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Plano Collor: nada é devido aos poupadores.

Da não aplicabilidade do IPC às cadernetas de poupança nos meses posteriores a março de 1990

Plano Collor: nada é devido aos poupadores. Da não aplicabilidade do IPC às cadernetas de poupança nos meses posteriores a março de 1990

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Disseminou-se um trecho de voto como se fosse a decisão do STF acerca da aplicação do IPC na correção das poupanças. Trata-se de um grave equívoco que vem se tornando uma interpretação jurídica dominante.

1- INTRODUÇÃO

Desde julho de 1987 o Poder Judiciário tem sido invadido por milhares de processos cujo objeto é o pagamento de diferenças de correção monetária, os chamados expurgos inflacionários, que incidiram nas cadernetas de poupança em julho de 1987, fevereiro de 1989, março de 1990 e fevereiro de 1991. A cada ano, ao se completarem os 20 (vinte) anos do prazo prescricional máximo, a situação se repete.

O Poder Judiciário adotou o entendimento de que os poupadores tinham o direito adquirido ao índice pactuado e tem deferido os pedidos para os poupadores cujos contratos foram celebrados ou renovados nas primeiras quinzenas de junho de 1987 e de janeiro de 1989, e que tiveram os rendimentos creditados no mês seguinte. O Judiciário tem entendido que uma norma posterior ao contrato não pode atingi-lo, devendo ser respeitada a regulamentação vigente no momento do pacto.

PROCESSUAL CIVIL E ECONÔMICO. CADERNETA DE POUPANÇA. CORREÇÃO MONETÁRIA. CRITÉRIO. IPC DE JUNHO DE 1987 (26,06%). PLANO BRESSER. SÚMULA 83-STJ.

I - O Superior Tribunal de Justiça já firmou, em definitivo, o entendimento de que no cálculo da correção monetária para efeito de atualização de cadernetas de poupança iniciadas e renovadas até 15 de junho de 1987, antes da vigência da Resolução n. 1.338/87-BACEN, aplica-se o IPC relativo àquele mês em 26,06%. Precedentes.

(AgRg no Ag. 561405 / RS; AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 2003/0184316-5; Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR; Quarta Turma; Data do Julgamento: 21/10/2004; DJ: 21/02/2005, p.183)

CADERNETA DE POUPANÇA. PLANO VERÃO. JANEIRO/89. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CABIMENTO. ...

(...)

3 - Segundo a jurisprudência do Tribunal, o critério de remuneração estabelecido no art. 17, I, da Lei 7.730/89 não se aplica às cadernetas de poupança abertas ou renovadas antes de 16 de janeiro de 1989.

4 - Creditado o reajuste a menor, assiste ao poupador o direito de obter a diferença, correspondente à incidência do percentual sobre as importâncias investidas na primeira quinzena de janeiro/89, no percentual de 42,72% (REsp 43.055-SP).

(REsp 173.379/SP, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4ª Turma, unânime, DJ de 25/02/2002, página 00382).

Em 2010 o Plano Collor completa 20 (vinte) anos e uma nova enxurrada de processos é esperada. Desta vez o fundamento é outro e decorre de um equívoco judicial que se espalhou pelo país principalmente através da internet.

Como é de conhecimento geral, em março de 1990 o então presidente Fernando Collor de Melo editou a Medida Provisória 168/90, depois convertida na lei 8.024/90, bloqueando todos os ativos de valor acima de 50.000 cruzados novos, mudando a moeda para cruzeiro e, dentre outras medidas, modificando o índice de correção das cadernetas de poupança, que era o IPC e passou a ser a BTNf.

Não obstante, em abril, por determinação do Banco Central (Comunicado BACEN 2.067, de 30/03/1990), todos os bancos corrigiram os saldos das cadernetas de poupança em 84,32%, ou seja, no mesmo percentual do IPC de março, independente do dia de aniversário da conta.

O problema se instalou em relação aos meses posteriores.

Com relação aos saldos superiores a 50.000,00 cruzados já está pacificado o tema: a correção deveria ser feita, como foi, pela BTNf, com observância ao que dispunha a mencionada MP 168/90:

Art. 6º - Os saldos das cadernetas de poupança serão convertidos em cruzeiros na data do próximo crédito de rendimento, segundo a paridade estabelecida no § 2º do art. 1º, observado o limite de NCz$ 50.000,00 (cinqüenta mil cruzados novos).

§ 1º - As quantias que excederem o limite fixado no "caput'' deste artigo, serão convertidas, a partir de 16 de setembro de 1991, em doze parcelas mensais iguais e sucessivas.

§ 2º - As quantias mencionadas no parágrafo anterior serão atualizadas monetariamente pela variação do BTN fiscal, verificada entre a data do próximo crédito de rendimentos e a data da conversão, acrescidas de juros equivalentes a 6% (seis por cento) ao ano ou fração ''pro rata''.

O STF já consolidou entendimento acerca da matéria ao editar a Súmula 725:

É Constitucional o § 2º do art. 6º da lei 8024/1990, resultante da conversão da medida provisória 168/1990, que fixou o BTN fiscal como índice de correção monetária aplicável aos depósitos bloqueados pelo plano Collor I.

A controvérsia hoje diz respeito aos saldos iguais ou inferiores a 50.000,00 cruzados que permaneceram nos bancos e aos valores aplicados em abril e maio de 1990, com rendimento em maio e junho de 1990.

Disseminou-se, principalmente através da internet, um trecho do voto do então Ministro Nelson Jobim, como se fosse a decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da aplicação do IPC na correção das poupanças nos meses de maio e junho de 1990. O referido trecho constou na Ementa do julgamento do Recurso Extraordinário 206048/RS,

Trata-se de um grave equívoco que vem sendo adotado como um acerto por uma parcela do Judiciário e se tornando uma interpretação jurídica dominante. Faz-se necessária, portanto, uma análise um pouco mais aprofundada do assunto.


2- DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 206048/RS – Equívoco do Relator

Verifica-se de imediato que o julgamento do Recurso Extraordinário 206048/RS versava unicamente sobre o bloqueio dos cruzados e sobre a aplicação do IPC de março de 1990, 84,32%.

Os autores, como pedido principal pleitearam tão somente o seguinte (conforme relato do Ministro):

(a) a condenação no pagamento da correção dos depósitos na CAIXA ESTADUAL no percentual de 84,32 (IPC de março de 90) e não pelo IPC de fevereiro – 72,78% - (fls.10, b.1);

(b) a devolução dos "... valores bloqueados, após o acréscimo [da correção de março – 84,32%]... mediante as suas conversões para cruzeiros...", tudo com correção e juros (fls.10, b.2).

A sentença julgou o pedido procedente, mas foi reformada pelo Tribunal. A parte autora interpôs o Recurso Extraordinário aduzindo o seguinte, ainda segundo o relato do então Ministro Jobim:

Direito líquido e certo tinha, portanto, a RECORRENTE ao reajuste de 84,32%, mais 0,5% de juros, sobre os valores bloqueados e retidos pelo Banco Central do Brasil S.A, reajuste imposto pelo IPC apurado com base na inflação ocorrida entre a 2ª quinzena de fevereiro e a 1ª quinzena do mês de março de 1990. -... (fl.136)

Portanto, ao julgar o Recurso Extraordinário 206048/RS o STF nada decidiu acerca das aplicações em caderneta de poupança iniciadas ou renovadas em abril e maio de 1990, cuja remuneração foi paga em maio e junho do mesmo ano.

O processo só chegou ao STF porque a recorrente queria o desbloqueio dos cruzados, pois já se sabia que o índice de 84,32% já havia sido pago.

Ora, considerando o disposto no art.469, I do CPC, conclui-se que o entendimento do Ministro Jobim não fez coisa julgada pelo STF, visto que o objeto do pedido era diverso.

Art. 469. Não fazem coisa julgada:

I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença;

Portanto, em momento algum o STF decidiu que se deveria aplicar o IPC dos meses de abril e maio de 1990 nas cadernetas que aniversariavam em maio e junho do mesmo ano.

O trecho ardilosamente pinçado e divulgado como se fosse uma decisão do STF é o seguinte:

Em 12 de abril de 1990, O Presidente do Congresso Nacional promulgou a L.8.024.

A lei converteu, diretamente, a MP 168/90.

Como não houve projeto de LEI DE CONVERSÃO, a promulgação foi feita pelo Presidente do Congresso Nacional.

Até a conversão, a cabeça do art.6º e seu §1º, da MP 168/90, vigiam com a redação que lhes havia dado a MP 172, de 17 de março.

O Congresso Nacional, na conversão, não considerou a redação da MP 172/90.

Manteve, integralmente, a redação original da MP 168/90.

No que interessa, a lei não converteu a redação do art.6º e do §1º (MP 168/90), dada pela MP 172/90.

Isso importou na revogação da MP 172/90 pela LEI DE CONVERSÃO.

A MP 172/90 É DE 17 de março e a lei é de 12 de abril.

A promulgação se deu antes de completados os trinta dias de edição da MP 172/90.

Logo, a MP 172/90 foi revogada pela LEI DE CONVERSÃO.

A redação original do art.6º e §1º da MP 168/90 estava suspensa pela MP 172/90.

Revogada esta, a redação original retomou sua vigência, desde a data da edição da MP 168/90.

Todo o período de vigência da MP 172/90 ficou coberto pela retomada de eficácia da redação original da MP 168/90.

Com a lei, consolidou-se o texto, tornando-se definitivo.

Não houve, portanto, uma solução de continuidade desde a edição original.

Em face disso, a introdução do BTN Fiscal, como índice de atualização dos saldos das contas de poupança, perdeu sua aplicabilidade.

Retomou-se a regra original do art.6º.

Ele era silente quanto ao índice de atualização.

Por isso, o IPC se manteve como tal.

O governo COLLOR DE MELLO pretendeu retomar a redação dada pela MP 172/90.

Editou, no dia 17 de abril, cinco dias após a promulgação da L.8.024/90, a MP 180/90.

No que interessa, ela modificava a redação do art.6º e seu §1º da L.8.024/90.

Trazia de volta a redação da MP 172/90.

Em 04 de maio, antes de completados os trinta dias da edição da MP 180/90, o Governo adotou a MP 184/90.

Ela revogou a MP 180/90.

Tanto a MP 180/90, como a MP 184/90, perderam a eficácia.

Não foram convertidas, nem reeditadas.

O Governo COLLOR DE MELLO abandonou a tentativa de recuperar a redação do art.6º e seu §1º, nos moldes da MP 174/90.

Consolidou-se, assim, o texto original da MP 168/90, mantido pela L.8.024/90.

O IPC manteve-se como índice de correção até junho de 1990, quando foi substituído pelo BTN (L.8.088, de 31.10.1990, art.2º e MP 180, 30.05.1990m art.2º.

Passemos a algumas considerações acerca da matéria.

Em primeiro lugar, repita-se, percebe-se que não transitou em julgado uma decisão do acerca da aplicação do IPC dos meses de abril e maio de 1990 sobre os saldos de maio e junho do mesmo ano, visto que esse não era o objeto do processo e nada disso foi requerido.

Em segundo lugar, a interpretação dada pelo Ministro incorre na inobservância do então vigente parágrafo único (atual § 3º) do art.62 da CF/88:

Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional, que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias.

Parágrafo único. As medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes.

Na primeira parte do parágrafo estava prevista a única hipótese de revogação de uma Medida Provisória: a sua não conversão em lei.

Logo, a Lei 8.024/90, conversão da MP 168/90 em lei sem as modificações introduzidas pela MP 172/90, não revogou esta norma, como disse o Ministro, pois não tinha esse poder.

Diga-se de passagem, é flagrante a perda superveniente do objeto nesse caso.

O mérito da questão discutida na Suprema Corte, em 2001, não era a incidência ou não do IPC, mas uma alegada afronta ao princípio da Igualdade na aplicação da lei, porque a recorrente alegava que somente as contas que aniversariavam na primeira quinzena de abril de 1990 haviam recebido o crédito dos 84,32%, referente ao IPC de março de 1990, e a possibilidade de liberação dos cruzados bloqueados.

O Acórdão do STF, voto vencedor do Ministro Jobim, foi redigido unicamente com o fim de justificar a constitucionalidade do bloqueio dos cruzados e do Plano Collor.

Ora, o julgamento do Recurso começou em 1999, com o voto do Ministro Marco Aurélio, e findou-se em 2001, com o voto dos demais Ministros. Entretanto, desde 1991 os saldos bloqueados haviam sido liberados. Por outro lado, o IPC de março, 84,32%, fora creditado em todas as contas de poupança por todos os bancos ainda em abril de 1990. Portanto, não havia mais utilidade no julgamento, não havia mais interesse, o processo deveria ter sido extinto sem resolução de mérito.

Não obstante, façamos uma outra análise do entendimento do Ministro Jobim.

Pelo que se percebe, o Ministro considera a Medida provisória regida pelo disposto na Lei de Introdução ao Código Civil, por ter força de lei, e admite que a Lei de Conversão da MP 168/90 revogou tacitamente a MP 172/90.

O art.2º, §1º da LICC dispõe sobre a revogação tácita:

Art. 2º  

§ 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

Incompatibilidade não existe entre a MP 172/90 e a lei 8.024/90 (Lei de Conversão da MP 168/90).

Então, tratar-se-ia da terceira hipótese: a lei nova teria regulado inteiramente a matéria.

Este é o ponto.

Havendo uma omissão da MP 168/90 em sua redação original, que foi convertida em lei, quanto à disciplina dos saldos inferiores a 50.000,00 cruzeiros e quanto às cadernetas abertas ou renovadas a partir de abril, com rendimento a partir de maio, e tendo sido essa omissão suprida pela MP 172/90, então, justamente nesse ponto a lei de conversão deixou de regular a matéria, permanecendo vigente a referida Medida Provisória.

Ora, se a lei posterior não regulou inteiramente a matéria, a hipótese não é de revogação, mas de derrogação (revogação parcial), não havendo que se falar em retomada da lei 7.730/89.

De fato, se a MP 172/90 foi editada para preencher lacunas da MP 168/90, então a conversão desta em lei, com as lacunas, não poderia revogar aquela inteiramente, restando revogados apenas os artigos que se repetem em uma e outra, e vigentes os artigos que constam na MP 172/90, mas não se encontram na lei 8.024/90 (lei de conversão da MP 168/90). As duas espécies normativas, em conjunto, revogaram inteiramente a legislação anterior.

Assim, mais uma vez, não se pode deixar de reconhecer que ao renovar a aplicação em poupança, ou iniciar uma nova conta, o investidor contratou nos termos da MP 172/90, que previa a inclusão do art.24 na MP 168/90:

Art. 1ºA Medida Provisória nº 168, de 15 de março de 1990, passa a vigorar com as seguintes modificações:

Art. 24.A partir de maio de 1990, os saldos das contas de poupança serão atualizados pela variação do BTN, na forma divulgada pelo Banco Central do Brasil.

A MP 172/90 foi editada em 17/03/1990 e perdeu eficácia, por decurso de prazo em 17/04/1990. Na mesma data foi publicada a MP 180/90, com um texto igual.

Art. 1ºA Lei nº 8.024, de 12 de abril de 1990, passa a vigorar com as seguintes modificações:

Art. 24.A partir de maio de 1990, os saldos das contas de poupança serão atualizados pela variação do BTN, na forma divulgada pelo Banco Central do Brasil.

Portanto, os contratos celebrados ou renovados em abril de 1990, o foram sob a égide da MP 172/90 ou da MP 180/90.

O correto é a observância do art.24 acima mencionado.

Ademais, ainda que se aplicasse o equivocado entendimento do Ministro Jobim, seria forçoso reconhecer que as contas abertas ou renovadas até 12/04/1990, data da promulgação da lei 8.024/90, estavam reguladas pela MP 172, ao passo que as contas abertas ou renovadas a partir do dia 17/04/1990 estavam normatizadas pela MP 180/90.

Além disso, tais saldos estavam disponíveis para saque desde março de 1990. Se o autor manteve o dinheiro na aplicação a cada aniversário, então concordou com as novas regras vigentes, não tendo como falar em descumprimento de contrato e direito adquirido.

Neste sentido o Superior Tribunal de Justiça já se posicionou pela aplicabilidade do BTNf nos meses posteriores a março de 1990.

"CADERNETA DE POUPANÇA. SALDO DISPONÍVEL. CORREÇÃO MONETÁRIA. MESES DE MAIO DE 1990 E SEGUINTES. O saldo disponível das cadernetas de poupança, isto é, compreendendo os valores inferiores a NCz$ 50.000,00 (cinqüenta mil cruzados novos), foi corrigido monetariamente pela variação do IPC no mês de abril de 1990; completado o ciclo mensal, o respectivo montante foi indexado ao BTN (Medida Provisória nº 168, de 1990, art. 6º, § 2º), sem quaisquer prejuízos para o poupador, que poderia tê-lo sacado, se a regra lhe parecesse desvantajosa. Recurso especial conhecido e / provido."

(RESP 213.347/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ de 0410/1999)

Civil e processo civil. Recurso Especial. Caderneta de poupança. Índice de correção monetária. Abril/maio de 1990. BTNF.

- No cálculo da correção monetária incidente sobre o saldo remanescente das cadernetas de poupança em 1990, utiliza-se o BTNF a partir dos meses de abril/maio daquele ano.

Recurso especial provido. Ônus sucumbenciais invertidos.

(AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 1.005.483 - RS (2007/0284591-0) RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI, 08/09/2008)


3- DA SEGURANÇA JURÍDICA E DO DIREITO ADQUIRIDO

Relembremos aqui os fundamentos utilizados pelo Judiciário para deferir o pagamento de diferenças decorrentes dos planos Bresser e Verão: a lei posterior à celebração do contrato não pode retroagir para atingir o direito adquirido, devendo ser observada na execução desse contrato de caderneta de poupança a legislação vigente no início do trintídio.

No caso, temos o ato jurídico perfeito, celebrado de acordo com a legislação vigente, MP 172/90 e MP 180/90. Em nome da segurança jurídica o contrato, que é lei entre as partes, não pode ser modificado pela mudança de legislação, ainda mais se isso representar gravame para qualquer uma das partes contratantes.

O Judiciário não pode, para hipóteses iguais, proferir decisões contraditórias, sob pena de se ferir de morte o Princípio da Segurança Jurídica.


4- DA IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA – O Judiciário não pode usurpar o poder-dever do Congresso Nacional

Ainda que se considere revogada a MP 172/90 pela Lei de Conversão da MP 168/90, bem como da MP 180/90, isso não significa que os contratos celebrados durante a vigência das normas passem a ser regulados pela lei anterior.

Devemos ter em mente o disposto na parte final do parágrafo único (atual parágrafo 3º) do art.62 da CF/88, no texto vigente em 1990:

Art. 62.

Parágrafo único. As medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes.

Assim, na hipótese de perda de eficácia da Medida Provisória, seja por rejeição expressa, seja por decurso de prazo, as relações jurídicas dela decorrente devem ser regulamentadas pelo Congresso Nacional.

A esse respeito é pertinente o pensamento de SAULO RAMOS, ex Consultor Geral da República:

Rejeitado o Projeto de Lei de conversão, expressamente, por deliberação congressual explícita, operar-se-á a perda de eficácia ex tunc da Medida Provisória. A disciplina das relações jurídicas formadas com base no ato cautelar não convertido em lei constitui obrigação indeclinável do Congresso Nacional, que deverá regrá-las mediante procedimento legislativo, adequado, iniciado imediatamente após a rejeição, quando não houver reapresentação de outra sobre a mesma questão.

(MEDIDA PROVISÓRIA, in a Nova Ordem Constitucional – Aspectos Polêmicos, Rio, Forense, 1990, p.541)

Na lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA

A prescrição de que o Congresso discipline as relações jurídicas decorrentes das medidas provisórias tem cabimento nesta última hipótese (perda de eficácia), e o Congresso o fará por lei tal como se faz com qualquer matéria.

É de notar que ainda que a Constituição não incumbe ao Congresso a disciplina da matéria das medidas provisórias tornadas ineficazes, mas apenas as relações jurídicas que tenham sido estabelecidas durante os trinta dias em que vigoravam s e surtiram efeitos.

(CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL POSITIVO, Malheiros, 16ª Ed., p.532)

Portanto, o regramento dos contratos firmados sob a égide de uma Medida Provisória que por um motivo ou outro perdeu a eficácia, é prerrogativa do Poder Legislativo, não havendo como o Judiciário atuar para corrigir eventual omissão. Logo, é pedido juridicamente impossível pretender que o Judiciário declare os efeitos da perda de eficácia de medida provisória sobre as relações jurídicas dela decorrentes.

Ainda no ensinamento de JOSÉ AFONSO DA SILVA

Em tal caso o Poder Judiciário poderá ser chamado a examinar o assunto a teor do disposto no art.5º, XXXV, se houver lesão de direito de alguém e por este provocado, mas a decisão judicial não poderá substituir as medidas provisórias nem, evidentemente, disciplinar as relações jurídicas geradas por elas.

(idem)

A esse respeito vejamos a posição do próprio Supremo:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MEDIDA PROVISÓRIA. SERVIDOR PÚBLICO. Medidas Provisórias 434, publicada em 28.02.94; 457, publicada em 30.03.94, 482, publicada em 29.04.94. Lei nº 8.880, de 27.05.94, publicada em 28.05.94.

I. - A medida provisória não convertida em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, perde eficácia, desde a edição, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas dela decorrentes. C.F., art. 62, parág. único.

II. - No caso, o ato normativo acoimado de inconstitucional simplesmente deu pela eficácia da lei conflitante com a medida provisória no período em que esta teve vigência, sem que houvesse sido editada a norma disciplinadora do Congresso Nacional.

III. - Cautelar deferida.

(ADI-MC 1612 / MS - MATO GROSSO DO SUL, MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
Relator (a):  Min. CARLOS VELLOSO, Julgamento: 28/05/1997,  Órgão Julgador:  Tribunal Pleno, DJU 03/04/1998)

Importante, para não cometermos erros na aplicação da Jurisprudência, é a leitura do voto do Relator, Min. Carlos Veloso:

"A questão é interessante.

Se a Medida provisória não é convertida em lei, em trinta dias, perde eficácia desde a sua edição. Isto, entretanto, não quer dizer que a norma legal anterior, conflitante, teve restaurada a sua eficácia. O que acontece é que, no período em que teve vigência a medida provisória não convertida em lei, surgiram relações jurídicas decorrentes dessa medida provisória. Essas relações jurídicas, entretanto, estabelece a Constituição, serão disciplinadas pelo Congresso Nacional – CF., Parag. Único do art.62".

E essa não é uma decisão isolada da nossa Suprema Corte.

EMENTA: - CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. PREVIDENCIÁRIO. CONTRIBUIÇÃO DOS SERVIDORES E JUÍZES AO P.S.S.S. RESOLUÇÃO 62, de 1997, que reduziu de doze para seis por cento a alíquota de contribuição dos servidores. Medida Provisória 560, de 26.07.94, reeditada sucessivamente.

I. - A Medida Provisória não convertida em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, perde eficácia, desde a edição, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas dela decorrentes. C.F., art. 62, parág. único.

II. - No caso, o ato normativo acoimado de inconstitucional é no sentido de que, não convertida em lei a Medida Provisória nº 560, e as que lhe sucederam, perderam elas sua eficácia, desde a edição, voltando a ter vigência plena o regime anterior que disciplinava a contribuição dos servidores para a Seguridade Social, e cuja alíquota era de seis por cento (Decreto nº 83.081/79, modificado pelo Decreto 90.817/85). Não considerou o ato normativo objeto da causa que as Medidas Provisórias foram reeditadas dentro nos prazos das Medidas Provisórias anteriores, desconsiderando, também, o disposto no art. 62, parágrafo único, da C.F.

III. - Cautelar deferida.

(ADI-MC 1786 / MA – MARANHÃO, MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, Relator (a):  Min. CARLOS VELLOSO, Julgamento: 19/02/1998, Órgão Julgador:  Tribunal Pleno, DJ 03/04/1998, pp 00002)

EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1.522, DE 11.10.96. ALTERAÇÃO DO ARTIGO 38 DA LEI Nº 8.112/90. SUSBSTITUIÇÃO DE SERVIDORES PÚBLICOS INVESTIDOS EM CARGOS DE DIREÇÃO E CHEFIA OU DE NATUREZA ESPECIAL. REEDIÇÕES DE MEDIDA PROVISÓRIA FORA DO PRAZO CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA DO CONGRESSO NACIONAL PARA DISPOR SOBRE OS EFEITOS JURÍDICOS DAÍ DECORRENTES. RESOLUÇÃO DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 6ª REGIÃO. VIOLAÇÃO AO ARTIGO 62, CAPUT E PARÁGRAFO ÚNICO, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ...

1. A Medida Provisória nº 1.522, de 11.10.96, alterou o disposto no artigo 38 da Lei nº 8.112/90. As substituições dos servidores investidos em cargos de direção e chefia ou de natureza especial passaram a ser pagas na proporção dos dias de efetiva substituição que excedam um mês.

2. A Resolução do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região, que entendeu expedidas fora do prazo algumas das reedições da Medida Provisória nº 1.522/96, repristinou o artigo 38 da Lei nº 8.112/90. Violação ao parágrafo único do artigo 62 da Constituição,

3. Violação ao disposto no artigo 62, caput, da Constituição Federal, que negou força de lei à Medida Provisória nº 1.522, de 11 de outubro de 1996. Precedentes.

Ação julgada procedente para declarar inconstitucional a Resolução Administrativa do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região, tomada na Sessão Administrativa de 30 de abril de 1997.

(ADI 1616 / PE – PERNAMBUCO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, Relator (a):  Min. MAURÍCIO CORRÊA Julgamento:  24/05/2001, Órgão Julgador:  Tribunal Pleno, DJU 24/08/2001, Ementa Vol. – 02040 – 02, PP - 00303)

Os contratos de poupança, assim como todas as transações feitas na vigência das duas Medidas Provisórias, deveriam e ainda devem ser disciplinadas pelo Congresso Nacional, não pelo Supremo Tribunal Federal.


5- DO ATUAL TEXTO CONSTITUCIONAL

§ 11. Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas.

Dessa forma, o constituinte encerrou a controvérsia para situações similares que venham se apresentar no futuro.

Para as situações pretéritas, no entanto, vale reiterar que cabia e cabe ao Congresso Nacional regulamentar as relações jurídicas decorrentes da perda de eficácia das medidas provisórias. Diante da omissão do Legislativo, não pode o Judiciário decidir sobre tais relações, sob pena de afetar o equilíbrio entre os Poderes, além de desconstituir a norma do parágrafo terceiro (originalmente parágrafo único) do art.62 da Constituição Federal de 1988.


6- CONCLUSÃO

Forçoso ainda é concluir que contrariam o bom direito todos os julgados em que se defere o pedido de pagamento do IPC como índice de correção dos saldos das cadernetas de poupança abertas ou renovadas em abril e maio de 1990, utilizando o voto do Ministro Jobim no RExt 206048/RS como fundamento.

Tais julgados têm como paradigma um misto de esperteza, equívoco, e ilusão: a leitura quebrada e incompleta de um Acórdão do STF que não tratava da matéria (correção monetária dos saldos das cadernetas de poupança nos meses posteriores a março de 1990) e que utilizou premissas contrárias à Constituição Federal de 1988, para uma conclusão alheia ao objeto do recurso.

Infelizmente, a cultura da fundamentação unicamente pelos julgados precedentes, sem uma análise apropriada desses precedentes, está transformando o apontado equívoco em verdade dominante.

Cumpre ao Judiciário, no mínimo, reconhecer que é atribuição do Congresso Nacional a disciplina das relações jurídicas decorrentes das Medidas Provisórias 172/90, 180/90 e 184/90, que modificaram a Medida Provisória 168/90, convertida na lei 8.024/90.

Por conseqüência, devem ser extintos sem resolução de mérito, por impossibilidade jurídica do pedido, até que o Legislativo supra a apontada omissão, todos os processos em que se requer o pagamento da correção monetária das cadernetas de poupança calculada pelo IPC de abril, maio e junho de 1990.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Raimundo Wdnilton Chaves. Plano Collor: nada é devido aos poupadores. Da não aplicabilidade do IPC às cadernetas de poupança nos meses posteriores a março de 1990. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2316, 3 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13778. Acesso em: 10 maio 2024.