Imagine determinada situação: um indivíduo ajuíza ação de reintegração de posse em face de outra pessoa, alegando que esta invadiu sua propriedade. A União, por sua vez, apresenta oposição, alegando que a propriedade objeto da lide, em verdade, pertence ao Poder Público. Aqui um detalhe: ocupação de bem público não constitui posse, mas mera detenção, de natureza precária (Súmula 619 do STJ).
Voltando ao exemplo proposto, o Juízo ao analisar o pleito da União, negou a intervenção do ente estatal, com base no artigo 557 do Código de Processo Civil. De acordo com o Magistrado, mesmo se tratando de bem público, na ação possessória não se discute propriedade (domínio). Cabe a indagação: acertou o juízo?
Antes de analisar a questão, veja-se o teor do mencionado dispositivo processual:
"Art. 557. Na pendência de ação possessória é vedado, tanto ao autor quanto ao réu, propor ação de reconhecimento do domínio, exceto se a pretensão for deduzida em face de terceira pessoa.
Parágrafo único. Não obsta à manutenção ou à reintegração de posse a alegação de propriedade ou de outro direito sobre a coisa."
O dispositivo processual supra tem por objetivo obstar a ampliação do escopo das demandas possessórias, a fim de que nelas não haja discussão sobre o direito de propriedade. Caso não houvesse tal vedação, a celeridade dessas ações estaria comprometida. Fica evidente, assim, que o ordenamento pátrio promove uma clara distinção entre posse e propriedade, de forma que tais elementos não se confundem.
O caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça. A Corte esclareceu que, no caso, a União não quer ver declarada a sua propriedade; em verdade, ela usa a demonstração da propriedade, apenas incidentalmente, para alegar seu direito à posse.
Ao tratar dos bens públicos, não se pode exigir dos entes estatais que demonstre o poder físico sobre eles, a fim de caracterizar a posse dos referidos bens. Tal procedimento se revela incompatível com amplitude das terras públicas, sobretudo quando se leva em consideração bens de uso comum e dominicais.
A posse do Estado sobre seus bens deve ser considerada permanente, apartada de atos materiais de ocupação, sob pena de tornar inviável conferir aos bens públicos a proteção possessória. A decorrência lógica disso é que a ocupação de tais bens por particulares não consubstancia somente um ato contrário à propriedade estatal, mas, outrossim, um verdadeiro ato de esbulho contra a posse da Administração Pública sobre esses bens.
Na ocasião, a Corte Especial registrou que a interpretação literal do artigo 557 do CPC/15 no sentido de que, pendente ação possessória, é vedada discussão fundada no domínio parece, de certa forma, afrontar a garantia do acesso à justiça, prevista no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal.
Não se pode conceber, segundo o STJ, que o Ente Público, sendo titular do direito de exercício de posse sobre o bem estatal, possa ser inibido de postular em juízo a observância do direito, simplesmente, pelo fato de particulares se anteciparem e discutirem a posse do bem entre eles.
Com o escopo de se encontrar para o artigo 557 uma interpretação em consonância com as garantias constitucionais, é preciso compreender a vedação nele contida de forma restrita, não ampliativa.
Não há, portanto, proibição de se alegar incidentalmente o domínio em ação possessória. Em outras palavras, não se pode admitir que a literalidade do referido preceito normativo possa inviabilizar a prestação de tutela jurisdicional para a defesa da posse dos bens públicos pelo titular do direito material em disputa.
REFERÊNCIAS
BRASIL, Constituição da República Federativa do. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 17 fev. 2022.
Súmula 619 do STJ: A ocupação indevida de bem público configura mera detenção, de natureza precária, insuscetível de retenção ou indenização por acessões e benfeitorias.
Súmula 637 do STJ: O ente público detém legitimidade e interesse para intervir, incidentalmente, na ação possessória entre particulares, podendo deduzir qualquer matéria defensiva, inclusive, se for o caso, o domínio.
STJ. Corte Especial. EREsp 1.134.446-MT, Relator Ministro Benedito Gonçalves, julgado em 21/03/2018.