CONSIDERAÇÕES SOBRE O DIREITO DE PROPRIEDADE
A propriedade é direito complexo, fundamental, inerente às pessoas naturais e jurídicas sobre determinado bem (corpóreo com valor econômico), podendo usar, gozar e dispor da coisa, e reivindicá-la de quem injustamente a detenha (PEREIRA, 2004, p. 90). Apesar de ser um direito subjetivo, a propriedade deve cumprir seu papel social em benefício da coletividade.
Por ser um direito complexo, a propriedade pode ser conceituado com base em três critérios: (1) sintético, é a submissão de uma coisa e suas relações jurídicas a uma pessoa; (2) analítico, na qual a propriedade está relacionada aos direitos de usar, gozar, fruir, dispor e alienar a coisa; e (3) descritivo, a propriedade é um direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, submetida a vontade do propriedade, sob os limites da lei (GOMES, 2006).
O jurista Flávio Tartuce (2019, p. 191) define propriedade como sendo [...] o direito que alguém possui em relação a um bem determinado. Trata-se de um direito fundamental, protegido no art. 5.º, inc. XXII, da Constituição Federal, mas que deve sempre atender a uma função social, em prol de toda a coletividade.
De acordo com o Código Civil, a propriedade está relacionada com quatro atributos. O diploma civil diz dispõe que o proprietário tem a faculdade de: usar, de acordo com as normas do ordenamento jurídico e leis específicas, como é o caso do Estatuto da Cidade; gozar, que é a possibilidade de retirar os frutos (naturais, industriais ou civil) da coisa; dispor, seja por atos inter vivos ou causa mortis, a título gratuito ou oneroso; e reaver contra quem injustamente a possua ou detenha, por meio da ação petitória (art. 1.228 do CC).
Importante destacar que a redação do dispositivo trata de faculdades inerentes à propriedade, excluindo as antigas concepções de que a propriedade é algo absoluto e o direito à propriedade é um direito ilimitado.
Baseado nas considerações de Duguit, Rochelle Jelinek (2006, p. 11) ensina que
[...] a propriedade não tem mais um caráter absoluto e intangível e que o proprietário, pelo fato de possuir uma riqueza (propriedade), deve cumprir uma função social. Seus direitos de proprietário só estarão protegidos se ele cultivar a terra ou se não permitir a ruína de sua casa, caso contrário será legítima a intervenção do Estado no sentido de obrigar o cumprimento de sua função social.
De acordo com a presença dos atributos citados, a propriedade pode ser classificada em: (a) propriedade plena ou alodial: quando o proprietário tem consigo os atributos de gozar, usar, reaver e dispor. Esses caracteres estão em sua mão de forma unitária, sem que terceiros tenham qualquer direito sobre a coisa; (b) propriedade limitada ou restrita: quando sobre a propriedade recai algum ônus, como a hipoteca, ou quando a propriedade for resolúvel, pendendo de termos e condições. Assim, alguns atributos da propriedade pertencem a outrem, constituindo-se em direito real sobre coisa alheia. Havendo a divisão dos referidos atributos, a propriedade pode ser classificada em (b.1) nua-propriedade, aquela despida dos atributos diretos e imediatos do uso e da fruição ou (b.2) domínio útil, corresponde aos atributos de usar, gozar e dispor da coisa. Dependendo dos atributos que possui, a pessoa que o detém recebe uma denominação diferente, como usufrutuário, usuário, superficiário etc. (TARTUCE, 2019).
É importante fazer uma diferenciação entre o conceito de domínio e propriedade. O domínio é instrumentalizado pela propriedade, consiste na titularidade do bem, refere-se ao conteúdo interno da propriedade e é um vínculo real entre a coisa e o titular, sendo, logo, absoluto. Já a propriedade é relativa, visto que pode ser intersubjetiva e orientada à funcionalização do bem, com imposição de deveres positivo e negativos de seu titular perante terceiros. (FARIAS; ROSENVALD, 2006). Portanto, o domínio remete à ideia de submissão da coisa ao sujeito, com caráter mais estático; já a propriedade está relacionada à titularidade, à vinculação da coisa ao sujeito, com aspecto mais dinâmico. (PENTEADO, 2008).
O direito de propriedade deve ser exercido em harmonia com as finalidades econômicas e sociais da propriedade, e de modo que sejam preservados a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como a preservação da água e do ar (art. 1.228, § 1º, do CC). A propriedade deve sempre atender aos interesses sociais, ao que almeja o bem comum, evidenciando-se a uma destinação positiva que deve ser dada à coisa. Nessa esteira, pode-se afirmar que a propriedade é a função social. (TARTUCE, 2019, p. 209).
Importante acrescentar que o conceito de função social da propriedade não pode ser confundido com aproveitamento econômico da propriedade, haja vista que um imóvel pode ser economicamente viável, mas não respeitando o princípio da função social, dado que este conceito é mais amplo. Sobre o tema, transcreve-se as brilhantes palavras de Paulo Lôbo:
A interpretação das normas infraconstitucionais não pode levar ao equívoco, ainda corrente, da confusão entre função social e aproveitamento econômico. Pode haver máximo aproveitamento econômico e lesão à função social da propriedade ou da posse. Na situação concreta, não há função social quando, para a maximização dos fins econômicos, o titular de imóvel urbano não atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade (CF, art. 182, § 2º) ou o titular de imóvel rural não promove o aproveitamento racional e adequado da terra, ou não utiliza os recursos naturais disponíveis, ou não preserva o meio ambiente, ou não cumpre a legislação trabalhista, ou não promove o bem-estar dos trabalhadores. Não são, portanto, a produtividade ou os fins econômicos que orientam a aplicação da função social da propriedade ou da posse (LÔBO, 2015, p. 113-114).
Como forma de concretização da função socioambiental da propriedade, o Superior Tribunal de Justiça é uníssono no entendimento de que o novo proprietário do imóvel é obrigado a fazer a sua recuperação ambiental, mesmo não tendo sido ele o causador dos danos. A conclusão faz uma interação entre a proteção ambiental da propriedade e a responsabilidade objetiva. A decisão recente entendeu que a obrigação de recuperação ambiental é uma obrigação propter rem, ou seja, segue a coisa onde quer que ela esteja ou de quem seja seu dono.
[...]. Na espécie, em ação civil pública (ACP), o tribunal a quo manteve sentença de procedência do pedido, determinando a demarcação e averbação de reserva legal, pois o fato de ter havido desmatamento, mesmo que realizado por antecessores, não afastaria a obrigação de instituir a reserva. No REsp, o recorrente aponta violação, entre outros temas, do art. 14, § 1º, da Lei n. 6.938/1981, alegando que não se poderia impor a obrigação de reparar dano ambiental a particular adquirente de imóvel já com o mencionado dano, porquanto ausente o nexo de causalidade, o que o isentaria da responsabilidade. Conforme explicitou o Min. Relator, em nosso sistema normativo (art. 16 e parágrafos da Lei n. 4.771/1965 - Código Florestal - e art. 99 da Lei n. 8.171/1991), a obrigação de demarcar, averbar e restaurar a área de reserva legal nas propriedades rurais constitui limitação administrativa ao uso da propriedade privada, a qual se destina a tutelar o meio ambiente, que deve ser defendido e preservado. Ademais, por ter como fonte a própria lei e por incidir sobre as propriedades em si, configura dever jurídico (obrigação ex lege) que se transfere automaticamente com a transferência do domínio (obrigação propter rem), podendo, em consequência, ser imediatamente exigível do proprietário atual independentemente de qualquer indagação a respeito da boa-fé do adquirente ou de outro nexo causal que não o que se estabelece pela titularidade do domínio. Ressaltou, ainda, que o percentual legal de reserva florestal tem por base a totalidade da área rural (art. 16 da Lei n. 4.771/1965), e não a parcela da área onde ainda existia vegetação. Nesse contexto, a Turma conheceu parcialmente do recurso e, nessa parte, negou-lhe provimento. [...]. (STJ, Primeira Turma, REsp. 1.179.316/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 15/06/2010). Publicado no Informativo 439 do STJ.
Seguindo o estudo das disposições gerais, o diploma civil dispõe que são proibidos os atos praticados pelo proprietário que não acarretam qualquer comodidade ou utilidade, e que tenham a intenção de prejudicar outrem (art. 1.228, § 2º, do CC). O comando legal traz a vedação ao exercício irregular do direito de propriedade, do abuso de propriedade ou do ato emulativo civil, sendo, portanto, uma forma de limitar o exercício da propriedade, coibindo condutas abusivas.
É preciso fazer uma observação: o dispositivo apenas proíbe os atos emulativos que não geram comodidade ou utilidade ao emulador; todavia, com base no princípio da boa-fé, a melhor interpretação é a da proibição de qualquer ato que acarrete danos a terceiros, ainda que proporcione benefício ao proprietário emulado. Portanto, considera-se abuso de direito de propriedade qualquer ato que gere danos a terceiros, ainda que proporcione vantagens, comodidades ou satisfação pessoal à propriedade emulada (TARTUCE, 2019).
O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, assim como na hipótese de requisição, nas situações de perigo público iminente (art. 1.228, § 3º, do CC). O dispositivo trata da privação ao direito de propriedade por necessidade ou utilidade pública, da desapropriação por interesse social e da requisição da propriedade particular para os casos de perigo público iminente. Essas exceções ao direito constitucional buscam atender aos interesses sociais da coletividade, em situações excepcionais (LÔBO, 2015).
O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado for uma extensa área, onde um considerável número de pessoas exerce a posse ininterrupta e de boa-fé por mais de 5 anos, e que lá realizaram obras e serviços de interesse social e econômico relevantes (art. 1.228, § 4º, do CC). Nesse caso, o juiz arbitrará uma justa indenização ao proprietário expropriado; pago o preço, a sentença valerá como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores (art. 1.228, § 5º, do CC). Como o dispositivo prevê uma justa indenização, a situação trata de hipótese de desapropriação e não de usucapião.
Em regra, o direito de propriedade é absoluto, devido ao seu caráter erga omnes. Porém, em certas situações, é relativizado para atender ao princípio da função social e socioambiental da propriedade, ou quando se choca contra os direitos pessoais ou constitucionais. Sobre essa questão, aponta-se o entendimento do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade, que desconstituiu uma hipoteca por violar o princípio da função social da propriedade, relativizando o direito de propriedade:
[...]. O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF/1988, art. 5.º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na própria Constituição da República. O acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente constituem elementos de realização da função social da propriedade. [...]. (STF, Tribunal Pleno, ADI 2.213-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 23.04.2004).
É um direito exclusivo, ou seja, determinada coisa não pode pertencer a mais de uma pessoa, salvo nos casos de condomínio ou copropriedade, hipótese que também não retira seu caráter de exclusividade. Isso se dá porque se presume relativamente que a propriedade é plena e exclusiva, salvo prova em contrário (art. 1.231 do CC).
É um direito perpétuo porque permanece independentemente do seu exercício, enquanto não houver causa modificativa ou extintiva de origem legal ou convencional. Em outras palavras, a propriedade não pode ser extinta pelo seu não uso, a não nos casos de usucapião.
É um direito elástico, pois a propriedade pode ser distendida ou contraída quanto ao seu exercício, conforme forem adicionados ou retirados os atributos que são descartáveis; na propriedade plena, ela se encontra em grau máximo de elasticidade (GOMES, 2006).
É um direito complexo, visto que apresenta quatro atributos associados (isto é, direito de uso, de gozo, de fruição e de reivindicação. É também um direito fundamental, protegido pelos incisos XXII e XXIII do artigo 5º da Constituição Federal; por conta disso, o direito de propriedade pode ser ponderado quando estiver em rota de colisão com os outros direitos fundamental.
PERDA DA PROPRIEDADE: DA USUCAPIÃO E DA DESAPROPRIAÇÃO
Com a finalidade de se fazer cumprir a função social da propriedade, o ordenamento jurídico civil brasileiro prevê a figura da usucapião e da desapropriação. Esses institutos jurídicos buscam conceder o direito de propriedade àqueles que utilizam propriedades ociosas para moradia e trabalho. Observa-se que a função social da propriedade está prevista no artigo 5º, incisos XXII e XXIII, e artigo 170, inciso III, da Constituição Federal, sendo reforçada pelo artigo 1.228, parágrafo 1º do Código Civil de 2002. (PENTEADO, 2008).
A usucapião especial rural não se contenta com o simples exercício da posse, é necessário que haja a fixação do homem no campo, exigindo-se que o usucapiente resida no imóvel e a torne produtiva, dando finalidade social à propriedade. Para configurar essa forma de usucapião, é necessário que o possuidor exerça a posse por 5 anos ininterruptos, sem qualquer oposição e com ânimo de dono; não seja proprietário de outro imóvel rural ou urbano; que a área ocupada não seja superior a 50 hectares; e que resida na propriedade com sua família, tornando-a produtiva, seja por meio da agricultura, da pecuária, do extrativismo ou de atividade similar (art. 191 da CF; e art. 1.239 do CC). Não qualquer previsão quanto ao justo título e à boa-fé, pois tais elementos se presumem presentes de modo absoluta, por conta da destinação que foi dada ao imóvel, atendendo à função social da propriedade. (TARTUCE, 2019).
A usucapião imobiliária administrativa é uma modalidade extrajudicial, decorrente da legitimação da posse, a ser efetivada no Cartório de Registro de Imóveis, dispensando, assim, a propositura de uma demanda judicial. O Código de Processo Civil ampliou a possibilidade da usucapião extrajudicial para todas as modalidades de usucapião imobiliária até então estudadas, desde que seguidos todos os procedimentos consagrados pelo diploma processual civil. Pode-se afirmar, portanto, que tal modalidade é uma forma ousada de concretizar a proteção constitucional da moradia e da função social da propriedade, por meio da desjudicialização dos conflitos civis. (FARIAS; ROSENVALD, 2012).
O Estatuto da Cidade também prevê possibilidade de desapropriação quando não atendido a função social da propriedade, no seguinte termo: decorridos cinco anos da cobrança do IPTU progressivo sem que o proprietário tenha cumprido a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá proceder à desapropriação do imóvel, com pagamento em título da dívida pública (art. 8º da Lei 10.257/2001). (TARTUCE, 2019).
Caso da Favela Pullman
Um dos casos emblemáticos que envolveu o conflito entre o direito de propriedade e a função social foi o caso da Favela Pullman, localizada na zona sul da cidade de São Paulo. A ocupação surgiu em um antigo loteamento, por volta de 1955, com a presença de diversos núcleos familiares. Após a efetiva instalação, em 1985, alguns proprietários dos terrenos ocupados ingressaram com ação reivindicatória, que foi julgada procedente. A sentença repeliu a alegação de usucapião e condenou os réus à desocupação, sem qualquer direito de retenção das benfeitorias feitas e devendo pagar indenização pela ocupação.
Inconformados, os ocupantes recorreram ao Tribunal de Justiça, sustentando a tese de usucapião especial ou constitucional urbana. Embora não tenha acatado a tese da usucapião, pois a ordem constitucional anterior não previa tal instituto, o relator deu provimento à apelação com base tão somente no princípio da função social da propriedade. Transcreve-se parte da emblemática decisão:
[...]. Trata-se de favela consolidada, com ocupação iniciada há cerca de 20 anos. Está dotada, pelo Poder Público, de pelo menos três equipamentos urbanos: água, iluminação pública e luz domiciliar. As fotos de fls. 1013 mostram algumas obras de alvenaria, os postes de iluminação, um pobre ateliê de costureira etc., tudo a revelar uma vida urbana estável, no seu desconforto. [...] Lá vivem muitas centenas, ou milhares, de pessoas. Só nos locais onde existiam os nove lotes reivindicados residem 30 famílias. Lá existe uma outra realidade urbana, com vida própria, com os direitos civis sendo exercitados com naturalidade. O comércio está presente, serviços são prestados, barracos são vendidos, comprados, alugados, tudo a mostrar que o primitivo loteamento hoje só tem vida no papel. [...]. Para o direito, contudo, a existência física da coisa não é o fator decisivo, consoante se verifica dos mencionados incisos I e III do art. 78 do CC. O fundamental é que a coisa seja funcionalmente dirigida a uma finalidade viável, jurídica e economicamente. [...]. O desalojamento forçado de trinta famílias, cerca de cem pessoas, todas inseridas na comunidade urbana muito maior da extensa favela, já consolidada, implica uma operação cirúrgica de natureza ético-social, sem anestesia, inteiramente incompatível com a vida e a natureza do Direito. É uma operação socialmente impossível. E o que é socialmente impossível é juridicamente impossível. [...] No caso dos autos, o direito de propriedade foi exercitado, pelos autores e por seus antecessores, de forma antissocial. O loteamento pelo menos no que diz respeito aos nove lotes reivindicados e suas imediações ficou praticamente abandonado por mais de 20 (vinte) anos; não foram implantados equipamentos urbanos; em 1973, havia árvores até nas ruas; quando da aquisição dos lotes, em 1978/9, a favela já estava consolidada. Em cidade de franca expansão populacional, com problemas gravíssimos de habitação, não se pode prestigiar tal comportamento de proprietários. (TJSP, 8ª Câmara de Direito Civil, Ap. 212.726-1/8, Rel. Des. José Osório Júnior).
Observa-se que o relator defendeu a tese de que a função social é um elemento intrínseco da propriedade. Os proprietários recorrem ao Superior Tribunal de Justiça, contudo, o acórdão foi confirmado com a mesma fundamentação.
Caso Pinheirinho
Embora o caso Pinheiro tenha semelhanças com o caso da Favela Pullman, observa-se que a dinâmica do processo e a solução dos conflitos se deu de forma totalmente diversa. A ocupação do Pinheiro se deu no ano de 2003, quando famílias passam a ocupar parte de uma propriedade abandonada, pertencente à massa falida Selecta.
Em 2004, foi proposta ação de reintegração de possa, sob argumento de esbulho possessório, cuja liminar foi deferida. Contudo, os morados do Pinheirinhos pleitearam a suspensão da liminar, que foi deferida pelo juízo cível. Contra essa decisão de suspensão, a massa falida impetra mandado de segurança, alegando violação à estabilidade da jurisdição e aos regramentos legais. Novamente foi concedida nova liminar de reintegração. Os moradores conseguiram suspender a decisão judicial com agravo de instrumento.
No julgamento de mérito da ação de reintegração de posse, que se deu em 2012, o juízo deu procedência, determinando a imediata remoção das famílias. Na época viviam cerca de duas mil famílias e cerca de nove mil pessoas, que foram responsáveis por construir casas, praças, ruas, áreas de preservação, além da existência de serviços públicos. A operação de renovação das famílias contou com poio massivo da Polícia Militar e Guarda Civil.
Segundo Jorge Souto Maior (2017), a decisão judicial que acatou o pedido de reintegração [...] pode ser considerado uma das maiores agressões aos Direitos Humanos da história recente em nosso país. Conflito foi reduzido à mera verificação de preenchimentos de requisitos legais, sem considerar a realidade dos moradores e a função da propriedade; trata-se, pois, de uma decisão individualista, com impactos sociais desumanos.
Jorge Souto Maior (2017) comenta que:
Na base jurídica do ato cometido está, dizem, o direito de propriedade. Um terreno foi invadido, obstruindo-se o direito da posse tranquila ao seu titular, e, portanto, precisa ser desocupado. Simples assim. Mas, o direito de propriedade, conforme previsto constitucionalmente, deve atender à sua função social (artigo 5º, inciso XXIII, da CF). Sem esse pressuposto nenhum direito de propriedade pode ser exercido. A Constituição, ainda, garante a todos os cidadãos, como preceito fundamental, o direito à moradia (artigo 6º, inserto no Título II, do Capítulo II, da CF). Desse ponto de vista, a ocupação, para fins de moradia, de uma terra improdutiva, abandonada, sobre a qual o proprietário não exerce o direito de posse, que não serve sequer ao lazer e que pela sua localidade e tamanho precisa, necessariamente, atender a uma finalidade social, não é mera invasão. [...] Assim, diante de uma ocupação dessa natureza compete ao proprietário, que pretenda recuperar a posse da terra, com o pressuposto que de fato a exerça, demonstrar que sua propriedade cumpre uma função social, tendo direito, inclusive, a uma decisão liminar, proferida logo no início do processo judicial, quando o esbulho tenha ocorrido a menos de um ano e um dia da propositura da ação possessória. Vale reforçar: como fundamento da ação não basta demonstrar o título de propriedade. Deve-se demonstrar a posse e provar que a propriedade cumpre uma função social. Do contrário, a ocupação representa uma desapropriação indireta do imóvel, que recupera a função social da propriedade, agindo o particular em substituição ao Estado, que se mostra inerte em duplo sentido: no aspecto da realização de políticas públicas efetivas de construção de moradias dignas para todos; e no que tange à exigência plena das finalidades sociais das propriedades privadas.
Pode-se verificar, então, que no caso da Favela Pullman prevaleceu o princípio da função social sobre o direito de propriedade. No entanto, no caso do Pinheirinho, sobressaiu o direito à propriedade sobre a função social. Neste último caso, os julgadores se limitaram a verificar o preenchimento de requisito formais atinente à usucapião, sem considerar a realidade dos moralidade e da localidade.
CONCLUSÃO
A constitucionalização dos institutos do Direito Civil, especialmente a propriedade, carretou mudanças importantes. Anteriormente, a propriedade era vista como um direito subjetivo absoluto, herança dos valores liberais; posteriormente, a propriedade passou a ser entendida como um instrumento de realização de valores fundamentais e, dessa forma, somente há tutela jurídica quando presente a função social.
Portanto, pode-se dizer que a função social se tornou peça integrante do conteúdo do direito de propriedade, tornando-o como um direito complexo, envolto de condições para os seus exercícios, que são voltadas para o interesse coletivo. Caso o proprietário não dê a sua propriedade a função social, está passível de sofrer sanções, como a perda da propriedade, seja pela usucapião ou desapropriação; e IPTU progressivo.
Como o princípio da função social da propriedade é um princípio constitucional, esse brocado ocupa um lugar de destaque na hermenêutica jurídica, sendo utilizado como balizador para resolução de conflitos jurídicos.
Pela análise dos casos, pode-se notar que o principio da função social pode entrar em rota de colisão com o princípio constitucional da propriedade. No caso da Favela Pullman, o julgador entendeu que a função social se sobressaiu ao direito de propriedade; todavia, no caso do Pinheirinho, o julgador considerou a prevalência do direito de propriedade, o que gerou impactos sociais marcantes, haja vista que milhares de famílias ocupavam a área, dando-lhe a devida função social da propriedade. Neste caso, o não preenchimento de requisitos formais da usucapião não bastaram para impedir a reintegração da posse.
REFERÊNCIAS
FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Direitos Reais. 8.ed. Salvador: JusPodivm, 2012.
GOMES, Orlando. Direitos Reais. 19.ed. Atualizador Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
JELINEK, Rochelle. O princípio da função social da propriedade e sua repercussão sobre o sistema do Código Civil. Porto Alegre: Ministério Público do Rigo Grande do Sul, 2006. Disponível em: https://www.mprs.mp.br/media/areas/urbanistico/arquivos/rochelle.pdf Acesso em: 17 dez. 2020.
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Coisas. São Paulo: Saraiva, 2015.
MAIOR, Jorge Luiz Souto. Caso Pinheirinho Direito de propriedade deve atender à função social. Consultor Jurídico, 30 jan. 2012. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-jan-30/pinheirinho-direito-propriedade-atender-funcao-social. Acesso em: 17 dez. 2020.
PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das Coisas. São Paulo: RT, 2008.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Institutos de Direito Civil. 18.ed. Atualizador Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
TARTUCE, Flávio. Direto Civil: Direito das Coisas. 11.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.