2. A SOCIOLOGIA, RELIGIÃO E O DIREITO NA RESSOCIALIZAÇÂO DOS PRESIDIÁRIOS
Como demonstrado no final do capítulo anterior a religião vem ocupando um espaço dentro do sistema penitenciário brasileiro, seja no campo da capelania, seja na forma de assistência religiosa, auxiliando detentos a conviverem num espaço que, muitas vezes, não traz dignidade.
Neste capítulo serão analisados aspectos da Sociologia e Religião, dentro do Direito, tanto no aspecto social, quanto no aspecto coercitivo, uma vez que a religião, como forma de instituição faz parte dos denominados aparelhos ideológicos do Estado por autores como Michel Foucault.
Assim, pretende-se, por aqui, formatar estudos estratificados em torno da religião como coesão social, a estrutura social consubstanciada no conjunto de normas de comando e a vital importância da sociologia no sistema informal de controle social, tudo na visão e ótica Durkheim e Foucault, sem preterir de inúmeros outros autores que se dedicaram no estudo e pesquisas sobre a o assunto.
A escolha de dois teóricos que partem de perspectivas diferentes é proposital, uma vez que o tema da pesquisa é a assistência religiosa, que deveria ser vista como um fato social e, muitas vezes, está sendo utilizada na perspectiva da coerção e ao mesmo tempo, promoção de coesão do sistema. Essa análise de perspectivas se faz necessária uma vez que sendo uma realidade dos sistemas prisionais, a presença religiosa necessita assumir uma identidade e deixar clara, suas pretensões no trabalho de ressocialização dos detentos.
A primeira parte do capítulo vai apresentar as idéias de Émile Durkheim, mostrando a importância da religião no coletivo, como forma de coesão social. A seguir serão apresentadas as idéias de Michel Foucault, demonstrando ser a igreja um dos aparelhos ideológicos do Estado, sendo importante, portanto, não confundir igreja como assistência religiosa. E para finalizar será discutido sobre a capelania e a assistência religiosa como formas de ressocialização ou manobra jurídica, triangulando com as idéias de coesão social de Durkheim e coerção social de Michel Foucault.
2.1 A religião e a coesão social na visão de Durkheim
Domingues apresenta, em seus estudos, autores clássicos da sociologia, dentre eles Durkheim que não se contentaram com as noções e problemas que a sociedade da época lhes oferecia abertamente e elaboraram conceitos que ultrapassavam o senso comum e buscaram evidenciar questões que muitas vezes seus contemporâneos teriam preferido ignorar.[94]
Ademais, em parte emulando as ciências da natureza – que com frequência consideravam modelos de cientificidade e objetividade –, mas também a partir de demandas do próprio estado no sentido de conhecer e melhor intervir na realidade social, controlando-a, eles pensadores elaboraram os primeiros métodos de investigação empírica das ciências sociais[95].
Pertinente ao assunto a ser discutido nesse capítulo Vares apresenta que segundo Durkhein, "as representações, as emoções e as tendências coletivas não têm como causas geradoras, certos estados de consciência individual, mas as condições em que se encontra o corpo social em seu conjunto” [96], pois "aqui está uma ordem de fatos que apresenta características muito especiais: consiste em maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõem".[97]
Essa perspectiva produz o que Durkheim chama de consciência coletiva, portanto os fatos sociais, embora sendo produzidos por indivíduos em suas relações, adquirem uma autonomia em relação a cada indivíduo.[98]Portanto a coletividade, ou seja, o meio social age sobre o indivíduo, modelando suas formas de agir, pensar e sentir,[99] construindo uma coesão social.
No pensamento de Durkheim, é justamente a coesão social que possibilita a solidariedade, a chamada orgânica, na sociedade complexa e mecânica no caso da sociedade simples. A solidariedade tem a potencialidade de ampliar a coesão social, a depender do seu nível de ajustamento e harmonia existencial.[100]
Os integrantes cooperam com o grupo social ou porque tem algum interesse individual ou porque é movido por alguma coerção normativa. A coesão é elemento constitutivo de todo grupo social, de fundamental importância para a existência de uma sociedade melhor para se viver. Sem coesão não se pode conceber uma sociedade estruturalmente ajustada.[101] Para sintetizar todo esse arrazoado perfunctório, Durkheim arremata:
Todo mundo sabe, de fato, que existe uma coesão social, cuja causa está numa certa conformidade de todas as consciências particulares a um tipo comum que não é outro senão o tipo psíquico da sociedade. Com efeito, nessas condições, não só todos os membros do grupo são individualmente atraídos uns pelos outros, por se assemelharem, mas também são apegados ao que é a condição de existência desse tipo coletivo, isto é, a sociedade se forma por uma reunião. Há em nós duas consciências: uma contém apenas estados que são pessoais a cada um de nós e nos caracterizam, ao passo que os estados que a outra compreende são comuns a toda a sociedade. A primeira representa apenas nossa personalidade individual e a constitui; a segunda representa o tipo coletivo e, por conseguinte, a sociedade sem a qual ele não existiria. Os homens só necessitam da paz na medida em que já são unidos por algum vínculo de sociabilidade. Neste caso, de fato, os sentimentos que os inclinam uns para os outros moderam naturalmente os arrebatamentos do egoísmo e, por outro lado a sociedade que os envolve, não podendo viver senão com a condição de não ser a cada instante abalada pelos conflitos, descarrega sobre eles todo o seu peso para obriga-los a se fazer as concessões necessárias[102].
Assim, os fatos sociais acontecem porque a sociedade é um organismo vivo. A sociedade é anterior ao nascimento do homem, já existem regras, valores, religião; já existem crenças e o ser humano vai aderindo as regras da sociedade, através de um comportamento voluntário, no qual a coerção não se faz prevalecente, porque o agir foi de acordo com os mandamentos aceitos e estabelecidos pela sociedade.[103]
Entre as estruturas que contribuem para essa adequação voluntária, temos a religião, que de acordo com é um sistema de crenças e práticas sobre as coisas sagradas que unem numa mesma comunidade moral, a igreja, todos aqueles que á aderem. Tornando a religião eminentemente coletiva.[104]
Para Durkheim a religião é fenômeno social e atribui o desenvolvimento da religião à segurança emocional proporcionada pela vida em comunidade; apresentando a religião como forma de se buscar a coesão social. Basicamente, estabeleceu-se estudo sobre os fatos sociais, onde a coerção social aparece como mola propulsora de controle das relações sociais, seja por meio de manifestações intrínsecas ou externas, punições morais ou legais. E sendo a religião uma representação essencialmente social, claramente se tem um instrumento de coesão e harmonia. Durkheim arremata com primazia:
A conclusão que se tem é que a religião é uma coisa eminentemente social. As representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades coletivas; os ritos são as maneiras de agir que não nasceram senão no seio de grupos reunidos e que estão destinados a suscitar, a manter ou refazer certos estados mentais desses grupos. Mas então, se as categorias têm origem religiosa, elas devem participar da natureza comum de todos os fatos religiosos: devem ser, elas próprias, coisas sociais, produtos do pensamento coletivo. Pelo menos – porque, no estado atual de nossos conhecimentos nessa matéria, deve-se precaver contra toda tese radical e exclusiva – é legítimo supor que elas são ricas de elementos sociais.[105]
Corroborando o excerto acima, Weiss discute que para Durkheim a religião proporciona certa unidade moral aos indivíduos, garantido a coesão necessária à existência da sociedade, sendo responsável por estruturar e desenvolver o próprio pensamento, o próprio entendimento humano.[106]
Nesse sentido Durkheim apresenta uma legítima preocupação em apresentar o fenômeno religioso como eminentemente social apresentando que a compreensão do fenômeno religioso supõe apreender suas formas elementares através da investigação das formas mais simples de manifestação religiosa:
Dizemos de um sistema religioso que ele é o mais primitivo que nos é dado observar, quando ele preenche as duas condições seguintes: em primeiro lugar, que se encontra em sociedades cuja organização não é ultrapassada por nenhuma outra em simplicidade; é preciso, além disso, que seja possível explicá-lo sem fazer intervir nenhum modelo tomado de uma religião anterior. [107]
Nessa definição a religião é apresentada como uma das formas de garantir a coesão, inclusive ao desempenhar o papel de representação do mundo, das tradições, dos traços culturais, respondendo, assim, a uma necessidade social.[108]
A partir dessa primitividade do sistema religioso, apresentada, Durkheim discute que os elementos que constituem a religião, são identificados pelas crenças e os ritos, àquelas, caracterizam-se por impor certo olhar que divide a realidade entre o sagrado e o profano, enquanto oposições absolutas, ou, de forma mais específica, as crenças são “[...] representações que exprimem a natureza das coisas sagradas e a relação que elas mantêm, seja entre si, seja com as coisas profana.[109]
Já os ritos, enquanto um modo de ação religioso, são apresentados por Durkheim como regras que determinam como o homem deve comportar-se perante o resultando numa unidade coerente e singular, que não é parte de nenhum outro sistema de crenças, e que, portanto, funciona de acordo com sua própria lógica.[110]
Uma característica da religião é sua associação a uma igreja, que constitui um grupo social. Portanto, a religião é um produto social criado por indivíduos em interação, que estabelecem as próprias condições para a vida em conjunto possa continuar a existir.; sendo portanto um fenômeno duplamente social, de modo que compreender a vida coletiva, em qualquer momento histórico, pressupõe compreender o fenômeno religioso em geral e as múltiplas manifestações religiosas.[111]
Albuquerque apresenta que Durkheim busca entender a coercitividade social, a força moral que a sociedade exerce sobre o indivíduo, com o intuito de revelar a força das instituições na preservação daquilo que considerava como a saúde do organismo social e na concepção funcionalista de que cada órgão desempenhava função útil no bom ordenamento do todo.[112]
Considerando a questão da inversão de predominância de grupos religiosos observados nos presídios e na da sociedade, apresentados no final do primeiro capítulo, percebem-se algumas considerações apresentadas por Durkheim, apresentadas a seguir.
Durkheim observa que com as transformações sociais, essencialmente velozes, mormente no campo socioeconômico, aliando à da tecnologia, é natural que as relações sociais fiquem mais vulneráveis, justamente por conta dessas metamorfoses ambulantes, trazendo inevitável insegurança nas relações sociais, em função da inexistência de normas, abrindo lugar para aquilo que se chama de anomia.[113]
A anomia traz sérias consequências para o normal funcionamento da sociedade. Assim, diante da ausência de regras sociais, para Durkheim, a sociedade se mostra socialmente doente, o que se chamou de patologia social.[114]
Entretanto para Émille Durkheim o crime não é nada de anormal, se apresentando como perfeitamente normal, mas repudiável. Não há nada de invulgar no crime, que, aliás, faz parte da sociedade, e aquilo que era crime do passado pode ser a virtude do futuro, e por fim, arremata que a conduta criminosa de ontem pode ser algo virtuoso de amanhã.[115]
Para Durkheim, o crime não se instaura apenas e tão somente em determinada sociedade, o crime existe e faz parte de toda espécie de sociedade, podendo essa evoluir e sofrer as transformações de praxe, mas desde os tempos remotos o delito sempre existiu e sempre vai existir.[116]
Sendo o delito um fato comunitário presente em toda a sociedade, um fato social negativo e não patológico, logo a sua prevenção possui raiz sociológica, com eliminação dos fatores sociais que influenciam o seu cometimento. Portanto, a fonte geradora do delito é fator exógeno, de fora para dentro, e assim, haveria necessidade de colocações de barreiras para conter o ímpeto criminoso na sociedade.[117]
Weiss faz importantes incursões acerca do significado social de crime na visão durkheimiana, apresentando que o crime, nessa perspectiva é visto como normal, no sentido de ocorrer em todas as sociedades, em todos os tempos.
Crime é entendido como um “fato normal”. Em primeiro lugar, é preciso mencionar que o autor afirma que um fato social é “normal” quando ele é o que deveria ser e é considerado patológico quando deveria ser de outro modo. Portanto, o próprio critério de normal tem seu sentido e sua validade determinados na relação com um fim – o que deveria ser – previamente estabelecido [...][118]
Entretanto essa visão de normalidade não implica que o mesmo não deva ser repreendido, prosseguindo em sua análise acerca de crime como fato social normal, a autora apresenta dois sentidos implicados no conceito de normal.
No primeiro, o normal é aquilo que é geral na extensão de uma dada sociedade, ou que ocorre em todas as sociedades de um mesmo “tipo”. No segundo, refere-se àquilo que está implicado na lógica subjacente ao real, mesmo que não seja compartilhado pela “media” dos indivíduos. Do mesmo modo, um comportamento que não corresponde ao normal pode ser patológico, quando ameaça a existência da vida social enquanto um organismo minimamente integrado, ou pode ser simplesmente desviante. Neste caso, ele não corresponde ao comportamento “normal”, mas não tem um impacto prejudicial; ao contrário, pode até ter uma função útil, na medida em que explica essa lógica subjacente do real, que ainda não foi incorporada pela maioria dos indivíduos [...] [119]
Assim, Albuquerque apresenta que, na perspectiva sociológica, Durkheim demonstra que sempre que o indivíduo comete uma atitude considerada crime, a sociedade é chamada a resgatar valores considerados mais caros e, nessas situações, fica evidente a coercitividade social em relação àquele ato, como forma de manutenção da ordem social.[120]
A autora referida, também discute que Durkheim apresenta ainda a noção de crime relacionada à transformação social, pois com o crime as instituições tendem a reforçar o ordenamento social, operando mudanças sociais.[121]
A explanação sociológica de Durkheim a respeito da religião e do crime demonstra que o ser humano é acima de tudo social, portanto, resultado das relações e interações que constitui e o constituem.
Nesse sentido a religião proporciona aos indivíduos que constituem esse grupo social crenças e farão parte de sua subjetividade e a participação nos ritos possibilitará ao indivíduo comportar-se dentro de regras e condutas aceitas socialmente, dentro de certos grupos sociais.
Atentando à questão da presença de grupos religiosos nos presídios pode se relacionar que ao cometer um crime e receber uma sanção social de reclusão, o indivíduo pode perceber-se mais necessitado de seguir normas que o auxiliem a moldar sua conduta, assim grupos religiosos que apresentem menor tolerância a transgressões e possuam uma maior rigidez disciplinar, tendem a aparentar ser mais adequados ao momento que o indivíduo está vivendo.
Segundo Fernanda Terezinha Tomé a religião inspira sentimentos altruístas que são essenciais para a readaptação social do condenado, pois conduzem a novos valores, condutas, hábitos e maneiras de superação, seja das dores, perdas, vícios ou revoltas, que estão tão presentes no cárcere.[122]
Sobre o assunto Alexander Jacob afirma:
Por meio da aceitação do sagrado, o indivíduo retorna a si mesmo, aceita-se, reconcilia-se com seus impulsos e altera o seu interior, desde que seja o que Roger Bastide acredita ser uma vida religiosa progressiva e formadora de uma personalidade sadia, que devolva sentido de existir, que tenha efeito reparador nas perdas e revezes da vida, resgate valores e dê realmente o senso de reconciliação com o universo, com a comunhão com o transcendente. Essa experiência é relatada pelos pesquisadores como benéfica no enfrentamento de vícios, traumas e doenças. Se as premissas do tratamento penal são realmente aceitas, é muito provável que o fenômeno religioso dentro do espaço carcerário, onde imperam os vícios, traumas e doenças também seja benéfico ao tratamento penal.[123]
Portanto a assistência religiosa para ser benéfica precisa provocar alteração no interior do indivíduo, não podendo ser superficial, pois deve provocar o indivíduo de forma que esse não volte a cometer delitos.
No entanto alguns autores discutem que dentre os funcionários das penitenciárias, em relação ao detento aderir a assistência religiosa, demonstram que nem sempre se acredita nessa alteração interior, para alguns eles não estariam de fato arrependidos ou interessados na salvação ou em questões teológicas, mas apenas tentando protegerem-se num ambiente hostil, tentando manipular para conseguirem proteção e vantagens pessoais. Outros funcionários caracterizam os detentos como carentes, procurando pelas atividades religiosas como uma estratégia de garantia de proteção no ambiente prisional.[124]
Essas narrativas são decorrentes do fato de que algumas práticas utilizadas pelas igrejas para atrair os detentos provocam polêmicas, pois ao darem certa proteção aos detentos, diferenciando o tratamento recebido por esses em detrimento a outros que não pertencem a denominação religiosa nenhuma ou a uma de outra denominação provocam discordância entre alguns funcionários, apesar de alguns assistentes sociais, psicólogas, pedagogas e até mesmo alguns a diretores considerarem essa função social uma prática legítima e até mesmo necessária, uma vez que ela acaba suprindo o que o Estado não conseguia atender de maneira satisfatória.[125]
A religião se desenvolve e ressignifica suas doutrinas a partir de novas convicções e nuances culturais e tecnológicas. Ou seja, os conceitos doutrinários de pecado, certo ou errado, passam pelas significações da cultura, (do Ethos), e esses por sua vez, podem sofrer alterações no decorrer do tempo.[126]
Portanto para atender a legislação vigente e ainda seu papel de coesão social não se pode confundir assistência religiosa com igreja, enquanto denominação religiosa, pois se assim o fizer não se alcançará o que Durkheim e outros autores afirmam sobre a importância da religião como forma de coesão social.
O fiel que se pôs em contato com seu deus não é apenas um homem que percebe verdades novas que o descrente ignora, é um homem que pode mais. Ele sente em si mais força, seja para suportar as dificuldades da existência, seja para vencê-las. Está como que elevado acima das misérias humanas porque está elevado acima de sua condição de homem; acredita-se salvo do mal, seja qual for a forma, aliás, que conceba o mal.[127]
Assim a religião tem o poder de influenciar o comportamento humano de forma coletiva e ainda com grande participação na manutenção da ordem social e na identidade coletiva de um determinado povo, influenciando ainda moral, costumes e até mesmo o ordenamento jurídico, sendo importante instrumento de organização social.[128]
Podemos aceitar, ao menos como possibilidade, a teoria de que toda religião é importante, até essencial, do mecanismo social, da mesma forma que a moral e as leis, uma parte do complexo sistema que permite aos seres humanos viverem juntos em uma organização ordenada de relações sociais. Deste ponto de vista, não consideramos as origens, mas as funções sociais das religiões, ou seja, sua contribuição para a formação e manutenção da ordem social.[129]
Segundo Daniel Scapellato Pereira Rodrigues a religião pode ser utilizada como controle social, pois a mesma influencia o comportamento humano ao servir como norte em busca do sagrado.[130]
O autor acrescenta ainda que há uma predominância do pensamento coletivo sobre o privado, sendo que a ordem implica em ações padronizadas através de regras conhecidas e impostas pela sociedade. A religião auxilia no sentido de favorecer que o indivíduo atue em conformidade com as regras da sociedade, imbuindo em seu âmago os princípios e valores sociais.[131]
A religião, com efeito, não é somente um sistema de ideias, é antes de tudo um sistema de forças. O homem que vive religiosamente não é somente o homem que se representa o mundo de tal ou tal maneira, que sabe o que os outros ignoram; é antes de tudo um homem que experimenta um poder que não se conhece na vida comum, que não se sente em si mesmo quando não se encontra em estado religioso.[132]
Portanto a religião favorece a coesão social sendo que essa pode ocorrer através de um controle social, que pode ser positivo ou negativo, atuando no indivíduo, no caso da religião, muitas vezes de forma inconsciente, de forma sublinhar, através das ideologias, dentro do que autores como Michel Foucault denominam de aparelhos ideológicos. Assim a religião é um meio de controle social que pode influenciar a conduta humana.[133]
Considerando a importância dessa relação entre o papel ideológico da religião e como a assistência religiosa pode atuar de forma a não separar a assistência religiosa da religião como instituição, torna-se importante a discussão sobre a religião como sistema de controle social apresentado no próximo tópico.
2.2. A religião e o sistema de controle social: Michel Foucault
Se formos considerar a religião como parte do sistema de controle social, é de bom alvitre iniciar este tópico apresentando importante ensinamento sobre controle social do jurista Francisco Muñoz Conde:
O controle social é condição básica da vida social. Com ele se asseguram o cumprimento das expectativas de conduta e o interesse das normas que regem a convivência. O controle social determina, assim, os limites da liberdade humana na sociedade, construindo, ao mesmo tempo, um instrumento de socialização de seus membros. Não há alternativas ao controle social. É inimaginável uma sociedade sem controle social[134]
Sem dúvidas, é inimaginável uma sociedade sem controle social. O controle social é tema de grande importância para construção de uma sociedade harmoniosa. Dentro do propósito desta pesquisa, temas como coesão e controle social assumem acentuada relevância no que tange à prevenção criminal e ressocialização dos presos recolhidos no sistema prisional do Estado do Espírito Santo, tendo a religião como imprescindível sistema de controle social, informal, cuja assistência religiosa é prestada com apoio irrestrito do Grupo de trabalho interconfessional da Secretaria de Justiça.
Merece destaque o ensinamento do cientista político e advogado, Bresser Pereira[135]·, segundo o qual, existem três mecanismos fundamentais de controle ou coordenação utilizados por uma sociedade, seja utilizando-se uma classificação institucional, seja uma perspectiva funcional.
Na primeira, os mecanismos de controle são o Estado, o mercado e a sociedade civil. No Estado, encontra-se o sistema legal ou jurídico; no mercado, o sistema econômico tem o controle exercido pela competição; e, na sociedade civil, a organização se dá por meio da defesa de interesses particulares e corporativos ou, ainda, do interesse público. Na perspectiva funcional, tem-se o controle hierárquico ou administrativo das organizações públicas ou privadas; o controle democrático ou social que se exerce sobre as organizações e os indivíduos; e o controle econômico, via mercado[136].
Assim, controle social pode ser conceituado como sendo um conjunto de mecanismo de intervenção que cada sociedade ou grupo possui e que são usados como forma de garantir a conformidade do comportamento dos indivíduos. Possui o condão de induzir a conformidade do sujeito com a sua nova realidade, seja de forma positiva, seja de forma negativa.
Segundo Lakatos, o controle social pode ser classificado sob três formas: de forma positiva ou negativa; formal e informal; institucional ou grupal.[137]
Para o autor o controle social positivo é aquele que induz a prática de determinado ato através de meios para incentivar o indivíduo a permanecer de determinado modo sob o pretexto de receber determinada coisa. O controle social negativo é utilizado para afastar o indivíduo da prática de atos não desejados, utilizando - se de sanções e repreensões.[138]
O controle social formal se refere às regras e leis institucionalizadas, por sua vez, o controle informal se refere às normas de condutas que são reconhecidas e compartilhadas numa sociedade, como por exemplo, as crenças, os costumes e os valores.[139]
A última classificação se refere ao controle institucional e o controle grupal. O controle social é aquele exercido por determinados contextos específicos e o controle institucional é aquele que uma instituição exerce sobre a sociedade.[140]
Partindo das classificações de Lakatos conclui-se que a religião é um meio de controle social institucional, formal, que pode influenciar a conduta humana ao possibilitar ao internalizar princípios e fazer com que o indivíduo seja capaz de se autocontrolar.[141]
Nessa mesma seara, o francês Michel Foucault propõe também uma classificação de controle social em externo e interno. Segundo o sociólogo, a construção do sujeito dócil, útil e submisso à ordem estabelecida é possível apenas por meio de processos disciplinares. As instituições disciplinadoras, como a escola e os quartéis, onde os indivíduos que ali permanecem, vivem sob o controle da Instituição. O controle social é, portanto, um conjunto entre formas externas de intervenção no comportamento do sujeito desviante. O indivíduo delimita suas ações de acordo com aquilo que apreende de certo e errado.
Para consolidar o tema controle social, é salutar apresentar os ensinamentos de Foucault, que assevera com destaque:
Assim, a disciplina fabrica corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilizada) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma aptidão, uma capacidade que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada[142].
Essa disciplinação é conseguida através da separação do corpo através dos grupos sociais, nas formas como já foram apresentadas por Durkhein. O que pode ocorrer através de aparelhos repressivos ou aparelhos ideológicos. Aqui cabe uma explicitação apresentada por Althusser que distingue aparelhos estatais, chamados de repressores de aparelhos ideológicos.
Segundo Althusser os aparelhos repressivos do Estado atual, de forma disciplinadora, através da força e, se necessário da violência, podendo ser citados Governo, Administração, Exército, Polícia, Tribunais, Prisões, etc.; já os aparelhos ideológicos são uma série de realidades que se apresentam ao observador na forma de instituições separadas e especializadas, incluindo a família, a igreja, os sindicatos, escolas, etc. que atuam através da ideologia. Enquanto o aparato estatal unificado e repressivo pertence ao domínio público, a maioria dos aparatos ideológicos do estado pertence ao domínio privado.[143]
No presente trabalho apresentamos a questão da religião dentro dos presídios, ou seja, o aparelho repressor já agiu sobre o indivíduo, impondo-o uma pena e com o objetivo de que a ressocialização de fato aconteça e uma vez já imposta o castigo, necessita-e da intervenção do aparelho ideológico, no caso feito pela igreja, pois:
Segundo Foucault, o poder disciplinar fabrica o indivíduo. É com o adestramento do corpo, com a normalização do prazer, na regulação dos comportamentos, enfim nesta ação empreendida sobre o corpo com o objetivo de separar, comparar, distribuir, avaliar, hierarquizar, é que aparece a figura singular do homem, efeito do poder e objeto do saber.[144]
Regular o comportamento do corpo, através da disciplinação, produzindo o que o autor denominou de corpos dóceis, não é visto pelo mesmo de forma negativa, se tirarmos a questão moral ou política, analisando as formas empregas percebe-se que, na maioria dos casos, essas atendem aos objetivos pretendidos, pois segundo ele:
A grande importância estratégica que as relações de poder disciplinares desempenham nas sociedades modernas depois do século XIX vem justamente do fato de elas não serem negativas, mas positivas, quando tiramos desses termos qualquer juízo de valor moral ou político e pensamos unicamente na tecnologia empregada. É então que surge uma das teses fundamentais da genealogia: o poder é produtor de individualidade. O indivíduo é uma produção do poder e do saber.[145]
O pensamento acima confirma a visão de Durkheim sobre a normalidade do crime em todas as sociedades, em diferentes épocas, ou seja, o indivíduo precisa ser disciplinado, seja essa disciplinação feita através dos grupos sociais, ideologicamente, ou pelos órgãos repressivos, através da força; no caso do presente trabalho, por ambos.
Foucault discute ainda a importância das regras dentro de uma sociedade reguladora de corpos, demonstrando que:
Dentro dessa perspectiva poderíamos também fazer uma história da confissão na ordem da penitência, da justiça criminal e da psiquiatria. Um “bom senso” que de fato repousa sobre toda uma concepção de verdade como objeto de conhecimento, reinterpreta e justifica a busca da confissão perguntando se pode haver melhor prova, indício mais seguro do que a confissão do próprio sujeito acerca de seu crime, ou seu erro ou seu desejo louco. Mas, historicamente, bem antes de ser considerado um teste, a confissão era a produção de uma verdade que se colocava no final de uma prova, e segundo canônicas: confissão ritual, suplício, interrogatório. Nesta forma de confissão – tal como as práticas religiosas e judiciárias da Idade Média buscavam - o problema não era o da sua exatidão e de sua integração como elemento suplementar às outras prescrições; o problema era que fosse feita, feita segundo as regras. A seqüência interrogatório/confissão, que é tão importante na prática médico- judiciária moderna, oscila de fato entre um antigo ritual da verdade /prova prescrito ao acontecimento que se produz, e uma epistemologia verdade/constatação prescrita ao estabelecimento dos sinais e dos testes.[146]
O excerto apresentado demonstra ser de suma importância uma vez que o indivíduo em situação de cárcere, já passou pela fase suspeito interrogatório, confissão, no sentido jurídico, estando recluso para pagar por sua infração. Ao passar a ser parte de um grupo religioso, dentro dos presídios, dentro de um ritual religioso, passa novamente por essas fases, num processo de dupla confissão. Foucault discute ainda que essa confissão da infração nasceu no âmbito religioso.
...esse poder disciplinar, no que tem de específico, tem uma história, que esse poder não nasceu de repente, que também não existiu sempre, que se formou e seguiu uma trajetória de certo modo diagonal, através da sociedade ocidental. E, para tomar apenas, digamos, a história que vai da idade média aos nossos dias, creio que podemos dizer que esse poder, no que ele tem de especifico, não se formou propriamente à margem da sociedade feudal, nem certamente, tampouco em seu centro. Formou-se no interior das comunidades religiosas, ele se transportou, transformando-se, para comunidades laicas que se desenvolveram e se multiplicaram nesse período da pré-reforma, digamos, nos séculos XIV-XV. E podemos apreender perfeitamente essa translação em certos tipos de comunidades laicas não exatamente conventuais, como os célebres ‘Irmãos da Vida Comum que, a partir de certo número de técnicas que tomavam emprestadas da vida conventual a partir igualmente de certo número de exercícios ascéticos que tomavam emprestados de toda uma tradição do exercício religioso, definiram métodos disciplinares relativos à vida cotidiana, à pedagogia. Mas esse é apenas um exemplo de toda essa ramificação, anterior à Reforma, de disciplinas conventuais ou ascéticas. E, pouco a pouco, são essas técnicas que vemos então difundir-se em larga escala, penetrar a sociedade do século XVI e, sobretudo, dos séculos XVII e XVIII, e tornar-se no século XIX a grande forma geral desse contato sináptico: poder político/corpo individual.[147]
Percebe-se assim que no processo de evolução histórico esse poder disciplinador foi se transferindo da igreja para o Estado, sendo parte, inclusive da laicidade, ou seja, a sobreposição do coletivo ao individual, como discutido por Durkheim acontece ainda que seja necessário ao corpo ser disciplinado para atender as regras e normas.
Considerando a separação entre igreja e estado a regulamentação dessa disciplinação passa a ser feita pelo Direito, através de regras estabelecidas por grupos sociais.
O Direito pode ser visto como um lugar em que, convenientemente, se estabelecem as regras desse jogo de poder, a fim de que os conflitos sejam reduzidos de fenômenos, por vezes, coletivos a situações individualizadas e que, no entanto, mantêm conexão com outras análogas e tornadas iguais. Enquanto uma estrutura de dominação serve e servirá à manutenção do estado geral de coisas, pois se aplica o direito posto e não aquele implícito na conduta da sociedade. Se for verdade, por um lado, como afirma Boulanger, que não é possível ocorrer uma revolução sem que sejam apresentados novos princípios gerais de direito, entendidos como a totalidade de proposições descritivas, mas de caráter deôntico, de um determinado ordenamento, condicionando a interpretação e afastamento de regras, nem por isso é menos verdadeiro que os juristas aplicarão tais princípios se, e somente, se a revolução obtiver êxito, caso contrário, esses tais permanecerão no domínio do possível.[148]
Aqui, Foucault explicita a atuação do Direito como aparelho responsável pela manutenção da ordem, sendo que essa é estabelecida pela sociedade, através de seus grupos sociais, que seguindo normas e preceitos estabelecidos nos grupos, através de um convívio relacional, criam regras, que cabe ao Direito estabelecer. Nesse sentido, o autor demonstra que ao mesmo tempo em que o Direito estabelece as regras, esse é originário da sociedade que cria os princípios a partir da moral e dos costumes.
Quando o indivíduo foge às regras e normas estabelecidas pela sociedade, através do Direito, dependendo da gravidade da infração precisa ser afastado dessa sociedade a fim de pagar; esse afastamento pode ser feito de algumas formas, incluindo o internamento.
A ‘interdição’ constituída a medida judiciária pela qual um indivíduo era parcialmente desqualificado como sujeito de direito. Esse contexto, jurídico e negativo, vai ser em parte preenchido, em parte substituído por um conjunto de técnicas e de procedimentos mediante os quais se tratará de disciplinar os que resistem ao disciplinamento e de corrigir os incorrigíveis. O ‘internamento’ praticado em larga escala a partir do século XVII pode aparecer como uma espécie de fórmula intermediária entre os procedimentos positivos de correção. O internamento exclui de fato e funciona fora das leis, mas se dá como justificativa a necessidade de corrigir de melhorar, de conduzir a resipiscência, de fazer voltar aos ‘bons sentimentos.[149]
Pelo excerto percebe-se que a interdição não tem apenas a finalidade de pagamento pela infração, mas para ressocializar àqueles que fugiram das normas. Considerando que, no Brasil, existem diversos problemas relacionados aos presídios, tais como superlotação, violência, morosidade nos processos, etc. é claro a dificuldade do Estado em cumprir a função de adestramento dos indivíduos, nos sistemas carcerários, o que implica numa impotência ou incompetência do Estado de, através de seu aparelho repressor cumprir um fim social.
Nesse contexto abre-se para que um importante aparelho ideológico, no caso, a igreja, ultrapasse os muros da prisão e adentre para auxiliar o Estado, naquilo que o próprio Estado deveria oferecer como condições para um processo de cumprimento de pena que deveria ser ressocializador, o que apresentaremos na próxima seção do trabalho, através do trabalho da capelania e assistência religiosa.
2.3 A capelania e a assistência religiosa como forma de ressocialização ou manobra jurídica: panorama brasileiro.
A necessidade de trazer o indivíduo de volta ao convívio social, obedecendo às normas e regras, assim a pena deve ter por objetivo não apenas o castigo, mas a sua ressocialização, sendo proposto por Molina que: “O decisivo, acredita-se, não é castigar implacavelmente o culpado (castigar por castigar é, em última instância, um dogmatismo ou uma crueldade), senão orientar o cumprimento e a execução do castigo de maneira tal que possa conferir-lhe alguma utilidade. ” [150]
Ainda, segundo o referido autor era necessário, através da ressocialização, minimizar os efeitos negativos da interdição, não estigmatizando o condenado, e sim habilitando o mesmo para seu retorno na sociedade de forma ativa, sem traumas.[151] De acordo com Capeller o conceito de ressocialização surgiu no século XIX através das ciências sociais, sendo usado no meio jurídico no sentido de reintegração social.
O discurso jurídico sobre a ressocialização e, consequentemente, a construção do conceito, nasceu ao mesmo, tempo que a tecnificação do castigo. Quando o velho castigo, expresso nas penas inquisitoriais, foi substituído pelo castigo humanitário dos novos tempos, por uma nova maneira de disposição dos corpos, já não agora dilacerados, mas encarcerados; quando se cristaliza o sistema prisional e a pena é, por excelência, a pena privativa de liberdade; quando se procura mecanizar os corpos e as mentes para a disciplina do trabalho nas fábricas, aí surge, então, o discurso da ressocialização, que é em seu substrato, o retreinamento dos indivíduos para a sociedade do capital. Neste sentido, o discurso dos bons no alto da sua caridade, é o de pretender recuperar os maus.[152]
Autores como Baratta defendem o uso do termo reintegração social, pois segundo ele, o termo abre para um processo de comunicação e interação entre as prisões e a sociedade, com identificação e respeito entre as partes; já o termo ressocialização refere-se a um papel passivo do indivíduo encarcerado, considerando esse um anormal a ser readaptado.[153]
Observadas as dinâmicas do presente trabalho, continuaremos utilizando o termo ressocialização por considerar estar mais próximo da visão de Durkheim sobre o aspecto social do crime e do indivíduo que o pratica, não tendo esse um papel passivo, uma vez que as relações sociais são dinâmicas. Assim a ressocialização como fator social ganha o reforço da religião.
Se a religião cumpre funções sociais, tornando-se, portanto, passível de análise sociológica, tal se deve ao fato de que os leigos não esperam da religião apenas justificações de existir capazes de livrá-los da angústia existencial da contingência e da solidão, da miséria biológica, da doença, do sofrimento ou da morte. Contam com ela para que lhes forneça justificações de existir em uma posição social determinada, em suma, de existir como de fato existem, ou seja, com todas as propriedades que lhes são socialmente inerentes.[154]
Baratta discute que, apesar de existir, a teoria da ressocialização não tem apresentado resultados positivos, o que pode ser comprovado pelos altos índices de reincidência.[155]O autor discute que a forma como as prisões estão organizadas, demonstra na prática carcerária o que já afirmava Foucault: “aquilo que, no início do século XIX, e com outras palavras criticava-se em relação à prisão (constituir uma população ‘marginal’ de ‘delinqüentes’) é tomado hoje como fatalidade. Não somente é aceito como um fato, como também é constituído como dado primordial”.[156]
Pelo excerto de Foucault percebe-se que as situações das prisões, considerando o trabalho, prisões brasileiras demonstram um cenário de superlotação, violência, ausência de direitos básicos, ao que Denise de Roure afirma que falar em reabilitação dentro do sistema penitenciário brasileiro é quase o mesmo que falar em fantasia, diante da realidade que nos é apresentado; segundo a autora, hoje é fato comprovado que as penitenciárias em vez de recuperar os presos os tornam piores e menos propensos a se reintegrarem ao meio social.[157]
Com efeito, as Regras Mínimas do Brasil dão ânimo à tarefa de disciplinar o relacionamento jurídico-penal do estado com o preso, procurando garantir a este a plenitude de seus direitos não atingidos pela lei ou pela sentença, direitos esses tão fortemente vilipendiados por uma pratica que ultrapassa os limites do poder dever de punir e que frustra o propósito de reinserção social do condenado.[158]
As Regras Mínimas do Brasil legitimadas pela Resolução nº14, de 11 de novembro de 1994, estabelece normas de acordo com os Direitos humanos que no papel garantem a dignidade da pessoa humana, apresentando as condições mínimas para que a ressocialização aconteça, tais como condições sanitárias mínimas, seleção e separação dos presos de acordo com o ato infracional, assistência educacional, jurídica e religiosa, no entanto a maioria das regras mínimas não acontece na prática, o que pode ser notório no capítulo que trata das relações sociais e ajuda pós-penitenciária:
Art. 57. O futuro do preso, após o cumprimento da pena, será sempre levado em conta. Deve-se anima-lo no sentido de manter ou estabelecer relações com pessoas ou órgãos externos que possam favorecer os interesses de sua família, assim como sua própria readaptação social.
Art. 58. Os órgãos oficiais, ou não, de apoio ao egresso devem:
I – proporcionar-lhe os documentos necessários, bem como, alimentação, vestuário e alojamento no período imediato à sua liberação, fornecendo-lhe, inclusive, ajuda de custo para transporte local;
II – ajuda-lo a reintegrar-se à vida em liberdade, em especial, contribuindo para sua colocação no mercado de trabalho.[159]
As experiências demonstram que a realidade carcerária do Brasil não atende ao que está estabelecido em sua legislação, o que demonstra falência de uma instituição que ao invés de cumprir sua função de pagamento de pena e ressocialização do indivíduo, tem devolvido à sociedade indivíduos mais violento e menos adaptados.
A falência de nosso sistema carcerário tem sido apontada, acertadamente, como uma das maiores mazelas do modelo repressivo brasileiro, que, hipocritamente, envia condenados para penitenciárias, com a apregoada finalidade de reabilitá-lo ao convívio social, mas já sabendo que, ao retornar à sociedade, esse indivíduo estará mais despreparado, desambientado, insensível e, provavelmente, com maior desenvoltura para a prática de outros crimes, até mais violentos em relação ao que o conduziu ao cárcere.[160]
Mais uma vez a força repressora do Estado é apresentada e de maneira ineficaz, pois o indivíduo preso passa a ser visto de forma marginalizada por toda sociedade e relegado a todas as mazelas e situações destruidoras da dignidade humana.
O Estado deslocou seu foco, para uma simples manutenção da ordem, esquecendo-se dos princípios orientadores, seus fundamentos, isto leva a mudança de visão acerca do preso, pois quando o próprio Estado esquece que o indivíduo preso é um cidadão que faz parte do mesmo, isto se reflete em toda sociedade, a qual passa a tratar o preso, mesmo depois de ter cumprido a pena, como não mais sendo este um cidadão.[161]
Mais gritante, na perspectiva ressocializadora, é que existe a aceitação por parte da sociedade desse sistema penitenciário, pois percebem o preso como alguém que não é e nem deve ser parte da sociedade. Nesse cenário no qual o Estado não consegue cumprir sua função aparecem as igrejas, com a capelania e os grupos religiosos, cumprindo o que afirmava Bourdieu:
Se a religião cumpre funções sociais, tornando-se, portanto, passível de análise sociológica, tal se deve ao fato de que os leigos não esperam da religião apenas justificações de existir capazes de livrá-los da angústia existencial da contingência e da solidão, da miséria biológica, da doença, do sofrimento ou da morte. Contam com ela para que lhes forneça justificações de existir em uma posição social determinada, em suma, de existir como de fato existem, ou seja, com todas as propriedades que lhes são socialmente inerentes.[162]
Portanto, num momento de fragilidade como o cárcere, o indivíduo pode encontrar na religião a força e o incentivo necessários para enfrentar e superar as dificuldades do contexto. Assim a assistência religiosa é garantida pelas legislações vigentes, incluindo nas regras Mínimas.
Art. 43. A Assistência religiosa, com liberdade de culto, será permitida ao preso bem como a participação nos serviços organizado no estabelecimento prisional.
Parágrafo Único – Deverá ser facilitada, nos estabelecimentos prisionais, a presença de representante religioso, com autorização para organizar serviços litúrgicos e fazer visita pastoral a adeptos de sua religião.[163]
Observadas as legislações vigentes Prado e outros explicitam que a oportunidade de liberdade do culto religioso é de extrema importância para o regular cumprimento da sanção penal aplicada e no resultado ressocializador almejado, uma vez que oportuniza que novos valores sejam inseridos na vida do preso e do internado, tanto no sentido da presente realidade, quanto nas expectativas de futuro.[164] Madeira também afirma a importância da assistência religiosa nos presídios na perspectiva de possibilitar o indivíduo a construir uma nova rede de convivência, que os possibilitará saírem da vida do crime.[165]
Sendo a criminalidade, na perspectiva da religião, vista como algo demoníaco, a partir da conversão, o indivíduo livra-se dessa possessão, depositando na religião o ganho da vida longe da criminalidade.[166]
Portanto a conversão religiosa é percebida como forma de controle social, sendo destituída, muitas vezes da razão, portanto não apresenta um caráter, verdadeiramente emancipatório, sendo apenas um redutor de danos ou vulnerabilidades.[167]
Sobretudo é importante dizer, ainda segundo Madeira, que a conversão religiosa implica em um processo de troca de valores, novos hábitos, certo desprendimento em relação a bens materiais, valorização da vida. Dessa forma o indivíduo passa a ser controlado socialmente.[168]
A esse fenômeno, Segato denomina de mimese regressiva, ou seja, repetição de discursos, de forma mecânica, o sujeito copia assumidamente a fala do outro, sem reservas, numa espécie de morte, ou seja, aquele que assumiu o delito deixa de existir, sem uma reflexão profunda sobre o que ele foi e sobre o que ele pode voltar a ser.[169]
Como conseqüência disso, não se realiza o percurso reflexivo que traz o momento do crime ao momento atual para sua reelaboração numa aceitação de responsabilidade., pois o novo sujeito não se reconhece, nem se implica nas condições do seu crime.[170]
Há de se observar que, assim, a assistência religiosa ou capelania nos presídios passa a cumprir a função do Estado de ressocialização do indivíduo, de forma a transformá-lo racionalmente para o convívio social.
A religião aparece como forma de suprir as lacunas de um Estado que não tem no sistema prisional criado e mantido por ele a legitimidade para atender o que as legislações jurídicas preconizam. “É como se as religiões estivessem garantindo ou infundindo população maior confiabilidade para ocupar espaços e exercer funções civis, em princípio, de responsabilidade de órgãos técnicos ou do próprio aparelho de Estado. ”[171]
Assumindo papéis outros que não religiosos, as atividades pastorais procuram, de alguma forma, suprir o Estado, e este se deixa ser substituído; até mesmo em relação à disciplina, instiga a participação dos presos nas atividades das igrejas já que elas “ asseguram a pacificação dos internos, promovendo, inclusive, mudança de comportamento em alguns, dependendo da religião adotada pelo grupo” . Entretanto, “em obediência aos princípios constitucionais, a religião não pode ser imposta, ou funcionar como moeda de troca dentro das prisões. Ela só pode ser proposta como um meio, um apoio”. Ocorre que, em muitos casos, a religião assume “um papel muito mais utilitário do que humanitário dentro das prisões”.[172]
Assim a prestação de assistência religiosa e a capelania podem se constituir como manobra jurídica de um Estado que não consegue cumprir com suas obrigações perante seus cidadãos.
Observadas as normas legais que regem a questão da assistência religiosa nos presídios, apresentadas no primeiro capítulo desse trabalho e a perspectiva da presença da religião nos presídios, na forma de capelania e assistência religiosa como forma de controle, o capítulo seguinte se ocupará meticulosamente de analisar essa prática dentro do GINTER e perceber como esse se constitui dentro de uma prisão no Estado do Espírito Santo.
Importa salientar que o presente trabalho não tem a presunção de fazer um julgamento de valor do trabalho desenvolvido, mas analisar a forma como esse grupo se apresenta e os espaços ocupados por ele dentro dos presídios na perspectiva da ressocialização e controle social dos presidiários.