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Violência no futebol: A responsabilidade civil das entidades esportivas e das torcidas organizadas

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Como definir os limites da responsabilidade civil nos casos de violência provocada por torcidas organizadas no futebol?

RESUMO:Buscando melhores entendimentos sobre a questão de responsabilidade civil no âmbito dos esportes, em especial relacionado às entidades desportivas e torcedores integrantes de torcidas organizadas, este artigo busca investigar as bases e os fundamentos presentes no ordenamento jurídico brasileiros concernentes ao instituto da responsabilidade civil, bem como as suas manifestações diretas com a lei e as jurisprudências relacionadas a incidentes de torcidas organizadas. Para auxiliar esta jornada, também se faz necessário analisar as legislações pertinentes ao direito desportivo, sendo as principais delas a Lei Geral do Desporto (Lei Pelé) e o Estatuto de Defesa do Torcedor.

Palavras-chave: Responsabilidade civil. Estatuto de Defesa do Torcedor. Entidades Esportivas. Torcidas Organizadas.


1 INTRODUÇÃO

Desde os primórdios de sua existência, os seres humanos convivem em sociedade e agrupamentos, originando assim as primeiras tribos de pessoas nas eras antigas do planeta. Com o passar dos séculos, essas pequenas tribos evoluíram para os grandes povoados que vieram a formar os Estados Nacionais por volta da idade média, que por sua vez se expandiram e colonizaram outras terras e povos, chegando aos dias atuais e ao modelo social contemporâneo.

Assim, entende-se que as relações inter vivos também tiveram grande evolução com o passar do tempo, o que gerou diversas complexidades a serem discutidas e resolvidas em sua convivência. As atividades essenciais foram desenvolvidas para garantia da sobrevivência da espécie, de maneira que o crescimento cada vez mais desordenado causou atritos entre diferentes pessoas.

É neste tipo de litígio que age o Direito, juntamente com seus operadores e instrumentos normativos, com objetivo de resolver os litígios existentes entre os indivíduos mediante uma ideia de justiça e dignidade. Ao se unir em sociedade, regramentos para convivência sadia são necessários, e são eles que, juntamente com a moral e os costumes, regem o ordenamento jurídico.

Quando um determinado cidadão causa dano a outrem, seja de maneira material ou formal, é necessário que sejam apuradas as condições para que haja o ressarcimento ou até mesmo a reparação do prejuízo que foi causado, pois não seria justo, por exemplo, que um indivíduo perdesse algum bem por conta das atitudes de terceiros.

Assim o instituto da responsabilidade civil age nas situações mais comuns envolvendo danos e reparações. Mas, e quando ele é necessário em situações um pouco mais diversificadas? Claro que também é possível sua aplicação. Desta forma, o grande intuito deste artigo é desvendar a responsabilidade civil das entidades esportivas e das torcidas organizadas. Isto porque o esporte, ou desporto, move as massas desde séculos atrás, com crescente popularidade ao longo do desenvolvimento das sociedades, em especial a partir do século XX e do crescimento dos aportes financeiros a atletas e entidades esportivas mundo afora.

É cristalino que o Brasil quando o assunto é esporte, o país que tem, em especial, a Seleção Nacional pentacampeã mundial de futebol, por onde passaram nomes como Pelé, Garrincha, Romário, Zico, Ronaldo e diversos outros, com certeza tem no desporto uma grande base influenciadora para sua população como um todo.

Dito isso, para que haja tamanha popularidade, é necessário que haja um enorme volume de fãs e torcedores, para que as entidades desportivas do país consigam se manter no cenário esportivo ao qual estão inseridos. São esses torcedores que, movidos por paixão e devoção, mantém constante consumo dos produtos e eventos relacionados ao esporte relacionados.

Ocorre que, diante de tamanho sentimento, muitas vezes, certos grupos de torcedores se formam em torno de uma agremiação em comum e, além de apoiar incondicionalmente, acabam levando o extremismo da paixão para o lado do ódio. Há uma linha tênue entre amor e ódio, conforme comumente é dito por alguns.

Este artigo tem como objetivos a análise da responsabilidade civil no ordenamento jurídico brasileiro das instituições diretamente envolvidas com o espetáculo do futebol, o qual, infelizmente por diversas vezes é afetado por atos de violência.

Desta maneira, apoiado na doutrina e jurisprudência brasileira, juntamente com metodologias analíticas, dedutivas, qualitativas e explicativas, sob pretexto de entender como as ocorrências danosas causadas pelas chamadas torcidas organizadas são tratadas juridicamente, este artigo foi desenvolvido.


2 ASPECTOS JURÍDICOS DO DESPORTO BRASILEIRO.

O desporto brasileiro se desenvolveu com mais intensidade a partir do governo Getúlio Vargas, iniciado na década de 1930 do século XX. Foi nesse período que começaram a surgir as primeiras normas reguladoras do direito desportivo no País.

Entende-se que o direito desportivo permaneceu com um certo vácuo legislativo até a década de 1940, sendo que apenas em 1938 encontramos os primeiros registros de legislação estatal relativos à prática desportiva: o Decreto Lei nº 527, que garantia ao desporto a cooperação financeira da União (LAIGNER DE SOUZA, 2005, p. 17). Logo no ano seguinte, por intermédio do Decreto-Lei nº 1.056, foi criada a Comissão Nacional de Desportos, cuja composição era de cinco membros escolhidos pelo Presidente da República com grande objetivo de elaborar um plano para regulamentação do desporto brasileiro.

No dia 14 de abril de 1941, surge o Decreto-Lei nº. 3.199/41, considerada a primeira legislação que concretamente foi responsável em estabelecer as bases de organização do Desporto no país. Esse instituto permitiu uma forte e evidente aproximação do Estado com os esportes, conforme lecionado por Barros Alves e Pieranti:

Apenas em 1970 a Divisão de Educação Física foi transformada no Departamento de Educação Física e Desportos, ainda vinculada ao Ministério da Educação e Cultura (MEC). Em 1975, o Conselho Nacional de Desportos, por meio da Lei 6251 de 1975, teve sua força ampliada, tornando-se os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário do esporte no Brasil - em resumo, o CND passava a ter o poder absoluto sobre o setor. Aconteceram, nessa época, intervenções governamentais em várias instituições esportivas, como, por exemplo, o afastamento, engendrado pelo Presidente da República Ernesto Geisel, do Presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD, atual Confederação Brasileira de Futebol) João Havelange, substituído pelo coronel Heleno Nunes, membro, à época, do Diretório Nacional da ARENA, partido governista (BARROS ALVES; PIERANTI, 2005).

A partir de 1995, Fernando Henrique Cardoso, então Presidente da República, criou o Ministério Extraordinário do Esporte, no qual a secretaria do esporte foi substituída pelo Instituto Nacional de Desenvolvimento do Desporto (INDESP), desvinculado do Ministério de Educação e Cultura e subordinado a estre novo ministério. Sendo extinto o ministério extraordinário, foi criado o Ministério do Esporte e Turismo, responsável pelas duas áreas até o ano de 2002. De acordo com Barros Alves e Pieranti (2005), no ano seguinte foi criado pela primeira vez na história do Brasil, sem qualquer menção a caráter extraordinário, o Ministério do Esporte.

A Lei 9.615/98 foi sancionada precisamente no dia 24 de março de 1998, tendo por objetivo maior o estabelecimento de normas e diretrizes gerais para a condução do desporto no Brasil, tendo, inclusive, revogado a legislação anterior (Lei Zico) e alterado por completo a situação legal do passe de um jogador de futebol.

Por se tratar do grande instrumento legal relativo às questões desportivas no país, somado ao momento em que Edson Arantes do Nascimento, mundialmente conhecido como Pelé e maior futebolista de todos os tempos, era ministro extraordinário do Esporte, seu nome ficou gravado na Lei 9.615/98, a famosa Lei Pelé.

Conforme mencionado, a promulgação desta lei foi responsável por um marco histórico no futebol brasileiro: a revogação do passe. João Henrique Chen Chiminazzo (2010) destaca alguns pontos importantes sobre a Lei 9.615/98 e seus efeitos, discorrendo especialmente sobre o fim do passe com as seguintes palavras:

Depois de pouco mais de 20 anos, muito debate jurídico e embasado pelo famoso Caso Bosman, foi promulgada no Brasil, em 24 de março de 1.998, a Lei nº 9.615, que recebeu a alcunha de Lei Pelé, então Ministro dos Esportes. A Lei Pelé, que também ficou conhecida como a Lei que acabou com o passe, dispunha, em seu artigo 28, parágrafo segundo, que o vínculo desportivo do atleta e a entidade de prática desportiva teria natureza acessória ao respectivo vínculo empregatício e se dissolveria, para todos os fins, com a extinção deste. Os clubes, que tinham no passe sua maior fonte de receita, conseguiram que o passe só fosse extinto, efetivamente, três anos após a publicação da Lei 9.615/98, ou seja, somente em 24 de março de 2.001 (Chiminazzo, 2010)

No mais, conforme destacado, a referida lei também reforçou o balizamento jurídico das atividades desportivas de um modo geral. Conforme preceitua em seu artigo 1°, são abrangidas as práticas formais e não-formais de desporto, de modo que ambas obedecem às normas gerais desta Lei, inspirado nos fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito.

Em outras palavras, pode-se dizer que esta lei está em total consonância com os preceitos básicos da Constituição Federal, de maneira que o desporto pode ser considerado um meio evidente para o desenvolvimento do ser humano, tanto para suas aptidões físicas e mentais quanto para a consolidação do exercício de cidadania e soerguimento das relações internas e externas da sociedade brasileira.


3 ESTATUTO DO TORCEDOR, TORCIDAS ORGANIZADAS E ENTIDADES ESPORTIVAS.

Muitos cientistas da área ambiental costumavam questionar se a Amazônia seria o pulmão do mundo. No mundo desportivo, existe a certeza de que o pulmão de uma entidade ou agremiação esportiva é sua torcida. São eles que encontram no clube, em suas cores, em sua bandeira, em seus símbolos ou até mesmo em outros torcedores um sentimento único de pertencimento, de identificação e de afeto.

O futebol brasileiro, dentre todas as outras diversas modalidades praticadas em alto nível no país, sempre foi a que mais desperta essa paixão e ira de seus torcedores. Muitos momentos conturbados em relação a atitudes de torcedores furiosos podem ser relembrados sem muito esforço: o rebaixamento do Coritiba Foot Ball Club para a segunda divisão do Campeonato Brasileiro no ano de 2009, que ocasionou uma espécie de batalha campal no gramado do estádio Major Couto Pereira, localizado na cidade de Curitiba, talvez seja o grande exemplo do século XXI.

Porém, em questão de violência de torcidas, o principal exemplo aconteceu em 1995, na cidade de São Paulo (SP). No dia 20 de agosto, foi decidida a Supercopa São Paulo de Juniores entre as equipes de São Paulo e Palmeiras, no estádio municipal Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu. Após a conquista da equipe alviverde palestrina, integrantes da torcida organizada Mancha Verde aproveitaram o pouco policiamento para invadir o campo e celebrar de maneira provocativa em frente à torcida Independente, do São Paulo. Resultado: muita confusão, pancadaria, 102 feridos e uma morte.

Apesar de ser uma partida de juniores, houve transmissão em televisão aberta para todo o país, bem como não houve cobrança de ingressos, o que motivou a ida de diversos torcedores àquela partida. Afinal, era uma decisão de campeonato entre duas equipes de altíssima rivalidade local. Este foi o primeiro caso de briga de torcidas que foi a julgamento no Brasil, culminando com a extinção na época das torcidas organizadas Mancha Verde (Palmeiras) e Independente (São Paulo). A Federação Paulista proibiu todas as uniformizadas, bem como a utilização de bandeiras com mastros nos estádios de São Paulo.

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Com objetivo de melhorar a forma de controle e correção desses problemas, entrou em vigor no dia 15 de maio de 2003, a lei nº 10.671. Seu principal objetivo é proteger os interesses do consumidor de esportes no papel de torcedor, obrigando as instituições responsáveis a estruturarem o esporte no país de maneira organizada, transparente, segura, limpa e justa.

Conforme obra de Mariana Rosignoli e Sérgio Santos Rodrigues (2015), esta lei trouxe diversas normas de proteção e defesa aos torcedores, iniciando profundas mudanças na relação dos torcedores com o esporte.

Ainda, entende-se que o Estatuto do Torcedor tem como base o Código de Defesa do Consumidor, de modo que acaba equiparando o torcedor ao consumidor e as entidades responsáveis pela organização das competições e entidades de prática desportiva detentoras do mando de jogo à figura do fornecedor. (ROSIGNOLI; RODRIGUES, 2015, p. 24). Tais medidas não eram encontradas na Lei Pelé, já que a mesma é centrada nas questões dos atletas e da organização desportiva brasileira em geral.

No tocante às instituições responsáveis, o artigo 1º-A define que são responsáveis conjuntamente por zelar pela defesa e proteção de todos os torcedores: o Poder Público, as respectivas confederações e federações, as ligas e clubes, as associações e entidades esportivas, recreativas e de torcedores, bem como seus dirigentes e promotores, organizadores, coordenadores ou participantes de eventos esportivos.

Por conseguinte, o artigo 2º traz a definição do que é considerado torcedor simples, ou seja, aquele ou aquela que aprecie, apoie ou se associe a qualquer entidade de prática desportiva do País e acompanhe a prática de determinada modalidade esportiva.

Já na redação do artigo 2º-A, é trazida a definição do que é torcida organizada, qual seja a pessoa jurídica de direito privado ou existente de fato, que se organize para o fim de torcer e apoiar entidade de prática esportiva de qualquer natureza ou modalidade, sendo esta obrigada a manter um cadastro atualizado de seus associados ou membros, contendo diversas informações elencadas no parágrafo único do artigo mencionado, tais como nome completo, fotografia, filiação, número de registro civil, número de CPF, entre outras.

Insta salientar que as informações retro mencionadas não faziam parte da redação original da Lei 10.671/03, sendo trazidas e incluídas ao estatuto pela lei 12.299/2010, que foi promulgada com o objetivo de reforçar as medidas de prevenção e repressão aos fenômenos de violência por ocasião de competições esportivas.


4 RESPONSABILIDADE CIVIL DAS ENTIDADES ESPORTIVAS.

Na seara da relação clube-torcedor, já foi explicada a existência da equiparação do Estatuto de Defesa do Torcedor com o Código de Defesa do Consumidor, mas ocorre que esta aparelhagem acaba por apresentar defasagens em alguns pontos. Como mandante do evento, é cristalina a responsabilidade da agremiação local nas situações que ocorram nas dependências do certame ali realizado e que venham a colocar em risco a segurança dos espectadores presentes antes, durante e após o cotejo.

Bem sabido que, diante da regra adotada no Código Civil Brasileiro, existe a aplicação da teoria do risco ante aos fatos que venham a causar danos, também conhecida como responsabilidade objetiva (art. 927, parágrafo único). Assim, quando se fala na relação da agremiação desportiva com as torcidas organizadas que elas apoiam, é necessário que seja devidamente analisado se há como aplicar responsabilidade a ambas as instituições, tendo em vista que ambas são pessoas jurídicas distintas, sendo plenamente independentes uma da outra em termos de constituição e existência.

Apesar dessa independência, é uma prática comum no desporto brasileiro, especialmente o futebol, que haja uma relação de auxílio entre as agremiações e as torcidas organizadas, em que os dirigentes oferecem formas de financiá-las através de diversos privilégios. Os principais destes incluem distribuição de ingressos, oferecimento de locomoção em outras cidades em que o clube vá disputar partidas, acesso a áreas mais reclusas da sede e dos locais de treinamento, dentre outras medidas.

Esse tipo de medidas costuma desagradar o torcedor comum, que costumeiramente compra ingressos e produtos licenciados com o suor de seu trabalho e, muitas vezes, sacrificando grande parte receitas que poderiam ser gastas de outras maneiras. Também é verdade que alguns dirigentes também não aprovam essa prática, mas acabam silenciados pela esmagadora maioria que tenta adestrar as torcidas organizadas para agirem conforme seus interesses.

Um importante efeito desta relação entre os dirigentes das entidades esportivas com as respectivas torcidas organizadas é o constante surgimento de rixas entre as próprias torcidas, que deveriam estar unidas em prol de uma mesma agremiação, mas que se deixam levar pela inveja e o ciúme em disputas extremamente rasas. E proveniente destas relações conflituosas, os dirigentes tornam-se reféns das promessas que realizam para determinados grupos, acabando por sofrer pressão daqueles que almejam o mesmo tipo de privilégio cedido.

Caso esse tipo de regalias e financiamento por parte das entidades desportivas pudesse ser encerrado pelos órgãos públicos ou até mesmo pelas próprias agremiações, é bem provável que a quantidade de uniformizados presentes em eventos esportivos cairia consideravelmente, tendo em vista que não haveria mais privilégio na distribuição de ingressos ou mesmo suporte na locomoção para outras cidades, o que controlaria um pouco mais as situações de violência ocorridas nestes eventos, pelo menos em tese.

Em contrapartida, os clubes e agremiações acabariam por afastar de seu universo aqueles que mais se identificam e se entregam em honra à instituição, bem como deixariam de receber apoio das torcidas uniformizadas para receber cobranças excessivas por resultados expressivos no campo desportivo e um melhor tratamento daqueles que, de fato, empurram a equipe na hora das partidas.

Considerando todos esses fatores, diversas outras medidas já foram testadas para tentativa de diminuição das cenas de violências em estádios e arenas. O Ministério Público do Estado de São Paulo, por exemplo, nos chamados Clássicos Paulistas, partidas disputadas dentre dois dos quatro grandes clubes de futebol do Estado (Santos, São Paulo, Corinthians e Palmeiras), já proibiu no ano de 2016 que fossem comercializados ingressos para torcedores visitantes.

Mesmo diante das questões concernentes à pandemia, com estádio vazio para o público e nas fortes recomendações de infectologistas de que aglomerações de pessoas sejam evitadas, ainda sim cenas de violência e confusão foram protagonizadas entre as torcidas organizadas Jovem Fla e Young Flu, mediante uso de objetos como tacos e pedaços de madeira.

Portanto, situações como essas acabam gerando desconforto nas agremiações, de modo que a concessão de privilégios colabora até certo ponto nas questões da violência, pois acabam sendo conveniadas a agir de determinada maneira em troca destes, visto que as torcidas levam as insígnias e escudos da instituição desportiva nos uniformes e instrumentos utilizados. Assim, o temor pela responsabilização das entidades pelos atos praticados pelas torcidas organizadas acaba gerando diferentes reações por parte de dirigentes.

Conforme sabido, é de dever principal do mandante do evento desportivo garantir a segurança dos torcedores presentes, mediante artigo 14 do Estatuto de Defesa do Torcedor. Ou seja, é uma hipótese de responsabilização da entidade desportiva quanto aos acontecimentos danosos que por ventura ocorrerem com o público ou o ambiente de realização.

Para esta situação entende-se que, no momento em que adentrar o local do evento desportivo, o torcedor o faz na condição de consumidor. Assim sendo, é esperado que ele tenha um momento de desfrute e lazer, não ocorrendo situações adversas, hostis ou de violência e conflitos graves. O esperado é que seja um ambiente tranquilo, seguro e bem guardado antes, durante e após a realização da partida assistida.

A falta de segurança nos ambientes de eventos desportivos pode, inclusive, render punição ao clube mandante pela falta de zelo e eventual negligência na inobservância dos padrões básicos de segurança para uma partida disputada com um determinado número de expectadores presentes in loco.

Neste sentido, há exemplo de julgado em ação civil pública movida pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios devido a negligência quanto aos seguimentos básicos de segurança na partida de futebol realizada entre Flamengo e Palmeiras, em junho de 2016, no Estádio Mané Garrincha, em Brasília, pelo Campeonato Brasileiro de Futebol, por terem firmado contrato de prestação de serviço de segurança com base num público presente de 30 mil pessoas, quando na realidade forma vendidos mais de 54 mil ingressos aos torcedores. No caso mencionado, houve confusão e briga entre torcedores uniformizados de ambas as equipes.

O MP alegou ainda, que existiu, por parte do clube mandante, no caso o Clube de Regatas do Flamengo, e também por parte da Federação de Futebol do Distrito Federal, inaptidão para a prevenção da violência e violação ao Estatuto do Torcedor, de maneira que foi requerida condenação de ambos os réus em pagamento compensatório pelos danos morais coletivos causados.

Conforme levantamento do curso da ação civil pública em questão, realizado pelo portal Consultor Jurídico (2020), o clube afirmou em sua defesa que realizou a contratação de segurança particular meramente como complemento àquela que deve ser fornecida pelo Estado par eventos deste tipo, de maneira que não teria havido negligência por sua parte. Ainda, afirmou que não poderia ser responsabilizado por atos de violência exclusivamente de torcedores, sejam ela da esfera cível ou da esfera criminal.

Ainda no levantamento do supramencionado portal, quanto a defesa apresentada pela Federação de Futebol do Distrito Federal, ficou relatado que foram providenciadas todas as medidas de segurança básicas e necessárias para a realização da partida de futebol em questão, de modo que atuou em conjunto com o clube mandante nas questões concernentes tanto à logística quanto à segurança dos expectadores do evento, de maneira que não haveriam danos morais a serem indenizados em decorrência aos fatos envolvendo torcidas organizadas presentes no local.

No entanto, o juízo da 7ª Vara Cível de Brasília entendeu que, por base da documentação junta aos autos sob nº 0736141-41.2019.8.07.0001, ficou claro que houve falha na prestação do serviço e violação ao Estatuto de Defesa do Torcedor devido à ausência de medidas de segurança no evento, de maneira que não foi possível prevenir a violência praticada pelas torcidas organizadas dos clubes envolvidos na disputa da partida.

O magistrado ainda entendeu que, de acordo com os fatos relatados pelo MP, os atos de violência e confusão poderiam ser evitados caso o plano de contingenciamento padrão tivesse sido seguido mais à risca, bem como se houvesse maior isolamento das torcidas organizadas presentes no estádio Mané Garrincha na data da partida.

Portanto, no julgamento ficou entendido que é cabível o pagamento de danos morais coletivos pelos réus, de maneira solidária. O magistrado afirmou que houve grave e intolerável violação ao direito à segurança previsto no artigo 13 do Estatuto do Torcedor, de modo que esta lesão não se limitou apenas ao evento desportivo, mas sim para a sociedade como um todo, pois este tipo de acontecimento influencia a percepção da coletividade a respeito da segurança ao assistir espetáculos futebolísticos nos estádios.

A condenação solidária entre o clube mandante e a federação local pelo pagamento das indenizações foi determinada conforme termos a seguir descritos, em sentença proferida nos autos:

N. 0736141-41.2019.8.07.0001 - AÇÃO CIVIL PÚBLICA CÍVEL - A: MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS. Adv (s).: Não Consta Advogado. R: CLUBE DE REGATAS DO FLAMENGO. Adv (s).: RJ082374 - SERGIO CHERMONT DE BRITTO. R: FEDERACAO BRASILIENSE DE FUTEBOL. Adv (s).: DF22820 - LOURIVAL MOURA E SILVA. Diante do exposto, resolvo o mérito da causa e, nos termos do art. 487, I, do CPC, julgo procedente o pedido formulado pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios para condenar o Clube de Regatas Flamengo e a Federação de Futebol do Distrito Federal, solidariamente, ao pagamento de R$ 282.856,50 (duzentos e oitenta e dois mil, oitocentos e cinquenta e seis reais e cinquenta centavos) a título de compensação pecuniária por danos extrapatrimoniais coletivos, valor este que deve ser corrigido pelo INPC desde o arbitramento, e com juros de mora de 1% a.m., desde o ato ilícito (05/06/2016). O valor da indenização deverá ser vertido ao Fundo de Defesa do Consumidor, criado pela Lei Complementar nº 50/97. Custas pelos réus. Sem honorários. P. R. I.

Neste caso, foi possível ver na prática como as ações violentas de uma torcida organizada durante a realização de uma partida de futebol podem prejudicar financeiramente o clube ou agremiação ao qual apoiam e torcem de forma incondicional, justamente pelos mesmos terem a responsabilidade prevista em lei nos casos em que forem a equipe mandante do certame desportivo.

Além do mais, esse tipo de ocorrência gera, além da possibilidade de condenação por responsabilidade civil direta ao clube mandante, grande chance de punição por parte do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), já que o mesmo se trata de órgão autônomo e custeado pela Confederação Brasileira de Futebol, justamente por conta da existência de uma justiça desportiva autônoma, conforme explicado no segundo capítulo deste trabalho.

As punições relativas ao STJD podem ser das mais variadas, mas comumente incorrem na chamada perda do mando de campo, em que o clube precisará realizar a partida em uma cidade de, pelo menos, 100 quilômetros de distância de sua cidade-sede. Há também as determinações para partidas com portões fechados, sem a presença de público e, consequentemente, da renda proveniente de bilheteria, ou realização mediante presença de uma única torcida, como ocorrem nos clássicos da cidade de São Paulo. Em casos de maior rigor e extremidade da punição, poderia acarretar em perda de pontuação ou até mesmo exclusão da competição disputada na ocasião dos eventos danosos.

Mister salientar que, muitas vezes, as próprias entidades desportivas acabam por contribuir com a sua própria se prejudicando em algumas situações, justamente pela forma como financiam e contribuem com as torcidas organizadas, de maneira que acabam sendo considerados igualmente responsáveis pelos danos atribuídos a elas e, por conseguinte, incorrem no dever de indenizar pecuniariamente as partes prejudicadas nestas situações.

Em outro caso de ação civil pública, desta vez ajuizada pela Prefeitura Municipal de Mogi das Cruzes em face do São Paulo Futebol Clube e uma de suas principais torcidas organizadas, a Torcida Tricolor Independente, houve condenação em responsabilidade solidária das partes com relação aos danos causados no Estádio Municipal Prefeito Francisco Ribeiro Nogueira, popularmente conhecido pelos habitantes da cidade como Nogueirão.

Na ocasião, foi realizada partida da Copa São Paulo de Juniores do ano de 2016, na qual a cidade de Mogi das Cruzes foi escolhida como sede pela primeira vez em sua história. Então, no dia da partida entre o São Paulo Futebol Clube e o Rondonópolis Esporte Clube, cujos ingressos para adentrar ao estádio eram de graça nas partidas da supramencionada competição, diversos membros da Torcida Organizada Independente tiveram sua entrada negada, por conta de a capacidade máxima do estádio já estar totalmente ocupada.

Assim, ocorreu grande confusão no local, de maneira que diversos membros integrantes da organizada em questão fizeram um tumulto ao lado de fora do estádio Nogueirão, situação que causou espanto aos torcedores que já haviam adentrado o recinto e preferiram deixar o ambiente mediante escolta de policiais militares e guardas municipais.

Além das diversas agressões aos guardas e policiais presentes e atuando na segurança do evento, bem como o terror causado nos torcedores que levaram suas famílias para desfrutar de uma partida de futebol, os membros da Torcida Organizada ainda causaram depredação de lixeiras, janelas, corrimões, grades, fechaduras, catracas, viaturas e diversos outros bens públicos municipais, estipulados pela Prefeitura em cerca de R$ 68.761,67 (sessenta e oito mil setecentos e sessenta e um reais e sessenta e sete centavos), conforme extraído das informações presentes no relatório do acórdão proferido pela 2ª Câmara de Direito Público do TJ-SP.

Na ação, a Prefeitura invocou a teoria do risco e da responsabilidade objetiva presentes no artigo 927 do Código Civil, de maneira que requereu a responsabilização solidária de ambos os réus pela reparação ou indenização dos danos materiais, sociais e sociais inerentes ao caso. Afirmou que a responsabilidade do clube São Paulo está relacionada ao financiamento, seja direto ou indireto, promovido com relação à Torcida Independente.

Inicialmente, conforme destacado no relatório do acórdão da apelação sob nº 1010552-35.2016.8.26.0361 SP, a sentença de primeiro grau apenas julgou em parte o pedido formulado na propositura da ação, de maneira que tanto a Prefeitura quanto a Torcida Independente apresentaram recurso de apelação quanto ao que foi julgado na instância inicial.

Alegando ilegitimidade passiva, a Torcida Independente teve seu recurso conhecido, mas improvido. Já no caso da apelação da Prefeitura de Mogi das Cruzes, houve o conhecimento do recurso e seu provimento parcial, diante da comprovação nos autos e em outros veículos (como entrevistas e postagens nos sites oficiais das corrés) de que havia um financiamento por parte da entidade desportiva para com a torcida organizada.

Assim, como no primeiro grau houve apenas condenação de ressarcimento por parte da torcida organizada, com a decisão do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo ficou estabelecida também a aplicação de sanção ao clube, conforme ementa a seguir:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. Reparação de danos ao patrimônio público e indenização por danos sociais. Tumulto em estádio de futebol causado por torcida organizada. Legitimidade desta para figurar no polo passivo da demanda. Elementos dos autos que se mostram suficientes para configurar o dever de indenizar. Responsabilidade também atribuível ao clube, que confessadamente contribui com a torcida, inclusive com repasse de valores, além de franquear àquela o uso de sua marca. Inteligência do parágrafo único do art. 927 do Código Civil. Entendimento expresso no Enunciado nº 447 do Conselho da Justiça Federal. Sentença parcialmente reformada. Recursos conhecidos, provido em parte o da Municipalidade e não provido o da corré. (grifo nosso)

(TJ-SP - APL: 10105523520168260361 SP 1010552-35.2016.8.26.0361, Relator: Vera Angrisani, Data de Julgamento: 29/01/2019, 2ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 30/01/2019)

Destaca-se o provimento parcial da apelação justamente por, no caso em particular, a relatoria não considerar a condenação como solidária. Isto porque a capacidade econômica do clube São Paulo é elevadíssima, notavelmente superior à da Torcida Organizada Corré, tendo em vista o recebimento de volumosas quantias em cotas televisivas, patrocínios e venda de atletas.

Porém, importante que não seja ofuscada o reconhecimento da responsabilidade atribuída a ele, dentro dos parâmetros estabelecidos pelo enunciado 447 da V Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal, que diz:

As agremiações esportivas são objetivamente responsáveis por danos causados a terceiros pelas torcidas organizadas, agindo nessa qualidade, quando, de qualquer modo, as financiem ou custeiem, direta ou indiretamente, total ou parcialmente.

Portanto, as entidades desportivas devem sempre estar atentas à relação que constroem com suas torcidas organizadas, devendo ainda colocar a segurança dos eventos em que forem mandantes como grande prioridade, de modo que evitem prejuízos não só a si mesmos, mas para a coletividade de modo geral.

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Sobre os autores
Bruno Marini

Professor de Direitos Humanos, Biodireito e Bioética na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), em Campo Grande (MS), Doutorando em Saúde (UFMS), Mestre em Desenvolvimento Local (UCDB) e Especialista em Direito Constitucional (UNIDERP).

Cainã Pereira Mariano

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARINI, Bruno ; MARIANO, Cainã Pereira. Violência no futebol: A responsabilidade civil das entidades esportivas e das torcidas organizadas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6749, 23 dez. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95554. Acesso em: 5 mai. 2024.

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