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O direito social à saúde e atuação do Poder Judiciário no Brasil

O direito social à saúde e atuação do Poder Judiciário no Brasil

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SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO PRINCÍPIO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL: O MÍNIMO EXISTENCIAL. 1.1 Os direitos fundamentais. 1.1.1 Conceitos e características. 1.1.2 Evolução histórica: as dimensões dos direitos fundamentais. 1.1.3 Artigo 5º, §1º, CF/88: A auto-aplicabilidade dos direitos fundamentais – interpretação adequada. 1.2 O direito a saúde como direito fundamental viabilizador da dignidade humana. 1.2.1 Eficácia negativa do direito à saúde: Proibição principiológica do retrocesso social . 2 CONCRETIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PELO JUDICIÁRIO: LIMITES E POSSIBILIDADES. 2.1 O planejamento orçamentário. 2.2 O dogma da separação de poderes.2.2.1 Atuação do Ministério Público em Juiz de Fora: Dados Concretos. 2.3 A reserva do possível. CONCLUSÃO .REFERÊNCIAS


Introdução

A saúde é um tema de suma importância em qualquer sociedade, em qualquer época. É indiscutível que ela é necessária para o livre desenvolvimento do homem, seja na infância, na vida adulta ou na velhice.

Como veremos adiante, mesmo estando presente em diversos ordenamentos jurídicos já há algum tempo, nem sempre presenciamos sua real efetivação. Tal ausência acarreta graves problemas sociais.

Nesse contexto, alguns dados sobre o município de Juiz de Fora foram colacionados, servindo como exemplos de tais problemas. Localizada na Zona da Mata Mineira do estado de Minas Gerais, a cidade em questão, de porte médio, conta com 30% da população sem acesso regular aos serviços básicos de saúde (Arbex, 2008), levando-se em conta um total de 517.029 habitantes, segundo o Caderno de Informações de Saúde (BRASIL, 2006).

Outros dados significativos sobre a saúde em Juiz de Fora mostram que existem cerca de sete mil pessoas esperando por cirurgias. O mapa de desassistência da cidade identifica uma grande área sem cobertura de Unidades Básicas de Saúde, o que causa colapso nas unidades regionais e no Hospital de Pronto Socorro (HPS) (Arbex, 2008).

Além do supracitado problema em termos de infra-estrutura, impossibilitando cirurgias e procedimentos médicos, também ocorre a falta de medicamentos e outros insumos farmacêuticos na cidade, agravado com a perda de duas toneladas de remédios vencidos, conforme reporta Arbex (2008).

A relevância do tema também se configura se atentarmos para o número de internações realizadas em 2006, que é da ordem de 43.248 e para o montante de atendimentos básicos realizados por habitante, qual seja, 4,6 (BRASIL, 2006).

Esse trabalho tem como escopo tratar da busca de maneiras possíveis para alcançarmos a efetivação do direito fundamental à saúde. Porém, não temos o intuito de esgotar o tema, visto que existem inúmeros problemas por trás dessas questões, como o fato de Juiz de Fora ser uma cidade pólo na região, atraindo para si pessoas de outras localidades. Embora previsto na concepção do Sistema Único de Saúde (SUS) [01], a hierarquização municipal deve ser garantida através de repasses orçamentários, que, se ocorrem e/ou como ocorrem, não nos cabe aqui discutir.

Diante desse quadro de não efetivação dos direitos fundamentais, iremos tentar elaborar hipóteses que irão tornar possível tal eficácia. O presente trabalho atuará de forma mais específica com essa temática presente no dia a dia de milhões de brasileiros.

Para tentarmos solucionar essa problemática, iremos nos utilizar, já no capítulo seguinte à introdução, do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, que norteará e fundamentará essa produção através do respeito ao mínimo existencial e aos direitos fundamentais - do qual a saúde, enquanto direito social de segunda dimensão faz parte - passando pelo histórico desses direitos e a questão de sua aplicabilidade entre outros assuntos relacionados a esse trabalho.

No segundo capítulo, trataremos mais detalhadamente da interferência do judiciário, abarcando seus limites mais complexos, como a famigerada reserva do possível, o vetusto dogma da separação de poderes e o planejamento orçamentário. Dentro do citado princípio da separação de poderes, cuidaremos da atuação do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e sua atuação no município de Juiz de Fora, trazendo à tona alguns outros dados estatísticos para ilustrar o tema. Lidaremos também com algumas possibilidades para o contorno desses supracitados limites.

Para tanto, nos utilizaremos, em termos de método, da abordagem dedutiva, visto que é a que melhor se coaduna com os objetivos propostos. Partindo do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e seus derivados, como o mínimio existencial e os direitos fundamentais e dos limites da interferência do judiciário nos outros poderes, buscaremos discutir uma alternativa para transpormos esses obstáculos, com base na Constituição Federal.

O trabalho assumiu, assim, feição interdisciplinar, tendo em vista o envolvimento de temas pertinentes ao direito constitucional, ao direito administrativo, ao direito financeiro e também às políticas públicas.

A técnica de pesquisa que se mostrou mais adequada foi a documentação indireta, isto é, aquela realizada através de pesquisa documental e bibliográfica, com destaque para análises judiciais atinentes ao tema, da legislação vigente e da doutrina. Não obstante, a experiência como estagiário na 20ª Promotoria Especializada (defesa da saúde, direito dos deficientes e proteção ao idoso) ao longo de mais de um ano, contribuiu de forma significativa para o melhor desenvolvimento do tema em questão.


1 A dignidade da Pessoa Humana como princípio jurídico-constitucional: o mínimo existencial

O Princípio da Dignidade da pessoa humana serve de esteio para os modernos [02] ordenamentos jurídicos e se encontra no artigo 1º, inciso III, da CF/88 [03] e em vários outros códigos, como nos artigos 1º da Lei Fundamental da Alemanha e da Constituição da Republica Portuguesa [04], nos preâmbulos das Cartas das Nações Unidas de 1945 e da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, entre outros. Ele aparece também como escopo da ordem econômica, como consta no artigo 170 da CF/88, além de outros artigos, como o 226, §7º; o 227 e o 230, todos da CF/88. Vale ressaltar que a dignidade da pessoa humana:

...não é um direito concedido pelo ordenamento jurídico, mas um atributo inerente a todos os seres humanos, independentemente de sua origem, raça, sexo, cor ou quaisquer outros requisitos. A consagração no plano normativo constitucional significa tão-somente o dever de promoção e proteção pelo Estado, bem como o respeito por parte deste e dos demais indivíduos (CAMARGO, 2008, p.155-156).

É possível destacar o pensamento do qual a dignidade retira seu núcleo essencial: a tradição cristã. Ela é responsável pelo seu surgimento no mundo ocidental e prega que, pelo fato de que os homens foram criados à imagem e semelhança de Deus, possuem uma igualdade essencial (CAMARGO, 2008). [05]

O princípio em tela atua também como um macro princípio, do qual se irradiam inúmeros outros, dele derivando também, a exigência de cumprimento e promoção dos direitos fundamentais.

A Corte Constitucional Alemã retirou a idéia de mínimo existencial do princípio da dignidade da pessoa humana, do direito à vida e à integridade física, mediante uma interpretação sistemática dos princípios do Estado Social. Sua jurisprudência confirma a existência de um Direito Fundamental ao mínimo vital (KRELL, 2002).

Tem-se que ressaltar que esse mínimo abarca não apenas o lado físico do ser humano, mas também se refere ao aspecto psicológico e intelectual.

Quando o mínimo existencial não é respeitado, observa-se uma ofensa ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Portanto, é uma obrigação do Estado Social dar aos indivíduos recursos básicos necessários a um mínimo de satisfação de suas necessidades. Um não existe sem o outro.

É tarefa das mais árduas definir o que é esse mínimo ou tentar elencar de forma taxativa suas características [06], porém, segundo Andreas Krell (2002, p. 63), ele deve abranger "sempre um atendimento básico e eficiente de saúde, o acesso a uma alimentação básica e vestimentas, à educação de primeiro grau e a garantia de uma moradia" [07]. Porém, esse mesmo autor prega que o seu conteúdo concreto varia de país para país. Tal idéia se apresenta de várias formas, como nos projetos de lei que tratam de uma renda mínima (FRISCHEINSEN, 2000). Krell (2002) preconiza que o texto constitucional tem que ter respaldo na realidade existente, portanto, deve-se tomar cuidado com as promessas constitucionais para que não ocorra, como ele mesmo conceitua, uma "frustração constitucional".

Nesse mesmo sentido, Ana Paula de Barcellos (apud CAMARGO, 2008) pensa que o mínimo existencial (ou núcleo da dignidade humana) serve como uma proposta de superação das dificuldades da dignidade humana, visto que atua como um subconjunto menor que minimiza os problemas dos custos, sendo mais preciso e efetivamente exigível do Estado.

O autor português J. J. Gomes Canotilho anotou o seguinte:

Relativamente aos direitos, liberdades e garantias, a Constituição portuguesa garante e protege um núcleo essencial destes direitos contra leis restritivas (núcleo essencial como reduto último de defesa). Coloca-se também o problema de saber se os direitos econômicos, sociais e culturais exigem a garantia de um núcleo essencial como condição do mínimo de existência (núcleo essencial como standard mínimo). Das várias normas sociais, econômicas e culturais é possível deduzir-se um princípio jurídico estruturante de toda a ordem econômico-social portuguesa: todos (princípio da universalidade) têm um direito fundamental a um núcleo básico de direitos sociais (minimum core of economic and social rights), na ausência do qual o estado português se deve considerar infractor das obrigações jurídico-sociais constitucional e internacionalmente impostas. Nesta perspectiva, o "rendimento mínimo garantido", as "prestações de assistência social básica", o "subsídio de desemprego" são verdadeiros direitos sociais originariamente derivados da constituição sempre que eles constituam o standard mínimo de existência indispensável à fruição de qualquer direito (CANOTILHO, 2003, p. 518).

Observa-se que em sede jurisprudencial, mais especificamente, no Supremo Tribunal Federal, já vem sendo adotado posicionamento alinhado com o que foi até então exposto. Segundo o Ministro Celso de Mello:

Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (STF, ADPF n. 45, Rel. Min. Celso de Mello, julg. 29.04.04, g. n.).

Em suma, ambos os conceitos estão interligados. Portanto, como já explicitado, esse mínimo tem que ser respeitado para que seja também respeitado o Principio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana e, por conseguinte, os direitos fundamentais.

1.1 Direitos Fundamentais

1.1.1 Conceito e características

Pode-se conceituar os direitos fundamentais como um conjunto de prerrogativas e instituições, que, de acordo com o momento histórico, realizam as idéias de liberdade, igualdade e dignidade entre os homens, indispensáveis a uma sociedade política. Nesse mesmo sentido, nas palavras do constitucionalista José Afonso da Silva, os direitos fundamentais do homem são, "No nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas." (SILVA, 2004, p. 178).

Sarlet (2003) esclarece que o reconhecimento e positivação dos direitos fundamentais são concretizações do que prega o princípio da dignidade da pessoa humana.

No presente trabalho não se irá trabalhar com todas as características dos direitos fundamentais [08], mas apenas com uma delas, a historicidade, visto que acompanhar o desenvolvimento ao longo dos tempos desse direito é importante para o entendimento dos mesmos.

1.1.2 Evolução Histórica: as dimensões dos direitos fundamentais

Usualmente costuma-se dividir os direitos fundamentais em três gerações [09]. Tal distinção se baseia no fato de que os direitos fundamentais sofreram várias mudanças ao longo dos séculos. Porém, o termo "gerações" sofre muitas críticas da doutrina, visto que tal expressão pode passar a impressão da substituição de uma geração por outra. Por esse motivo o termo "dimensões" é o mais aceito, visto que contempla a presença de todas elas concomitantemente, o que reafirma sua unidade e indivisibilidade no contexto constitucional interno. Ou seja, tais gerações estão interligadas e não devem ser vistas de forma estanque. São equiparadas ao tema da Revolução Francesa: "Liberdade, Igualdade e Fraternidade".

Os direitos fundamentais de primeira dimensão são resultado das idéias liberais do século XVIII, o Século das Luzes. São também chamados de direitos de defesa, visto que são direitos do indivíduo frente ao Estado. Eles se caracterizam por uma não-atuação do Estado (non facere) sendo, portanto, de status negativo e um limite à ação estatal. Nessa fase havia um descaso em relação às desigualdades sociais, já que a maior preocupação era com a liberdade do cidadão. São exemplificados pelos direitos civis e políticos, quais sejam, os direitos à vida, à liberdade e à propriedade, entre outros.

Com a queda do Estado liberal e o crescimento do Estado do bem-estar social (Welfare State), a figura estatal passou a atuar ativamente na sociedade, não havendo mais espaço para o ideal absenteísta de outrora. Tal ação encontra fundamento na busca da igualdade material e de fato e não apenas da igualdade formal. Esse movimento deu origem à segunda dimensão de direitos fundamentais, caracterizada pelos direitos sociais, econômicos e culturais, por se ligarem, como supracitado, a reivindicações de justiça social. São direitos positivos que dependem da atuação estatal (facere). Os diretos fundamentais sociais não são direitos contra o estado, mas sim direitos através do estado (CUNHA JÚNIOR, 2008). São os direitos a prestações. São exemplos dos direitos de segunda dimensão a educação, o trabalho e a saúde.

Os direitos de terceira dimensão versam sobre solidariedade e fraternidade. São direitos de titularidade coletiva ou difusa, não tratando mais do homem como um ser individual e isolado. Entre tais direitos se encontra o direito à paz, ao meio ambiente e à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural.

A teoria que defende que existam direitos de quarta dimensão ainda não se encontra consolidada no mundo jurídico atual. Em nosso país essa nova divisão é preconizada por Paulo Bonavides, que defende ser a mesma o resultado da globalização dos direitos fundamentais (não podendo existir fronteiras para estes). A citada divisão é composta pelos direitos à democracia, à informação e ao pluralismo.

Mais uma crítica às dimensões de direito é tecida pela doutrina. Tal crítica reside na afirmação de que os direitos de primeira geração se caracterizam por uma ausência do agir estatal. Porém, para proteger o direito ao patrimônio, por exemplo, que é, de fato, de primeira dimensão, é necessário que se tenha um aparato policial, ou seja, é preciso ensejar gastos públicos. Assim como o direito à greve, tipicamente social, contém como nota marcante um não-agir estatal, não acarretando gastos do erário.

Os direitos fundamentais possuem funções múltiplas, o que leva que sua estrutura não seja única, ensejando algumas classificações úteis para a melhor compreensão de sua essência. Acima, já vimos uma das importantes distinções dessa seara, que trata dos direitos de defesa e dos direitos a prestações.

No final do século XIX, Jellinek desenvolveu a famosa doutrina dos quatro status em que o indivíduo pode se encontrar face ao Estado. O indivíduo pode se achar em uma posição de subordinação aos poderes públicos, tendo deveres para com o Estado, sendo esse o status subjectionis ou status passivo. Temos ainda o status negativo, já que o homem precisa gozar de um espaço de liberdade em relação ao Estado. Já nas situações em que o indivíduo pode demandar algo dos poderes públicos, há o status positivo, ou status civitatis. E por fim, há o status ativo, que ocorre quando o indivíduo possui competência para influir sobre a formação da vontade estatal (direitos políticos).

Há ainda a divisão feita por Canotilho, que os separa em direitos originários a prestações e direitos derivados a prestações. Os originários são reconhecidos a partir da garantia constitucional de certos direitos, reconhecendo-se o dever do Estado na criação de pressupostos materiais (indispensáveis ao exercício desses) e a possibilidade do cidadão exigir prestações constitutivas desses direitos. Os direitos sociais, econômicos e culturais se enquadram nesse pólo. Já os direitos derivados, para os cidadãos, resultam no direito ao igual acesso, obtenção e utilização das instituições criadas pelo poder público, ao longo das realizações do Estado, como o igual acesso as escolas, aos transportes e as telecomunicações.

Deve-se identificar a saúde, que integra o tema do presente trabalho, como um direito prestacional originário, social e de segunda dimensão. Tais direitos, por demandarem uma ação estatal, sempre enfrentaram problemas no tocante a sua aplicabilidade, que é o próximo tema desse trabalho.

1.1.3 Artigo 5º, §1º, CF/88: A auto-aplicabilidade dos direitos fundamentais – interpretação adequada

Os direitos fundamentais, muito embora sejam sede de grande celeuma, são normas programáticas. Tais normas não representam meras recomendações ou preceitos morais com eficácia ético-política meramente diretiva, mas constituem Direito diretamente aplicável (KRELL, 2002). Segundo Canotilho (2003), não se deve falar de simples eficácia programática, já que qualquer norma constitucional é obrigatória perante os órgãos do poder político, além de servirem como princípios e regras de diretrizes para o legislador e a administração.

De acordo com o artigo 5º, §1º [10], da nossa Constituição Federal, os supracitados direitos possuem aplicação imediata [11]. Esse princípio da aplicabilidade imediata atinge não só os direitos previstos na Constituição, como também aqueles não previstos expressamente nela, mas que também possuam a característica da fundamentalidade material.

Entretanto, esse preceito constitucional enquadra um tema não pacífico na doutrina nacional. Existem posições diametralmente opostas nessa seara no que diz respeito à aplicabilidade dessa espécie de direitos. Existem aqueles que defendem que essa norma não pode ir contra a natureza das coisas, enquanto outros pregam que até mesmo as normas de cunho programático podem ensejar o gozo do direito subjetivo individual, independentemente de interposição do Legislativo. O único ponto em comum entre as diversas teorias existentes é que, com essa expressa previsão, o constituinte objetivou impedir que os direitos fundamentais viessem a ser letra morta no corpo constitucional (SARLET, 2003).

Porém, Celso Bastos, apud Sarlet (2003), em uma posição intermediária em relação aos extremos opostos acima descritos, prega que os direitos fundamentais são a priori diretamente aplicáveis, salvo quando: a) a Constituição remeter sua concretização ao legislador, estabelecendo que ele seja exercido na forma da lei, ou b) quando a norma não contiver os elementos básicos que venham a garantir sua aplicabilidade, por não possuir normatividade para tal. Nesse caso é necessária a atuação do Judiciário na posição de legislador.

Entre as diversas correntes existentes sobre esse tema, a posição que cremos ser a mais sensata é aquela defendida por Ingo Sarlet, que preconiza que essa norma tem cunho principiológico, sendo ela "uma espécie de mandado de otimização (ou maximização), isto é, estabelecendo aos órgãos estatais a tarefa de reconhecerem a maior eficácia possível aos direitos fundamentais" (SARLET, 2003, p. 258), entendimento não apenas dele, como também de Flávia Piovesan (apud Sarlet 2003), que entende que tal dispositivo impõe aos órgãos públicos a tarefa de "maximizar a eficácia" dos direitos fundamentais.

Ainda segundo Sarlet, a aplicabilidade imediata e eficácia plena desses direitos (e somente dos direitos fundamentais) têm que ser entendida como uma regra geral, a qual suporta exceções, desde que justificadas convincentemente.

No mesmo sentido, José Afonso da Silva (2005) diz que as normas devem ser aplicadas até onde possam (até onde haja condições para seu atendimento) e, em segundo lugar que, se invocado, o poder judiciário não pode deixar de garantir o direito reclamado ao cidadão.

O principal nessa seara, já de certa forma pacificada pela doutrina e jurisprudência, é que a "negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos direitos fundamentais sociais tem como conseqüência a renúncia de reconhecê-los como verdadeiros direitos" (KRELL, 2002, p. 23).

1.2 O direito à saúde como direito fundamental viabilizador da dignidade humana

No âmbito internacional, a primeira constituição a tratar a saúde como direito fundamental do indivíduo e interesse da coletividade foi a italiana, em 1948 (SILVA, 2004) [12].

Já no âmbito nacional, as Constituições anteriores à atual não foram totalmente omissas no que concerne à questão da saúde. Porém, não se pode negar que a Constituição Cidadã de 1988 (CF/88) elevou a outro patamar essa questão de suma importância. Ela foi a primeira a dar uma relevância maior à saúde, tratando-a como direito fundamental. Esse novo tratamento foi ao encontro das principais declarações internacionais de direitos humanos.

Nossa Constituição trata da saúde ao longo de diversos dispositivos, como o artigo 23, inciso II, que expressa que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios possuem competência comum para cuidar da saúde ou, ainda, o artigo 24, inciso XII que versa sobre a competência legislativa concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal sobre a defesa da saúde. Outros artigos importantes na nossa Constituição são os presentes na Seção II (Da saúde), do Capítulo II (Da seguridade social), do Título VIII (Da ordem social), que versam sobre a saúde. Tais artigos (do art. 196 ao art. 200) tratam do Sistema Único de Saúde, entre outros.

Um destaque maior deve ser dado ao supracitado artigo 196, que consagra:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

O artigo 6º da carta constitucional brasileira dispõe que a saúde é um direito social (juntamente com a educação, moradia, trabalho, lazer, segurança, previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados) e por estarem situados no Título II, da anteriormente citada Constituição, são direitos fundamentais.

Além disso, deve-se atentar para o fato de que os anteriormente referidos artigos (arts. 196 a 200) não se encontram elencados no rol dos direitos fundamentais do artigo 5º e seguintes de nossa carta magna. Porém, tal direito é materialmente fundamental, independentes de sua posição na Constituição devido ao seu conteúdo, oriundo da dignidade da pessoa humana. Por tal motivo, esse direito se equipara aos formalmente materiais. De acordo com Ingo Wolfgang Sarlet (2003), para uma posição jurídica ser considerada um direto fundamental deve equivaler em seu conteúdo e dignidade aos direitos fundamentais do catálogo. É também assim considerado com base no artigo 5°, §2° [13], da CF/88, que amplia as hipóteses de direitos fundamentais, inclusive, para além do texto constitucional.

O mote da saúde é também encontrado em diversos diplomas infraconstitucionais, como no Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), que em seu artigo 9º preconiza que é obrigação do Estado garantir ao idoso a proteção à saúde. [14] É objeto também da lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, que versa sobre o SUS.

No que concerne a essa temática, cabe aqui uma pequena explicação sobre o funcionamento e características desse sistema. É atribuição do Sistema Único de Saúde (SUS) a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, nos termos do artigo 5º, inciso III, da Lei 8.080/90 [15]. Na mesma legislação, está também expresso que se inclui no campo de atuação do SUS a "assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica".

Mais adiante, nos artigos 16 a 18 dessa lei federal, estão elencadas as ações que competem a cada direção (nacional, estadual e municipal) do SUS. Porém, dentre as ações apontadas nesses dispositivos, não há referência específica sobre a integralidade dos atos prestados por esses entes federativos, o que leva à conclusão que as três esferas de ação do SUS são igualmente responsáveis pela sua prestação. Todos eles, portanto, são legitimados passivos na ação em que se pleiteiam procedimentos ou medicamentos que deveriam ser prestados por esse sistema. A Norma Operacional Básica – NOB 1/96 também trata de aspectos relevantes do SUS (como a questão do repasse de recursos de um município para o outro), assim como a Lei 8.142/90, que versa sobre a participação da comunidade na gestão desse sistema e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde.

O SUS é regido pelos princípios da descentralização, do atendimento integral e da participação da comunidade. É financiado com recursos do orçamento de todos os entes federativos, além de outras fontes. A Emenda Constitucional nº 29 de 2000 deu nova redação ao artigo 198, da Constituição Federal, prevendo a aplicação de recursos do produto de suas arrecadações de tributos e de transferências em porcentagens e critérios estabelecidos em Lei Complementar [16].

Entretanto, apesar de toda essa positivação em nosso ordenamento jurídico, há um grave problema presente nesse tipo de direitos, como os de segunda dimensão, que é a necessidade do gasto público. Gasto esse, que é restringido por vários fatores, encontrando tanto limites fáticos (reserva do possível) como jurídicos (previsão orçamentária), o que acaba fazendo com que exista certa relativização na eficácia e efetividade desses direitos prestacionais.

Na Alemanha, assim como no Brasil, se sabe que promessas constitucionais exageradas (mediante os direitos fundamentais sociais) são capazes de levar a uma "frustração constitucional", o que acarreta no descrédito da própria instituição (Krell, 2002). Segundo a teoria de Loewenstein (apud Krell, 2002, p. 27), "a carta brasileira representaria uma constituição nominal, cujas normas ainda não estão sendo acompanhadas por parte do processo político dinâmico." Segundo essa teoria, as citadas promessas constitucionais exageradas serviriam como um estímulo aos detentores do poder e uma "fonte de esperança" para os beneficiados.

Porém, tal teoria é rechaçada por Marcelo Neves (Krell, 2002) que diz que muitas normas, por não terem como serem efetivadas, servem somente como um álibi para criar a imagem de um Estado que responde através de normas aos problemas da coletividade, desempenhando uma função ideológica em desenvolver uma forma de manipulação ou ilusão que imuniza o sistema político contra outras alternativas.

1.2.1 Eficácia negativa do direito à saúde: Proibição principiológica do retrocesso social

Para tratar da eficácia negativa do direito fundamental à saúde, devemos retomar a crítica feita anteriormente à afirmação de que os direitos de segunda dimensão são sempre caracterizados por um agir estatal, que culmina no gasto de recursos. O tema estudado nesse trabalho, a saúde, também possui uma dupla conotação nesse sentido. Isso decorre do fato de a mesma não só impor ao Estado a realização de políticas públicas que busquem a real efetivação desse direito, como também possuir a nota característica dos direitos de defesa, no sentido que impede ingerências indevidas por parte não só do Estado, mas também de terceiros na saúde da sociedade. Ou seja, há um não agir, ocorre uma omissão estatal nesse direito social (SARLET, 2002). Como exemplos dessa faceta negativa, temos o impedimento do Estado de editar normas que possam prejudicar a saúde da população ou mesmo de evitar a violação direta da integridade física de um cidadão pelo Estado.

Ainda nesse contexto, deve-se salientar o papel de um princípio não muito difundido entre nós, mas que tem tido uma crescente acolhida no âmbito da doutrina defensora do Estado democrático de direito (SARLET, 2002), que é o princípio da proibição do retrocesso (também conhecido como princípio do não retrocesso social), derivado dessa eficácia negativa supracitada. Tal princípio postula que uma vez obtido determinado grau de realização social, esse nível se transforma em uma garantia institucional e em um direito subjetivo. Ou ainda, segundo o jurista português Canotilho, (2003, p. 340) "o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas deve considerar-se constitucionalmente garantido". Continuando, ele afirma que "sobretudo quando o núcleo essencial se reconduz à garantia do mínimo de existência condigna inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana" (CANOTILHO, 2003, p. 340).

Dessa forma, suponha-se uma situação em que uma lei seja promulgada e venha a eliminar algum direito anteriormente conseguido. Nesse caso a mesma deverá ser tida como inconstitucional, caso não haja a criação de algum esquema compensativo. Não se pode simplesmente extinguir aquele direito, nem há como desconstituir o grau de concretização do mesmo, visto que isso seria como aduz Sarlet (2002), um "golpe contra nossa Lei Fundamental", cabendo impugnação judicial de tal medida.

Porém, surgem alguns problemas de efetivação no que tange a alguns direitos, como os direitos sociais, conceituados por José Afonso da Silva (2004, p. 285-586):

...como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade.

Esses direitos, de uma maneira geral, carecem de uma participação estatal maior do que os direitos de primeira dimensão, que não encontram muitos problemas em sua efetivação. Essa necessidade da atuação do Estado acaba, em alguns casos, frustrando sua real efetivação. Cabe a nós tentar impedir que sejam apenas texto de lei, e que se tornem reais, de fato. Uma das possibilidades é permitir que o judiciário, em alguns casos, concretize políticas públicas. Essa alternativa será tratada com mais atenção no próximo capítulo.


2 Concretização de Políticas Públicas pelo judiciário: Limites e possibilidades

Inicialmente, deve-se salientar que, a priori, não é competência originária do Judiciário implementar ou formular políticas públicas, [17] que, para Maria Paula Dallari Bucci, são "programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados." (BUCCI, 2002, p. 241).

Ainda, segundo Teixeira (2002), citado por Santos et al. (2007, p. 829):

"Políticas Públicas" são diretrizes, princípios norteadores da ação do poder público; regras e procedimentos para as relações entre poder público e sociedade, mediação entre atores da sociedade e do Estado. São esses casos, de políticas explicitadas, sistematizadas ou formuladas em documentos que orientam ações que normalmente envolvem aplicações de recursos públicos.

Logo, percebe-se que política pública é o Estado em ação. E também sabemos que o Estado deve "funcionar como uma máquina voltada, prioritariamente, para a satisfação dos direitos fundamentais" (CLÉVE, 2005). Portanto, de acordo com o caso em estudo, é possível esse tipo de atuação judiciária, como se aduz dessa passagem presente no voto do Ministro Celso de Mello, na ADPF/45:

Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático.

A própria constituição estabelece seus fins essenciais, sendo a promoção dos direitos fundamentais, um deles. As políticas públicas, como já visto, constituem um meio para se alcançar esse fim, mas elas envolvem gastos, principalmente no que concerne aos direitos sociais (de segunda dimensão). O problema reside no fato de que como não há excesso financeiro, é necessário que se façam escolhas, e tais opções não são totalmente discricionárias, recebendo forte influencia de normas jurídicas (BARCELLOS, 2008).

Krell (2002), na conclusão de sua obra intitulada "Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha", afirma que se os doutrinadores alemães tivessem que lidar com uma situação como a nossa (de exclusão social), passariam a exigir do judiciário sua interferência nos outros poderes quando esses não cumprissem as exigências básicas da constituição.

Atualmente não se trata mais de saber se é viável ou não o controle judicial dos comportamentos públicos ilícitos. Tal posicionamento deriva do artigo 5º, inciso XXXV, da CF/88 [18] e também da noção de Estado Democrático de Direito. O que urge agora é reconhecer os limites a essa intervenção, a fim de que esta não seja inócua, e no outro extremo, não invada esferas discricionárias e políticas de outros poderes (CARVALHO, 2008).

Já existe na jurisprudência nacional casos que vão ao encontro do aqui defendido, como o Ag. Regimental no RE nº 410.715-SP, do relator Min. Celso de Mello:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO - CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV) - COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - RECURSO IMPROVIDO. - Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à "reserva do possível". Doutrina (DJU de 03/02/2006, p. 76). (sem grifo no original). [19]

Destarte, pode-se concluir que em alguns casos específicos deve haver sim, uma interferência do Judiciário nos outros poderes no que tange ao tema do presente capítulo. Porém, tal interferência encontra três grandes barreiras à sua efetivação, quais sejam: a previsão orçamentária, a cláusula da reserva do possível e a separação de poderes.

Nos próximos sub-capítulos iremos tratar com mais atenção desses obstáculos, tentando encontrar caminhos para transpô-los.

2.1 Planejamento Orçamentário

O orçamento, historicamente, era tido como uma peça que continha previsões de receitas e de gastos. Era meramente uma peça contábil. Já no mundo moderno, o orçamento é tido como um instrumento da ação estatal. Não vislumbra apenas aspectos de contabilidade como outrora, mas também os anseios de toda a sociedade.

A CF/88 prevê no artigo 165, três planejamentos orçamentários, quais sejam o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual. A lei orçamentária anual deve respeitar as diretrizes orçamentárias e ambas devem concordar com o orçamento plurianual [20].

O Plano Plurianual define o planejamento das atividades governamentais de longo prazo. É um plano conjuntural para a promoção do desenvolvimento econômico, do equilíbrio entre as regiões do país e da estabilidade na economia (TORRES, 2005). Está previsto no §1º, do artigo 165, da CF/88.

Já a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro seguinte, orientará a lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras de fomento, conforme expresso no artigo 165, §2º, da nossa constituição.

Por fim, tem-se a Lei Orçamentária Anual (LOA), que trata do orçamento fiscal e dos investimentos de empresas estatais, além da seguridade social.

Embora existam esses três tipos de lei tendo como tema o orçamento, deve-se ressaltar que o orçamento é uno, visto que deve existir harmonia entre estes três documentos. Tal unidade é um princípio extraído do §5° do artigo 165, da CF/88. Segundo Torres (2005, p. 118), "O princípio da unidade já não significa a existência de um único documento, mas a integração finalística e a harmonização entre os diversos orçamentos."

Ainda com fulcro no artigo supracitado, é possível extrair outro princípio orçamentário, que é o da universalidade, que significa que devem estar previstas na lei orçamentária todas as despesas e receitas.

A Constituição Federal de 1988 veda o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual [21], a realização de despesas que excedam os créditos orçamentários [22], bem como a transposição, o remanejamento ou a transferência de recursos de uma categoria de programação para outra ou de um órgão para outro, sem prévia autorização legislativa [23].

Portanto, a interferência do judiciário esbarra na previsão orçamentária que, como já visto, tem o condão de impedir a criação de uma nova despesa no decorrer de seu período de vigência. Mas ocorre aqui que as opções na hora da feitura do orçamento não são totalmente livres, mas devem atender o disposto na Constituição, como a dignidade da pessoa humana e, conseqüentemente o respeito aos direitos fundamentais. Tal posicionamento é partilhado por Clèmerson Clève (2005):

Desta forma, tratar-se-ia de compelir o Poder Público a cumprir a lei orçamentária que contenha as dotações necessárias (evitando, assim, os remanejamentos de recursos para outras finalidades), assim como de obrigar o Estado a prever na lei orçamentária os recursos necessários para, de forma progressiva, realizar os direitos sociais.

Ainda sobre o planejamento orçamentário, Riani (2005, p. 182) afirma que:

Há diversas vinculações constitucionais expressas que, independentemente da vontade dos Poderes envolvidos, têm que ser feitas de determinada maneira (como a definição de recursos para a educação). A isto pode se chamar, pegando emprestada a terminologia de Canotilho, de heterovinculação dos responsáveis pela elaboração do orçamento.

Ou seja, em relação aos gastos vinculados aos ditames constitucionais, não há discricionariedade do Executivo.

Vale ressaltar que o orçamento não é mais admitido como uma peça meramente autorizativa, e sim como um programa. Portanto, ele é lei que precisa ser cumprida pelo Poder Executivo, de acordo com os princípios que regem a administração pública, sendo eles o princípio da legalidade, da economicidade e da eficiência.

2.2 O dogma da Separação de Poderes

O Princípio da Separação de Poderes já se encontrava nas obras de Aristóteles, John Locke e Rousseau, mas foi mais difundido com o iluminista Montesquieu, em sua obra "Do espírito das leis". Essa separação está presente na Constituição dos Estados Unidos de 1787 e na França por meio da Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 1789.

Segundo Montesquieu (apud MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 155):

Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções publicas, e o de julgar os crimes ou divergências dos indivíduos.

Esse princípio teve seu apogeu no início do constitucionalismo moderno, esteando, nas palavras de Paulo Bonavides (1972, p. 36):

...a organização política do novo Estado liberal-democrático, amparado no triunfo doutrinário que coroou a rebelião das 13 colônias americanas e a insurreição libertadora da burguesia revolucionária de França, em fins do século XVIII.

Em nossa constituição tal princípio se encontra no artigo 2º [24], que declara que os poderes da União são independentes e harmônicos, sendo, inclusive, uma clausula pétrea [25].

Esse instituto serviu para evitar a concentração de poderes na mão do soberano, figura comum na época do Estado Absoluto, anterior as revoluções burguesas. O intuito básico dessa divisão do poder reside na real garantia dos direitos fundamentais, situação mais fácil de ser encontrada em um Estado onde esse princípio atuava. Ele era uma "arma de que se valeu a doutrina para combater sistemas tradicionais de opressão política" (BONAVIDES, 1972, p. 47).

Posteriormente, foi elaborado o sistema de "freios e contrapesos" (checks and balances), no qual o poder limita o próprio poder, evitando abusos e o arbítrio das autoridades.

Porém, hoje em dia, para ser interpretado corretamente, esse princípio deve ser visto de forma temperada, com ajustes à luz das diversas realidades constitucionais e não mais da forma rígida de outrora. O princípio em foco pregava a diminuição do Estado, e não o seu alargamento, porém, com o Estado Social, cresceram os fins do Estado. O mundo moderno impôs ao poder estatal sua ampliação e o aumento de suas responsabilidades (BONAVIDES, 1972).

Portanto, o dogma da separação de poderes tem que ser revisto, principalmente, no que tange ao controle dos gastos públicos e da prestação de serviços básicos no Estado Social, visto que atua com um efeito paralisante nessas sociedades (KRELL, 2002), não podendo ser visto como uma contradição aos direitos sociais (BONAVIDES, 1972). Ele "já não oferece em nossos dias o fascínio das primeiras idades do constitucionalismo ocidental" (BONAVIDES, 1972, p. 36), devido, como já explicado, ao crescimento do Estado Social.

Na verdade, já existe certa modernização desse princípio. Dentre as exceções a ele temos a legislação emanada do Poder Executivo, como as Medidas Provisórias (art. 62, CF/88), assim como a oriunda do Judiciário, fruto da criatividade dos juízes e tribunais, sobretudo das cortes constitucionais, onde é freqüente a criação de normas de caráter geral. Também encontramos outra exceção a esse princípio na autorização de delegação de atribuições legislativas ao Presidente da República (art. 68, CF/88). Não se pode esquecer também da figura do Mandado de Injunção, presente no artigo 5º, inciso LXXI, da CF/88.

A quebra desse princípio também é também notada na participação mais ativa do Ministério Público, seja ele Estadual ou Federal, a partir da Constituição Federal de 1988, na questão dos direitos difusos e coletivos. Tal atuação é facilmente encontrada no que diz respeito à sua ativa participação frente aos poderes do Estado, como no caso de defesa da saúde, conforme veremos adiante.

Deve se atentar também para a existência de alguns órgãos de fiscalização, como os Tribunais de Contas e o supracitado Ministério Público, que não se encaixam em nenhum dos três poderes tradicionais.

Em suma, é um poder-dever do Judiciário, por omissão do Estado na concretização de algum direito fundamental ou de lacuna legislativa que venha a impedir sua fruição, aplicar diretamente o preceito definidor desse direito. O poder judiciário tem a capacidade de "por meio de uma interpretação construtiva, de criar o Direito, de modo que os juízes e os tribunais são considerados autênticos Law-makers"(CUNHA JÚNIOR, 2008, p. 358). Então, nesses casos, o dogma da separação dos poderes deve ser quebrado.

2.2.1 Atuação do Ministério Público em Juiz de Fora: Dados concretos.

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, deu nova roupagem ao Ministério Público, dando lhe uma atenção inédita em nossa história. Ele tem seu caráter permanente e essencial à função jurisdicional do Estado proclamado e fortalecido nessa Carta (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008).

Sua origem mais aceita [26] é a que prega que ele é:

...filho da democracia clássica e do Estado de Direito, nascidos da Revolução Francesa de 1789, que, abolindo o Estado autoritário do Ancien Régime, instituiu uma nova ordem, baseada no respeito à lei, como expressão da vontade geral (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 993).

Segundo nossa Carta Magna, cabe ao Ministério Público [27] a defesa dos interesses sociais da sociedade, além da função de zelar pelo efetivo respeito aos direitos assegurados na nossa Constituição, através da promoção das medidas necessárias à sua garantia.

Com vistas a um mapeamento da situação local sobre o tema em foco, foram coletados alguns dados estatísticos acerca da atuação do Ministério Público no município de Juiz de Fora/MG no que concerne à área da Saúde. Esses números foram auferidos com o intuito de se verificar a importância cotidiana que o acesso à saúde representa para a sociedade brasileira, e em especial, a juizforana.

O MP possui inúmeros meios para se fazer respeitar a defesa do direito a saúde, como a Ação Civil Pública [28] e outros mais que veremos adiante.

A 20ª Promotoria, que possui competência para tratar da Defesa da Saúde (e também dos Direitos dos Deficientes e Proteção ao Idoso), emitiu novecentos e quarenta e dois pareceres em Mandados de Segurança nos anos de 2006 e 2007. Os pedidos desses mandados consistem, basicamente, na prestação de medicamentos, insumos farmacêuticos, leitos hospitalares, cirurgias e exames, entre outros procedimentos médicos.

O Parquet realizou ainda, vinte e seis Procedimentos Administrativos [29] ao longo do biênio supracitado, tendo como objeto a não realização de obras necessárias em algumas UBS´s (Unidades Básica de Saúde), o dimensionamento de pessoal e a falta de medicamentos, como o Etanercept [30] e o Rituximabe [31], entre outros casos relacionados à temática desse trabalho.

As ações supracitadas correspondem às medidas jurídicas tomadas por essa promotoria especializada. Porém, existe ainda a hipótese de serem realizados procedimentos diferentes dos supracitados, tal como encaminhar diretamente um ofício para a Secretaria de Saúde, Saneamento e Desenvolvimento Ambiental da Prefeitura de Juiz de Fora, com o intuito de pleitear algum medicamento anteriormente recusado. O número total desses atendimentos feitos pelo MP é da ordem de duzentos e seis em 2006 e de trezentos e dezoito em 2007, totalizando quinhentos e vinte e quatro [32] nesses dois anos.

Ou seja, foram realizadas, nesse biênio, cerca de mil quatrocentas e noventa e duas ações com o intuito de realmente efetivar o mandamento constitucional da Saúde, no município pesquisado.

2.3 A Reserva do Possível

A cláusula da Reserva do Possível, nas palavras de Canotilho (2002, p. 481), traduz "a idéia de que os direitos sociais só existem quando e enquanto existir dinheiro nos cofres públicos."

Essa cláusula tem origem germânica, em um julgamento de um caso em que estudantes alemães queriam vagas em determinadas universidades desse país. A Corte Constitucional Federal da Alemanha no caso numerus clausus, BVerfGE n.º 33, S. 333, decidiu que:

...a prestação reclamada deve corresponder ao que o individuo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo em dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável (SARLET, 2003, p. 276).

As decisões judiciais têm exigido, além da falta de recursos por parte do Estado, a sua real comprovação, com o intuito de se evitar que ela vire uma desculpa para a ausência das prestações estatais. O Supremo Tribunal Federal se coaduna com esse sentido:

É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da "reserva do possível" – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade (STF, ADPF n. 45, Rel. Min. Celso de Mello, julg. 29.04.04, g. n.).

Portanto, diferindo do que normalmente se apregoa acerca da reserva do possível, sua utilização é balizada não apenas por questões de cunho financeiro, mas também deve ser levada em conta a pretensão deduzida no caso concreto, pois o pedido tem que ser balizado pelo razoável. Mesmo no caso do Estado possuir recursos vultosos, não deve deferir pleitos irrazoáveis dos indivíduos. Destarte, a reserva do possível pode ser utilizada somente nos casos em que sua fundamentação estiver alicerçada em dois fatores concomitantes, quais sejam: a) a razoabilidade do objeto pretendido e b) a real ausência de recursos por parte do Estado; binômio presente na anteriormente citada ADPF/45, no voto do relator Ministro Celso de Mello.

Tem-se como exemplo disso a decisão do Presidente do TRF/4ª Região, na Suspensão de Segurança nº 20050401000213-1/PR [33], requerida em face de liminar concedida em mandado de segurança em que o impetrante postulava liberação de recursos para realização de uma cirurgia nos Estados Unidos da América.

A suspensão foi deferida tendo em vista grave lesão à saúde e à economia públicas ao privilegiar-se uma situação particular. Nas palavras do Desembargador Vladimir Passos de Freitas:

O Estado, ao liberar vultosa soma (U$ 275.000 − duzentos e setenta e cinco mil dólares) para atender a uma situação isolada, prejudicaria as demais políticas públicas voltadas à saúde (...) Saliente−se que há notícias de que o custo de uma cirurgia de intestino realizada no Brasil custa aproximadamente U$ 41.379, ou seja, aproximadamente U$ 260.000,00 (duzentos e sessenta mil dólares) menos do que a de uma realizada na América do Norte. Assim, considerando que os recursos orçamentários são limitados, não há como deixar de considerar procedente o argumento da União, segundo o qual o cumprimento da liminar causaria grave ofensa à economia e saúde públicas.

Outro caso que se coaduna com o exposto no anterior é o MS nº 296.243-9 de Relatoria do Des. Jarbas Ladeira:

Conceder liminares e ordens no sentido de se obrigar a Administração Pública a arcar com os altos custos e tratamentos médicos longos e caros é uma prática que vem se tornando comum em nossos Fóruns e Tribunais, e que, caso seja realmente disseminada sem controle (a continuar a atual tendência jurisprudencial), pode acabar provocando um grande caos financeiro e administrativo em nosso país. De fato, é sabido que o Estado nem de longe possui recursos necessários para proporcionar, a cada um que dele necessita, o devido tratamento médico, e não se pode tentar "a fórceps" retirar esses recursos de um combalido e extremamente deficitário sistema público de saúde.

Em resumo, não se pode olvidar a realidade do déficit financeiro e operacional em que tem de atuar o Estado, desconsiderando totalmente a falta de recursos da administração, apenas pra invocar preceitos constitucionais cuja aplicação plena e satisfatória é difícil e, muitas vezes impossível.

Além do mais, verifica-se que, no caso presente (a teor de estudos que já fiz a respeito do tema), o Sistema Único de Saúde já fornece gratuitamente um outro medicamento indicado para o tratamento da hepatite C, que é uma variante do medicamento pretendido pelo Impetrante. Chama-se Interferon Alfa. Esse medicamento custa dez vezes menos que o Interferon Peguilado.

Outrossim, não considero presente nos autos a demonstração de que o medicamento mais barato, disponível pelo sistema público de saúde, seria imprestável no caso do Impetrante. Seu direito está sendo respeitado, com o fornecimento de remédio apropriado, embora não tão moderno quanto o que ele deseja (julgado em 30/04/2003).

Nesse caso, os Desembargadores aplicaram corretamente a reserva do possível, se utilizando do binômio supracitado, visto que não há recursos e que no primeiro caso, a tal cirurgia (transplante de intestino delgado) se apresenta disponível – e de qualidade - em nosso país e, no segundo caso, já é disponível um remédio (pelo menos a priori) indicado para o tratamento do Impetrante, não havendo motivos para despender o montante pleiteado.

É necessário ressaltar que vários autores, como Canotilho (2003) e Marcelo Novelino (CAMARGO, 2008), afirmam que a reserva do possível também não pode ser usada quando se trata de efetivar o mínimo existencial, pois este, como já dito anteriormente, é imprescindível a uma vida digna, não entrando nesse caso, no rol dos direitos sociais.

Outra interessante solução é apontada por Krell (2002) e compartilhada por Cunha Júnior (2008). Ela trata do remanejamento de recursos de áreas não tão intimamente ligadas aos direitos fundamentais (fomento econômico, transporte, serviço da dívida, etc.) para suprir as necessidades mais básicas da sociedade. Ressalte-se que aqui não estamos a falar necessariamente de sobras orçamentárias, mas sim, apenas de realocação dessas verbas dentro do abarcado pela própria peça orçamentária.

Por fim, deve-se atentar para o fato de que esse instituto da reserva do possível tem, como supracitado, origem germânica. Diante desse fato, é imperativo que se ressalve que é discutível o traslado de teorias de países centrais, com condições econômicas, sociais e históricas próprias, para países em desenvolvimento como o Brasil, sem as devidas ponderações.

Nesses países mais evoluídos, já existe um ótimo padrão de bem estar, por isso o posicionamento jurídico desses é diferente do encontrado aqui. Tais nações não vivem em um estado de crise social com milhões de cidadãos excluídos.

Para ilustrar esse fato, remetemos à brilhante exposição de Virgílio Afonso da Silva (2005, p. 116):

Não é difícil perceber que a doutrina jurídica recebe de forma muitas vezes pouco ponderada as teorias desenvolvidas no exterior. E, nesse cenário, a doutrina alemã parece gozar de uma posição privilegiada, já que, por razões desconhecidas, tudo o que é produzido na literatura germânica parece ser encarado como revestido de uma aura de cientificidade e verdade indiscutíveis.


CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto sobre esse complicado tema, somos obrigados a reconhecer que, de fato, o que se apresenta é de difícil solução. Mas também devemos admitir que não se pode, simplesmente, ignorar o problema da eficácia dos direitos fundamentais.

Os direitos sociais, não só os relacionados à saúde, mas todos eles (educação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade, infância e a assistência aos desamparados), assim como todos os demais direitos fundamentais, possuem aplicabilidade imediata, graças ao que está expresso no artigo 5º, §1º, da Constituição Federal de 1988. Tal artigo, como citado anteriormente, deve ser interpretado como um princípio, um mandado de otimização. Esse preceito deve ser respeitado para que não venha a se ferir nem o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, nem o mínimo existencial. O cerne do problema reside em como fazer isso.

Uma hipótese para se alcançar a supracitada efetivação se dá através da interferência do judiciário nos poderes responsáveis pelas elaborações de políticas públicas. Porém, tal atuação do Poder Judiciário encontra inúmeras críticas e barreiras, sendo esse um tema não pacífico na doutrina e jurisprudência. Essas barreiras, assim como possíveis idéias para neutralizá-las, foram discutidas ao longo desse trabalho.

Vimos que não há que se falar mais em separação absoluta de poderes como se fazia antigamente. Não impera mais, portanto, o falso reinado dessa separação. Esse princípio deve ser interpretado de uma maneira mais moderna, visto que existem exceções expressas na própria constituição.

O planejamento orçamentário, por sua vez, não pode mais servir de óbice para a implementação de políticas públicas, pois existem certas vinculações que devem ser observadas na elaboração do mesmo.

Por fim, a reserva do possível, necessariamente, só pode ser utilizada quando o binômio razoabilidade-falta de recursos se mostrar presente. Nessa seara, é ainda possível vislumbrar a hipótese do remanejamento de recursos de uma pasta para a outra, como no caso de se injetar dinheiro na saúde oriundo de outros gastos tidos como menos essenciais ao desenvolvimento do homem.

Diante de todo o exposto e estudado, podemos concluir esse trabalho com a defesa da interferência do Poder Judiciário no concernente às políticas públicas, com base no fato de que os argumentos normalmente utilizados para impedir essa atuação/intervenção judicial no que diz respeito a esse tema, não mais prosperam, visto que para todos eles, há uma saída possível, respeitadora do razoável. Deve-se, pelo contrário, fomentar essa idéia de interferência de um poder no outro, quando necessário, obviamente atentando-se para os limites que a realidade e o direito nos impõem, como no caso em que há uma real falta de recursos por parte de um Estado falido.

Portanto, essa interferência do Poder Judiciário, seja no Poder Legislativo ou no Executivo, é justa, legal e necessária se e somente se, esses restarem inertes ou ineficazes, o que ocorre muitas vezes, principalmente no que concerne aos direitos sociais, como a saúde.

Por fim, urge aos aplicadores e estudiosos do direito, no mínimo, incentivar discussões e acenar com possibilidades que irão ultrapassar as fronteiras supracitadas, contribuindo para uma melhor situação sócio-econômica de toda a sociedade brasileira, tornando os direitos fundamentais, de uma maneira geral, mais palpáveis para toda a população.


REFERÊNCIAS

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Notas

  1. Conforme disposto na Norma Operacional Básica – NOB 1/96 do Sistema Único de Saúde (SUS), em seu item 5 - Relações entre os sistemas municipais: "Os sistemas municipais de saúde apresentam níveis diferentes de complexidade, sendo comum estabelecimentos ou órgãos de saúde de um município atenderem usuários encaminhados por outro. Em vista disso, quando o serviço requerido para o atendimento da população estiver localizado em outro município, as negociações para tanto devem ser efetivadas exclusivamente entre os gestores municipais. (...)Em função dessas peculiaridades, o pagamento final a um estabelecimento pela prestação de serviços requeridos na localidade ou encaminhados de outro município é sempre feito pelo poder público do município sede do estabelecimento. (...)Os recursos destinados ao pagamento das diversas ações de atenção à saúde prestadas entre municípios são alocados, previamente, pelo gestor que demanda esses serviços, ao município sede do prestador."
  2. Ele começou a se destacar nos ordenamentos constitucionais após o fim da Segunda Guerra Mundial em uma reação às atrocidades ocorridas nessa época.
  3. Esse dispositivo contém o seguinte enunciado: "A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III – a dignidade da pessoa humana."
  4. Por sua vez, a Constituição portuguesa faz menção ao tema da seguinte forma: "Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.".
  5. Marcelo Novelino Camargo (2008) também destaca outra fonte, que é a filosofia kantiana. Kant, pioneiro na noção moderna de dignidade humana, desenvolve a "idéia de que todos os seres humanos, quaisquer que sejam, são igualmente dignos de respeito, sendo que o traço distintivo do homem, como ser racional, está no fato de existir como um fim em si mesmo. Por essa razão ele não pode ser usado como simples meio, o que limita, nessa medida, o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Para o filósofo de Königsberg, o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional está na autonomia da vontade."
  6. Marcelo Novelino Camargo (2008) enfatiza que ao menos três direitos básicos integram a composição do mínimo existencial, sendo eles: a saúde (sendo indispensável apenas o tratamento mínimo à sobrevivência do individuo), a educação fundamental (de acordo com o art. 208, I, CF/88) e a moradia (devendo o Estado oferecer aos indigentes ao menos um lugar no qual possam se recolher – não cabendo aqui moradias populares, por exemplo, visto que é um direito social, sujeito às limitações orçamentárias).
  7. Esse posicionamento é também compartilhado por BARROSO apud CAMARGO (2008).
  8. Apesar de ser difícil identificar características dos direitos fundamentais que sejam sempre válidas, é possível elencar algumas delas, além da supracitada historicidade. De acordo com José Afonso da Silva (2004) elas são: inalienabilidade (são intransferíveis, inegociáveis e indisponíveis); imprescritibilidade (nunca deixam de serem exigíveis) e por fim, a irrenunciabilidade (não são passiveis de renúncia).
  9. Há quem adote a divisão dessas dimensões em quatro, como Paulo Bonavides, e há até mesmo quem defenda a existência de uma quinta dimensão.
  10. O artigo 5º, §1º, da Constituição Federal da Republica Federativa do Brasil, consagra que: "As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata."
  11. As constituições da Alemanha, Espanha e Portugal compartilham desse entendimento.
  12. O artigo 32, da Constituição da República Italiana, de 1948, dispõe que: "La Repubblica tutela la salute come fondamentale diritto dell'individuo e interesse della collettività, e garantisce cure gratuite agli indigenti." (A República tutela a saúde como direito fundamental do indivíduo e interesse da coletividade e garante cuidados gratuitos aos indigentes – Livre tradução).
  13. Está expresso nesse dispositivo que: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte."
  14. Lei 10.741/2003, no seu artigo 9º: "É obrigação do Estado, garantir à pessoa idosa a proteção à vida e à saúde, mediante efetivação de políticas sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade."
  15. Os outros incisos desse artigo são: I – a identificação e divulgação dos fatores condicionantes e determinantes da saúde e II – a formulação de políticas de saúde destinada a promover, nos campos econômico e social, a observância do disposto no §1º do artigo 2º desta Lei.
  16. O artigo 77 do ADCT, incluído por essa mesma Emenda já define o percentual de 5% para a União, 12% para os estados e 15% para os municípios e para o Distrito Federal, até a promulgação da citada Lei Complementar.
  17. Ou, conforme BARCELLOS (2008, p. 138): "...compete à Administração Pública efetivar os comandos contidos na ordem jurídica e, para isso, cabe-lhe implementar ações e programas dos mais diferentes tipos, garantir a prestação de determinados serviços, etc. Esse conjunto de atividades pode ser identificado, de forma simplificada, como ‘políticas públicas’."
  18. Art. 5º, inciso XXXV, da CF/88: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito."
  19. Disponível em: http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=(RE$.SCLA.%20E%20410715.NUME.)%20OU%20(RE.ACMS.%20ADJ2%20410715.ACMS.)&base=baseAcordaos
  20. Essas idéias se baseiam nos art. 165, §7º, 166, §4º e 167, §1º, da CF/88.
  21. Artigo 167, I, Constituição Federal.
  22. Artigo 167, II, Constituição Federal.
  23. Artigo 167, IV, Constituição Federal.
  24. Texto do artigo 2º, da CF/88: "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário".
  25. A CF/88 em seu artigo 60, §4º, inciso III, consagra que: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) III – a separação de poderes".
  26. Há quem diga que sua origem mais remota é o magiai, funcionário real do antigo Egito, passando ainda pela Antiguidade, tanto na Grécia como em Roma.
  27. Isso é o que dispõem o artigo 127, caput e o artigo 129, incisos II e III, da CF/88.
  28. Lei 7.347/85, conforme disposto no artigo 5º, inciso I.
  29. Os Procedimentos Administrativos são atualmente chamados de Procedimentos Preparatórios, devido à Resolução Conjunta PGJ-CGMP, nº 3 de 14/12/2007.
  30. Nome genérico do medicamento usado para o tratamento da artrite reumatóide.
  31. Nome genérico do medicamento usado para tratamento do linfoma não-Hodgkins.
  32. Esse número engloba todos os atendimentos que a 20ª Promotoria prestou, mas a maior parte diz respeito à Saúde.
  33. Disponível em:

http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/visualizar_documento_gedpro.php?local=trf4&documento=482734&hash=5689d50904834cda132cfc16109760a9


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Artur Alves Pinho. O direito social à saúde e atuação do Poder Judiciário no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2926, 6 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19489. Acesso em: 25 abr. 2024.