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Denúncia em crime de violência doméstica.

Lei Maria da Penha

Denúncia em crime de violência doméstica. Lei Maria da Penha

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Denúncia do Ministério Público em crime de lesão corporal contra a mulher, abrangido pela Lei Maria da Penha. A peça aborda aspectos polêmicos da nova legislação, a saber: ação penal incondicionada, constitucionalidade da norma frente ao princípio da isonomia e inaplicabilidade de benefícios da Lei nº 9.099/95.

EXMO SR. DR JUIZ DE DIREITO DA 3.ª VARA DA COMARCA DE RIO LARGO – ALAGOAS

            Referência: Inquérito Policial n.º /06

            A REPRESENTANTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL, que esta subscreve, no uso de suas atribuições, conferidas pelo art. 41 do Código de Processo Penal Brasileiro c/c o artigo 25, inciso III, da Lei no. 8.625/93 – Lei Orgânica do Ministério Público, vem, à presença de Vossa Excelência oferecer DENÚNCIA contra J. O. L., conhecido como "Negão", qualificado às fls. 07 dos autos de Inquérito Policial, pelos fatos a seguir aduzidos:


DOS FATOS

            1. Trata-se de crime de violência doméstica (lesão corporal), art. 129, parágrafo 9º. c/c art. 10 e 129, parágrafo 1º., todos do CP, praticada por J. O. L. contra M. I. L. A., sua esposa.

            2. Infere-se da peça inquisitorial em epígrafe que no dia 16 de outubro de 2006, o agressor estava em uma festa de aniversário, juntamente com sua esposa, ora vítima, quando em dado momento esta foi ao banheiro. Após alguns instantes o agressor foi à procura da vítima e ao encontrá-la entendeu que ela estava praticando ato libidinoso diverso da conjunção carnal com um rapaz conhecido por "Lulu" e neste momento iniciou a prática delitiva, desferindo vários tapas e murros contra ela deixando-a desfalecida.

            3. Relatam as testemunhas e a própria vítima em seus depoimentos perante a autoridade policial que o agressor só parou de bater quando o dono da festa viu o fato e interveio, tentando dissuadi-lo de continuar a praticar aquele ato de agressão física, oportunidade em que foi providenciado atendimento da vítima pela ambulância da Samu, em razão da gravidade dos ferimentos sofridos.


DO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

            4. A violência doméstica foi estabelecida pela primeira vez como crime no Brasil em 2004, pela Lei nº. 10.886. Esta lei acrescentou ao art. 129 do Código Penal que trata das modalidades de lesão corporal, os parágrafos 9º. e 10, que disciplinam a violência praticada no âmbito das relações familiares.

            5. A partir de 22 de setembro, prazo de 45 dias da vacatio legis, entrou em vigor a Lei nº. 11.340, de 07 de agosto de 2006 que retirou expressamente da competência dos Juizados Especiais todas as formas de violência doméstica, logo a competência para processar e julgar este delito é desta 3ª. Vara criminal.

            6. A Lei nº. 11.340, publicada em 07 de agosto de 2006, trouxe no art. 5º. uma definição bastante completa da violência doméstica. Estabelece que a violência doméstica "é qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial" à mulher.

            7. A violência doméstica e familiar apresenta a agora a seguinte classificação, segundo estabeleceu o art. 7º., da Lei nº. 11.340/06 (Lei Maria da Penha):

            física, sexual, psicológica, patrimonial ou moral.

            Art. 7º. São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

            I a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

            II a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direitos de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

            III a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso de força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

            IV a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

            V a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

            8. Da análise deste dispositivo legal, verifica-se que o caso em tela se subsume ao tipo penal constante no art. 129, §§ 9º e 10, c/c art. 129, § 1º., todos do CP, bem como à definição da violência doméstica física, inteligência do art. 7º., da Lei nº. 11.340/06.


DA AÇÃO PENAL

            9. A violência doméstica, embora lesão corporal, cuja descrição típica advém do caput, é forma qualificada da lesão, não dependendo mais de representação da vítima desde o advento da Lei nº. 10.886/04. Esta tese é reforçada agora pelo advento da Lei nº. 11.340/06 que vedou a utilização dos juizados especiais para esses delitos e operou uma revogação tácita do art. 88 da Lei nº. 9.099/95, no que concerne aos crimes de lesões corporais leves praticados nas circunstâncias que implicam em violência doméstica. Isto porque, apesar de a nova lei fazer referência à representação em duas oportunidades, no art. 12, I, e 16, não há a indicação de quais crimes estariam sujeitos à representação da vítima.

            10. Logo, a ação penal é incondicionada, não dependendo de representação da vítima como condição de procedibilidade, art. 100, do CP.


DA CONSTITUCIONALIDADE DA LEI "MARIA DA PENHA"

            11. Muito se tem discutido acerca da constitucionalidade da Lei "MARIA DA PENHA", em razão de ter como foco apenas a mulher vítima da violência doméstica o que estaria criando um privilégio e estabelecendo uma desigualdade injustificada. Estes são, apertada síntese, os argumentos utilizados pelos defensores da sua inconstitucionalidade:

            (a) feriria o princípio da isonomia entre os sexos, estabelecido no art. 5º., I, da CF. Neste ponto é oportuno destacar que a lei "Maria da Penha" atribui à mulher um tratamento diferenciado, promovendo sua proteção de forma especial em cumprimento às diretrizes constitucionais e aos tratados internacionais ratificadas pelo Brasil, tendo em vista que, como dissemos, a mulher é a grande vítima da violência doméstica, sendo as estatísticas com relação ao sexo masculino tão pequenas que não chegam a ser computadas.

            (b) por suposta ofensa ao art. 98, I, da CF que prevê a criação dos juizados especiais criminais, já que a Lei nº. 11.340/06 vedou sua aplicação à violência doméstica. A fragilidade dessa argumentação se percebe da simples leitura do art. 98, I, da Constituição

            (a) A Lei nº. 11.340/06, a fim de dirimir qualquer dúvida quando a sua constitucionalidade estabeleceu logo no Título I, das disposições preliminares, o seguinte, in verbis:

            Art. 1º.

            Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

            12. Como vemos, a própria lei reconhece que o Estado brasileiro tinha obrigação assumida quando da ratificação dos tratados internacionais citados, de promover o amparo das mulheres vítimas da violência doméstica e criar mecanismos eficientes para viabilizar sua ampla proteção.

            13. As iniciativas de ações afirmativas, de que esta nova Lei é um exemplo, visam a corrigir a defasagem entre o ideal igualitário predominante e/ou legitimado nas sociedades democráticas modernas e um sistema de relações sociais marcado pela desigualdade e hierarquia. Tal fórmula tem abrigo em diversos dispositivos do ordenamento jurídico brasileiro precisamente por constituir um corolário ao princípio da igualdade, constante no art. 5º. I, da CF [01]. Nesse contexto, a proteção das mulheres vítimas da violência doméstica é plenamente justificável em razão da constatação empírica da sua grande ocorrência e dos graves problemas sociais que dela decorrem. Logo, não há que se falar em inconstitucionalidade desta lei, pois não fere o princípio da isonomia entre os sexos, muito pelo contrário, aplica a igualdade não apenas formal, mas material entre os gêneros.

            14. Estabelece a melhor doutrina que a correta interpretação do art. 5º., I, da CF, torna inaceitável a utilização do discrímen sexo, sempre que o mesmo seja eleito com o propósito de desnivelar materialmente o homem e a mulher; aceitando-o, porém, quando a finalidade pretendida for atenuar as desigualdades, como ocorre na ampla maioria dos casos de violência doméstica, em que é flagrante a situação de vulnerabilidade da mulher vítima em relação ao agressor. Com isso não queremos dizer que todas as mulheres brasileiras estão em situação de hipossuficiência em relação aos homens, mas apenas aquelas vítimas da violência doméstica. Conseqüentemente, além de tratamentos diferenciados entre homens e mulheres previstos pela própria constituição (art. 7º., XVIII e XIX; 40, §1º., 143, §§ 1º. e 2º.; 201, §7º.), poderá a legislação infraconstitucional pretender atenuar os desníveis de tratamento em razão do sexo [02].

            (b) por suposta ofensa ao art. 98, I, da CF que prevê a criação dos juizados especiais criminais, já que a Lei nº. 11.340/06 vedou sua aplicação à violência doméstica. A fragilidade dessa argumentação se percebe da simples leitura do art. 98, I, da Constituição, que reza:

            "A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:

            I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimento oral e sumaríssimo, permitidos, na hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau".

            15. Sua simples leitura já bastaria para demonstrar que cabe à lei infraconstitucional estabelecer quais as infrações penais sujeitas à transação e aos demais institutos despenalizantes da Lei nº. 9.099/95. Aliás, é a própria lei infraconstitucional que define quais as infrações penais de menor potencial ofensivo e, portanto, da alçada do Juizado Especial Criminal: art. 61, da Lei nº. 9.099/95, com redação dada pela Lei nº. 11.313/06 [03].

            16. Verifica-se, pois, uma relação de regra e exceção: são infrações penais de menor potencial ofensivo e, portanto, da competência dos Juizados Especiais Criminais sujeitas, assim, aos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95, todas as infrações penais cuja pena máxima cominada não exceda a 2 (dois) anos, exceto aquelas que, independentemente da pena cominada, decorram de violência doméstica ou familiar contra a mulher, nos termos dos arts. 41, c/c art. 5º. e 7º. da Lei nº. 11.340/06.

            17. Logo, não há que se falar em inconstitucionalidade desta lei, pois não fere o princípio da isonomia entre os sexos, muito pelo contrário, aplica a igualdade não apenas formal, mas material entre os gêneros.


DA MATERIALIDADE DO CRIME E DA AUTORIA

            18. A materialidade deste crime e a autoria restam incontestes pelas provas produzidas nos autos, depoimentos das testemunhas e declarantes, bem como em razão da confissão do réu.

            19. Assim, constata-se que a conduta do acusado subsume-se ao disposto no art. 129, parágrafo 9º., c/c art. 10, do CP, c/c art. 129, parágrafo 1º, do mesmo diploma legal, in verbis:

            O art. 129, parágrafo 9º., c/c art. 10, do CP.

            § 9º. " se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convívio, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relação domésticos, de coabitação ou de hospitalidade: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos".

            § 10. "Nos casos previstos nos §§1º. a 3º. deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9º. deste artigo, aumentando-se a pena em 1/3 (um terço)".

            20. Outrossim, requer o MP que seja reiterado o pedido de envio da folha de antecedentes criminais do acusado, bem como o Laudo de exame de corpo de delito de fls. o qual já fora requerido pela autoridade policial e são imprescindíveis à instrução processual.

            21. Quanto ao pedido da vítima de aplicação das medidas protetivas de urgência, opina o MP para que seja deferido, nos termos do requerimento de fls. 11 dos autos.

            Posto isso, requer o MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL, a instauração da competente AÇÃO PENAL contra J. O. L., conhecido como "Negão", qualificado anteriormente, como incurso nas penas dos arts. 129, parágrafo 9º. c/c art. 10 e 129, parágrafo 1º., todos do CP, requisitando-o para interrogatório, enfim, para ver processar até final julgamento, sob pena de revelia, intimando-se as testemunhas do rol abaixo, sob as penas da lei, devendo o ÓRGÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ser notificado de todos os atos ex vi do art. 394 do CPP.

            Termos em que,

            Pede deferimento.

            Rio Largo, 11 de novembro de 2006.

STELA VALÉRIA SOARES DE FARIAS CAVALCANTI
PROMOTORA DE JUSTIÇA

            ROL DE DECLARANTE E TESTEMUNHAS:

            As constantes às fls. 05, 07 e 10 dos autos de Inquérito Policial.


Notas

            01 CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. Violência doméstica. Análise da Lei Maria da Penha – n. 11.340/06. Bahia: juspodivm, 2007, p. 177

            02 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15 ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 69. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. Estudos de Direito Constitucional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 10. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15 ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 220.

            03 Art. 61. Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. Denúncia em crime de violência doméstica. Lei Maria da Penha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1383, 15 abr. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/peticoes/16760. Acesso em: 19 abr. 2024.