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Competência para julgar crimes de falsidade de diários de bordo no transporte aéreo

29/12/2021 às 16:20
Leia nesta página:

Como qualquer documento público ou particular, os diários de bordo podem sofrer falsificações e contrafações, seja materialmente, seja ideologicamente, abrindo a discussão a respeito de qual órgão jurisdicional é competente para conhecer e julgar o referido crime contra a fé pública.

O presente artigo visa analisar a competência para conhecer e julgar casos envolvendo crimes de falsidade documental que atinjam a segurança do transporte aéreo, em especial a contrafação do chamado diário de bordo.

Para garantir a segurança do transporte aéreo, a legislação e normas infralegais exigem o cumprimento de uma série de requisitos e documentações, prescrevendo sua forma e anotações.

Dentre os documentos imprescindíveis para a regular navegação aérea encontram-se os diários de bordo, que devem ser registrados pelas companhias aéreas e devidamente anotadas pelos representantes desta a cada viagem.

Nos referidos documentos (diários), são anotadas todas as ocorrências registradas em voo, em especial problemas e dificuldades técnicas, daí sua relevância para a segurança do transporte aéreo, demandando rigorosa fiscalização dos órgãos públicos competentes.

Como qualquer documento público ou particular, esses diários de bordo podem sofrer falsificações e contrafações, seja materialmente, seja ideologicamente, abrindo a discussão a respeito de qual órgão jurisdicional é competente para conhecer e julgar o referido crime contra a fé pública. 

Eis que surge a dúvida se a competência para julgar os crimes contra a fé pública em relação aos diários de bordo na navegação aérea é da competência federal ou estadual.

Inicialmente, deve ser mencionado que a Constituição Federal, em seus artigos 21, inciso XII, c, e 109, inciso IV, assim estabelece:

Art. 21. Compete à União:

XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:

c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária;

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;

A respeito da competência federal nesses casos, eis doutrina pertinente[1]:

1.3. Regra geral da competência federal: crime praticado em detrimento de bens, serviços ou interesse da União, suas autarquias ou empresas públicas.

(...)

Note-se que não se trata de crimes em que os bens, serviços ou interesse federais constituam elemento normativo, mas de crimes comuns, todavia praticados em prejuízo de bens, serviços ou interesse federais, assim entendido os da União, de suas autarquias ou empresas públicas.

(...)

Para PACELLI e FISCHER, A mais adequada compreensão da lesão aos serviços que justifica a competência federal deve ser encontrada pelo exame do resultado da infração penal... Havendo consunção, o que importa é o resultado do crime fim, não do crime meio.

A Lei nº 11.182, de 27 de setembro de 2005, que criou a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), estabelece que cabe à Agência regular e fiscalizar as atividades de aviação civil e da infraestrutura aeronáutica e aeroportuária, observadas as orientações, políticas e diretrizes do Governo federal. E dentre as principais competências destacam-se: conceder, permitir ou autorizar a exploração de serviços aéreos e de infraestrutura aeroportuária; administrar o Registro Aeronáutico Brasileiro (RAB); emitir certificados de aeronavegabilidade atestando aeronaves, produtos e processos aeronáuticos e oficinas de manutenção e fiscalizar serviços aéreos e aeronaves civis.

A Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) atua para promover a segurança da aviação civil e para estimular a concorrência e a melhoria da prestação dos serviços no setor. O trabalho da Agência consiste em elaborar normas, certificar empresas, oficinas, escolas, profissionais da aviação civil, aeródromos e aeroportos e fiscalizar as operações de aeronaves, de empresas aéreas, de aeroportos e de profissionais do setor e de aeroportos, com foco na segurança e na qualidade do transporte aéreo. 

Em relação ao documento diário de bordo, a Resolução nº 457 da ANAC estabelece que se trata de um registro de informações referentes ao voo.

A Portaria nº 3.220, de 15 de outubro de 2019, da ANAC dispõe o seguinte:

Art. 2º O diário de bordo é documento único, de porte obrigatório, que deve ser organizado em volumes, podendo esses serem impressos ou digitais.

(...)

Art. 5º O diário de bordo utilizado para escrituração, registro e apresentação das informações em meio digital devem ter numeração única composta no formato NN/CC-MMM/AAAA, onde:

A respeito da importância do diário de bordo para a segurança aérea[2]:

Então, percebam a importância do correto lançamento de horas e ciclos no Diário de Bordo, pelo piloto em comando, para que as manutenções programadas sejam realizadas em conformidade com seus programas de manutenção e mantenham sua condição de aeronavegabilidade continuada.

Em suma, horas lançadas a mais, fazem a aeronave parar antes do necessário e promovem inspeções e troca de componentes ainda em condição aeronavegável. Em contrapartida, horas lançadas a menos, fazem a aeronave voar além dos limites programados para inspeção, e em condições não seguras e não programadas em seu programa de manutenção.

E a Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986, que dispõe sobre o Código Brasileiro de Aeronáutica, estabelece:

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CAPÍTULO III

Das Infrações

Art. 302- (...)

II - infrações imputáveis a aeronautas e aeroviários ou operadores de aeronaves:

a) preencher com dados inexatos documentos exigidos pela fiscalização;

Analisando o arcabouço acima mencionado, observa-se que o serviço de transporte aéreo é de competência da União, sendo sua regulamentação e fiscalização de atribuição de autarquia federal especial (agência reguladora) Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC).

Outrossim, constata-se que o diário de bordo é documento fundamental para a regularidade e segurança do serviço de transporte aéreo, regulamentado e fiscalizado pela ANAC, sendo que sua adulteração e falsificação são práticas criminosas que atingem diretamente serviços e interesses da União e de sua autarquia federal especial (agência reguladora) Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC).

Nesse sentido, os crimes de adulteração ou falsificação de diários de bordo de aeronaves são atraídos para a competência da Justiça Federal.

A respeito, tem-se o posicionamento do Supremo Tribunal Federal[3]:

Compete à Justiça Federal processar e julgar ação penal relativa a crime de falsificação de documento público e de uso de documento falso (CP , artigos 297 e 304 , respectivamente), quando a falsificação incide sobre documentos federais. Com base nessa orientação, a Turma proveu recurso extraordinário para assentar a competência da Justiça Federal para julgar os delitos cometidos pelo recorrido, consubstanciados na adulteração de Certidão Negativa de Débito emitida pelo Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, apresentada, perante órgão da Administração Pública municipal, com o objetivo de viabilizar participação em procedimento licitatório. Enfatizou-se que pouco importaria, na espécie, o fato de o documento alterado ter sido utilizado junto à Administração Pública municipal, haja vista tratar-se de serviço prestado por autarquia federal (CF , art. 109 , IV). Assim, aduziu-se que, se não fosse percebida a falsificação, haveria prejuízo considerada a situação jurídica do contribuinte, revelando-o quite com o fisco federal, muito embora, se procedente a imputação, a realidade se mostrasse diversa. Precedente citado: RE 411690/PR (DJU de 3.9.2004). RE 446938/PR , REL.MIN. Março Aurélio, 7.4.2009. (RE- 446938)

O Ministério Público Federal, através da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão, órgão incumbido da análise das homologações de arquivamento de investigações no âmbito do Parquet federal, reconhece a atribuição federal para a persecução penal nos casos envolvendo falsificação de diário de bordo de aeronave:

Processo: DPF/MT-00239/2019-INQ

Voto: 586/2020

Origem: GABPR7-CAGAF-CARLOS AUGUSTO GUARILHA DE AQUINO FILHO

Relator(a): Dr(a) MONICA NICIDA GARCIA

Ementa: Inquérito Policial. Possível crime descrito no art. 304 do CP. Suposta apresentação de documento falso perante a Agência Nacional de Aviação Civil ANAC, Inquérito Policial. Possível crime descrito no art. 304 do CP. Suposta apresentação de documento falso perante a Agência Nacional de Aviação Civil ' ANAC, a fim de comprovar a correção das falhas constatadas durante fiscalização em uma aeronave, visto que houve sobreposição de uma digitalização da assinatura do diretor de manutenção da empresa fiscalizada, sem o seu consentimento. Revisão de arquivamento (LC nº 75/93, art. 62, inc. IV). Ausência de indícios suficientes acerca da autoria delitiva. Constatação de que o conteúdo do documento é verdadeiro, ou seja, a manutenção foi efetivamente realizada. Ademais, trata-se de crime impossível (CP, art. 17), em razão da absoluta impropriedade do objeto, haja vista a precariedade da colagem realizada no documento, tanto que os servidores da ANAC prontamente perceberam a irregularidade. Homologação do arquivamento.

Deliberação: Em sessão realizada nesta data, o colegiado, à unanimidade, deliberou pela homologação do arquivamento, nos termos do voto do(a) relator(a).

Conclui-se que os crimes de adulteração ou falsificação de diários de bordo de aeronaves são da competência da Justiça Federal, haja vista a fiscalização da segurança da navegação aérea ser do interesse da União.

  1. PAULSEN, Leandro. Crimes Federais. São Paulo: Ed. Saraiva, 2018. 2ª Edição. pp. 25 e 30
  2. https://www.brevett.com/entry/meu-aviao-precisa-de-diario-de-bordo-/71.html
  3. Informativo STF - Nº. 541. Falsidade: Documento Federal e Competência
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Sobre o autor
Jorge Romcy Auad Filho

Promotor de Justiça do Estado de Rondônia. Especialista em Ciências Criminais pela Universidade da Amazônia - UNAMA e em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AUAD FILHO, Jorge Romcy. Competência para julgar crimes de falsidade de diários de bordo no transporte aéreo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6755, 29 dez. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/95619. Acesso em: 22 dez. 2024.

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