Desde a criação do SINARM (Sistema Nacional de Armas), através da Lei n. 10.826/2003 foi estimulada, como parte da Campanha do Desarmamento, a criação pelos estados de uma gratificação por apreensão de arma de fogo. E foi assim que Sergipe, dois anos depois, através da Lei n. 5.659/2005, instituiu o benefício aos respectivos operadores de segurança.
Ocorre que, se bem medido e bem pesado, os policiais deveriam ficar ofendidos, já que a medida foi criada voltando-se muito mais ao combate à corrupção (especificamente para estimular que os policiais não desviassem as armas apreendidas e realmente as apreendessem) do que ao reconhecimento e valorização desses profissionais.
A lógica, em apertada síntese, é a mesma da existente na relação entre os motoristas e flanelinhas: um paga o outro achando que se não o fizer será roubado de alguma forma.
Oportunamente, cabe referir que na época o salário da PCSE ainda era um dos mais baixos do país, talvez por isso seus integrantes ficaram felizes e satisfeitos, ao invés de ofendidos, por serem institucionalmente chamados de corruptos, afinal, como bem já disse o Seu Madruga: 'quando a fome aperta, a vergonha afrouxa! Ou, como bem declarado ao portal Brasil de Fato por Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP): "uma polícia mal remunerada tende a ser mais corrupta".
E justamente por conta da referida finalidade da norma, ela acabou criando uma injustiça, uma vez que deixou de fora os policiais do cartório, não obstante ser com base no trabalho deles que os mandados de busca e apreensão acabam expedidos, bem como serem eles quem acabam fazendo os procedimentos tanto para apreensão da arma, como para oitiva de todos os envolvidos, ao mesmo tempo em que digere a raiva por serem excluídos do benefício pecuniário.
Lógico que se poderia dizer que fazer as oitivas e produzir as peças já faz parte do trabalho cartorário, porém, apreender armas, drogas e quaisquer objetos ilícitos também já faz parte do trabalho de todos os policiais e todas essas atividades já são remuneradas por meio do salário. Mas como ao chegar no cartório a arma já superou os tradicionais caminhos de extravio, não se criou qualquer bonificação para os que atuam nessa parte do serviço.
Recentemente a matéria voltou à baila em Sergipe em virtude da majoração dos valores promovido pelo governo estadual, passando para um montante entre R$ 400,00 e R$ 800,00, o que até chegou a ser comemorado por alguns, mesmo que há cerca de um ano os policiais baianos já estivessem recebendo entre R$ 1.200,00 e R$ 2.400,00 por arma apreendida.
Sem pretender prolongar a constatação óbvia de que fora mantida a discriminação dos policiais do cartório, o valor destaca o quanto Sergipe, em comparação com os outros estados, mesmo os circunvizinhos, tem apostado na política de desvalorização seus policiais (em que pesem as propagandas oficiais, mentirosas, em sentido contrário).
E antes que eventuais incautos venham dizer que a gratificação seria justa pra compensar o suposto maior risco daqueles que estão no ato da abordagem e apreensão, relembro que o objetivo da norma não é esse, mas evitar a corrupção, tanto que atividades igualmente arriscadas como a apreensão de drogas, cumprimento de mandados de prisão e resgate de reféns não são gratificadas.
No mesmo sentido, sugiro que usem esse argumento de que a atividade de rua é necessariamente mais perigosa que a cartorária diante dos parentes da escrivã Loane Maranhão Silva, assassinada no cartório da Delegacia da Mulher em Caxias/MA, em 15 de maio de 2014. Ou ainda dos familiares da escrivã Jozinei Cirqueira Carvalho, morta em 06 de setembro de 2006 dentro da Delegacia de Taguatinga/DF por uma mulher com transtorno mental. Isso sem falar na infinidade de incidentes não letais
Assim, longe de esgotar o assunto, as principais lições a serem retiradas dessa realidade são:
- As polícias ainda são tidas como corruptas e sequer se dão conta disso ou, o que seria pior, tanto não se incomodam como eventualmente festejam por isso, o que revela uma preocupante crise de identidade, uma vez que elas existem justamente para combater o crime, dentre eles a corrupção;
- Reconhecimento financeiro pode ser um eficiente instrumento de combate à corrupção, basta ver o crescimento do número de apreensão de armas de fogo na última década, o que revela outro problema, dessa vez em relação aos reais motivos que tem levado boa parte dos estados a desvalorizar seus policiais, seja suprimindo direitos, seja sucateando salários.
Referências:
CARVALHO, Igor. SP: Corrupção é o motivo para 35% das expulsões de policiais civis desde 2021. Brasil de Fato. 23.Nov.2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/11/23/sp-corrupcao-e-o-motivo-para-35-das-expulsoes-de-policiais-civis-desde-2010.
Escrivã da polícia é assassinada dentro de delegacia em Brasília. G1. 06.Set.2006. Disponível em: https://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,AA1264076-5598,00-ESCRIVA+DA+POLICIA+E+ASSASSINADA+DENTRO+DE+DELEGACIA+EM+BRASILIA.html
Escrivã é esfaqueada e morta enquanto interrogava suspeito. UOL. 15.Mai.2014. Disponível em: https://www.band.uol.com.br/noticias/brasil-urgente/videos/escriva-e-esfaqueada-e-morta-enquanto-interrogava-suspeito-15037889
SOUZA, Aldaci de. Aprovado reajuste na Gratificação Especial por Apreensão de Arma de fogo. ALESE. 28.Jun.2022. Disponível em: https://al.se.leg.br/aprovado-reajuste-na-gratificacao-especial-por-apreensao-de-arma-de-fogo/
Valor pago a policiais da Bahia por apreensão de armas aumenta de R$ 300 para R$ 1.200. Correio. 15.Out.2021. Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/valor-pago-a-policiais-da-bahia-por-apreensao-de-armas-aumenta-de-r-300-para-r-1200/