Capa da publicação Judicialização do fornecimento de medicamentos: caso Zolgensma
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Judicialização do fornecimento de medicamentos:

Tema 500 do STF e a STP 803 (Zolgensma)

19/11/2021 às 17:35

Resumo:


  • O artigo aborda a judicialização do fornecimento de medicamentos, destacando a importância da decisão do STF no Tema 500 sobre medicamentos sem registro na ANVISA.

  • Destaca-se o caso da Suspensão de Tutela Provisória 803, envolvendo o medicamento Zolgensma para tratamento de AME, e a decisão do STF em conceder o fornecimento com base nos critérios estabelecidos no Tema 500.

  • O texto ressalta a importância de estabelecer critérios claros para a judicialização da saúde, visando garantir o acesso a tratamentos adequados, respeitando as normas de registro e segurança dos medicamentos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O estabelecimento da tese do Tema 500 pelo STF foi um avanço na racionalização de demandas relativas ao fornecimento de medicamentos pelo Estado.

RESUMO: O presente artigo intenta realizar uma breve abordagem sobre a judicialização do fornecimento de medicamentos. Além de apresentar considerações sobre a judicialização da saúde, abordar-se-á o tema do dever do Estado de fornecer medicamentos não registrados na ANVISA à luz do Tema 500 de repercussão geral e o julgamento da Suspensão de Tutela Provisória 803 no âmbito do STF.

PALAVRAS-CHAVE: Judicialização da saúde. Fornecimento de medicamentos. Medicamentos experimentais. Medicamentos sem registro na ANVISA. Tema 500.

SUMÁRIO: Introdução / 1. A judicialização da saúde pública / 2. O dever do Estado de fornecer medicamento não registrado na ANVISA (Tema 500 de Repercussão Geral STF) / 3. Julgamento da Suspensão de Tutela Provisória 803 (medicamento Zolgensma) / Considerações Finais / Notas


Introdução

A Constituição Federal de 1988 (CF88) estabeleceu, de forma promissora, em seu art. 196 que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação[1]. Diante desse mandato constitucional, o judiciário tem, de forma constante e crescente, se visto ante o dilema entre a garantia do direito de acesso à saúde e os riscos a ordem financeira e econômica, dada a escassez de recursos e a amplitude das necessidades sociais.

O impasse entre as dimensões individual e coletiva do direito de acesso à saúde tem especial importância no âmbito da judicialização do fornecimento de medicamentos. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF) sedimentou no âmbito do julgamento do Recurso Extraordinário nº 657.718/MG, conhecido como Tema 500 de Repercussão Geral, tese vinculante sobre demandas de fornecimento de medicamentos sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).

Em julgado recente e de grande notoriedade, o Pretório Excelso esteve frente ao pedido de Suspensão de Tutela Provisória (STP 803) pela União em face de decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF 3) que deferiu em sede de antecipação de tutela o fornecimento do medicamento Zolgensma, conhecido como o fármaco mais caro do mundo, à menor portadora de Amiotrofia Muscular Espinhal Tipo 2 (AME).

Diante do exposto, passar-se-á uma breve análise das decisões no âmbito da STP 803 e do Tema 500, de forma a trazer considerações sobre o tema da judicialização da saúde, especialmente em relação ao fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA.

1. A judicialização da saúde pública

  • Histórico do direito de acesso à saúde no Brasil

A saúde como direito pleno e universal é uma conquista recente da sociedade brasileira. No período desde a chegada dos colonizadores portugueses até a vinda da família real portuguesa em 1808, a prestação de serviços e cuidados de saúde era realizada de forma extremamente incipiente, estando os indivíduos praticamente abandonados à própria sorte e o modelo de atenção por vezes incentivava a exclusão dos doentes para a preservação da saúde dos demais. Nesse período tiveram destaque as Santas Casas de Misericórdia, que atuavam sob o ideal da caridade. Essas entidades foram fundadas por religiosos, sendo a primeira delas a Santa Casa de Santos, fundada em 1543[2], e eram mantidas por doações.

Com a independência e o esforço para a construção de um estado nacional, o país passa a contar com os primeiros serviços de fiscalização sanitária e de combate a surtos e epidemias. Contudo, essa primeira manifestação estatal tinha uma perspectiva excludente e segregacionista, partindo da busca pela eliminação de surtos e melhoria da saúde coletiva a partir da remoção das populações vulneráveis dos centros urbanos de então. Durante a República Velha (1889-1930) são criadas importantes instituições sanitárias, como a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Butantan, bem como são realizados grandes esforços para contenção da varíola e da febre amarela, sem que a população seja de fato envolvida, culminando em episódios como a Revolta da Vacina, em 1904.

Com a industrialização e o crescimento da classe operária, as tensões e demandas sociais são ampliadas o que leva o governo a possibilitar acesso dos trabalhadores a alguns benefícios sociais, destacando-se a edição da Lei Eloy Chaves, de 1923, que institui as Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPS). Através desses serviços os beneficiários passavam a ter acesso à assistência em saúde e a previdência, fato que marca o início do que se poderia chamar de um sistema de saúde no país.

Embora a Lei Eloy Chaves tenha representado uma mudança na perspectiva de acesso à saúde pública, as CAPS ainda representavam uma abordagem excludente, uma vez que franqueavam à assistência apenas aos trabalhadores, interpretando-se esse termo como aqueles que possuíam trabalho formal, num país em que boa parte da população era rural e onde mesmo o contingente urbano detinha pouco nível de formalização. Portanto, o acesso estava relacionado ao status empregatício do indivíduo, não à sua condição de saúde, o que, evidentemente, prejudicava à saúde coletiva em detrimento da dimensão individual de poucos. Posteriormente as CAPS foram transformadas em Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPS), organizados mediante categorias laborais.

Em paralelo fortalecia-se a saúde privada, especialmente ancorada na medicina previdenciária e na medicina do trabalho, ambas calcadas no interesse privado e produtivo de manutenção da saúde como manutenção da força de trabalho e empregando um modelo curativo, com enfoque na doença e não na prevenção. Nessa perspectiva, apenas em 1953 o Ministério da Saúde é criado, mas ainda numa lógica de produção de campanhas e resposta a surtos.

O modelo privatista e compensatório permanece e é reforçado quando do período militar. Embora tenha sido constituído em 1975, o Sistema Nacional de Saúde, a atenção à saúde era considerada cada vez mais ineficiente, inadequada e mal distribuída. Em 1977 é criado o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), que priorizou a compra de serviços e a injeção de capital em cooperativas médicas e hospitais privados, atuando ainda de forma excludente e acentuando as desigualdades sociais[3]. Nesse escopo, a demanda por um sistema de saúde público inclusivo e a visão da saúde como um direito passa a ganhar força, num crescente juntamente com outras demandas sociais, diante do cenário de declínio do regime militar e aumento da organização da sociedade civil.

Com a redemocratização, a partir de 1984, ganha protagonismo o Movimento pela Reforma Sanitária Brasileira (MRSB), que buscou um distanciamento do modelo curativo, privatista e hospitalocêntrico. Sob a égide desse movimento, foi realizada a 8ª Conferência Nacional da Saúde, em 1986, onde, pela primeira vez, a sociedade civil teve participação ativa na formulação do novo modelo de saúde pública. A conferência expressava em seu tema a máxima que viria a ser a marca desse novo modelo: saúde como direito de todos e dever do Estado. O relatório final da conferência foi incorporado à Assembleia Constituinte e seus frutos foram inscritos na Constituição federal de 1988.

A saúde passa a ser considerada um direito universal, devendo ser prestada de forma integral e igualitária, a partir de uma lógica não apenas curativa, mas de promoção, prevenção e recuperação. A constituição endereça nominalmente o dever de prestação de ações e serviços ao Estado, numa visão de máxima eficácia e efetividade possível. Em 1990 é editada a Lei 8.080, a chamada lei orgânica da saúde, que regula o Sistema Único de Saúde (SUS) e reafirma que a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

  • Direito de acesso à saúde e judicialização

Em 1947 a recém-criada Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade, conceito amplo e por vezes criticado por ser considerado utópico e inatingível[4]. De toda forma, definir qual seria um nível de saúde desejado é tarefa complexa e subjetiva, haja vista que abarca diferentes interpretações e pontos de vista.

Nesse sentido, conforme elucidado em tópico prévio, a construção do direito de acesso à saúde se deu por meio de um processo lento e gradual que atravessou momentos políticos e jurídicos distintos da sociedade brasileira. Esse processo culminou com a incorporação da saúde, juntamente com outros direitos sociais, ao texto constitucional da CF88, sendo esse o guia para apontar qual o conceito de saúde se faz referência, especialmente no âmbito político-jurídico.

Reitera-se que a outorga constitucional explicitamente cita que o direito à saúde deve ser garantido mediante políticas sociais e econômicas, devendo as ações e serviços de saúde serem executados diretamente ou através de terceiros, mediante atendimento integral e igualitário. A CF88 sedimentou as bases para um sistema único, cujo acesso e assistência devem ser amplos. É interessante ressaltar que esse novo paradigma da saúde no Brasil trouxe uma visão compartilhada de gestão administrativa e financeira entre os entes da federação, bem como incluiu a sociedade civil na participação da formulação, monitoramento e avaliação de políticas sanitárias.

A concretização da Constituição e da legislação infraconstitucional dependem, contudo, da existência de meios que assegurem a efetividade do direito à saúde, especialmente por meio de orçamento e financiamento de ações e serviços públicos de saúde. Nesse sentido, foi construído um arcabouço que garante o emprego compulsório de recursos mínimos para o financiamento da saúde pública pela União, Estados e Municípios.

Embora esse arranjo tenha sido igualmente inédito e garanta que os gestores dispensarão atenção e capital para o setor saúde, ele é insuficiente frente às necessidades dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). A ponderação entre as limitações orçamentário-financeiras do Estado e as necessidades de saúde dos indivíduos é constante diante de um sistema que se pretende universal, mas já nasce subfinanciado.

Somado ao subfinanciamento, o SUS enfrenta igualmente problemas de subdesempenho, relacionados a problemas de gestão, formação e acesso a recursos humanos, desigualdades na distribuição da rede de atenção à saúde e a outros determinantes sociais que irrefreavelmente desaguam no sistema de saúde como as condições de educação, moradia, transporte, segurança, alimentação, lazer e outros.

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Diante desse cenário, o Poder Judiciário tem sido cada vez mais instado a atuar quando da não prestação de ações e serviços de saúde pública pelo Estado. Iniciou-se um movimento de busca jurisdicional a efetivação do direito à saúde, por meio da chamada judicialização da saúde. A judicialização, que em grande parte envolve pedidos de fornecimento de medicamentos e serviços hospitalares, tem crescido de forma exponencial nos últimos anos.

Segundo dados da publicação Judicialização e Sociedade: Ações para Acesso à Saúde Pública de Qualidade[5], editada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o quantitativo de casos na Justiça referente ao setor saúde chegou a mais de 2,5 milhões de processos entre 2015 e 2020. Importante salientar que uma parte considerável desses processos envolvem assuntos como planos de saúde e seguros, voltadas para a saúde suplementar e o usufruto de serviços de saúde privados, porém a maioria dessas demandas referem-se à prestação de saúde pelo Estado.

Segundo auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), apenas a União, representada no SUS pelo Ministério da Saúde, teve um aumento de mais 1.300% com gastos provenientes da judicialização, havendo um salto de R$ 70 milhões em 2008 para R$ 1 bilhão em 2015[6]. Denota-se que essas cifras não englobam os dispêndios de estados e municípios. Estima-se que em 2016 os gastos tenham chegado a R$ 7 bilhões em todo o país[7]. Os números dos últimos relatórios do CNJ apontam para um crescimento do número de casos nos últimos anos, o que pode ter sido agravado pela crise sanitária vivida durante a pandemia da COVID-19, momento de especial sobrecarga do SUS, durante os últimos dois anos.

Diversos fatores contribuem para essa escalada dos números relacionadas à judicialização da saúde, como o desenvolvimento de novas tecnologias, especialmente de fármacos, e aumento do acesso à informação, gerando um aumento das expectativas de pacientes que buscam tratamentos colocados como inovadores e que normalmente não se encontram ainda incorporados ao SUS. Houve também uma melhoria no acesso à justiça no país, seja pelo maior número de advogados, seja pela maior atuação das defensorias públicas de estados e União, bem como do Ministério Público. Somando-se a esses pontos, houve uma significativa mudança jurisprudencial a partir dos anos 2000, dando um enfoque maior aos princípios da universalidade e integralidade do SUS presentes tanto na CF88 quanto na Lei Orgânica da Saúde.

Essa mudança jurisprudencial foi puxada pela interpretação no Supremo Tribunal Federal pela necessidade de dar concretude ao imposto no art. 196 da CF88, de forma que o direito de acesso à saúde não permaneça apenas como simples norma programática. Nesse sentido, cita-se trecho do voto do Ministro Celso de Mello em julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n° 393175-0/RS, em 12 de dezembro de 2006, in verbis:

Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5°, caput, e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo uma vez configurado esse dilema que as razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humana.

Cumpre não perder de perspectiva que o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República. Constitui bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integralidade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular e implementar políticas sociais e econômicas que visem garantir, aos cidadãos, o acesso universal e igualitário à assistência médico-hospitalar.

Nessa perspectiva, a judicialização encontra-se sob a égide da Constituição, conforme já foi analisado reiteradas vezes pelo STF. Contudo, é inegável que essa dinâmica interfere na conjuntura financeiro-orçamentária dos entes federativos, sendo apontada como um dos maiores desafios à gestão da saúde no Brasil. O fenômeno gera desorganização administrativa e pode atrapalhar sobremaneira o desenvolvimento de planos e políticas de saúde nos territórios. Uma vez que o SUS já convive com uma realidade de subfinanciamento e subdesempenho desde seu nascedouro, as despesas e demandas advindas da judicialização na área acabam por tornar ainda mais escassos os recursos do setor.

É relevante destacar que, em meio ao crescimento vertiginoso da judicialização da saúde, o próprio STF já reconheceu em julgados recentes que é necessário estabelecer bases estanques e objetivas que contribuam para decisões mais racionais pelos magistrados, evitando-se que a busca judicial pelo direito a saúde de uns inviabilize a consecução de políticas de saúde coletiva.

2. O dever do Estado de fornecer medicamento não registrado na ANVISA (Tema 500 de Repercussão Geral STF)

Conforme já abordado em tópico anterior, o fornecimento de medicamentos encontra-se entre os principais assuntos no âmbito da judicialização da saúde. Estima-se que apenas os dez medicamentos mais demandados judicialmente no ano de 2016 tenham custado mais de R$ 1,1 bilhão para a União.[8] Esses custos são igualmente ou até mais relevantes para estados e municípios. Somente os estados de São Paulo, Minas Gerais e Santa Catarina gastaram entre 2013 e 2014 mais de R$ 1 bilhão, sendo que 80% desse valor foi dispendido com a judicialização do fornecimento de medicamentos.[9]

O SUS possui uma Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), lista que agrega os medicamentos essenciais para atender as necessidades prioritárias da saúde da população[10]. A RENAME orienta a oferta, prescrição e dispensação de medicamentos, sendo revisada e atualizada constantemente pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC).

A CONITEC foi criada pela Lei nº 12.401 de 2011, visando empregar maior agilidade, transparência e eficiência na análise dos processos de incorporação de tecnologias no SUS. Essa análise deve ser baseada em evidências científicas, levando em consideração aspectos como eficácia, acurácia, efetividade e segurança, além da avaliação econômica comparativa da relação custo x efetividade ante outras tecnologias já existentes. Para que ocorra análise da CONITEC o produto deve contar com registro prévio na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).

Embora persistam processos judiciais que versem sobre medicamentos já incorporados ao SUS que, em geral, não se encontram disponíveis na localidade do demandante ou tiveram sua aquisição subdimensionada, os maiores custos de fornecimento de medicamentos por via judicial envolvem medicamentos de alto custo, que não foram incorporados na RENAME e por vezes sequer possuem registro na ANVISA.

Nesse escopo, há intensa judicialização da busca de tratamentos e fármacos para doenças raras, cujas as poucas drogas disponíveis por vezes possuem caráter experimental, ou seja, não detém comprovação científica robusta de sua eficácia contra determinada enfermidade e tampouco tem efeitos claros, o que gera incertezas quanto à sua segurança. Ainda quando detém estudos validados, muitas vezes não há interesse dos fornecedores em proceder com o registro do medicamento fora de seu mercado de origem, limitando o registro há poucas ou apenas uma agência reguladora na origem ou no mercado visado. Pelo baixo quantitativo de pacientes acometidos e os grandes custos para pesquisa e desenvolvimento desses medicamentos, geralmente são vendidos a valores altos, o que também contribui para a sua eventual não incorporação ao SUS, dada a relação custo x efetividade.

As demandas por medicamentos experimentais geram custos elevados e inesperados ao orçamento da saúde nos diferentes níveis de gestão, não sendo raro que um tratamento unitário chegue a custar centenas de milhares de reais. Diante do impacto desses pedidos por medicamentos experimentais ou que não contam com registro na ANVISA, o STF foi instado a se manifestar de forma peremptória no julgamento do Recurso Extraordinário nº 657.718/MG.

O recurso em tela, de relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello, versou sobre recusa do Estado de Minas Gerais em fornecer à recorrente, representada pela Defensoria Pública daquele Estado, o medicamento Mimpara 30mg (cloridrato de Cinacalcete), em virtude de quadro de doença renal crônica que veio a evoluir para hiperparatiroidismo. Quando da proposição da demanda, o fármaco possuía registro junto as autoridades reguladoras dos Estados Unidos da América e União Europeia, sem, contudo, possuir registro na ANVISA.

Tendo sido julgado procedente em juízo de 1º grau, o estado mineiro recorreu alegando que, in verbis:

o medicamento em questão não poderia ser fornecido, tendo em vista que: (i) não possuía registro na Anvisa e, logo, sua comercialização em território nacional seria vedada por lei, (ii) seria inviável o fornecimento indiscriminado pelo Estado de todos os medicamentos escolhidos pelos pacientes, de modo que seria necessário respeitar as políticas públicas estabelecidas, e (iii) não haveria prova nos autos de que o tratamento pleiteado era realmente necessário e de que a autora não teria condições financeiras para custeá-lo.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais acolheu a apelação por unanimidade, alegando-se no respectivo acórdão que não se pode forçar o Estado a praticar descaminho ou a comercializar um medicamento sem registro na ANVISA, resultando no recurso extraordinário por violação do direito à saúde. A União peticionou e foi aceita como amicus curiae, bem como o Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal foi admitido como terceiro interessado.

A controvérsia foi então apreciada em sede do Tema 500 de Repercussão Geral. O relator manifestou-se pelo não provimento, assim como o então presidente, Ministro Dias Tofolli. Foram vencidos, contudo, decidindo-se por dar provimento parcial ao recurso, nos termos do voto do ministro Luís Roberto Barroso, que foi o redator do acórdão. Interessante ressaltar que ao tempo do julgamento do referido recurso, o medicamento já havia sido registrado na ANVISA e incorporado ao SUS.

O voto do ministro Luís Roberto Barroso trouxe uma análise extensiva da questão da judicialização da saúde, salientando pontos relevantes em relação à problemática de forma incisiva:

O sistema, no entanto, apresentou sintomas graves de que pode morrer da cura, vítima do excesso de ambição, da falta de critérios e de voluntarismos diversos. Por um lado, proliferam decisões extravagantes ou emocionais, que condenam a Administração ao custeio de tratamentos irrazoáveis seja porque inacessíveis, seja porque destituídos de essencialidade , bem como de medicamentos experimentais ou de eficácia duvidosa, associados a terapias alternativas. Por outro lado, não há um critério firme para a aferição de qual entidade estatal União, Estados e Municípios deve ser responsabilizada pela entrega de cada tipo de medicamento. Diante disso, os processos terminam por acarretar superposição de esforços e de defesas, envolvendo diferentes entidades federativas e mobilizando grande quantidade de agentes públicos, aí incluídos procuradores e servidores administrativos. Desnecessário enfatizar que tudo isso representa gastos, imprevisibilidade e disfuncionalidade da prestação jurisdicional.

Tais excessos e inconsistências não são apenas problemáticos em si. Eles põem em risco a própria continuidade das políticas de saúde pública, desorganizando a atividade administrativa e impedindo a alocação racional dos escassos recursos públicos. No limite, o casuísmo da jurisprudência brasileira pode impedir que políticas coletivas, dirigidas à promoção da saúde pública, sejam devidamente implementadas. Trata-se de hipótese típica em que o excesso de judicialização das decisões políticas pode levar a não realização prática da Constituição Federal. Em muitos casos, o que se revela é a concessão de privilégios a alguns jurisdicionados em detrimento da generalidade da população, que continua dependente das políticas universalistas implementadas pelo Poder Executivo.

Em análise do mérito, o ministro Barroso recobrou a legislação atinente ao registro de medicamentos, elencando destaque para a necessidade de especial deferência em relação à decisão da ANVISA. Argumentou que o deferimento de decisões judiciais favoráveis ao fornecimento de medicamentos sem registro junto ao órgão regulador são uma afronta ao próprio direito à saúde, pelos riscos atinentes ao uso de fármacos que não foram submetidos a testes e critérios mínimos exigidos. Além disso, destacou que se trata de invasão das competências privativas do Poder Executivo, por serem a vigilância sanitária e o registro de produtos procedimentos de caráter administrativo concernente ao Executivo. Discorreu ainda sobre a iniquidade e desorganização administrativo-financeira que a autorização judicial do fornecimento de medicações sem registro pode causar no âmbito da gestão.

Por fim, após trazer à baila a discussão e consequente separação entre o cenário de fornecimento e importação de medicamentos experimentais e o cenário que envolveria medicamentos com eficácia e segurança comprovadas de forma robusta, mas que ainda carecem de registro no país, o eminente ministro assenta a seguinte tese em sede de repercussão geral:

1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais.

2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.

3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido de registro (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos:

(i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);

(ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e

(iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.

4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União.

A tese acolhida é cristalina ao impossibilitar o fornecimento pelo Estado de medicamentos experimentais, vez que se deve primar pela segurança dos indivíduos e a própria proteção à saúde. Resta igualmente impossibilitado, ao menos em via de regra, o fornecimento de medicamentos que detenham testes e estudos de eficácia e segurança, mas que não possuam registro prévio na ANVISA, salvo em hipótese única de mora irrazoável de apreciação da solicitação de registro, conforme a legislação correlata. Para que essa exceção seja aplicada, deve haver ainda presença cumulativa de pedido de registro em curso, excepcionado no caso dos chamados medicamentos órfãos, registro existente em agência reguladora de outro país e que não exista medicamento ou tratamento com registro no Brasil que seja passível de substituí-lo.

Importante salientar que o Tema 500 ao condicionar que a única possibilidade de fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA é aquela onde exista mora irrazoável dessa agência reguladora ao apreciar o pedido de registro, determinou que a propositura de demandas deve ocorrer sempre em face da União, haja vista a excepcionalidade estar relacionada a atividade da citada agência.

Cabe também reiterar que houve provimento parcial da demanda, dado que o medicamento Mimpara 30mg (cloridrato de Cinacalcete), ao momento do julgamento do mérito, maio de 2019, já havia sido registrado e incorporado ao SUS, portanto não cabe dizer que o provimento ocorreu pela aceitação do fornecimento de medicamento sem registro, mas sim que dada a mudança do estado de coisas o medicamento poderia sim ser fornecido à recorrente, motivo pelo qual houve provimento da condenação do Estado de Minas Gerais pelo custeio da medicação.

3. Julgamento da Suspensão de Tutela Provisória 803 (medicamento Zolgensma)

Em julho de 2021, mais um julgamento envolvendo a judicialização do fornecimento de medicamentos ganhou especial repercussão midiática. Tratou-se da apreciação pelo STF da Suspensão de Tutela Provisória 803 (STP 803) em relação a pedido de fornecimento, pela União, do medicamento Zolgensma a menor portadora de Amiotrofia Muscular Espinhal Tipo 2 (AME).

A AME é uma doença genética rara, degenerativa, que altera a capacidade do organismo de produzir uma proteína essencial para a sobrevivência dos neurônios motores, levando o paciente a perda do controle e forças musculares, incapacidade/dificuldade de realizar movimentos, locomoção, deglutição e até mesmo respiração. Esses sintomas graves levam o paciente a intenso sofrimento e a evolução para uma morte precoce. A enfermidade apresenta uma incidência estimada de 1 caso a cada 10.000 nascidos vivos.[11]

O medicamento em questão, Zolgensma, foi lançado em 2019 pelo laboratório Novartis, embora tenha sido desenvolvido pelo laboratório AveXis, obtendo naquele ano o registro junto à agência reguladora estadunidense, a Food and Drug Administration (FDA), e registro na ANVISA em 2020. O fármaco é aplicado em dose única, apesentando potencial de cura da AME. A Câmara de Regulação de Mercado de Medicamentos (CMED) definiu o valor de R$ 2,878 milhões para a venda do produto no Brasil, 76% menor que o praticado no Estados Unidos da América, onde custa cerca de R$ 12 milhões, preço que o fez ganhar a alcunha de medicamento mais caro do mundo.

A portadora em questão, então com 2 anos e 9 meses de idade, ingressou contra a União e teve seu pedido indeferido pelo juízo de 1ª instância. Fundamentou-se que além do custo elevado do medicamento o mesmo não seria indicado para a faixa etária da solicitante, uma vez que a bula do medicamento aprovada no Brasil indica o uso em pacientes abaixo dos 2 anos de idade.

Houve recurso de apelação ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF 3). O desembargador relator concedeu tutela provisória recursal, determinando o fornecimento do fármaco conforme prescrição médica correlata. Esta feita, a União solicitou a respectiva suspensão da tutela provisória, diante da inadequação da prescrição do medicamento para a faixa etária da portadora em tela, haja vista a bula aprovada pela ANVISA, bem como reafirmou o que restou assentado diante do Tema 500 de repercussão Geral, argumentado nesse caso que se trataria de medicamento experimental para a faixa etária acima de 2 anos de idade, sendo, portanto, vedado o fornecimento pelo Estado.

A análise do pedido de suspensão coube ao presidente do STF, ministro Luiz Fux. Manifestado o cabimento do pedido, o ministro passou a análise do caso concreto, logo recobrando o exposto na tese do Tema 500 em sede de repercussão geral. Argumentou o ministro que o fato da menor autora do pedido original contar com mais de 2 anos de idade é fato determinante para restar caracterizada a ministração experimental do medicamento. Portanto, vislumbrou ser indevida a concessão de liminar pelo TRF 3 e decidiu, diante do exposto, suspendê-la cautelarmente.

Apenas dois dias após a manifestação inicial pelo deferimento da suspensão, os representantes da menor ingressaram com petição arguindo a reconsideração e consequente manutenção do dever do Estado em fornecer o respectivo fármaco, diante de novos dados apresentados. A argumentação empregada foi no sentido de evocar a própria tese do Tema 500, de forma a enquadrar o caso concreto na possibilidade de excepcionalidade de fornecimento de medicamento sem registro.

Primeiramente, sustentou-se que não poderia se olvidar que a AME é doença rara e o Zolgensma é medicamento órfão. Nesse escopo, a ANVISA define na Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 205, de 28 de dezembro de 2017, doença rara como sendo aquela que afeta até sessenta e cinco pessoas em cada cem mil indivíduos, conforme definido pela Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, com base em dados oficiais nacionais ou, quando inexistentes, em dados publicados em documentação técnico-científica[12], critério que engloba a AME. Além disso, embora ampla, a conceituação de medicamentos órfãos faz referência aqueles voltados para doenças raras, existindo relutância no seu desenvolvimento devido ao pequeno mercado que podem atingir. Houve, portanto, preenchimento de um dos requisitos para o fornecimento excepcional do medicamento sem registro: medicamento órfão para doença rara.

Nesse escopo, foi também apontado que a bula europeia do Zolgensma possibilita a dispensação para crianças até 5 anos de idade com até 21 quilos. Outrossim, atingiu-se o segundo requisito para a concessão excepcional, a existência de registro em agência reguladora no exterior. Ademais, a própria ANVISA já havia confirmado a inexistência de alternativa terapêutica, em momento anterior, restando, por conseguinte, preenchido o terceiro e último requisito elencado para concessão judicial de medicamentos sem registro nacional, segundo o Tema 500 da sistemática de repercussão geral.

Diante do exposto, o ministro Fux veio a reconsiderar sua decisão, logo restaurando os efeitos da decisão do TRF 3 e determinando o fornecimento do medicamento conforme prescrição médica, bem como o pagamento dos dispêndios com hospital, médicos e transporte em 10 dias, sob pena de multa diária R$ 10.000 em favor da criança.

Considerações Finais

Nota-se que o estabelecimento da tese relativa ao Tema 500 pelo STF foi um grande avanço na racionalização da apreciação de demandas judiciais relativas ao fornecimento de medicamentos pelo Estado. Foram descritas bases sólidas tanto no que tange à impossibilidade de fornecimento de tratamentos experimentais, quanto na definição de condições excepcionais para aquisição de medicamentos sem registro na ANVISA.

Nesse sentido, as manifestações no âmbito da STP 803 podem, superficialmente e a olhos desatentos, aparentar um enfraquecimento da tese presente no Tema 500, quando em verdade agregam robustez à citada tese. Perante o caso concreto, detentor de grande reverberação midiática devido ao altíssimo custo unitário da medicação solicitada, o pretório excelso decidiu observando a documentação apresentada pela autora, que condizia com os requisitos de excepcionalidade contidos na tese vinculante.

Dessa forma, ao julgar e deferir situação de excepcionalidade prevista em tese vinculante sobre o assunto, houve a reiteração e fortalecimento da interpretação concernente ao fornecimento de medicamentos sem registro pátrio. In casu, aplicou-se o adágio: a exceção testa a regra.


Notas

  1. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
  2. A história de misericórdia das Santas Casas. Disponível em: https://www.cmb.org.br/cmb/index.php/institucional/quem-somos/historico. Acesso em 11 de novembro de 2021.
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  8. Idem.
  9. ________.Tribunal de Contas da União. Aumentam os gastos públicos com judicialização da saúde. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/aumentam-os-gastos-publicos-com-judicializacao-da-saude.htm.Acesso em 11 de novembro de 2021.
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  12. BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução RDC n° 205, de 28 de dezembro de 2017. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/1486126/do1-2017-12-29-resolucao-rdc-n-205-de-28-de-dezembro-de-2017-1486122. Acesso em 11 de novembro de 2021.
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Sobre o autor
Luis Paulo Mendes Dias

Bacharel em Direito pela Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul (FADERGS). Bacharel em Relações Internacionais pelo Centro Universitário de Brasília (UNICEUB). Especialista em Direito Internacional pelo Centro Universitário Cruzeiro do Sul (UNICSUL). Especialista em Direito Público Aplicado pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI). Servidor público federal da Carreira de Desenvolvimento de Políticas Sociais - Analista Técnico de Políticas Sociais. Atuante nas áreas de Direito Público, Direitos Sociais, Direito Internacional e Direitos Humanos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Luis Paulo Mendes. Judicialização do fornecimento de medicamentos:: Tema 500 do STF e a STP 803 (Zolgensma). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6715, 19 nov. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/94725. Acesso em: 30 dez. 2024.

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