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Graça ou indulto?

Qual perdão foi concedido a Daniel Lúcio da Silveira?

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Bolsonaro aboliu o indulto coletivo e concedeu graça ao Deputado Daniel Silveira, em evidente contradictio in terminis. A graça, desde a última Constituição, não a conhecemos. Porém, quem é contra o perdão, de forma atabalhoada, o concedeu.

1. FINALIDADE

Tratarei aqui academicamente sobre um assunto que me incomoda que é a confusão existente entre os institutos da graça e do indulto, especialmente porque a imprensa tem alardeado sobre vídeo divulgado pelo Presidente da República, anunciando o perdão a Daniel Silveira.

Inicialmente, apresentarei o decreto destacado no mencionado vídeo, o qual foi publicado na Seção 1 – Extra D, p. 1.[2] Ele, portanto, existe no cenário jurídico nacional.

Como a graça e o indulto constituem espécies de perdão do príncipe (indulgentia principis), dependem da existência de um decreto para existirem, sendo que, até eventual declaração de sua inconstitucionalidade pelo STF, estará em vigor, portanto, produzindo os seus regulares efeitos.

Há conselho do Presidente Michel Temer para que o atual Presidente da República revogue o decreto e espere o trânsito em julgado final da condenação imposta a Daniel Silveira,[3] mas, parece, ele continua reticente.[4] De todo modo, caso o Presidente não seja reeleito – não esqueçamos que ele era contra a reeleição -, o que o suceder poderá revogar o Decreto de 21.4.2022.[5] Não comparo os atos Presidenciais de 2010, concessão de refúgio a Cesare Battisti, e de 2022, concessão de perdão a Daniel Lúcio Silveira, mas digo que os fundamentos para revogação do decreto são aplicáveis ao último caso, ainda que depois do prazo de 5 anos, ou seja, a revogação não estará sujeita ao prazo decadencial quinquenal.[6]

2. O DECRETO DE 21.4.2022

Segundo o que se ouve no áudio divulgado pelo Presidente da República, ele leu quase a íntegra do decreto, o qual, tem a seguinte redação:

DECRETO DE 21 DE ABRIL DE 2022

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, caput, inciso XII, da Constituição, tendo em vista o disposto no art. 734 do Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, e

Considerando que a prerrogativa presidencial para a concessão de indulto individual é medida fundamental à manutenção do Estado Democrático de Direito, inspirado em valores compartilhados por uma sociedade fraterna, justa e responsável;

Considerando que a liberdade de expressão é pilar essencial da sociedade em todas as suas manifestações;

Considerando que a concessão de indulto individual é medida constitucional discricionária excepcional destinada à manutenção do mecanismo tradicional de freios e contrapesos na tripartição de poderes;

Considerando que a concessão de indulto individual decorre de juízo íntegro baseado necessariamente nas hipóteses legais, políticas e moralmente cabíveis;

Considerando que ao Presidente da República foi confiada democraticamente a missão de zelar pelo interesse público; e

Considerando que a sociedade encontra-se em legítima comoção, em vista da condenação de parlamentar resguardado pela inviolabilidade de opinião deferida pela Constituição, que somente fez uso de sua liberdade de expressão.

DECRETA:

Art. 1º Fica concedida graça constitucional a Daniel Lucio da Silveira, Deputado Federal, condenado pelo Supremo Tribunal Federal, em 20 de abril de 2022, no âmbito da Ação Penal nº 1.044, à pena de oito anos e nove meses de reclusão, em regime inicial fechado, pela prática dos crimes previstos:

I - no inciso IV do caput do art. 23, combinado com o art. 18 da Lei n. 7.170, de 14 de dezembro de 1983; e

II - no art. 344 do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal.

Art. 2º A graça de que trata este Decreto é incondicionada e será concedida independentemente do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Art. 3º A graça inclui as penas privativas de liberdade, a multa, ainda que haja inadimplência ou inscrição de débitos na Dívida Ativa da União, e as penas restritivas de direitos.

Brasília, 21 de abril de 2022; 201º da Independência e 134º da República.

JAIR MESSIAS BOLSONARO[7]

O Presidente da República apresenta condutas impetuosas e desatinadas, razão de muitas vezes ter que voltar atrás. Por isso, considero precipitado e desarrazoada a iniciativa de Advogados cariocas que procuram sustar os efeitos do decreto em comento, até porque o caminho eleito por eles é impróprio.[8]

O parlamentar deixou de cumprir as condições da medida cautelar imposta (monitoramento eletrônico), o que pode ensejar o seu retorno à prisão, uma vez que o relator do processo sustenta não ser do conhecimento do STF a existência efetiva do decreto concessivo de graça em seu favor. Com efeito, o Min. Alexandre de Moraes, em 26.4.2022, despachou:

Em decisão proferida em 30.3.2022 e referendada pelo Plenário do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, foi determinada, entre outras medidas, a fixação de multa diária de R$ 15.000,00 (quinze mil reais), em relação a réu DANIEL SILVEIRA, no caso de descumprimento de qualquer das medidas cautelares decretadas judicialmente.

Em sessão Plenária ocorrida no dia 20.4.2022, o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, por maioria, julgou o mérito da presente ação penal, nos seguintes termos (Acórdão pendente de publicação):

Dispositivo: rejeito as preliminares, bem como DECRETO A PERDA DE OBJETO dos agravos regimentais interpostos contra decisão que indeferiu as diligências requeridas na fase do art. 10 da Lei 8.038/1990 e contra decisão que determinou a necessidade de juntada das alegações finais para análise de requerimento de extinção de tipicidade e punibilidade; e JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE A DENÚNCIA para: (a) ABSOLVER O RÉU DANIEL LÚCIO DA SILVEIRA da imputação do art. 286, parágrafo único, do Código Penal, considerada a continuidade normativo-típica em relação ao art. 23, II, da Lei 7.170/1983; (b) CONDENAR O RÉU DANIEL LÚCIO DA SILVEIRA: (b.1) como incurso nas penas do artigo 18 da Lei 7.170/1983, por 2 (duas) vezes, na forma do art. 71 do Código Penal, em virtude da ultra-atividade da lei penal mais benéfica em relação ao artigo 359-L do Código Penal à pena 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de reclusão; (b.2) como incurso nas penas do art. 344 do Código Penal, por 3 (três) vezes, na forma do art. 71 do Código Penal à pena 3 (três) anos e 6 (seis) meses de reclusão, bem como à pena de 35 (trinta e cinco) dias-multa, no valor de 5 (cinco) salários mínimos dia-multa, considerado o patamar vigente à época do fato, que deve ser atualizado até a data do efetivo pagamento. Consideradas as penas para cada crime, a pena final é de 8 (oito) anos e 9 (nove) meses de reclusão, em regime inicial fechado, e 35 (trinta e cinco) dias-multa, o valor do dia-multa equivalente a 5 (cinco) salários mínimos, considerado o patamar vigente à época do fato, que deve ser atualizado até a data do efetivo pagamento. Fica fixado o regime fechado para o início do cumprimento da pena. Após o trânsito em julgado, ficam ainda suspensos os direitos políticos do condenado, enquanto durarem os efeitos da condenação, nos termos do art. 15 inciso III, da Constituição Federal; bem como a perda do mandato parlamentar, em relação ao réu DANIEL LÚCIO DA SILVEIRA, nos termos do art. 55, inciso VI e o § 2º, da Constituição Federal e artigo 92 do Código Penal.

É fato notório que, no dia 21.4.2022, o Excelentíssimo Presidente da República editou indulto individual em benefício do réu DANIEL SILVEIRA.

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Diante de todo o exposto, DETERMINO:

(a) a juntada imediata do referido Decreto Presidencial de Indulto aos autos;

(b) a intimação da Defesa do réu DANIEL SILVEIRA para que, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, se manifeste sobre o Decreto de Indulto Presidencial, bem como em relação ao descumprimento das medidas cautelares por parte do réu DANIEL SILVEIRA. Após a manifestação da Defesa, abra-se vista dos autos à Procuradoria-Geral da República, para manifestação, no mesmo prazo de 48 (quarenta e oito) horas.

Diante da renúncia do advogado Jean Cléber Garcia, OAB/DF 31.570 (eDoc. 893), à Secretaria para que proceda à retificação da autuação.[9]

Daniel Lúcio Silveira vem se apresentando pouco inteligente ao descumprir as medidas cautelares determinadas, uma vez que a perda do mandato o deixará desempregado e inelegível. Também, não se sabe se o Presidente da República manterá o decreto de perdão, o qual tem gerado grande repercussão em todo território nacional.

Não se olvide que o Presidente da República pode aplicar a Súmula 473 do STF e anular ou revogar o decreto, o que seria facilmente defensável juridicamente e evitaria os desgastes que o perdão pode trazer aos envolvidos.

Caso o decreto seja mantido, conforme consta da decisão monocrática transcrita, na parte que suprimi, poderá ser atacado, em controle concentrado de constitucionalidade, perante o STF. Daí, não ter fundamentação jurídica a pretensão dos Advogados cariocas que pretendem sustar os efeitos do decreto em sede de Vara Federal (fato anteriormente mencionado neste texto). Ora, a inconstitucionalidade em tese de uma norma não pode estar submetida ao controle difuso de (in)constitucionalidade.

Essa discussão acerca da (in)constitucionalidade do decreto já está colocada perante o STF pela Rede Sustentabilidade (ADPF n. 964-DF), pelo Partido Democrático Trabalhista (ADPF n. 965-DF), pelo Cidadania (ADPF n. 966-DF) e pelo P-SOL (ADPF n. 967-DF), propostas em 22.4.2022, salvo a última, protocolada em 23.4.2022. Elas foram distribuídas à Min.ª Rosa Weber, a qual decidiu:

1. Trata-se de quatro arguições de descumprimento de preceito fundamental, com pedido de medida liminar, propostas pela REDE SUSTENTABILIDADE (ADPF 964/DF), pelo PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA – PDT (ADPF 965/DF), pelo CIDADANIA (ADPF 966/DF) e pelo PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE – PSOL (ADPF 967/DF), em face de Decreto de 21 de abril de 2022, editado pelo Presidente da República, que concedeu indulto individual a Daniel Lucio da Silveira, Deputado Federal, condenado criminalmente por esta Suprema Corte nos autos da AP 1.044/DF.

2. Os autores afirmam preenchidos todos os requisitos necessários ao conhecimento das ADPF’s, pois o Decreto impugnado (i) configura-se como ato do poder público e (ii) viola, de forma direta, preceitos fundamentais constantes da Carta Política, além de satisfeito o pressuposto negativo de admissibilidade (subsidiariedade), ante a ausência de qualquer outro instrumento processual, na jurisdição constitucional, hábil a questioná-lo.

3. Sustentam a nulidade do Decreto presidencial, tendo em vista que concedeu graça constitucional a indivíduo que ainda não foi condenado por decisão judicial transitada em julgado.

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8. À alegação de que demonstrada a vulneração dos preceitos fundamentais invocados (fumus boni iuris) e o periculum in mora, consubstanciado nos efeitos imediatos da concessão da graça, requerem, em liminar, a suspensão, in totum, do Decreto de 21 de abril de 2022, editado pelo Presidente da República, que concedeu indulto individual a Daniel Lucio da Silveira, Deputado Federal, condenado criminalmente por esta Suprema Corte nos autos da AP 1.044/DF e, sucessivamente, o reconhecimento, ao menos da manutenção de todos os efeitos extrapenais da condenação criminal.

9. No mérito, pugnam pela procedência do pedido, com a confirmação do teor da medida liminar requerida.

10. Reputo contemplar, a matéria, relevância e especial significado para a ordem social e a segurança jurídica, pelo que submeto, por analogia, a tramitação desta ADPF ao disposto no art. 12 da Lei 9.868/1999.

11. Requisitem-se informações ao Presidente da República, a serem prestadas no prazo de 10 (dez) dias. Após, dê-se vista ao Advogado-Geral da União e ao Procurador-Geral da República, sucessivamente, no prazo de 05 (cinco) dias.

12. Por fim, considerando que as ADPF’s 964/DF, 965/DF e 966/DF, a mim distribuídas por prevenção, possuem idêntico objeto ao desta arguição de descumprimento de preceito fundamental, determino a tramitação conjunta dos feitos.[10]

Razões relevantes foram inseridas nas petições iniciais, desde a impossibilidade de haver indulto ou graça para o crime praticado contra o Estado democrático de direito, até a violação de princípios constitucionais violadores da administração pública. Tais aspectos serão enfrentados adiante.

3. CONTEXTUALIZAÇÃO DA SITUAÇÃO DO PARLAMENTAR

Os pilares do militarismo são a hierarquia e a disciplina, sendo que as diversas sanções administrativas que a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro impôs ao ex-Soldado Daniel Lúcio Silveira evidenciam que ele não foi um bom policial militar. Ele se notabiliza pelas publicações em redes sociais, desde o tempo em que estava em atividade na PMRJ, e iniciou uma série de ataques ao Supremo Tribunal Federal, com destaque especial a alguns Ministros. Daí a sua prisão em fragrante delito no dia 16.2.2021, isso nos autos do Inquérito 4.781-DF, isso em razão de um vídeo publicado na seguinte direção eletrônica: <https://www.youtube.com/watch?v=jMfInDBItog>.

A prisão foi determinada pelo Min. Alexandre de Moraes, tendo sido cadastrado paralelamente a Petição n. 9456, que tramitou de 1.3.2021 a 23.6.2021. Também, há o Inquérito 4.828-DF, autuado em 20.4.2020. Neste consta transcrições de manuscritos de Allan dos Santos que evidenciam efetivos crimes contra o estado democrático de direito, in litteris:

OBJETIVO: materializar a ira popular contra os governadores/prefeitos; Fim intermediário: saiam às ruas; Fim último: derrubar os governadores/prefeitos: meios.” (f. 104 do relatório da Polícia Federal)[11]

Em uma conduta acintosa ao povo brasileiro, Allan dos Santos, procurado pela Interpol, notoriamente, esteve com Embaixador brasileiro em enterro de um astrólogo, visto por muitos como intelectual. Nada foi feito para provocar a sua prisão.[12] No entanto, tudo isso não passou de um simbolismo ideológico, em favor de uma desordem antidemocrática que se objetiva. Nesse contexto, Daniel Silveira é processado e sentenciado, em 20.4.2022.

Surgiram recursos e, em 21.4.2022, adveio o famigerado decreto de perdão.[13] Ocorre que a produção dos efeitos do decreto não é imediata, visto que o perdão é um ato complexo, a ser confirmado pelo Juiz da Execução, assim como a aposentadoria deverá ser confirmada pelo tribunal de contas.

4. GRAÇA E INDULTO

Um Ministro Aposentado do STF cunhou o termo “operador do direito”,[14] referindo-se aos juristas em geral. Isso é lamentável porque o Direito, assim como as ciências em geral, pela própria natureza, tem conhecimento complexo, não podendo ser relegado a meros operadores, como se fosse uma máquina. O grande problema é que a doutrina jurídico-criminal brasileira é produzida por profissionais que participam do sistema de justiça (Juízes, Advogados – públicos e privados -, Delegados de Polícia etc.),[15] fortalecendo a ideia de que somos meros operadores do Direito Criminal.

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Graça e indulto têm distinções, sólida doutrina as apresenta. No entanto, a doutrina e a jurisprudência brasileiras passaram a considerar a graça como espécie de indulto, ou seja, o indulto individual. Daí, o decreto em comento conceder graça (art. 1º) e o Min. Alexandre de Moraes ter mencionado a notoriedade da concessão de indulto individual, confusão própria do nosso ostracismo jurídico-criminal.[16]

A indulgentia principis não é admitida por todos. Alguns entendem ser incabível fazer do Poder Executivo um órgão revisional das decisões judiciais.[17] De todo modo ele está previsto na legislação pátria, razão de, em 1997, ter publicado academicamente:

A doutrina que admite a previsão do indulto no ordenamento jurídico pugna por sua utilização moderada. Infelizmente, a indulgentia principis tem sido utilizada excessivamente, transformando-se em um insulto para a Justiça, visto que não adianta movimentar todo Poder Judiciário para a prolação de uma decisão da qual o Poder Executivo retira a eficácia.[18]

O decreto em comento é o pior exemplo de motivação inadequada para a sua concessão, porque transforma o Poder Executivo em Poder Moderador, incompatível com a democracia. Com efeito, a sua motivação, acerca da liberdade de expressão, segue diametralmente oposta ao exame de mérito concretizado pelo STF.

Calcado em boa doutrina e naquilo que já publiquei, algumas distinções entre indulto e graça tornam o decreto inválido, a saber:

Graça

Indulto

Sempre dependerá de requerimento do interessado

Pode ser requerido ou concedido de ofício

Sempre se vinculará ao motivo determinante

Pode ser imotivado

Dependerá demonstração das razões de que o perdoado a merecer

Pode ser vinculada a nada

Sempre individual

Pode ser individual e coletivo

Tratando dos incidentes da execução criminal, em 1998, sobre a anistia e os perdões, escrevi:

Em nosso país, já verificamos anistias e indultos que visavam a beneficiar, injustificadamente, determinadas pessoas. Os dois institutos geram a extinção da punibilidade, sendo fácil a aceitação dos mesmos quando não há uma conotação política com evidentes interesses escusos.[19]

O caso vertente tem tudo de errado, até porque não há pedido formal da graça, nem demonstração pelo interessado do seu merecimento. Pior, a motivação tende a menosprezar o julgamento do STF, uma vez que a liberdade de expressão tem limites.

Em nome da liberdade de expressão poderemos ser racistas, homofóbicos, xenofóbicos, opressores dos mais pobres etc.?

Não se demonstra o requerimento formal do interessado para a concessão da graça. Por mais que o Presidente da República desconheça o ordenamento jurídico, deveria saber que a graça constitui incidente na execução criminal. Mais, ainda, o nosso Código de Execução Criminal (Lei n. 7.210, de 11.7.194) dispõe:

Título VII

Dos Incidentes na Execução

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CAPÍTULO III

Da Anistia e do Indulto

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Art. 188. O indulto individual poderá ser provocado por petição do condenado, por iniciativa do Ministério Público, do Conselho Penitenciário, ou da autoridade administrativa.

Art. 189. A petição do indulto, acompanhada dos documentos que a instruírem, será entregue ao Conselho Penitenciário, para a elaboração de parecer e posterior encaminhamento ao Ministério da Justiça.

Art. 190. O Conselho Penitenciário, à vista dos autos do processo e do prontuário, promoverá as diligências que entender necessárias e fará, em relatório, a narração do ilícito penal e dos fundamentos da sentença condenatória, a exposição dos antecedentes do condenado e do procedimento deste depois da prisão, emitindo seu parecer sobre o mérito do pedido e esclarecendo qualquer formalidade ou circunstâncias omitidas na petição.

Art. 191. Processada no Ministério da Justiça com documentos e o relatório do Conselho Penitenciário, a petição será submetida a despacho do Presidente da República, a quem serão presentes os autos do processo ou a certidão de qualquer de suas peças, se ele o determinar.

Art. 192. Concedido o indulto e anexada aos autos cópia do decreto, o Juiz declarará extinta a pena ou ajustará a execução aos termos do decreto, no caso de comutação.

Art. 193. Se o sentenciado for beneficiado por indulto coletivo, o Juiz, de ofício, a requerimento do interessado, do Ministério Público, ou por iniciativa do Conselho Penitenciário ou da autoridade administrativa, providenciará de acordo com o disposto no artigo anterior.

Considerando a necessidade de o decreto estar em conformidade com a lei, em face do vício de forma, ter sido concedida a graça sem requerimento de qualquer pessoa física ou jurídica legitimada e sem prévia manifestação do Conselho Penitenciário, o Decreto de 21.4.2022 – em comento – é nulo.

Alhures, academicamente, escrevi:

A graça é uma causa de extinção da punibilidade não contemplada pelo legislador na elaboração da LEP. Hélio Tornaghi, apud Paulo Lúcio Nogueira, ensina que “a graça se recomenda por ato de heroísmo, por serviço de alto valor, pela necessidade de amparar a família do condenado, por alguma razão de Estado e por inúmeros outros motivos de grande valor social”.[20] Entretanto, o legislador considerou a graça absorvida pelo indulto individual, ex vi do disposto no n. 172 da Exposição de Motivos da LEP.[21]

Mesmo considerando a graça uma espécie de indulto, não se deve olvidar de ela guarda as peculiaridades da origem, ou seja, exige a demonstração de alto valor do perdoado

Na Constituição Federal, também, o art. 84, inc. XII, não menciona a graça. Já o seu art. 5º, inc. XLIII, veda a concessão de “graça ou anistia” a quem praticar crime hediondo ou assemelhado. Ora, sempre sustentei que não podemos confundir, enquanto intérpretes, aquilo que a legislação distinguiu. Por isso, não verificando qualquer ato meritório do perdoado, afirmo ser nulo o Decreto de 21.4.2022.

Não podemos nos olvidar de que o perdoado simplesmente desconsiderou todas as determinações judiciais, a partir de 21.4.2022, o que é equivocado porque, conforme ensina Renato Marcão, o perdão não é autoexecutável, tanto que sua aplicação depende de decisão judicial.[22]

Eu não poderia deixar de mencionar a posição sobre o decreto que é objeto de análise, in verbis:

Ademais, pela leitura do decreto presidencial, fica muito claro que ele não se destina a extinguir penas de um criminoso, mas questionar a própria condenação do mais alto tribunal do país.

Vale dizer, esta (des)graça funcionaria como uma anulação ou revisão da condenação do S.T.F.

Absurdo e incompatível com o Estado Democrático de Direito, previsto na Constituição da República.

Mesmo que não seja ela anulada, sua eficácia não abrange os efeitos da condenação como fato jurídico, que determina a incidência de outras normas jurídicas.[23]

É nesse contexto de que o Poder Executivo não pode ser superior ao Poder Judiciário e de que ele não é revisor das decisões judiciais que defendo a absoluta nulidade do decreto que concedeu, sem motivação adequada, a graça a Daniel Lúcio Silveira.

CONCLUSÃO

Virgílio Afonso da Silva já nos ensinou de que a classificação das normas constitucionais quanto à eficácia (em plena, limitada – programática e institucional -, e contida) é equivocada porque todos os direitos fundamentais são ponderáveis.[24] Desse modo, invocar o art. 5º, inc. IX, da Constituição Federal para propor o direito irrestrito aos ataques à democracia, ao crime organizado tendente ao retorno do totalitarismo militar e do Ato Institucional n. 5 (AI-5), o que possibilitou a destituição de três Ministros do STF, dentre eles o saudoso Evandro Lins e Silva, será um absurdo.

Diversamente do que o sentenciado divulga, a liberdade de expressão não pode obstar a tipicidade do crime de ameaça, do de calúnia, do de injúria e, pior, do crime contra a segurança nacional (Lei n. 7.170, de 14.12.1983, art. 18). O Capitão da reserva não remunerada editou a Lei n. 14.197, de 1.9.2021, o que levou Daniel Lúcio Silveira a pedir a abolitio criminis, o que não era o caso porque o que houve foi o deslocamento do tipo para o art. 359-L do Código Penal, com pena ainda mais severa. Daí o STF ter indeferido o pedido formulado pelo parlamentar para que fosse declarada extinta a punibilidade, em face da suposta abolitio criminis. Consequentemente, fez incidir a pena mais branda aplicável ao caso.

Kant defendia que o soberano só poderia perdoar no caso de crime de lesa majestade (contra ele mesmo), o que não poderia ocorrer se a impunidade pudesse ser perigosa para a segurança pública.[25] Nesse contexto, sem trânsito em julgado da condenação, será estranho o perdão ao juridicamente inocente, até porque o seu comportamento demonstra uma ameaça à necessária tripartição de poderes.

Nos governos anteriores, era comum o indulto natalino e, normalmente, era prevista a comutação da pena (indulto parcial) ao inocente sentenciado que exclusivamente tivesse recorrido (eis, que a pena não poderia ser majorada). Bolsonaro aboliu o indulto coletivo e concedeu graça ao Deputado Daniel Silveira, em evidente contradictio in terminis. A graça, desde o início da vigência da última Constituição Federal, não a conhecemos. Porém, quem é contra o perdão, de forma atabalhoada, o concedeu.

Espero que o STF cumpra o seu papel e declare a nulidade do decreto em comento, eis que apresenta vício de forma, desvio de finalidade e, essencialmente, motivação nula.

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Sobre o autor
Sidio Rosa de Mesquita Júnior

Procurador Federal e Professor Universitário. Graduado em Segurança Pública (1989) e em Direito (1994). Especialista Direito Penal e Criminologia (1996) e Metodologia do Ensino Superior (1999). Mestre em Direito (2002). Doutorando em Direito. Autor dos livros "Prescrição Penal"; "Execução Criminal: Teoria e Prática"; e "Comentários à Lei Antidrogas: Lei n. 11.343, de 23.8.2006" (todos da Editora Atlas).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa. Graça ou indulto?: Qual perdão foi concedido a Daniel Lúcio da Silveira?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6916, 8 jun. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98375. Acesso em: 19 abr. 2024.

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