A nova Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 14.133/2021), objeto de análise neste trabalho, vai em uma linha de mudança de cultura jurídica, relacionada à utilização de meios adequados de prevenção e resolução de conflitos nas contratações administrativas, sobretudo, a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas (dispute board) e a arbitragem. Nesse sentido, veja-se:
Art. 151. Nas contratações regidas por esta Lei, poderão ser utilizados meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem.
Parágrafo único. Será aplicado o disposto no caput deste artigo às controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, como as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações.
Art. 152. A arbitragem será sempre de direito e observará o princípio da publicidade.
Art. 153. Os contratos poderão ser aditados para permitir a adoção dos meios alternativos de resolução de controvérsias.
Art. 154. O processo de escolha dos árbitros, dos colegiados arbitrais e dos comitês de resolução de disputas observará critérios isonômicos, técnicos e transparentes.
Importante anotar, neste ponto, que o elenco do artigo 151 se revela exemplificativo. Em verdade, ele não exclui outras possibilidades e métodos de prevenção e resolução de conflitos. Registre-se, por exemplo, que é concebível a negociação direta entre as partes, sem a participação de terceiros, que se revela como uma forma de autocomposição de conflitos.
Os meios adequados de resolução de litígios relacionam-se com os direitos patrimoniais disponíveis, tais como as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro da avença, ao adimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo do valor de indenizações. Nesse sentido é o parágrafo único do artigo 151.
Conforme autorizado pelo artigo 153 supra, os contratos administrativos podem ser aditados para permitirem a adoção de meios alternativos ou adequados de resolução de conflitos.
Frise-se, por sua vez, que a arbitragem será sempre de direito, observado o princípio da publicidade, conforme lição do artigo 152. Em verdade, trata-se de previsão semelhante à constante do artigo 2º, §3, da Lei nº 9.307/1996 (Lei de Arbitragem).
Ainda no tocante à instauração da arbitragem, cumpre esclarecer que o processo de escolha dos árbitros, dos colegiados arbitrais e dos comitês de resolução de disputas observará critérios isonômicos, técnicos e transparentes (artigo 154).
Um detalhe importante: a referida escolha pode ser enquadrada como uma inexigibilidade de licitação, em decorrência da inviabilidade de competição. Isso não elimina, entretanto, a necessidade de critérios isonômicos, técnicos e transparentes, como citado anteriormente, por parte do Poder Público. Tal mister pode ser garantido, por exemplo, com o credenciamento de instituições arbitrais que cumprirem os requisitos básicos e proporcionais fixados. O mesmo raciocínio pode ser aplicado à escolha dos comitês de resolução de disputas.
Pela relevância dos temas, serão feitas considerações, em tópicos apartados, acerca dos comitês de resolução de disputas e da arbitragem nos contratos administrativos.
O comitê de resolução de disputas (dispute board)
O comitê de resolução de disputas (dispute board) pode ser conceituado como um órgão colegiado, geralmente formado por três experts comumente advogados ou engenheiros -, indicados pelas partes no momento da celebração do contrato. Seu escopo é acompanhar a execução contratual, desde o início, portanto, com poderes para emitir recomendações ou decisões, conforme o caso concreto.
Registre-se que existem três tipos de dispute boards: I) Dispute Review Boards: emitem recomendações sobre determinada controvérsia, desprovidas de caráter vinculante imediato; II) Dispute Adjudication Boards: decidem as controvérsias contratuais, de modo que tais decisões possuem caráter vinculante; III) Combined Dispute Boards: emitem recomendações e, em determinados casos, decidem disputas contratuais.
Os dispute boards, apesar da reduzida aplicação no Brasil, podem representar um relevante mecanismo de solução de controvérsias, sobretudo nos contratos de grande vulto econômico e complexidade da Administração Pública.
Antes da promulgação da NLLC, a utilização de tal mecanismo foi formalmente reconhecida na I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CEJ/CJF), realizada no ano de 2016. Na ocasião, foram aprovados três enunciados que tratam especificamente do tema. Vejamos:
Enunciado 49: Os Comitês de Resolução de Disputas (Dispute Boards) são método de solução consensual de conflito, na forma prevista no artigo 3º, § 3º, do Código de Processo Civil Brasileiro.
Enunciado 76: As decisões proferidas por um Comitê de Resolução de Disputas (Dispute Board), quando os contratantes tiverem acordado pela sua adoção obrigatória, vinculam as partes ao seu cumprimento até que o Poder Judiciário ou o juízo arbitral competente emitam nova decisão ou a confirmem, caso venham a ser provocados pela parte inconformada.
Enunciado 80: A utilização dos Comitês de Resolução de Disputas (Dispute Boards), com a inserção da respectiva cláusula contratual, é recomendável para os contratos de construção ou de obras infraestrutura, como mecanismo voltado para a prevenção de litígios e redução dos custos correlatos, permitindo a imediata resolução de conflitos surgidos no curso da execução dos contratos.
O Município de São Paulo, cabe anotar, regulamentou o tema por meio da Lei Municipal nº 16.873/2018. Tal diploma limitou-se a reconhecer a viabilidade jurídica dos Comitês de Prevenção e Solução de Disputas para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis em contratos continuados da Administração Pública Direta e Indireta do Município de São Paulo.
Por fim, no ano de 2020, o Enunciado 19 da I Jornada de Direito Administrativo realizada pelo CEJ/CJF ratificou a possibilidade de utilização de métodos adequados de resolução de controvérsias nas contratações públicas, incluindo-se, entre eles, o dispute board. Vejamos:
Enunciado 19: As controvérsias acerca de equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos integram a categoria das relativas a direitos patrimoniais disponíveis, para cuja solução se admitem meios extrajudiciais adequados de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem.
A arbitragem nos contratos administrativos: questões relevantes
A arbitragem consiste em uma forma de heterocomposição de conflitos, por meio da qual o terceiro imparcial (árbitro), por convenção privada, decide o litígio, e não o Estado-juiz.
A Nova Lei de Licitações e Contratos não pormenoriza a sua utilização, apenas mencionando a possibilidade de sua utilização. Assim, há considerável espaço de conformação, a fim de que os entes federativos tratem do tema em seus próprios regulamentos.
A utilização da arbitragem pelo Poder Público não era prevista de forma expressa na redação original da Lei nº 9.307/1996 (Lei de Arbitragem), o que gerava discussão doutrinária acerca da juridicidade da arbitragem nos contratos da Administração.
Com as alterações promovidas pela Lei nº 13.129/2015, a Lei de Arbitragem passou a dispor expressamente que a Administração Pública, direta e indireta, por meio de autoridade competente para realização de acordos e transações, poderia estabelecer convenção de arbitragem de direito (frise-se: não pode ser por equidade) para dirimir conflitos atinentes a direitos patrimoniais disponíveis, observada a publicidade. (artigo 1º, §1º e §2º, e artigo 2º, §3º, da Lei nº 9.307/1996).
Repise-se que o artigo 152 da Nova Lei de Licitações e Contratos reforça a ideia de que, no âmbito dos entes estatais, a arbitragem tem que ser de direito, não por equidade. Tal exigência busca fundamento no princípio da legalidade, insculpido no artigo 37 da Constituição.
Ademais, cumpre revelar que, no tocante à exigência da publicidade da arbitragem envolvendo a Administração Pública, tal exigência visa a dar conformidade com o ordenamento constitucional, haja vista que o artigo 37 supracitado faz menção, outrossim, ao princípio da publicidade.
Há situações excepcionais, todavia, em que o sigilo do procedimento arbitral se impõe. Exemplos podem ser registrados: quando a questão envolver risco à segurança da sociedade ou do Estado ou informações pessoais relacionadas à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas.
É relevante salientar a inaplicabilidade de algumas prerrogativas administrativas e processuais da Administração ao processo arbitral:
1. Inaplicabilidade dos prazos diferenciados previstos pelo CPC/15 (artigo 183). O procedimento arbitral é definido pelas partes na convenção de arbitragem ou, de forma supletiva ou por delegação das partes, pelo árbitro, na forma do artigo 21 da Lei nº 9.307/1996;
2. Ausência de reexame necessário (artigo 496 do CPC/15). Não há previsão expressa de duplo grau ou de recurso no procedimento arbitral, que é desenvolvido em única instância, conforme artigo 18 da Lei nº 9.307/1996);
3. Ausência de isenção relativa à taxa judiciária, custas e emolumentos na arbitragem: os valores devidos devem ser suportados pelas partes entre elas a Administração em razão dos serviços que são prestados;
4. Ausência de aplicação automática das regras previstas no diploma processual, relacionadas à fixação de honorários (artigo 85, §3º), ao processo arbitral, salvo disposição em contrário. Os honorários do árbitro são definidos no compromisso arbitral, conforme aduz o artigo 11, inciso VI, da Lei de Arbitragem. Ressalta-se que o regime jurídico aplicável aos honorários sucumbenciais poderá ser definido no compromisso arbitral, no regulamento da entidade arbitral ou, ainda, em norma específica do respectivo Ente Federado.
Postadas tais premissas, cumpre alertar: a sentença arbitral é considerada título executivo judicial, de acordo com o artigo 515, VII, do CPC/15. Isso significa dizer que se aplica a ela o processo ordinário de execução contra a Fazenda Pública, isto é, o rito dos precatórios ou RPV. Diversos decretos regulamentares corroboram o referido entendimento. Todavia, há forte doutrina em sentido contrário, a exemplo de Rafael Oliveira, que defende a inaplicabilidade do regime precatorial ou do RPV ao caso.
A fim de finalizar o tópico, consigne-se que o processo de escolha dos árbitros observará critérios isonômicos, técnicos e transparentes (artigo 154 da NLLC), conforme anotado em linhas anteriores.
Nesse sentido, veja-se o enunciado 39 da I Jornada de Direito Administrativo realizada pelo Conselho da Justiça Federal, que assim dispõe:
Enunciado 39: A indicação e a aceitação de árbitros pela Administração Pública não dependem de seleção pública formal, como concurso ou licitação, mas devem ser objeto de fundamentação prévia e por escrito, considerando os elementos relevantes.
Desse modo, é possível a utilização de credenciamento, por exemplo dos árbitros, como bem ressaltado anteriormente. Muito se assemelha a um caso de exigibilidade de licitação, pois inviável a competição.
Referências
BRASIL, Lei nº 14.133/2021. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm . Acesso em 21.09.2021.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo, 9ª ed. Rio de Janeiro. Forense, 2021.