Artigo Destaque dos editores

Reflexões sobre a importância do foro por prerrogativa de função

Exibindo página 1 de 2
08/07/2022 às 11:00
Leia nesta página:

Examina-se o instituto do foro por prerrogativa de função ao redor do mundo como suporte para uma análise de sua pertinência.

RESUMO: O presente artigo analisa a importância que o foro por prerrogativa de função possui, na qualidade de instrumento garantidor de uma Justiça imparcial, independente, isenta e desprovida de interferências políticas e, igualmente célere (no que concerne no seu necessário caráter de definitividade), quando da persecução penal de autoridades. Analisa, através do estudo comparado das diversas constituições brasileiras (no tempo), bem como das constituições estrangeiras (no espaço), a complexa temática, comparando, ainda, as diferenças entre privilégios e prerrogativa funcional.

Palavras-chave: FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. FORO PRIVILEGIADO. AUTORIDADES. MAGISTRADOS. JUSTIÇA.

ABSTRACT: This article examines the importance of legal immunity functioning as an instrument to guarantee an impartial, independent, exempt, free of political interference and equally swift Justice (as far as its necessary character of permanence is concerned), when of criminal prosecution of authorities. It analyzes, through the comparative study of the various Brazilian constitutions (in time), as well as of the foreign constitutions (in space), the complex thematic, comparing the differences between "privileges" and "functional prerogatives".

Keywords: LEGAL IMMUNITY. AUTHORITIES. MAGISTRATES. JUSTICE


1. Introdução

A questão relativa ao foro por prerrogativa de função (equivocadamente chamado de foro privilegiado) precisa ser melhor refletida e, sobretudo, analisada em seu verdadeiro (e complexo) contexto.

O instituto não pode (e nem deve) ser simplesmente extinto, como apregoam os menos avisados, com base em argumentos no mínimo ingênuos e, sobretudo, desconectados com as razões últimas de sua criação, seja no Brasil, seja nos países mais democráticos do mundo. O debate sobre o fim do foro tem que, portanto, ser travado com mais seriedade, nitidez e isenção ideológica.

Nesse particular e na contramão de uma necessária e mais profunda análise sobre o tema, destaca-se a opinião de MARCELO ITAGIBA (Princípio de Igualdade; O Globo, 28/11/17, p. 15), delegado e deputado federal e autor da Proposta de Emenda Constitucional (PEC 130/2007), que defende a (simples e irrefletida) tese do (completo) fim do foro por prerrogativa de função "para toda e qualquer autoridade, incluindo Deputados, Senadores, Governadores, Promotores, Procuradores, Juízes, Desembargadores, Ministros e Presidente e Vice-Presidente da República", ao simplório argumento de que o mencionado foro, equivocadamente denominado privilegiado, "ofende o princípio da igualdade, promove o desequilíbrio da cidadania e ameaça os efeitos das ações de combate à impunidade e serve de estímulo à corrupção", acrescentando que não se pode continuar "gerando privilégios a esta parcela da população de não se submeter à mesma justiça que o cidadão comum". Em adição argumentativa, o mencionado autor adverte que "as Cortes Superiores não estão preparadas para, em tempo hábil, julgar tantos crimes e proferir as (correspondentes) sentenças com agilidade necessária para evitar que os crimes prescrevam".

Este argumento, todavia, é frágil, posto que confunde a razão fundamental da existência do instituto com a ineficiência que é, inclusive, geral do Poder Judiciário, e não apenas restrita aos Tribunais Superiores (e específica a esta questão pontual)1.

Se o problema cinge-se, em última análise, a esta ponderação (em particular), a solução natural é que se aparelhe de modo eficiente os respectivos órgãos julgadores, criando as estruturas necessárias para o cumprimento de suas respectivas competências (como, por exemplo, o estabelecimento de Varas Federais especializadas e diretamente vinculadas aos respectivos Tribunais Superiores para o processamento deste tipo de ação, dentre outras medidas relativamente simples e altamente eficazes) e não, na absoluta contramão das razões originárias da criação do instituto epigrafado, simplesmente extinguir as respectivas competências constitucionais, transferindo para as instâncias inferiores o problema da persecução penal de autoridades (independente das pessoas físicas que momentânea e legitimamente encontram-se em seus respectivos exercícios) que, em nome da própria sociedade, devem ter um tratamento diferenciado, o que, em nenhuma hipótese, pode ser considerado como uma forma injusta de se conceber "privilégios"2.


2. Sobre o Foro por Prerrogativa de Função

Oportuno registrar que, historicamente, a introdução deste (importante) instituto ocorreu (em nosso país) por força da Constituição Política do Império do Brasil (também batizada de Carta de Lei de 25 de Março de 1824), outorgada na mesma data pelo Imperador Dom Pedro I, com as seguintes previsões:

CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL DE 1824

Art. 47. É da atribuição exclusiva do Senado:

I. Conhecer dos delitos individuais, cometidos pelos Membros da Família Imperial, Ministros de Estado, Conselheiros de Estado, e Senadores; e dos delitos dos Deputados, durante o período da Legislatura.

II. Conhecer da responsabilidade dos Secretários, e Conselheiros de Estado.

Art. 99. A Pessoa do Imperador é inviolável, e Sagrada: Ele não está sujeito a responsabilidade alguma.

 Art. 163. Na Capital do Império, além da Relação, que deve existir, assim como nas demais Províncias, haverá também um Tribunal com a denominação de - Supremo Tribunal de Justiça - composto de Juízes Letrados, tirados das Relações por suas antiguidades; e serão condecorados com o Título do Conselho. Na primeira organização poderão ser empregados neste Tribunal os Ministros daqueles, que se houverem de abolir.

Art. 164. A este Tribunal Compete:

II. Conhecer dos delitos, e erros do Oficio, que cometerem os seus Ministros, os das Relações, os Empregados no Corpo Diplomático, e os Presidentes das Províncias.

Art. 179, XVII - A exceção das causas, que por sua natureza pertencem a Juízos Particulares, na conformidade das Leis, não haverá Foro Privilegiado, nem Comissões Especiais nas causas cíveis ou criminais3.

Por outro lado, também se trata de um importante instituto, como forma de prover, a todos aqueles que se encontram no respectivo exercício e legitimamente empossados em determinados cargos públicos, um julgamento mais célere em termos definitivos (posto que muitas vezes realizado em instância única, sem possibilidade de múltiplos recursos)4, além de assegurar uma necessária imparcialidade e menor (ou mesmo nula) capacidade de interferência do julgando sobre a autoridade julgadora5.

O referido instituto, ademais, possui um caráter universal, existente e previsto em praticamente todas as legislações dos países mais democráticos do mundo6.

Na França a Constituição, vigente desde 4 de Outubro de 1958, estabelece no Título X, artigo 68-1, que os membros do Governo são penalmente responsáveis pelos atos praticados no exercício da função e qualificados como crimes ou delitos no momento em que são cometidos e serão julgados pela Corte de Justiça da República. Contudo, antes do processo ser enviado à referida Corte, ele deve passar pelo crivo investigatório da Corte de Cassação, a qual decidirá se arquiva o processo ou o envia à Corte de Justiça da República. No exercício do seu mandato, o Presidente da República não está sujeito a ação, ato de instrução ou ato persecutório perante nenhuma jurisdição ou autoridade administrativa francesa.

Na Itália, por sua vez, a Constituição de 27 de Dezembro de 1947, em seu Título VI, sessão I, artigo 134, dispõe que as acusações contra o Presidente da República serão julgadas pelo Tribunal Constitucional. O referido artigo ressalta que, além dos 15 Juízes do Tribunal, 16 cidadãos escolhidos aleatoriamente, mediante alguns requisitos de elegibilidade, julgarão o Chefe do Executivo.

A mesma concepção lógico-construtiva repete-se, com coincidente frequência, em praticamente a quase totalidade das nações mais avançadas em termos político-jurídicos. Destarte, constata-se uma relativa similitude entre as mais diversas legislações, no direito comparado, com os mesmos propósitos de prover a indispensável imparcialidade, independência e impessoalidade nos julgamentos de autoridades quando no exercício de seus respectivos cargos públicos.

Vê-se, portanto, que a lógica que preside a atribuição de um foro especial por prerrogativa de função é semelhante em todos os países: o reconhecimento da especial relevância de uma função exercida por uma autoridade pública, e a designação de um órgão mais elevado na hierarquia institucional do Estado para processá-lo e julgá-lo. (NEWTON TAVARES FILHO; Foro por Prerrogativa de Função no Direito Comparado, Brasília: Câmara dos Deputados/Consultoria Legislativa, 2015, p. 11).

A título de ilustração exemplificativa, vale também mencionar que, quando Senadores da República são julgados por Ministros da Suprema Corte, - e não por Ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou Desembargadores Federais dos diversos Tribunais Regionais Federais (TRFs) -, tal fato objetiva assegurar, em última análise, que o julgador (em benefício da sociedade que clama por justiça e pela imprescindível correção e isenção dos julgamentos) não sofrerá qualquer influência no desempenho de sua função jurisdicional, especialmente para beneficiar o réu, uma vez que não depende (política ou administrativamente) do mesmo para uma série de ações, atos ou atividades e, notadamente, para uma eventual promoção na carreira (como, por exemplo, do cargo de Desembargador Federal do TRF para o de Ministro do STJ ou o de Ministro do STJ para Ministro do STF), considerando, nestas hipóteses, a imperiosa necessidade de ratificação pelo Senado Federal (e de seus respectivos membros), da indicação (para fins de promoção na carreira) feita pelo Presidente da República.

Na mesma toada, seria simplesmente esdrúxulo imaginar que um Desembargador Federal (julgador de Segundo Grau) pudesse ser julgado por um Juiz Federal (de Primeiro Grau), posto que este último é constantemente dependente de atos e decisões do primeiro para inúmeras questões administrativas, além de ser imprescindível seu voto para a eventual promoção deste último ao respectivo Tribunal. O mesmo raciocínio se replica para as demais hierarquias do Poder Judiciário, simplesmente eliminando o sagrado "manto da imparcialidade" do julgamento, uma vez que não se conseguiria assegurar uma completa (e imprescindível) ausência de influência política do julgando sobre o julgador7.

Afirma-se, outrossim, que no Brasil existem 54.990 autoridades com direito a foro (38.431 autoridades com foro fundamentado pela Constituição Federal e 16.559 pelas Constituições Estaduais), segundo estudo da Consultoria Legislativa do Senado (JOÃO TRINDADE CAVALCANTE FILHO e FREDERICO RETES LIMA; Foro, Prerrogativa e Privilégio - Parte 1: Quais e Quantas Autoridades Têm Foro no Brasil?, Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/ CONLEG/Senado, Abril/2017, Texto para Discussão nº 233). Talvez pareça um número exagerado, mas em relação ao total da população, que é superior a 200 milhões de habitantes, pode ser um número até mesmo razoável. Ademais, neste quantitativo estão incluídos foros por prerrogativa de função simplesmente inconstitucionais (e, portanto, inexistentes), uma vez que previstos, de forma afrontosa à Constituição Federal, pelas Constituições Estaduais do Rio de Janeiro, Piauí e Roraima, que ampliaram, de forma irregular, esta prerrogativa a Vice-Prefeitos e Vereadores dos respectivos Estados.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

3. A Juvenilização e a Falta de Estrutura do Poder Judiciário Brasileiro

Não obstante toda essa série de considerações (que simplesmente estão sendo ignoradas, no contexto de um debate apaixonado, acalorado e pouco refletido a respeito do tema), subsiste ainda uma questão estrutural, muito mais gravosa e que alude ao gradual e singular processo de juvenilização do Poder Judiciário brasileiro e que vem afetando, diretamente, a qualidade dos julgamentos (de modo geral) procedido pelos Juízes de Primeiro Grau, ensejada, ainda, uma preocupante insegurança jurídica.8

Ainda que, por uma sorte do destino, seja cediço reconhecer que os principais Juízes que estão à frente da Operação Lava Jato (o Juiz SÉRGIO MORO em Curitiba e o Juiz MARCELO BRETAS no Rio de Janeiro)9 serem magistrados com mais de 40 anos de idade e ostentarem mais de 15 anos na carreira (além de profissionais indiscutivelmente competentes e equilibrados), a prevalecer, como regra geral, o singelo fim do foro por prerrogativa de função, não haveria nenhum impedimento (ou restrição político normativa) para que julgamentos de grandes autoridades (em exercício de cargos de relevante importância para a sociedade) simplesmente fossem conduzidos (de forma exclusiva) por Juízes de Primeiro Grau (eventualmente) pós-adolescentes (com apenas 25 anos de idade) e com poucos meses de atividade judicante (e, por conseguinte, com uma mínima experiência profissional), na qualidade de Juízes Substitutos de Primeira Instância, uma vez que em muitos Juízos a divisão de trabalho, entre o titular e o substituto, é feita pela simples numeração par ou ímpar dos processos.

Um julgamento importante e de grande impacto social (independente de se tratar in casu de prerrogativa de função e portanto, de foro) conduzido por um Juiz com pouquíssima ou nenhuma experiência e com baixíssimo grau de maturidade (uma vez que ainda de tenra idade) poderia (invariavelmente) conduzir a um julgamento não só tecnicamente equivocado (como cada vez mais costumamos presenciar), mas particularmente julgamentos apaixonados (típicos de seres humanos que ainda não atingiram a necessária experiência de vida) e, especialmente, influenciados pela mídia e pela opinião pública10, além de, no caso específico daqueles Juízes que ainda não atingiram o tempo mínimo para obtenção da vitaliciedade, mas que, por força de lei (artigo 22, §2º, da LC-35/79), poderiam (legalmente) conduzir os julgamentos em sua completude,

Art. 22 - São vitalícios: II - após dois anos de exercício: d) os Juízes de Direito e os Juízes substitutos da Justiça dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, bem assim os Juízes Auditores da Justiça Militar dos Estados.

§ 2º - Os Juízes a que se refere o inciso Il deste artigo, mesmo que não hajam adquirido a vitaliciedade, poderão praticar todos os atos reservados por lei aos Juízes vitalícios

Nesse sentido, não faltam exemplos de julgamentos equivocados11 (a maioria dos quais com pouquíssima divulgação na mídia), com gravíssimas repercussões e danos irreparáveis, a exemplo da recente decisão que culminou na prisão de LUIZ CARLOS CANCELLIER DE OLIVO, Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Seu encarceramento e a de mais seis pessoas decorreu da operação "Ouvidos Moucos", deflagrada pela Polícia Federal em conjunto com a Controladoria Geral da União (CGU) e com o Tribunal de Contas da União (TCU) com o objetivo de investigar desvios de dinheiro de um programa de ensino à distância. No desenrolar das investigações, descobriu-se que o montante anunciado como desviado (R$80 milhões) era na realidade o valor total do programa de ensino à distância, e que o desvio real teria sido, efetivamente, de apenas 0,625% deste total, ou seja 500 mil reais. O Reitor, que não figurava entre os acusados de ter desviado o dinheiro público, mas sim de (supostamente) tentar obstruir as investigações pertinentes, acabou suicidando.

O Brasil parece caminhar a passos largos para um estado de exceção, em que prevalecerá o arbítrio, a truculência, o desrespeito aos direitos humanos. A barbárie avança a olhos vistos. [...].

Mais uma vez, assistimos ao abuso da prisão coercitiva do reitor e de professores da universidade, uma humilhação desnecessária e ilegal. Mais uma vez, integrantes do Poder Judiciário (de Primeira Instância) e da Polícia Federal se aliaram à mídia para fazer operação espalhafatosa e arbitrária de combate à corrupção. [...].

Ainda pior foi o que aconteceu há pouco tempo em Florianópolis, na Universidade Federal de Santa Catarina. Prenderam o reitor LUIZ CARLOS CANCELLIER sob a acusação de que ele estava obstruindo investigações. A mídia se encarregou de jogar o seu nome na lama, como corrupto e responsável por desvio de imensas somas. Na prisão, foi submetido a humilhações. Depois de solto, foi proibido de entrar na universidade.

O trabalho na universidade era sua vida. Poucos dias depois, o reitor CANCELLIER atirou-se do alto de um shopping em Florianópolis. No bolso, trazia o bilhete: A minha morte foi decretada quando me baniram da Universidade!!!. Poucas coisas são mais importantes no Brasil hoje do que apurar o ocorrido na Federal de Santa Catarina e punir os responsáveis pelo abuso de poder. (PAULO NOGUEIRA BATISTA JR; Barbárie, O Globo, 08/12/2017, p. 19)

Vale consignar, em necessário reforço, que o principal argumento para a eliminação ou mesmo redução (quanto à abrangência)12 do foro por prerrogativa de função repousa, acima de tudo, no despreparo (estrutural) dos tribunais (em especial, os superiores) para processar os respectivos inquéritos e demais procedimentos, particularmente em face da quantidade de ações que estão surgindo em função dos permanentes escândalos de corrupção que assolam o país.

Portanto, não parece minimamente razoável que a falta de aparelhamento (de qualquer natureza), - ou seja, o aspecto meramente instrumental -, se imponha como o fato motivador derradeiro a ensejar a eliminação deste importante instituto, quando, a toda evidência, o caminho mais lógico seria, ao reverso, a construção das estruturas necessárias para que os tribunais, com as atuais competências constitucionais, passem a ficar completamente preparados para enfrentar, com plena eficiência, o desafio deste tipo de julgamento (muito corretamente, pelas razões político-jurídicas e motivações técnico-processuais discutidas à época, previsto na Constituição, como de suas respectivas competências originárias).13


4. Conclusões

Desta feita, a questão é muito mais ampla e complexa do que pode parecer prima facie, e diz respeito, de forma diversa do senso comum, a um processo que se iniciou, notadamente, após a Constituição de 1988,14 qual seja: o da inédita juvenilização do Poder Judiciário brasileiro (caso único no mundo), a permitir que pessoas extremamente jovens (imaturas e, muitas vezes, intelectualmente despreparadas: motivo recorrente do não preenchimento das vagas oferecidas) ingressem na Justiça verde e amarelo e, imediatamente após tal ato, ainda que sem um indispensável tempo mínimo de exercício judicante, possam decidir questões de grande relevância nacional, sobretudo na Justiça Federal (que, substituindo o papel histórico das Forças Armadas, vem desempenhando o papel de Poder Moderador), desconstituindo, em certa medida, a própria credibilidade do Poder Judiciário, que se imaginava poder ser recuperada (e até mesmo ampliada) por força do próprio advento da Constituição Cidadã de 1988.

Destarte, para que se extinguisse (de modo correto e sereno) o epigrafado instituto (como muitos, sem qualquer conhecimento maior de sua natureza e finalidade, irresponsavelmente apregoam),15 teria de ocorrer, no mínimo, uma autêntica reforma (ampla e geral) no Poder Judiciário, de modo que todas as autênticas e genuínas, razões da criação do meritório instituto deixassem de existir, permitindo que as competências especiais, previstas na Constituição, fossem substituídas pela regra comum relativa aos Julgadores de Primeira Instância, dotados de absoluta (verdadeira e efetiva) independência, isenção, imparcialidade e impessoalidade.

(A proposta de redução ou mesmo de extinção do foro por prerrogativa de função é simples) populismo, posto que a Justiça Criminal (de Primeiro Grau) é uma das piores do país e não teria como julgar (parlamentares) sem sofrer interferências (políticas) (...) Para temas complexos, existe, em geral, uma resposta simples e errada. Nós estamos dando essa resposta simples e errada com a suspensão do foro. (Vale consignar) que os políticos do Rio de Janeiro, investigados no presente, não o foram no passado, por causa (sobretudo) de seu poder sobre o Judiciário no estado (...) O foro por prerrogativa de função é também garantia de não interferência (e isenção). (GILMAR MENDES; Redução do Foro por Prerrogativa de Função é Populismo, O Globo, 16/12/17, p. 5)

Para tanto, algumas providências constitucionais e infraconstitucionais se apresentariam como imprescindíveis: inicialmente seria necessário consignar expressamente, na lei de regência, uma idade mínima para os Juízes Titulares (de, pelo menos, 35 anos de idade e de 40 anos de idade para os Integrantes dos Tribunais Intermediários e Superiores); estabelecer uma vedação de Juízes Substitutos decidirem, sentenciando sem o acompanhamento direto do Juiz Titular; encerrar com a possibilidade legal de se prover promoções por merecimento (uma vez que invariavelmente contaminadas por conotações políticas), evitando, desta feita, a influência das mesmas autoridades que serão julgadas pelos Juízes nas suas respectivas promoções na carreira; acabar (definitivamente) com as nomeações de Juízes pelas autoridades do Executivo, que também seriam julgadas pelos mesmos, além de exigir que Juízes, para alcançar a titularidade de um Juízo, tivessem experiência mínima de pelo menos 10 anos na magistratura, dentre tantas outras necessárias e indispensáveis providências.

Por efeito conclusivo, devemos todos refletir, com o imprescindível equilíbrio e a inafastável serenidade, sobre a questão relativa ao foro por prerrogativa de função, sem (perigosa e negligentemente) desconsiderar a própria e inerente complexidade do tema, - e necessariamente distante do ambiente acalorado (e apaixonado) que, neste momento, marca (negativamente) toda e qualquer discussão séria a respeito do assunto, cegando a indispensável nitidez, afastando a imperiosa responsabilidade e comprometendo a lucidez intelectual -, para que qualquer decisão (final e derradeira) conduza aos almejados caminhos da paz e da verdadeira Justiça que tanto almeja (e merece) a sociedade brasileira.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É autor do livro Teoria do Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIEDE, Reis. Reflexões sobre a importância do foro por prerrogativa de função. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6946, 8 jul. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98779. Acesso em: 28 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos