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Lei Maria da Penha: mais uma marca do neoconstitucionalismo

Lei Maria da Penha: mais uma marca do neoconstitucionalismo

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RESUMO:

O presente artigo tem como objetivo tecer breves comentários sobre o espraiamento do movimento neoconstitucionalista no ordenamento jurídico brasileiro, especificamente no âmbito do direito criminal, através da festejada Lei Maria da Penha. Analisa-se, portanto, alguns aspectos do crime de lesão corporal leve praticado no âmbito familiar contra a mulher e as condições para a respectiva persecução penal. Para tanto, busca-se o desenvolvimento de uma abordagem crítica e didática do tema, inclusive com base em recentes julgados do Superior Tribunal de Justiça e em conceitos jurídicos destacados do direito posto.

PALAVRAS-CHAVE: Lei Maria da Penha (L. 11.340/2006). Neoconstitucionalismo. Violência doméstica. Mulher. Persecução Penal.

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. CONSTITUCIONALISMO – UM BREVE HISTÓRICO. 3. AÇÃO PENAL. 4. HISTÓRICO DO CRIME DE LESÃO CORPORAL LEVE. 5. UMA REFLEXÃO SISTEMÁTICA. 6. CONCLUSÃO. 7. REFERÊNCIAS.


1. INTRODUÇÃO

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, conforme decisão proferida no HC 106.805-MS [01], reiterou que, "em se tratando de lesões corporais leves e culposas praticadas no âmbito familiar contra a mulher, a ação é, necessariamente, pública incondicionada." Com base na CRFB/1988 e em dispositivos da festejada Leia Maria da Penha, restou interpretada a desnecessidade de representação da vítima (condição de procedibilidade) para a propositura da respectiva ação penal pelo Ministério Público.

Com esse entendimento, O Tribunal da Cidadania demonstra, mais uma vez, a consolidação do movimento neoconstitucionalista no Brasil, através do qual, busca-se, principalmente, a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana e dos demais direitos fundamentais, inerentes a todos os seres humanos.


2. CONSTITUCIONALISMO – UM BREVE HISTÓRICO

Movimento político-jurídico que surgiu com o escopo de limitar o poder dos governantes, promover a separação dos poderes e concretizar os direitos fundamentais, o constitucionalismo, ainda que de forma acanhada, surgiu nos tempos antigos. O Estado Hebreu, por exemplo, era marcado por sua característica teocrática, no qual dogmas sagrados eram limitadores de atos governamentais. Na Grécia (Cidades-Estados gregas) pode-se notar as evidências desse movimento, tendo em vista sua democracia direta, que demonstrava ser, no dizer de Karl Loewenstein, "o único exemplo conhecido de sistema político com plena identidade entre governantes e governados, no qual o poder político está igualmente distribuído entre todos os cidadãos ativos" [02]. Destaca-se, também, a Roma Antiga, na qual, segundo Ihering [03], a ideia de liberdade era fundamental, concebida de forma bastante correta e digna, através do direito romano. Ainda, com a evolução do tempo, o constitucionalismo é evidenciado na Inglaterra (Idade Média), onde surgiu a expressão Rule of Law (Governo das Leis), em substituição ao Governo dos Homens. Esse movimento foi marcado pelo ideal de limitação do poder arbitrário e pela igualdade dos cidadãos ingleses perante a lei.

Ultrapassada a fase antiga, surge o constitucionalismo clássico (liberal), marcado por revoluções (francesa e norte-americana), o qual tinha seu fundamento axiológico no liberalismo – liberdade através de uma limitação do poder do Estado. Nesta fase, surgiram dois grandes marcos históricos e formais, que foram as constituições escritas: norte-americana (1787) e francesa (1791), tendo esta última como seu preâmbulo a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). A separação de poderes, a garantia de direitos, a ideia de supremacia constitucional e a garantia jurisdicional desta supremacia (pelo poder Judiciário) são as principais contribuições desse importante período histórico.

"A concepção liberal (de valorização do indivíduo e afastamento do Estado), gerará concentração de renda e exclusão social" [04], tornando necessária a intervenção estatal para promover a garantia dos direitos sociais, os quais são pressupostos para o exercício da liberdade. Surgiu, então, o constitucionalismo social e o Estado Social de Direito, marcado pelas Constituições do México (1917) e de Weimar (1919).

O que se denomina, hoje, de neoconstitucionalismo, ou pós-positivismo, ou constitucionalismo pós-moderno, teve como marco histórico o fim da II Guerra Mundial. Diante da dramática experiência vivida em razão do Estado Nazista, que era fundamentado em legalidade, constatou-se que o positivismo (legalismo estrito) poderia referendar a barbárie e a arbitrariedade. Isto porque a Alemanha Nazista tinha as leis mais "avançadas" do mundo em experiências científicas com seres humanos. Leis estas que só eram aplicadas com a anuência das pessoas envolvidas, exceto dos judeus, ciganos e outras minorias, que eram considerados seres inferiores. Consequentemente, eles eram submetidos a terríveis experimentos. Diante desses fatos, foi introduzido nas constituições (rematerialização), expressamente, o princípio da dignidade da pessoa humana, com o escopo de garantir condições dignas mínimas a todas as pessoas. Houve, também, o desenvolvimento da supremacia da constituição, da sua força normativa (Konrad Hesse [05]) e da expansão da sua jurisdição. Tudo diante de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Os princípios constitucionais, que antes eram vistos como conselhos ou diretrizes, passaram a ter força normativa. Destacam-se, no que concerne a essa fase, as constituições do pós-guerra, tais como A lei Fundamental de Bonn (Alemanha – 1949), da Itália (1947), de Portugal (1976), da Espanha (1978), juntamente com a Constituição da República Federativa do Brasil (1988) e os tratados internacionais de direitos humanos. Todos focalizando o pensamento do Estado Democrático de Direito.

Segundo o jurista Luís Roberto Barroso:

[…] a constitucionalização do Direito importa na irradiação dos valores abrigados nos princípios e regras da Constituição por todo o ordenamento jurídico, notadamente por via da jurisdição constitucional, em seus diferentes níveis. Dela resulta a aplicabilidade direta da Constituição a diversas situações, a inconstitucionalidade das normas incompatíveis com a Carta Constitucional e, sobretudo, a interpretação das normas infraconstitucionais conforme a Constituição, circunstância que irá conformar-lhes o sentido e o alcance. A constitucionalização, o aumento da demanda por justiça por parte da sociedade brasileira e a ascensão institucional do Poder Judiciário provocaram, no Brasil, uma intensa judicialização das relações políticas e sociais. [06]

Diante desse breve histórico do constitucionalismo, e como exemplo emblemático do hodierno momento neoconstitucionalista experimentado no Brasil, cita-se trecho de recente decisão proferida pela Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça:

A CF/1988, de índole pós-positivista e fundamento de todo ordenamento jurídico, expressa como vontade popular que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos estados, municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana como instrumento realizador de seu ideário de construção de uma sociedade justa e solidária. [07]

Nesse contexto, passa-se a refletir, mais especificamente, sobre o tema objeto do presente estudo.


3. AÇÃO PENAL

Mister é, para um didático comentário do assunto, tecer algumas linhas sobre a ação penal.

Na lição do professor Fernando da Costa Tourinho Filho:

Ação, tanto no campo cível como no penal, é o direito de invocar a prestação jurisdicional. O que distingue uma da outra é a pretensão que lhes serve de conteúdo. Podemos, assim, definir a ação penal como sendo o direito de pedir ao Estado-Juiz a aplicação do Direito Penal objetivo. Ou o direito de pedir ao Estado-Juiz uma decisão sobre um fato penalmente relevante. [08]

Assim, compreende-se ação como o direito público, subjetivo, autônomo e abstrato de o indivíduo pleitear a concessão da prestação jurisdicional, buscando a solução de um conflito de interesses já existente. A ação penal, especificamente, é o direito público, subjetivo, autônomo e abstrato do Estado-administração pleitear a tutela jurisdicional ao Estado-juiz, com o objetivo de concretizar o direito de punir, do qual aquele é o único titular.

Nessa senda, Guilherme de Souza Nucci traz o conceito de ação penal:

É o direito do Estado-acusação ou da vítima de ingressar em juízo, solicitando a prestação jurisdicional, representada pela aplicação das normas de direito penal ao caso concreto. Através da ação, tendo em vista a existência de uma infração penal precedente, o Estado consegue realizar a sua pretensão de punir o infrator. [09]

Considerando-se o sujeito que a promove, a ação penal se classifica em pública e de iniciativa privada. Esta última evidencia-se pelo fato de a lei, em alguns casos, conferir ao indivíduo o direito de ajuizar ação. Existem situações nas quais é preciso se considerar interesses relevantes e que, também, devem ser protegidos pelo ordenamento jurídico. Isso se consubstancia em proteger a vítima de maiores danos causados pela divulgação do fato. É o denominado strepitus iudicii (escândalo provocado pelo ajuizamento da ação penal). Nestes casos, resta à vítima decidir sobre o ajuizamento da ação penal, cabendo à ela ponderar sobre possíveis novos danos a si provocados.

A ação penal pública pode ser incondicionada ou condicionada.

A ação penal pública incondicionada é aquela que Ministério Público não está sujeito ao implemento de qualquer condição para a sua propositura (é a regra, ressalvadas as exceções legais). Destarte, como explana o mestre Tourinho Filho, "É irrelevante, para a sua promoção, a vontade contrária do ofendido" [10], sendo suficiente que estejam presentes as condições da ação penal e os pressupostos processuais correspondentes.

No que concerne à ação pública condicionada à representação, o Ministério Público fica sujeito ao implemento de condição (representação do ofendido, ou de quem legalmente o represente, ou requisição do Ministro da Justiça). Nesse horizonte, verifica-se como fundamento a divisão que se faz dos crimes, para condicionar a propositura da ação à manifestação de vontade da vítima. Ou seja, há crimes que atingem intensamente o interesse geral (ação penal pública incondicionada), outros que afetam em primeiro plano o interesse do particular e, secundariamente, o interesse geral (ação penal pública condicionada). Há, outrossim, aqueles crimes que atingem profundamente o interesse particular, nos quais o Estado transfere o direito de acusação ao ofendido (ação de iniciativa privada).

Nesse diapasão, Eugênio Pacelli de Oliveira afirma:

Conquanto a regra relativamente à legitimação para a persecução processual penal evidencie o interesse público de toda a comunidade na repressão da atividade criminosa, daí se atribuir ao Estado tal função, há casos em que outra ordem de interesses, igualmente relevantes, devem ser tutelados pelo ordenamento processual. Trata-se da proteção da vítima de determinados crimes contra os deletérios efeitos que, eventualmente, podem vir a ser causados pela divulgação pública do fato. Por isso, em razão do que a doutrina convencionou chamar de strepitus iudicii (escândalo provocado pelo ajuizamento da ação penal), reserva-se a ela o juízo de oportunidade e conveniência da instauração da ação penal, com o objetivo de evitar a produção de novos danos em seu patrimônio moral, social, psicológico etc., diante de possível repercussão negativa trazida pelo conhecimento generalizado do fato criminoso. (...) Tal medida de discricionariedade consiste no condicionamento da instauração da ação penal à manifestação explícita do ofendido, no sentido de autorizar a persecução estatal, revelando, de modo inequívoco, o seu interesse em ver apurado o fato contra ele praticado. [11]

Portanto, tendo em vista que a legitimação relativa à instauração da ação penal está umbilicalmente ligada à ordem de interesses que se busca tutelar, uma perspectiva acertada do tema passa pela necessidade de observação nas alterações dessa ordem.


4. HISTÓRICO DO CRIME DE LESÃO CORPORAL LEVE

Antes do surgimento da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), os crimes de lesão corporal leve eram perseguidos através de ação pública incondicionada. Ou seja, bastava a ocorrência do ilícito penal para motivar a instauração do inquérito policial e a respectiva ação. Com o advento da citada lei, especificamente do seu artigo 88 –"Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas", os crimes de lesão corporal leve passaram a ser condicionados à representação, ou seja, a sua persecução, desde então, deveria ser efetivada através de ação penal pública condicionada. Surgiu, então, à respectiva persecução penal, uma condição de procedibilidade [12], tendo em vista questões de política criminal afetas à época.

No tocante aos processos penais em andamento naquele tempo, relativos ao crime citado, foi imposta, consequentemente, uma condição de prosseguibilidade, que nada mais é do que uma condição para que o feito tenha continuidade. Sem dúvida, esta é uma aplicação evidente do princípio da retroatividade da lei mais benéfica ao réu, visto que a necessidade de representação, por si só, cria mais uma barreira garantista, dificultando a possível condenação.

Em junho de 2004, a Lei 10.886 foi publicada, criando a figura da lesão corporal leve qualificada [13], quando for o delito cometido "contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade". A pena cominada foi de 6 meses a 1 ano de detenção. Portanto, infração penal de menor potencial ofensivo.

Nessas circunstâncias, surgiu a Lei 11.340/06 – Lei Maria da Penha, trazendo inovações peculiares sobre o tema. O seu artigo 41 – "Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995"–, em consonância com o escopo constitucional de proteção à família, afasta, de forma expressa, a aplicação da Lei 9.099/95 nos casos de violência doméstica contra a mulher. Por conseguinte, não dependerá de representação da vítima para que o Ministério Público ajuíze a respectiva ação penal.

Importante ressaltar que, outrossim, aniquilando qualquer resistência de dúvida ou contrariedade, a referida lei, através do seu artigo 44, enseja nova redação ao § 9o do artigo 129, do Código Penal, determinando a pena máxima de três anos ao crime de lesão corporal qualificado pela prática no âmbito familiar. Dessa forma, afasta, inquestionavelmente, o exercício do procedimento dos juizados especiais nestes casos, tornando desnecessária, portanto, a condição de representação da vítima. Assim, os institutos despenalizadores e as medidas mais benéficas, com previsão na Lei dos Juizados Especiais, não se aplicam às situações de violência doméstica.

Nesse sentido, decisão recente da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça:

LEI MARIA DA PENHA. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA: A turma, por maioria, denegou a ordem, reafirmando que, em se tratando de lesões corporais leves e culposas praticadas no âmbito familiar contra a mulher, a ação é, necessariamente, pública incondicionada. Explicou a Min. Relatora que, em nome da proteção à família, preconizada pela CF/1988, e frente ao disposto no art. 41 da Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), que afasta expressamente a aplicação da Lei n. 9.099/1995, os institutos despenalizadores e as medidas mais benéficas previstos nesta última lei não se aplicam aos casos de violência doméstica e independem de representação da vítima para a propositura da ação penal pelo MP nos casos de lesão corporal leve ou culposa. Ademais, a nova redação do § 9o do art. 129 do CP, feita pelo art. 44 da Lei n. 11.340/2006, impondo a pena máxima de três anos à lesão corporal qualificada praticada no âmbito familiar, proíbe a utilização do procedimento dos juizados especiais e, por mais um motivo, afasta a exigência de representação da vítima. Conclui que, nessas condições de procedibilidade da ação, compete ao MP, titular da ação penal, promovê-la. Sendo assim, despicienda, também, qualquer discussão da necessidade de designação de audiência para ratificação da representação, conforme pleiteava o paciente. Precedentes citados: HC 84.831-RJ, Dje 5/5/2008, e Resp 1.000.222-DF, Dje 24/11/2008. HC 106.805-MS, Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ-MG), julgado em 3/2/2009. [14]

Esse entendimento, segundo o próprio Superior Tribunal de Justiça, não invalida ou contradiz o quanto disposto no artigo 16, da Lei Maria da Penha, posto que o mesmo continua em vigor, porém tão somente para outros crimes que não o de lesão corporal leve, consoante se extrai da intelecção da decisão seguinte:

LEI MARIA DA PENHA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA: Trata-se de habeas corpus impetrado contra acórdão que deu provimento ao recurso em sentido estrito interposto pelo MP, determinando que a denúncia, anteriormente rejeitada pelo juiz de 1º grau, fosse recebida contra o paciente pela conduta de lesões corporais leves contra sua companheira, mesmo tendo ela se negado a representá-lo em audiência especialmente designada para tal finalidade, na presença do juiz, do representante do Parquet e de seu advogado. Com isso, a discussão foi no sentido de definir qual a espécie de ação penal (pública incondicionada ou pública condicionada à representação) deverá ser manejada no caso de crime de lesão corporal leve qualificada, relacionada à violência doméstica, após o advento da Lei n. 11.340/2006. A Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, denegou a ordem, por entender que se trata de ação penal pública incondicionada, com apoio nos seguintes argumentos, dentre outros: 1) o art. 88 da Lei n. 9.099/1995 foi derrogado em relação à Lei Maria da Penha, em razão de o art. 41 deste diploma legal ter expressamente afastado a aplicação, por inteiro, daquela lei ao tipo descrito no art. 129, § 9º, CP; 2) isso se deve ao fato de que as referidas leis possuem escopos diametralmente opostos. Enquanto a Lei dos Juizados Especiais busca evitar o início do processo penal, que poderá culminar em imposição de sanção ao agente, a Lei Maria da Penha procura punir com maior rigor o agressor que age às escondidas nos lares, pondo em risco a saúde de sua família; 3) a Lei n. 11.340/2006 procurou criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres nos termos do § 8º do art. 226 e art. 227, ambos da CF/1988, daí não se poder falar em representação quando a lesão corporal culposa ou dolosa simples atingir a mulher, em casos de violência doméstica, familiar ou íntima; 4) ademais, até a nova redação do § 9º do art. 129 do CP, dada pelo art. 44 da Lei n. 11.340/2006, impondo pena máxima de três anos à lesão corporal leve qualificada praticada no âmbito familiar, corrobora a proibição da utilização do procedimento dos Juizados Especiais, afastando assim a exigência de representação da vítima. Ressalte-se que a divergência entendeu que a mesma Lei n. 11.340/2006, nos termos do art. 16, admite representação, bem como sua renúncia perante o juiz, em audiência especialmente designada para esse fim, antes do recebimento da denúncia, ouvido o Ministério Público. HC 96.992-DF, Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ-MG), julgado em 12/8/2008. [15]

Visto restar claro que, em se tratando de lesões corporais leves e culposas praticadas no âmbito familiar contra a mulher, a ação é, necessariamente, pública incondicionada, uma reflexão sistemática sobre o assunto é didaticamente pertinente.


5. UMA REFLEXÃO SISTEMÁTICA

A CRFB/1988 e alguns tratados internacionais vigentes, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica –, sob a regência do neoconstitucionalismo, têm sido influência direta e cada vez mais eficaz para as garantias dos direitos fundamentais, inclusive na influência de elaboração de novas leis.

Tais repercussões não poderiam deixar de alcançar a família – estrutura basilar de toda sociedade –, mormente no que tange à mulher, parte essencial para o seu equilíbrio e saudável manutenção.

Nas palavras do professor José Afonso da Silva:

A família é afirmada como a base da sociedade e tem especial proteção do Estado, mediante assistência na pessoa de cada um dos que a integram e criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. [16]

A lei Maria da Penha (L. 11.340/2006) foi gerada em momento histórico de consolidada presença e forte influência do neoconstitucionalismo. Tendo como bojo axiológico a concretização dos direitos e garantias fundamentais – exercida pela efetiva limitação do poder estatal, pela força normativa da constituição (e de seus princípios), e pela expansão da jurisdição constitucional –, esse movimento político-jurídico evidencia a dignidade da pessoa humana como interesse primário e imediato da sociedade.

O resguardo desses princípios revela-se de essencial existência, precipuamente, no seio familiar, base de toda sociedade. Nesse sentido, a Ministra Jane Silva, da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em seu voto de relatora no HC 96.992-DF, no que tange à Lei Maria da Penha, comenta:

[…] A intensão do legislador ao criar a nova figura típica, na realidade uma nova modalidade de lesão corporal leve qualificada, tendo em vista o novo montante de pena estabelecido, foi atingir os variados e, infelizmente, numerosos casos de lesões corporais praticados no recanto do lar, local em que deveria imperar a paz e convivência harmoniosa entre seus membros e, jamais, a agressão desenfreada que muitas vezes se apresenta, pondo em risco a estrutura familiar, base da sociedade. [...] [17]

A Lei Maria da Penha nasce com as características da "mãe" que a gerou, qual seja, a ordem jurídica posta, marcada pela neoconstitucionalização do direito. Como já explicitado, a ação penal correspondente ao crime de lesão corporal leve e culposa, com o advento da Lei 9.099/95, passou a ser condicionada à representação da vítima. Ou seja, prevalecia o interesse individual. Mesmo que a sociedade considerasse repugnante esse crime, praticado contra a mulher em âmbito doméstico, nada o Estado podia fazer sem o consentimento (representação) da ofendida, visto que não tinha legitimidade para iniciar tal procedimento (condição de procedibilidade).

Então, a necessidade de representação da vítima, à luz do neoconstitucionalismo, configurou-se como uma barreira procedimental para a concretização de um direito fundamental, qual seja, a dignidade da pessoa humana. Destaca-se que a guarda desse princípio é de interesse de todos, pois sua garantia, seja em âmbito individual ou coletivo, visa a assegurar um convívio hígido e harmônico na sociedade. Impedir o Estado de agir, condicionando-o através da "representação", enseja impunidade e insegurança jurídica, visto que as mulheres vítimas de agressões no âmbito doméstico têm medo de denunciar. E, com isso, a sociedade não presencia o jus puniendi como forma de coibir a proliferação desse crime.

Há, portanto, uma mudança na ordem de interesses. O que era de interesse essencialmente particular e individual, passa a ser geral e coletivo, principalmente para fazer valer os princípios constitucionais, que deixaram de ser apenas diretrizes, adquirindo, dessarte, força normativa.

Corroborando com esse entendimento, o Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Paulo Gallotti, em seu voto no HC 96.992-DF, discorre:

[...]E sob um enfoque sociológico, é inegável reconhecer que grande parte das mulheres vítimas de violência doméstica, especialmente aquelas de classes econômicas menos favorecidas, quando levam seus casos ao conhecimento das chamadas "autoridades", acabam por ser coagidas a se retratar, sofrendo intimidação de todos os tipos por parte dos infratores, inclusive físicas, morais, psicológicas, financeiras etc. Casos há, por certo, em que as mulheres retratam-se por livre e espontânea vontade, dada a reconciliação da família. Mas no confronto entre os dois cenários, deve prevalecer o que melhor atenda ao interesse social, isto é, que efetivamente contribua para a preservação da integridade física da mulher, historicamente vítima de violência doméstica e tida como elo mais fraco na relação conjugal e familiar. Esse, aliás, o motivo que levou à criação da legislação de proteção, considerada uma importante conquista dos direitos humanos das mulheres, amparada no art. 226, § 8, da Constituição Federal, na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e em outros tratados internacionais.

O princípio da intervenção mínima deve ser observado em situações de normalidade. Situações extremas exigem medidas rigorosas e maior intervenção estatal. Se o quadro fático é de alto índice de violência contra a mulher no âmbito familiar, sem que ela, sozinha, consiga enfrentá-la, cabe ao Estado desenvolver políticas que visem a garantir os seus direitos, o que certamente se teve em vista com a edição do diploma em exame. O argumento de que não se deve retirar da mulher o poder de decisão sobre a situação de violência em sua família, com todo o respeito aos que pensam de modo diverso, termina por não solucionar o grave problema, mantendo a possibilidade de serem vítimas de inaceitável coação na busca de impunidade, circunstância que acaba por estimular a reiteração criminosa. Se for possível restabelecer a paz no âmbito familiar, melhor, e que isso realmente se concretize. Mas o agressor deve estar consciente de que responderá a um processo criminal e será punido se reconhecida sua culpabilidade. [18]

A segurança jurídica é fundamental para manter a higidez do Estado Democrático de Direito. Ela se caracteriza pela celeridade e previsibilidade, ou seja, os indivíduos que fazem parte da sociedade precisam de uma pronta reação estatal como forma de coibir a criminalidade, e, uma previsível punição, para que todos saibam as conseqüências dos erros por si praticados. Aquele que pratica violência contra a mulher em âmbito doméstico e fica impune sente-se na liberdade de manter suas práticas repugnantes de agressões. E aqueles que são potenciais agressores, não veem diante de si barreira punitiva que os impeçam de dar vazão a essas atrocidades.


6. CONCLUSÃO

Não resta dúvida que a Lei Maria da Penha é mais uma marca do neoconstitucionalismo. Nesse sentido, não só algumas manifestações do legislativo, mas também decisões reiteradas do Poder Judiciário, principalmente do Superior Tribunal de Justiça, vêm revelando a consolidação desse movimento no Brasil.

O direito precisa continuar evoluindo nessa senda, qual seja, atender as necessidades da sociedade contemporânea. Todos os poderes, juntamente com o povo, têm responsabilidade e participação nesse processo. Não há mais falar somente em teorias e dispositivos meramente formais. O direito precisa alcançar a população no seu cotidiano, independentemente de classe social, promovendo harmonia entre seus indivíduos e protegendo os que realmente carecem de tutela.

O princípio da dignidade da pessoa humana e os demais direitos fundamentais, inerentes a todos os seres humanos, precisam sair, cada vez mais, dos textos legais e, como normas eficazes, alcançar toda a sociedade. A situação ainda não é plenamente satisfatória, mas grandes avanços já são perceptíveis.

Nesse contexto, o neoconstitucionalismo revela-se como agente de transformação de interesses. Ou seja, o que era considerado de interesse preponderantemente particular, passa a ser observado como interesse geral, posto que a guarda dos princípios constitucionais, inclusive nos casos individuais e concretos, é de interesse de todos. Quem protege ou se interessa pela proteção do direito do próximo, em última análise, protege a si mesmo. Não há mais que se admitir afronta ao Estado Democrático de Direito.

Corretamente agiu o legislador ao adentrar no âmbito das relações familiares no que tange à violência doméstica contra a mulher. Acertou, também, o Judiciário, ao interpretar a norma priorizando a dignidade da vítima. A humanidade consolidou-se através da família. É nela que se deve buscar a solução para curar a sociedade. Restruturando-se a base, tudo mais poderá ser restaurado.


7. REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7547>. Acesso em: 28 fev. 2009.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009.

LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la constitución. 2. ed. Barcelona: Ariel, 1970.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 6.ed..São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 7. ed.. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2000.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2001.

? Sites Internet

http://en.wikipedia.org/wiki/Konrad_Hesse

http://jus.com.br

http://jus.com.br/artigos/2449

http://pt.wikipedia.org/wiki/Rudolf_von_Ihering

http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u321373.shtml

http://www.lfg.com.br

http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/Pdf/pdf_139/r139-05.pdf

http://www.stf.jus.br

http://www.stj.jus.br


Notas

  1. HC 106.805-MS, Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ-MG), julgado em 3/2/2009. Nota publicada no Informativo de Jurisprudência do STJ - n. 0382, período de 2 a 6 de fevereiro de 2009.
  2. Karl Loewenstein, Teoría de la constitución, p. 155.
  3. Rudolf von Ihering (Aurich, Frísia, 22 de agosto de 1818 – Gotinga, 17 de setembro de 1892) foi um jurista alemão. Ocupa ao lado de Friedrich Karl von Savigny lugar ímpar na história do direito alemão, e cuja obra influenciou diversas outras em todo o mundo ocidental. Redigiu o livro "O Espírito do Direito Romano nas Diversas Fases de sua Evolução" (1852/1865), revelando o direito no costume, que, posteriormente, se consagra na lei escrita. Obra cuja maior parte fora escrita em Giessen (1852) e que, quando concluída, teve decisiva influência no Direito Privado de todos os países da Europa. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Rudolf_von_Ihering, acessado em 8 de março de 2009.
  4. Pedro Lenza, Direito Constitucional Esquematizado, p. 6.
  5. Konrad Hesse (29 de janeiro de 1919 – 15 de março de 2005) foi um jurista alemão e, de 1975 a 1987, juiz da Corte Constitucional Federal da Alemanha. A sua obra (1949) foi o marco para o reconhecimento da força normativa da constituição, que antes era vista apenas como um documento essencialmente político. Disponível em: http://en.wikipedia.org/wiki/Konrad_Hesse, acessado em 8 de março de 2009.
  6. BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil, p.2. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7547>. Acesso em: 28 fev. 2009.
  7. RHC 19.406-MG, Rel. originário Min. José Delgado, Rel. para acórdão Min. Luiz Fux (RISTJ, art. 52, IV, b), julgado em 5/2/2009. Nota publicada no Informativo de Jurisprudência do STJ - n. 0382, período de 2 a 6 de fevereiro de 2009.
  8. Fernando da Costa Tourinho Filho, Manual de Processo Penal, p. 80.
  9. Guilherme de Souza Nucci, Código de Processo Penal Comentado, p. 114.
  10. Fernando da Costa Tourinho Filho, Manual..., cit., p. 85.
  11. Eugênio Pacelli de Oliveira, Curso de Processo Penal, p. 111.
  12. Condição imposta pela lei para que o processo tenha início.
  13. Art. 129, §§ 9o e 10º, do Código Penal Brasileiro.
  14. Nota publicada no Informativo de Jurisprudência do STJ - n. 0382, período de 2 a 6 de fevereiro de 2009.
  15. Nota publicada no Informativo de Jurisprudência do STJ n. 0363, de 11 a 15 de agosto de 2008.
  16. José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 819.
  17. HC 96.992-DF, Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ-MG), julgado em 12/8/2008.
  18. HC 96.992-DF, Rel. Min. Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ-MG), julgado em 12/8/2008.

Autor

  • Gabriel de Oliveira Gibara

    Gabriel de Oliveira Gibara

    Advogado. Articulista. Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador – UCSal. Ex-estagiário concursado do Ministério Público Federal na Bahia. Ex-estagiário da Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia. Ex-diretor da O.N.G. Casa da criança, em Simões Filho – Bahia.

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GIBARA, Gabriel de Oliveira. Lei Maria da Penha: mais uma marca do neoconstitucionalismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2108, 9 abr. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12611. Acesso em: 2 maio 2024.