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As violações de direitos humanos na evolução política nacional e a CNV

08/10/2022 às 18:30

Resumo:


  • A violência, com graves violações dos direitos humanos, persiste em modernas sociedades ocidentais, sendo as dissensões políticas a principal causa.

  • A Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi criada para examinar violações de direitos humanos no Brasil entre 1946 e 1988, buscando promover a reconciliação nacional.

  • O estudo histórico revela que a violência, em suas diversas manifestações, esteve presente em momentos críticos da evolução política brasileira, com a CNV apontando períodos de maior ou menor percepção de violência.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Nunca morreram tantas pessoas sob a tutela do Estado como na atualidade.

RESUMO: Em que pese toda a propalada evolução humanística, a violência, tendo a perpetração de graves violações dos direitos humanos como consequência ínsita, ainda persiste em expressiva parcela das modernas sociedades ocidentais e do Brasil em particular. As dissensões políticas se constituem na principal causa de sua eclosão. Sob a perspectiva histórica, fica claro que a violência, representada por suas diversas faces, se constitui em elemento permanente ao longo da evolução política nacional. Em todas as ocasiões nas quais houve mudança de regime ou sistema político, observa-se o exacerbamento de suas manifestações. No presente estudo utilizou-se o número de ocorrências fatais como variável de comparação. Deste modo, de acordo com a variável tabulada e segundo as diversas fontes históricas, dentre elas a Comissão Nacional da Verdade (CNV), é possível mensurar ao longo da evolução política nacional os períodos nos quais houve maior ou menor percepção de violência.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos. Violência. Comissão Nacional da Verdade.


I. Introdução

Criada pela Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) tinha a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (1946 a 1988), a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional. 

São inúmeros os exemplos históricos de graves violações aos direitos humanos nas diversas nações, particularmente nos momentos de instabilidade institucional, próprios dos períodos de crise ou transição política. Isto porque é fato que nenhum país conseguiu atingir a plena e verdadeira democracia sem passar por (e suplantar) traumas. Foi assim com a Inglaterra (Revolução Gloriosa - 1688 a 1689), com a França (Revolução Francesa - 1789), bem como com os EUA (Guerra Civil - 1861 a 1865).

O Brasil não fugiu a esse padrão histórico. Sua evolução política é pontuada por tensões e conflitos políticos nos quais a violência, em suas diversas manifestações, esteve sempre presente. Neste particular, destacam-se a Independência, a consolidação do Império (em especial o Período Regencial), a consolidação da República, o período a partir da Revolução de 1930 e o denominado Regime Militar.

Desse modo, o presente artigo utilizará, dentre outros, os dados fornecidos pelo detalhado trabalho da CNV para situar as graves violações dos direitos humanos estudadas no contexto histórico brasileiro. Para cumprir este desiderato e sem a pretensão de estabelecer cognição exauriente acerca de tão complexo tema, foi eleito o fator óbito como variável básica de comparação dentre os vários parâmetros que caracterizam violações aos direitos humanos. Tal opção se justifica em vista da maior disponibilidade deste dado na literatura que dimensiona a violência ao longo da evolução política brasileira.

II. Graves Violações dos Direitos Humanos X Violência

Ratificada em 10 de dezembro de 1948 (Resolução 217 III ), em Paris, a Declaração Universal dos Direitos Humanos tem servido de base para extensa literatura e para diversos tratados acerca dos direitos humanos em diversos fóruns internacionais, com destaque para a Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização dos Estados Americanos (OEA). Este diploma, elaborado ao final da Segunda Guerra Mundial, se constitui em marco na história dos direitos humanos. De seu estudo, depreende-se que o ideal nele prescrito é bastante abrangente, cujo art. 1º define que todos os seres humanos nascem livres e iguais. Por sua vez, o art. 3º preconiza que todo indivíduo tem direito à vida, liberdade e segurança pessoal, o art. 4º dispõe que ninguém será mantido em escravatura e, por sua vez, o art. 5º determina que ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Ao todo, o documento ostenta 30 (trinta) artigos. Não há, dentre eles, nenhum que defina quais os direitos mais importantes (nem poderia, posto que são todos fundamentais), ou aqueles cuja violação seria mais gravosa.

Neste contexto, Lyra (2009) leciona:

O que, portanto, suprirá tal lacuna? A jurisprudência ou uma lei ordinária? Qual método hermenêutico é o mais adequado? Para alguns estudiosos há uma dificuldade científica e doutrinária de conceituar os Direitos Humanos. Assim, o Superior Tribunal de Justiça, no vanguardista julgamento do caso Dorothy Stang, considerou que toda a violação a um Direito Humano é grave [...], (Lex Humana, nº 2, 2009, p. 111, ISSN 2175-0947)

Como se observa, ainda hoje o conceito de graves violações de direitos humanos é regido por significativa dose de subjetividade e a própria jurisprudência ainda não se consolidou acerca do tema. Neste sentido, a própria CNV declarou:

Diante da inexistência de um rol estritamente definido de graves violações de direitos humanos em tratados ou em legislação interna, tem cabido prioritariamente aos tribunais internacionais de direitos humanos a identificação de tais violações. Como nota geral, pode-se dizer que hoje constituem graves violações de direitos humanos: detenções ilegais e arbitrarias; tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes; execuções sumarias, arbitrarias e extrajudiciais; e desaparecimentos forçados, contemplados, aqui, os casos de ocultação de cadáveres. (Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília: CNV, 2014. 38p)

Nessa conjuntura, é lícito supor que o conceito de graves violações aos direitos humanos está intimamente ligado, lato sensu, à violência envolvendo a pessoa humana. Não há ainda qualquer ditame normativo que logre impor a gradação de "grave" no tocante à violação dos direitos prescritos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ou seja, todo tipo de violência à qual esteja submetido o cidadão, independente de seu perpetrador, pode ser considerado uma "grave violação de seus direitos".

Nesse diapasão, um país violento é um país violador dos direitos humanos. Se é violador dos direitos humanos, é um grave violador. Esta equação corrobora a ideia de que toda violência deve ser evitada. Não por acaso este é um dos objetivos maiores do Estado Democrático de Direito cuja efetivação é tão almejada pelo Brasil (como expressamente prescrito no art. 1º da Constituição de 1988). Como visto, a percepção de violência envolve diversos parâmetros. Neste trabalho utilizar-se-ão as ocorrências fatais em conflitos internos como variável, por ser o mais objetivo para fins de registro e mensuração.

III. A Violência em Períodos Críticos da Evolução Política Nacional

Como já sinalizado, a evolução política brasileira apresenta diversas passagens nas quais a violência eclodiu de forma importante. Como se sabe, o processo de independência do Brasil não foi pacífico. Após o 7 de setembro de 1822, ocorreram várias manifestações em território nacional contrárias à Independência. Este movimento de resistência era composto, principalmente, por militares portugueses. Dom Pedro I precisou reagir rapidamente para não colocar em risco a recém conquistada liberdade com relação a Portugal. Seu objetivo era expulsar do país as tropas portuguesas. Foi entre os anos de 1822 e 1825 que grande parte destes conflitos pós-independência deu-se. Embora tenham ocorrido em várias regiões do território nacional, eles foram mais intensos nas províncias do Pará, Bahia, Maranhão, Cisplatina (atual Uruguai) e Piauí. (MATOS e ALBUQUERQUE, 1992)

O número de combatentes na guerra de independência brasileira foi maior do que o número de combatentes nas batalhas ocorridas nas guerras de libertação da América Espanhola, da mesma época. A soma das mortes oficialmente confirmadas com as inferidas pelas informações sobre os confrontos ocorridos (porém sem registros oficiais da época) dão a estimativa de que a guerra de independência brasileira teria custado entre 2.000 e 3.000 vidas (GOMES, 2010). Destaca-se neste contexto o trágico episódio histórico sucedido em 19 de agosto de 1823 no Pará, onde, diante da falta de cárceres, mais de duas centenas de pessoas foram presas nos porões da embarcação São José Diligente (depois "Palhaço"), ocasião em que quase todos morreram por asfixia.

Alguns relatos dão conta de que esses presos estavam muito inquietos e que os soldados ou seus superiores (nunca se soube quem foram os mandantes) jogaram cal para supostamente acalmá-los. Para o brigadeiro Moura, não houve massacre. Segundo ele, os prisioneiros tentaram sublevar-se, o que obrigou sua guarda a abrir fogo contra eles, ocasionando a morte de 12 pessoas. Depois disso, o grupo teria se aniquilado por si próprio: "Tão extraordinária foi sua desesperação e tão inaudita sua ferocidade, que depois de se esganarem alguns camaradas europeus, continuaram a mesma cena uns contra os outros, de sorte que de 256, 12 morreram de fogo, só 4 ficaram vivos e ainda um bem maltratado". Em suas palavras, foi um "horrendo espetáculo" ver "desembarcar 252 mortos", o que "deixou a todos estupefatos". (RICCI, 2009)

Seguindo a evolução política nacional, por ocasião do Período Imperial, quadra histórica na qual se afirmou definitivamente a grandeza territorial brasileira, ocorreram as denominadas "revoltas liberais", dentre as quais se destacam a Cabanagem (Grão-Pará, 1835-1840), a Sabinada (Bahia, 1837-1838) e a Farroupilha (Rio Grande do Sul, 1835-1845). O número de mortes nestes conflitos, resumidos a seguir, dá a dimensão do quadro de violência que o país vivenciava.

Quadro 1 - Número de Mortes no Período Regencial (menor dentre os encontrados nas diversas fontes)

Conflito

Número de Mortes

Fonte

Cabanagem

12.000

Pinto, 2014

Sabinada

2.000

Filho, 1938

Farroupilha

3.400

Tedesco, 2014

Mais adiante na evolução política nacional, em que pese ter sido proclamada em ambiente relativamente pacífico, a consolidação da República também se deu sob a marca da violência:

No final de novembro de 1893, uma notícia publicada pelo diário argentino La Prensa chamou a atenção do escritor americano Ambrose Bierce, correspondente em Buenos Aires do jornal Tribune de Nova York. O artigo dizia que na semana anterior setecentas pessoas haviam sido degoladas depois de um confronto na localidade de Rio Negro, a cerca de vinte quilômetros da cidade gaúcha de Bagé. Alarmado com a informação, Bierce arrumou as malas às pressas e seguiu para o Rio Grande do Sul. [...] O ritual de sangue testemunhado pelo jornalista americano ocorreu durante a chamada Revolução Federalista de 1893 no Rio Grande do Sul, na qual se estima que entre 10 mil e 12 mil pessoas perderam a vida - incluindo cerca de 2 mil vítimas de degolas coletivas. (Gomes, 2013. 357p.)

A citação acima refere-se ao conflito no qual figuravam, de um lado, os republicanos (fiéis ao presidente Floriano Peixoto e ao governante gaúcho Júlio de Castilhos) e, de outro, os rebeldes federalistas sob a chefia política de Gaspar Silveira Martins.

De fato, coube a Floriano Peixoto, o "Marechal de Ferro", talvez a figura mais autoritária da história política brasileira, conduzir o governo mais tenso e violento dos primeiros anos da República (GOMES, 2013). Chegou à condição de presidente devido à renúncia de Deodoro da Fonseca, do qual era vice-presidente. De acordo com a Constituição da época, como a vacância da presidência foi declarada antes da metade do mandato, deveria haver nova eleição. No entanto, pela interpretação de Floriano, tal não se aplicaria naquela ocasião.

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Incomodados com tal inconstitucionalidade, treze militares dentre os comandantes das Forças Armadas assinaram a exigência de novas eleições. Foram demitidos de imediato. Inconformados com a arbitrariedade, intelectuais do Rio de Janeiro promoveram uma "passeata cívica". Foram presos em meio ao estado de sítio decretado por Floriano. Como dentre os presos havia alguns deputados, o jurista Rui Barbosa impetrou habeas corpus (HC) perante o Supremo Tribunal Federal. A situação finalizou-se com um episódio que bem ilustra a violência política e a fraqueza das instituições na nascente república brasileira: enquanto o STF deliberava sobre o HC em tela, Floriano ameaçou - "Se os juízes do Tribunal concederem habeas corpus aos políticos, eu não sei quem amanhã lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão". O HC foi negado e Rui Barbosa refugiou-se na Inglaterra (GOMES, 2013).

Mais adiante, a evolução política nacional novamente experimentou a violência como solução aos impasses políticos em meio ao sistema oligárquico que caracterizava aquele período. Foi a vitória do candidato governista Júlio Prestes nas eleições, derrotando a candidatura de Getúlio Vargas, que deu início a uma nova rearticulação de forças de oposição que culminou na Revolução de 1930. Os revolucionários tinham como objetivo comum impedir a posse de Júlio Prestes e derrubar o governo de Washington Luís.

Com a ocupação de capitais estratégicas como Porto Alegre e Belo Horizonte e de diversas cidades do Nordeste, bem como com o deslocamento das forças revolucionárias gaúchas em direção a São Paulo, o presidente Washington Luís recebeu um ultimato de um grupo de oficiais-generais, liderados por Tasso Fragoso, o qual exigiu a renúncia do presidente. Diante de sua negativa, os militares determinaram sua prisão e o cerco do Palácio da Guanabara, no dia 24 de outubro. Deste modo, Washington Luís foi deposto e seu sucessor, já eleito, impedido de assumir. O governo provisório posteriormente deu posse a Getúlio Vargas (que fora derrotado nas urnas).

Suplantado o sistema oligárquico catalisador das energias políticas que conduziram Vargas ao poder, era hora da constitucionalização do país. No entanto, ao invés disto, o que se viu foi o aparelhamento do Estado pelos "tenentes". Nesta conjuntura, eclodiu a Revolução Constitucionalista de 1932. No total, foram 87 dias de combates (de 9 de julho a 4 de outubro de 1932 - sendo os últimos dois dias depois da rendição paulista), com um saldo oficial de 934 mortos, embora estimativas não oficiais reportem até 2.200 mortos, sendo que numerosas cidades do interior do estado de São Paulo sofreram danos devido aos combates (MALUF, 1986).

Ainda na Era Vargas, houve a Intentona Comunista de 1935 (na qual houve 22 mortos, segundo FILHO, 2013) e sua deposição em 1945.

A promulgação da Constituição de 1946 define o início do período histórico imposto pelo mandato que baliza a competência da CNV. Como já abordado, esta Comissão funcionou por mais de dois anos e apresentou um detalhado relatório em cuja apresentação consta o seguinte:

Instalada em maio de 2012, a Comissão Nacional da Verdade procurou cumprir, ao longo de dois anos e meio de atividade, a tarefa que lhe foi estipulada na Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011, que a instituiu. Empenhou-se, assim, em examinar e esclarecer o quadro de graves violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional. (Brasil, 2014)

Cabe registrar, por oportuno, que dentre as várias formas de graves violações dos direitos humanos cometidas no período, a CNV elencou 434 mortes.

Qualquer tipo de violação de direitos humanos é odiosa e inadmissível. Neste cenário, a fim de evitá-la, devem ser envidados todos os esforços, sendo certo que seu estudo sob uma perspectiva histórica se constitui em legítimo esforço científico neste sentido. Pois bem, sob o enfoque do necessário distanciamento histórico, da análise dos números disponíveis na literatura pertinente e daqueles trazidos à baila pelo relatório da CNV, pode-se sintetizar a violência traduzida pelo número de mortes nos períodos de turbulência da evolução política nacional no seguinte quadro:

Quadro 2 - Mortes em períodos históricos ao longo da evolução política nacional

Independência

Império (Período Regencial)

Consolidação da República

Período Vargas

1946-1988

2.000

17.400

10.000

956

434

Da observação do Quadro 2, e em homenagem aos números levantados pelo diligente trabalho da CNV, é lícito supor que o período compreendido entre os anos de 1946 a 1988 se constituiu, claramente, no menos violento da evolução política nacional.

Outra inferência possível de ser extraída seria a de que os dados mencionados, a partir do Período Regencial, indicariam uma curva decrescente na variável elencada para traduzir a violência em períodos históricos no decorrer da evolução política nacional e, portanto, uma tendência de consolidação democrática sob a ótica, ainda que restritiva, do declínio relativo às violações dos direitos humanos.

IV. A Violência dos Anos Posteriores ao Denominado Regime Militar à Atualidade

No tocante ao quadro de violência, a situação do país, posteriormente ao período do denominado Regime Militar, vem desafiando estatisticamente qualquer conclusão que se possa registrar a respeito da estabilidade democrática que se supõe (sem quaisquer elementos concretos de análise científica neutra) ter sido atingido no Brasil.

Muito pelo contrário, os dados estatísticos (que merecem um estudo sério e completamente descontaminado de colorações ideológicas) e os próprios fatos expostos pelos meios de comunicação dão conta de que o período atual (de suposta natureza democrática), bem como o pretérito recente (a partir de 1985), desmente não só a ingênua suposição quanto à existência de uma tendência decrescente da violência perpetrada direta ou indiretamente pelo Estado (incluindo ações próprias ou o comportamento complacente das autoridades públicas), como ainda indica inexoravelmente o incremento não somente da violência, mas de práticas de tortura que, como em qualquer período histórico, são sempre negadas com base nos mais variados argumentos.

Registre-se, a esse respeito, que a contínua perseguição de minorias como os negros, homossexuais e indígenas (além da manutenção do preconceito de gênero) continua pesando negativamente nas estatísticas do país. No que se refere aos pejorativamente denominados gays, o Escritório Nacional de Direitos Humanos recebeu mais de 3.000 (três mil) denúncias de violência em 2012, o que representou um crescimento de 166% em relação a 2011 e, ainda, segundo relatórios do Grupo Gay da Bahia (GGB), mais de 600 homossexuais foram assassinados nos últimos dois anos. Por outro prisma, é cediço reconhecer que as violentas ações de intolerância religiosa, vis-à-vis com a escandalosa omissão das autoridades, também se somam a desafiar a frágil qualificação "democrática" do atual Estado de Direito brasileiro.

De extrema gravidade são também as constatações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no que concerne a situação das instituições prisionais brasileiras, que permitem a absoluta e recorrente degradação da dignidade humana. Tal como no passado, agentes do Estado oficial ignoram os mais elementares direitos constitucionais expressos e legitimamente assegurados para todo o povo brasileiro. Estes, quer por atos comissivos, quer por simples omissões, perpetram as mais bárbaras ações, conforme constatou o CNJ: pessoas que, após simples interrogatório, encontram-se ilegalmente presas por mais de seis anos, muitas algemadas por mais de 30 (trinta) dias nos corredores das cadeias, sem banho ou visitas e, pasmem, defecando sobre seus próprios pés.

Na era da consagração dos direitos humanos, essa realidade se configura como paradoxal, não parecendo, de fato, diversa das encontradas nas masmorras medievais e nas fortalezas construídas no início do século XIX, em que muros, células, ferrolhos e castigos visavam modelar os indivíduos desviantes das normas e condutas, muitos destes encarcerados pelo simples fato de serem diferentes. A população adulta em prisões já passa há muito de meio milhão de pessoas.

O Relatório Mundial de Direitos Humanos, edição de 2014, elaborado pela ONG Human Rights Watch apresenta os desafios que o país ainda precisa enfrentar como a violência policial, o uso da tortura e a superlotação das prisões. Além do número excedente de presos por espaço e das más condições das cadeias, a tortura - não a pretérita, mas a presente nos dias atuais -, foi classificada pela referida ONG como um problema crônico nas delegacias de polícia e nas prisões brasileiras. As práticas abusivas de policiais, iguais às perpetradas, com a repulsiva tolerância do Estado, por parte de muitos chefes de facções, são motivos de preocupação da instituição, porque tanto os agentes da lei que cometem abusos contra os presos como os agentes do denominado Estado Paralelo raramente respondem judicialmente pelos crimes.

Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública também mostram que 1.890 pessoas morreram em operações policiais no Brasil em 2012, uma média de cinco pessoas por dia. Enquanto nas cidades a preocupação é com a ação das polícias e dos denominados "milicianos", no campo, os conflitos de terra levam a uma verdadeira batalha entre ativistas rurais, indígenas e donos de terra. Consoante informações da Comissão Pastoral da Terra, em 2012, 36 pessoas envolvidas em conflitos de terra foram mortas e 77 foram vítimas de tentativa de homicídio em todo o país. Segundo Carazzai e Campanha, só em 2013 foram levantados 218 homicídios nas prisões brasileiras.

Insta salientar que somente entre 2009 e 2011, o CNJ registrou a existência de 180 cadáveres cujas mortes simplesmente "não possuem causa", o que, estatisticamente, é um número proporcionalmente muito superior - e verdadeiramente estarrecedor - em relação aos mortos e desaparecidos em torturas durante os 20 anos de vigência do chamado Regime Militar, e, o que é mais grave, estão ocorrendo no presente, não representando meras ilações históricas. Na verdade, é possível inferir-se que ao longo da evolução política nacional, nunca pereceram tantas pessoas sob a tutela do Estado como na atualidade.

V. Conclusão

Em que pese toda a propalada evolução humanística, a violência, tendo a perpetração de graves violações dos direitos humanos como consequência ínsita, ainda persiste em expressiva parcela das modernas sociedades ocidentais em geral e do Brasil em particular. Ainda hoje, as dissensões políticas se constituem na principal causa de sua eclosão.

Historicamente, a guisa de imposição ou de manutenção de nova ordem política, agentes estatais participaram da administração da violência exacerbada redundante em algum dos diversos parâmetros de graves violações dos direitos humanos. A célebre frase de Ernesto Che Guevara proferida na Assembleia Geral da ONU em 11 de dezembro de 1964 bem ilustra esta conjuntura: "fuzilamos e seguiremos fuzilando sempre que necessário; nossa luta é uma luta à morte".

Já no contexto brasileiro, sob a perspectiva histórica, fica claro que a violência, representada por suas diversas faces, em especial as graves violações dos direitos humanos, se constitui em elemento permanente ao longo da evolução política nacional. Em todas as ocasiões nas quais houve mudança de regime ou sistema político, se observou o exacerbamento de suas manifestações. No presente estudo, ante a objetividade do registro e da facilidade de acesso aos dados históricos, utilizou-se o número de ocorrências fatais como variável de comparação. Por óbvio, a vida humana, a dor da perda de um ente querido, as mazelas da violência sofrida, a angustia do ideal frustrado e o sofrimento que permanece na memória não são passíveis de serem reduzidos a números. A violação da dignidade humana, qualquer que seja, já é indesculpável. No entanto, o entendimento histórico, com o distanciamento que a ciência exige, só é possível pela mensuração numérica. Sob esta ótica, a CNV ajuda a provar que o período do denominado Regime Militar foi o menos violento da evolução política nacional.

É bem verdade que as ocorrências de óbitos por questões políticas apresentam um decréscimo ao longo da história brasileira, indicando menos mortes por ação estatal direta. No entanto, o número de mortes por omissão do Estado, que em nada exime sua responsabilidade, apresenta um aumento alarmante a partir do início do presente século. Deste modo, é possível afirmar-se que nunca morreram tantas pessoas sob a tutela do Estado como na atualidade.

Nesse cenário, enquanto se consomem elevados recursos, tempo e mobilizações nos âmbitos federal, estadual e municipal para investigar, e criminalizar, as graves violações de direitos humanos ocorridas há quase meio século e, portanto, pertinentes ao âmbito exclusivamente histórico, muito mais graves (até porque atuais) violações de direitos humanos continuam a ser, sistematicamente, perpetradas no Brasil, nos mais variados setores da sociedade civil.

No tocante ao período histórico coberto pela CNV, frise-se: não se está questionando a necessidade e a oportunidade de esclarecer a verdadeira - e, portanto, isenta - história dos horrores perpetrados tanto pela direita radical torturadora como pela esquerda radical terrorista; o problema verificado é que a busca por esta verdade ocorreu por meio de uma apuração visivelmente contaminada ideologicamente. Ora, se não traz a verdade imparcial - que poderia contribuir para o respeito aos direitos humanos pelas gerações atual e futuras -, esta busca representa um gasto desnecessário do erário público, dinheiro este que poderia estar sendo direcionado para o combate às correntes violações aqui mencionadas.

Dessa feita, assim como não se pode deixar de reconhecer a importância do Governo Geisel para a abertura política, do Governo Figueiredo para a consolidação desta mesma distensão político-ideológica, do Governo Sarney para a efetivação da democracia política, do Governo Fernando Henrique Cardoso para a estabilidade econômica e do Governo Lula para a inclusão social, já é passada a hora de estabelecer-se um governo dos direitos humanos.

Portanto, resta urgente que providências efetivas sejam tomadas, notadamente pelo Executivo, sendo certo que é hora de nossos estudiosos acerca da temática dos direitos humanos deslocarem a lanterna da popa, redirecionando-a para a proa do navio, escrevendo o seu importante legado na área de direitos humanos para as atuais e futuras gerações, que clamam por um Brasil mais digno e humano, sem deixar de buscar a verdade histórica, e não apenas uma versão unilateral da história.


Referências Bibliográficas

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Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É autor do livro Teoria do Direito.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIEDE, Reis. As violações de direitos humanos na evolução política nacional e a CNV. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7038, 8 out. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99753. Acesso em: 30 dez. 2024.

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