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FIES: Quando a inadimplência é um bom negócio

01/05/2022 às 12:30
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Até que ponto o princípio da isonomia pode ultrapassar a proporcionalidade ou razoabilidade?

Com a edição da Medida Provisória 1.090/2021 e regulamentada pela Resolução 49/2022 os contemplados pelo Fundo de Financiamento Estudantil FIES, que aderiam ao programa até o ano de 2017, com débitos vencidos e não pagos há mais de trezentos e sessenta dias, na data de publicação da MP, que estejam cadastrados no CadÚnico ou que tenham sido beneficiários do Auxílio Emergencial 2021, serão contemplados com desconto de 92% (noventa e dois por cento) do valor consolidado da dívida, inclusive ao relativo ao valor do principal, desde que realizem a liquidação integral do saldo devedor.

A discussão se inicia quando os estudantes adimplentes e os que aderiram ao FIES depois de 2017 simplesmente não tem o mesmo tratamento para a quitação de sua dívida estudantil. O debate não se encontra na possibilidade da quitação do saldo devedor por quem não conseguiu arcar com sua obrigação. Mas sim, se o princípio da isonomia pode ultrapassar outros princípios tão importantes e constitucionais como o princípio da proporcionalidade e razoabilidade?

Com o agravamento econômico ocasionando pela Pandemia do Coronavírus mais de 1 milhão de contemplados pelo FIES se tornaram inadimplentes, ou seja, aqueles com débitos a partir de 90 dias de atraso no pagamento, ultrapassando R$ 9 bilhões em prestações não pagas, segundo fontes do governo federal.

A Medida Provisória 1.090/2021, estabeleceu que os créditos contratados com o FIES até o segundo semestre de 2017 e cujos débitos estejam vencidos e não pagos, serão contemplados pela renegociação da seguinte maneira: I - para os estudantes com débitos vencidos e não pagos há mais de 90 dias, na data da publicação da MP poderão ter desconto da totalidade dos encargos e de 12% do valor do principal, para pagamento à vista; ou mediante parcelamento em até 150 parcelas mensais e sucessivas, com redução de 100% de juros e multas, mantidas as demais condições do contrato; II - para os estudantes com débitos vencidos e não pagos há mais de 360 dias, na data de publicação da MP, que estejam cadastrados no CadÚnico ou que tenham sido beneficiários do Auxílio Emergencial 2021, terão desconto de 92% por cento do valor consolidado da dívida, inclusive principal, por meio da liquidação integral do saldo devedor; e III - para os estudantes com débitos vencidos e não pagos há mais de 360 dias, na data de publicação da MP, que não se enquadrem na hipótese anterior, o desconto será de 86,5% por cento do valor consolidado da dívida, inclusive principal, por meio da liquidação integral do saldo devedor.

Sendo considerado por alguns uma das maiores benesses já oferecida pelo governo federal para a renegociação da dívida do programa estudantil.

Com isso observamos a típica utilização do princípio da isonomia. Princípio tão discutido e mal interpretado pela grande parcela da população.

Ao que muitos entendem a existência do princípio da isonomia em seu cunho formal e material, chamando o próprio princípio da igualdade em princípio da isonomia, entendemos que existe uma diferença entre tais princípios, existindo ao que chamamos o do próprio princípio da igualdade (ou princípio da isonomia formal) e o princípio da isonomia material em sentido strictu sensu.

O princípio da igualdade é o princípio mais basilar do Direito brasileiro. Com base no princípio da igualdade, se estruturam as normas que visam a sua garantia, como também a sua efetivação diante das desigualdades contextuais. Observamos sua existência no preâmbulo da Constituição Federal, bem como no artigo 5º, com o conceito substancial em que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

Uma das vertentes constitucionalistas, chama tal igualdade, como o princípio da isonomia em sentido formal. Independentemente do nome, é certo que o tratamento jurídico igualitário a todos não é suficiente para atingir todas as diferenças sociais, econômicas, tributárias, de gênero existentes, vindo a ser necessário a efetivação do princípio da isonomia material, ou seja, a isonomia em sentido estrito.

Tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades é o centro da teoria do princípio da isonomia em sentido material. Assim, a isonomia pressupõe a igual aplicação das normas àqueles que preencham iguais condições. Porém, a aplicação desigual das normas conforme a desigualdade das condições fáticas existentes entre grupos e pessoas diferentes, visa a equidade do Direito.

A isonomia material se dá no Direito brasileiro de várias formas, a exemplo temos a Lei Maria da Penha, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, todos buscando tratar de maneira diferenciada grupos e pessoas que apresentam certo grau de hipossuficiência ou por questões de maturidade, idade, de gênero devem ser tratados diferentemente, sem que com isso se tenha violado o próprio princípio da igualdade transcrito na Constituição Federal.

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Porém, existem limites ao princípio da isonomia? Por certo que sim! A isonomia apesar de ter objetivo de diminuir desigualdades não pode ser utilizada ao invés de trazer equidade, aumentar a lacuna entre pessoas, se realimentando como uma espécie de "motor perpétuo".

Assim, a utilização do princípio da isonomia sem limites poderia tornar a lei arbitrária, não vindo a combater desigualdades, mas por certo beneficiando grupos para além de preceitos também constitucionais como a proporcionalidade e razoabilidade.

Pelo princípio da proporcionalidade entendemos que sua finalidade precípua é equilibrar os direitos individuais aos anseios da sociedade. Desta forma, o princípio da proporcionalidade busca limitar a atuação e a discricionariedade dos poderes públicos, para que a Administração Pública não aja com excessos, criando atos inúteis, desvantajosos, desarrazoados e desproporcionais.

Adotar um tratamento tão diferenciado entre inadimplentes e adimplentes de um mesmo Fundo de Financiamento é o clássico exemplo de uma medida administrativa desarrazoada e desproporcional. Não possibilitar que uma outra grande parcela de estudantes que a duras penas pagam em dia seu financiamento para não terem prejudicados seus nomes, ou o nome e bens de fiadores, pessoas de boa-fé na relação contratual, é privilegiar a própria inadimplência, com a possibilidade da quitação de um débito por um curso superior com até 92% de abatimento.

Sem falar que o preceito básico para a edição de uma Medida Provisória é a acumulação de dois fatores, a relevância e a urgência. Elementos que devem existir em conjunto e não um ou outro.

Não se nega que o tema renegociação de dívida que tem a soma de R$ 9 bilhões e atinge mais de 1 milhão de pessoas não seja relevante. Mas a questão é. A matéria é urgente? Em um país que foi totalmente assolado por uma crise econômica e social, com milhões de brasileiros desempregados e outros tantos não havendo outra escolha senão morar na rua, tratar de dívida financeira é de caráter urgente? É um debate que certamente é acalorado, visto que a edição de uma MP se baseia em conceitos jurídicos amplos e indeterminados, sendo que para uns as hipóteses estão plenamente atingidas, porém para outros não.

Por fim, o que se espera de uma Administração Pública é que a mesma deva ter como obrigação a atenção ao disposto no artigo 37 da Constituição Federal de obedecer aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e agir de forma que seus atos não atinjam o abuso de poder e o próprio desvio de finalidade. Ter em mente que isonomia não é um fim em si mesmo e, que a plenitude do Direito se dá quando a isonomia e todos os demais princípios sejam aplicados de forma equilibrada para não haver distorções e um sentimento de exclusão em uma sociedade já tão polarizada, maltratada e com ausência de futuro.

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Sobre o autor
Luciano Tavares Junior

Advogado OAB/MG: 186.007. Sócio do escritório Morais & Tavares Advogados Associados. Advogado Especialista em Direito Médico e da Saúde, Direito Público e Proteção de Dados Pessoais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TAVARES JÚNIOR, Luciano Tavares Junior. FIES: Quando a inadimplência é um bom negócio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6878, 1 mai. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96951. Acesso em: 29 mar. 2024.

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