato de produção normativa ou de execução que aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato”. Com certa frequência, deparamo-nos nas Constituições (e, em geral, no ordenamento jurídico) com molduras ou com palavras (ou expressões) que não são unívocas, ou seja, admitem certa pluralidade de significados jurídicos (dizemos que essas palavras ou expressões são polissêmicas), tais como “Dignidade da pessoa humana”, “interesse social”, “boa-fé”, “força maior” (Art. 1º, III, Art. 5º, XXIV, Art, 231, § 6º e Art. 34, V, a, todos da nossa Constituição Federal), entre outras. Isso ocorre, em especial, nas constituições por conterem regras jurídicas gerais e abstratas.

Por exemplo, na ADPF n º 186 é fácil identificar que o termo “igualdade” é a moldura da lei que comporta dois conteúdos: a igualdade material e a igualdade formal. Quem preenche a moldura, dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, é a autoridade judiciária competente (advogados, juízes, procuradores etc.), como podemos observar nesse caso.


Notas

1 “Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe a garantir um conhecimento apenas dirigido ao direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental” (KELSEN, 2003, p. 1).

2 “A teoria pura do direito a qual apresenta o direito como ele é, sem legitimá-lo como justo ou desqualificá-lo como injusto; ela é a indagação do real e do possível, e não do direito justo” (KELSEN, 2011, p. 81).

3 Para Kelsen (2005, p. 08) o “conceito de direito não tem quaisquer conotação moral. Ele designa uma técnica específica de organização social”. O direito como “ordem jurídica” não se qualifica como uma ordem justa ou boa. “Existem ordens jurídicas que, a partir de certo ponto de vista, são injustas. Direito e justiça são dois conceitos diferentes. O direito, considerado como distinto da justiça, é direito positivo. (...) A ciência do direito positivo deve ser claramente distinguida de uma filosofia da justiça.”

4 Entendemos que o princípio da neutralidade caiu por terra em meados do século XX com os trabalhos de Werner Heisenberg (1927, p. 174-175) e Thomas Kuhn (1970). O primeiro liquida esse princípio ao formular o princípio da incerteza no âmbito da física quântica, já o segundo inviabiliza o referido princípio em razão da sua noção filosófica de “paradigma”.

5 “As modernas ordens jurídicas também contêm, por vezes, normas através das quais são previstas recompensas para determinados serviços, como títulos e condecorações [sanção positiva]. Estas, porém, não constituem característica comum a todas as ordens sociais a que chamamos Direito nem nota distintiva da função essencial destas ordens sociais. Desempenham apenas um papel inteiramente subalterno dentro destes sistemas que funcionam como ordens de coação [sanção negativa]” (KELSEN, 2003, p. 37).

6 Segundo Kelsen o “desejo de evitar a sanção intervém como motivo na produção desta conduta, deve responder-se que esta motivação constitui apenas uma função possível e não uma função necessária do Direito, que a conduta conforme o Direito, que é a conduta prescrita, também pode ser provocada por outros motivos e, de fato, é muito frequentemente, provocada também por outros motivos, como sejam as ideias religiosas ou morais” (KELSEN, 2003, p. 38).

7 Um bom exemplo disso é o procedimento de análise de validade das normas jurídicas chamado Controle de Constitucionalidade, como veremos a seguir.

8 Por que Hans Kelsen, na sua TPD, considera apropriado à ciência do direito o modelo de vigência e o modelo de eficácia da norma jurídica, mas lhe nega o modelo de validade axiológico? Ao cumprir a agenda proposta pelo positivismo científico, Kelsen parece entender que é possível realizar um estudo científico (estudo objetivo) do direito ao identificar a sua metodologia, ao descrever o conteúdo linguístico (conceitos científicos) e lógico das sentenças jurídicas (relações lógicas existentes entre as normas jurídicas); e abordar os fatos de cumprimento ou não das normas jurídicas de modo descritivo (por exemplo, como dados estatísticos: 70/% dos agentes cumprem a lei e 30/% não a cumprem). Para Kelsen, na seara dos valores só é possível realizar uma compreensão subjetiva do direito (uma leitura não científica do direito), uma vez que acredita que a validade axiológica é proveniente de um relativismo ético. Vide nota 11.

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9 “[A] norma fundamental é aquela norma que é pressuposta quando o costume, através do qual a Constituição surgiu, ou quando o ato constituinte (produtor da Constituição) posto conscientemente por determinados indivíduos são objetivamente interpretados como fatos produtores de normas; quando -- no último caso -- o indivíduo ou a assembleia de indivíduos que instituíram a Constituição sobre a qual a ordem jurídica assenta são considerados como autoridade legislativa. Neste sentido, a norma fundamental é a instauração do fato fundamental da criação jurídica e pode, nestes termos, ser designada como constituição no sentido lógico--jurídico, para a distinguir da Constituição em sentido jurídico-positivo. Ela é o ponto de partida de um processo: do processo da criação do direito positivo. Ela própria não é uma norma posta, posta pelo costume ou pelo ato de um órgão jurídico, não é uma norma positiva, mas uma norma pressuposta, na medida em que a instância constituinte é considerada como a mais elevada autoridade e por isso não pode ser havida como recebendo o poder constituinte através de uma outra norma, posta por uma autoridade superior“ (KELSEN, 2003, p. 221).

10 Lembremos de Kant (2008, p. 657): ``Por sistema entendo a unidade das formas diversas do conhecimento sob uma única ideia'' (Crítica da Razão Pura, A 832/B 860).

11 Eis um bom exemplo de modelo de validade axiológico.

12 Nesse sentido, vide já a distinção aristotélica entre justo particular corretivo e justo particular distributivo contida no livro V do tratado Ética à Nicômaco.

13 Muitas políticas públicas têm como fundamento essa lógica da igualdade material, tal como é o caso do programa da Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (Senarc) chamado “Bolsa família”, que contribui para o combate à pobreza no Brasil. O Programa Bolsa Família atende às famílias que vivem em situação de pobreza e de extrema pobreza. Pode participar do Bolsa Família a família com renda por pessoa, até o presente momento, de até R$ 89,00 mensais; e famílias com renda por pessoa entre R$ 89,01 e R$ 178,00 mensais, desde que tenham crianças ou adolescentes de 0 a 17 anos. A regra de proporcionalidade de promoção da distribuição equitativa, nesse caso, e a da hipossuficiência.


REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. Tradução María Araujo y Julían Marías. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002.

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. v. 2. Tradução Gabriel Galache e Fidel Garcia. São Paulo: Edições Loyola, 2001.

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KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução Manuela Pinto dos Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2008.

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KELSEN, H. Teoria Geral do Direito e do Estado. Tradução Luís C. Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

KELSEN, H. Teoria Pura do Direito. Trad. Cretella Jr e Agnes Cretella. São Paulo: RT, 2011.

KUHN, Thomas S. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: The University Chicago, 1970.

HEISENBERG, W. Ueber den anschaulichen Inhalt der quantentheoretischen Kinematik and Mechanik. Zeitschrift für Physik, 43, 1927: p. 172-198.

RABENROST, Eduardo. Ser e do Dever Ser na Teoria Kelseneana do Direito. Revista Direito e Liberdade. Vol. 1, n.1, p. 119. –130, 2005.

HÖFFE, O. Justiça Política. Tradução Ernildo Stein. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

SORAES, R. Maurício. Direito e Princípios Constitucionais. Salvador: Juspodium, 2008.

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Sobre o autor
Rodrigo Costa Ferreira

Professor Adjunto de Filosofia e Teoria do Direito na UFRN (CERES) e na UEPB (CCJ). Professor convidado na ESMA-TJPB. Mestre em lógica pela UFPB. Doutor em Filosofia Analítica pela UFPB-UFPE-UFRN. Líder do grupo de pesquisa JUDITE- JUstiça, DIreito e TEcnologia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Rodrigo Costa. Princípios da pureza metodológica da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6695, 30 out. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/94204. Acesso em: 5 dez. 2025.

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