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Peculiaridades acerca da aquisição pública de insumos de saúde pelo Ministério da Saúde, por intermédio da Organização Pan-Americana de Saúde

Peculiaridades acerca da aquisição pública de insumos de saúde pelo Ministério da Saúde, por intermédio da Organização Pan-Americana de Saúde

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As ações e serviços de saúde implementados no Brasil por organismos internacionais e que necessitem de aquisição de insumos de saúde podem ser viabilizados sem a observância das normas internas relativas a licitação.

Palavras-chave: Direito Constitucional e Administrativo. Organização Pan-Americana de Saúde – OPAS/OMS. Obediência aos procedimentos aquisitivos adotados pelo organismo multilateral internacional. Faculdade em licitar.

Sumário: 1 Intróito – 2 Da Organização Pan-Americana de Saúde - 2.1 Do objeto da cooperação técnica - 3 Da natureza jurídica dos termos de cooperação técnica internacionais - 3.1 Tratado internacional de direitos humanos 3.2 Do status normativo do TIDH em relação às normas internas - 3.3 Posição anterior do Supremo Tribunal Federal: paridade - 3.4 Posição atual do Supremo Tribunal Federal: supralegalidade – 4 Da execução direta ou internacional e da execução nacional dos projetos de cooperação técnica internacional - 4.1 O posicionamento do Tribunal de Contas da União - 4.2 Do pedido de reexame e do efeito suspensivo – 5 Da aquisição de produtos para implementação de ações de saúde no âmbito do Ministério da Saúde - 5.1 A Lei n. 10.191, de 2001 - 5.2 Obrigatoriedade de licitar ou faculdade posta à Administração Pública para alcançar seus fins? - 5.3 Da submissão aos ditames constitucionais - 5.3.1 Da submissão aos ditames constitucionais - 5.4 Da necessidade de oitiva da Agência Brasileira de Cooperação – 6 Da conclusão - Referências


1 INTRODUÇÃO

O presente artigo apresenta elevada relevância ante escassas manifestações sobre os termos de cooperação técnica internacionais firmados pela Organização Pan-Americana de Saúde – OPAS - e a União, por intermédio do Ministério da Saúde.

Nesse prisma, tem-se por objeto a apresentação de um estudo sobre as normas aplicáveis à execução de projetos de cooperação técnica, tanto na modalidade de execução direta ou internacional, em que o organismo internacional conduz e dirige as atividades, quanto na modalidade de execução nacional, na qual a gestão de projetos de cooperação técnica internacional, acordados com organismos ou agências multilaterais, pela qual a condução e direção de suas atividades estão a cargo de instituições brasileiras ainda que a parcela de recursos orçamentários de contrapartida da União esteja sob a guarda de organismo ou agência internacional.

Robustece-se a tese, calcado no status normativo de tratado de direito internacional, cuja supralegalidade fora reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, além dos princípios que regem o Brasil em suas relações internacionais.

Procederemos a uma análise do entendimento do Tribunal de Contas da União, adornando-o com fundamentos legais, concluindo pela exceção ao dever de licitar nos procedimentos de aquisição pela OPAS.


2 DA ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE - OPAS

A Organização Pan-Americana da Saúde - OPAS é um organismo internacional de saúde pública que também atua, no Brasil, como Escritório Regional da Organização Mundial da Saúde - OMS. Esse organismo coopera com os governos, por meio de técnicos e cientistas de vários países vinculados à OPAS, para melhorar políticas e serviços públicos de saúde, estimulando o trabalho em conjunto com países para alcançar metas comuns. [01]

A atuação da OPAS no território nacional teve início com a assinatura do Convênio Básico entre o Brasil e a OMS em 4/2/1954, o qual fora aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo n.º 11, de 23/2/1956.

Com arnês em tal acordo internacional, foi editado o Decreto n. 3.594, de 8 de setembro de 2000, por meio do qual foi previsto que o Ajuste Complementar ao Convênio Básico entre o Governo da República Federativa do Brasil e a OMS e ao Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Repartição Sanitária Pan-Americana da Saúde será executado e cumprido tão inteiramente como nele se contém. [02] (grifo nosso)

2.1 Do objeto de cooperação técnica

Nesse quadrante, consoante artigo I do referido Ajuste, apenso por cópia ao Decreto n. 3.594, de 2000, o Ajuste Complementar tem como objeto o desenvolvimento da cooperação no âmbito do Ministério da Saúde voltada para programa e projetos relacionados aos Sistemas de Saúde no Brasil, entendida como ação solidária nos seguintes campos: a) desenvolvimento de políticas de saúde que, a critério das partes, venham a ser definidas; b) desenvolvimento de sistemas e serviços de saúde; c) desenvolvimento da infra-estrutura de sistemas de saúde; d) desenvolvimento de recursos humanos em saúde; e) desenvolvimento científico e tecnológico em saúde; f) promoção à saúde e prevenção e controle de doenças e outros agravos; g) estimular o aumento do uso de insumos estratégicos de saúde pública pelo Governo; e h) outros campos que venham a ser mutuamente acordados. (grifo nosso)

O objeto da cooperação encontra-se também cristalinamente delineado no mencionado Ajuste Complementar, consoante artigo II, de modo que tal cooperação far-se-á por intermédio de intercâmbio de cientistas, gestores e pessoal ligado à saúde; troca de informações; consultoria, treinamento, realização de seminários, simpósios, oficinas de trabalho; publicações; pesquisas, transferência de tecnologia, aquisição para o Governo de recursos materiais, em particular imunobiológicos, medicamentos, inseticidas e outros insumos estratégicos para uso em ações de saúde relevantes para o cumprimento de tal Ajuste, além de outras formas que possam vir a ser estabelecidas de comum acordo, consistentes com as missões e programas em desenvolvimento por ambas as partes.


3 DA NATUREZA JURÍDICA DOS TERMOS DE COOPERAÇÃO TÉCNICA INTERNACIONAIS

Força gizar, antes de tudo, que os termos de cooperação técnica internacionais dessa espécie são atos de política externa, nos quais se encontram consignadas as intenções do Estado brasileiro.

3.1 Tratado internacional de direitos humanos

A moldura jurídica veiculada para a espécie consubstancia-se em tratado internacional, porquanto, consoante doutrina de Rezek, tratado é todo acordo formal concluído entre sujeitos de direito internacional público, e destinado a produzir efeitos jurídicos. [03]

Segundo o autor, o tratado internacional é em si mesmo um simples instrumento, sendo identificado por seu processo de produção e pela forma final, não pelo conteúdo, de modo que a matéria versada nele pode interessar de modo mais ou menos extenso ao direito das gentes, sendo certo, contudo, que, mesmo quando disponham sobre um tema prosaico como a classificação de marcas de origem de vinhos ou queijos, interessam igualmente, em razão da forma, ao direito dos tratados. [04] (grifo nosso)

No caso da OPAS, a matéria veiculada no presente acordo internacional é assaz relevante, porquanto se objetiva cooperação com os governos para melhorar políticas e serviços públicos de saúde, estimulando o trabalho em conjunto com países para alcançar metas comuns.

Não se duvida, pois, que está a se versar sobre tratado de direitos humanos em sua vertente social, aqui considerado como ações e programas assecuratórios da dignidade da pessoa humana, porquanto voltados à saúde e à vida.

Com efeito, como bem acentua PIOVESAN, o valor da dignidade humana — ineditamente elevado a princípio fundamental da Carta, nos termos do art. 1º, III — impõe-se como núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado em 1988. A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. Na ordem de 1988, esses valores passam a ser dotados de uma especial força expansiva, projetando-se por todo universo constitucional e servindo como critério interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico nacional. [05]

3.2 Do status normativo do TIDH em relação às normas internas

Nesse prisma, relevante notar que a jurisprudência brasileira, em especial a produzida pelo Supremo Tribunal Federal, conferiu novos contornos aos tratados de direitos humanos, alterando seu status em relação às normas internas.

3.3 Posição anterior do Supremo Tribunal Federal: paridade

O STF acolheu, há muito, o sistema que equipara juridicamente o tratado internacional à lei federal. No julgamento do Recurso Extraordinário n. 80.004, em 1977, a Suprema Corte firmou o entendimento de que os tratados internacionais estão em paridade com a lei federal, apresentando a mesma hierarquia que esta. Por conseqüência, concluiu ser aplicável o princípio segundo o qual a norma posterior revoga a norma anterior com ela incompatível. (grifo nosso)

3.4 Posição atual do Supremo Tribunal Federal: supralegalidade

Recentemente, porém, no RE 466.343-SP e no HC 87.585-TO, 3.12.2008, foi proclamada decisão histórica na jurisprudência brasileira reconhecendo maior valor aos tratados de direitos humanos que à lei ordinária, tendo prevalescido, por cinco votos a quatro, a tese de que tais tratados ostentam o status de supralegalidade (acima das leis ordinárias e abaixo da Constituição), salvante se aprovado por quórum qualificado, caso em que serão equivalentes a Emendas Constitucionais (art. 5º, §3º, CRFB/88, com redação dada pela EC 45/2004). (grifo nosso)

Tal revisitação tem por fito inferir que, com esteio em tal entendimento, qualquer lei e ato normativo secundário que for contrário aos tratados mais favoráveis não possui validade. Em outros verbetes, restarão vigentes, contudo, não possuirão validade.


4 DA EXECUÇÃO DIRETA OU INTERNACIONAL E DA EXECUÇÃO NACIONAL DOS PROJETOS DE COOPERAÇÃO TÉCNICA INTERNACIONAL: o entendimento do Tribunal de Contas da União

Fundado em tais premissas, perfilha-se, no presente trabalho, o entendimento de que o Decreto n. 3.594, de 2000, ao dispor sobre a execução do Ajuste Complementar em testilha, é o azimute normativo que disciplina hodiernamente a execução de projetos na modalidade de execução direta ou internacional. (grifo nosso)

Tal modalidade de execução contrapõe-se com a de execução nacional, assim entendida, consoante dicção do art. 2º, 1º, do Decreto n. 5.151, de 2004, como a modalidade de gestão de projetos de cooperação técnica internacional acordados com organismos ou agências multilaterais pela qual a condução e direção de suas atividades estão a cargo de instituições brasileiras ainda que a parcela de recursos orçamentários de contrapartida da União esteja sob a guarda de organismo ou agência internacional. (grifo nosso)

Nesse talante, o Decreto n. 5.151, de 2004, trouxe regramento próprio aos procedimentos a serem adotados quando da celebração de atos complementares de cooperação técnica recebida de organismos internacionais e da aprovação e gestão de projetos vinculados aos referidos instrumentos.

Dessarte, se a condução e direção das atividades relacionadas ao projeto não estiverem a cargo de instituições brasileiras, restaria afastada a aplicabilidade do Decreto n. 5.151, de 2004, aplicando-se, de outro lado, as regras e regulamentos da própria Organização.

4.1 O posicionamento primário do Tribunal de Contas da União

A matéria versada não se encontrava pacificada na jurisprudência administrativa brasileira, carecendo, pois, de melhor aprofundamento. Algumas orientações foram vertidas pelo Tribunal de Contas da União, mas, em sua maior amplitude, em especial no discorrido no Acórdão n. 1.018, de 2007, [06] determinou ao Ministério da Saúde do Brasil a observância do Decreto n. 5.151, de 2004, que rege a execução indireta, na qual a condução e direção de suas atividades estão a cargo de instituições brasileiras, para hipóteses em que a modalidade de gestão de projetos de cooperação técnica internacional é realizada diretamente pelo organismo internacional.

VISTOS, relatados e discutidos estes autos do relatório da inspeção realizada na Secretaria-Executiva do Ministério da Saúde, com a finalidade de esclarecer fatos concernentes aos acordos firmados entre o Ministério da Saúde - MS e a Organização Pan-Americana de Saúde - OPAS.

ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão Plenária, em:

9.1. determinar à Secretaria-Executiva do Ministério da Saúde - MS que:

9.1.1. nos termos do art. 3º do Decreto n.º 5.151/2004, encaminhe à Agência Brasileira de Cooperação - ABC, para prévia aprovação, qualquer ato complementar para a implementação de projetos de cooperação técnica internacional;

9.1.2. revise, junto à ABC, os projetos em vigor do programa de cooperação internacional firmados entre o governo brasileiro e a OPAS, com a finalidade de adequá-los aos ditames do Decreto n.º 5.151/2004;

9.1.3. em relação à formalização dos processos administrativos relativos à assinatura de termo de cooperação e respectivos termos aditivos referentes ao Ajuste Complementar ao Convênio Básico entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Organização Mundial da Saúde e ao Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Repartição Sanitária Pan-Americana para o funcionamento do Escritório de Área da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde no Brasil, firmado por meio do Decreto n.º 3.594/00, certifique-se de que:

9.1.3.1. a abertura do processo se dê com a documentação referente à consulta do Ministério da Saúde à OPAS sobre a realização de projeto/atividade no âmbito de termo de cooperação, fazendo constar a solicitação formal àquela organização, o documento do projeto ou da atividade pleiteados, bem como a aprovação daquele organismo internacional;

9.1.3.2. a ABC tenha aprovado a minuta do termo de cooperação e/ou termo aditivo, nos termos do art. 3º do Decreto n.º 5.151/04, fazendo constar nos autos o seu pronunciamento;

9.1.3.3. a área técnica responsável fundamente a realização do projeto/atividade no âmbito do termo de cooperação, com apresentação dos fatos e dos fundamentos jurídicos pertinentes, de forma a evidenciar que o ministério não possui capacidade institucional para implementação do objeto do termo de cooperação, uma vez que um projeto de cooperação técnica não tem o fim de substituir a Administração Pública na execução de programas governamentais, tendo em vista o Princípio da Motivação e as exigências do arts. 29, § 1º, e 50, inciso I, da Lei n.º 9.784/1999;

9.1.3.4. os documentos sejam devidamente autuados, protocolados, numerados e rubricados, obedecendo-se à cronologia dos fatos, conforme estabelece o art. 22 da Lei n.º 9.784/99;

9.1.3.5. conste nos autos a designação do Diretor Nacional de Projeto de cooperação técnica internacional, conforme previsto no art. 6º do Decreto n.º 5.151/04;

9.1.4. em relação à aquisição de medicamentos e insumos para a saúde por meio da assinatura de termos de cooperação técnica com a OPAS, financiados com recursos nacionais, somente utilize a faculdade prevista no art. 1º da Lei n.º 10.191/2001 nas situações em que o procedimento licitatório se demonstre estrategicamente inviável devido a falhas de mercado no setor de insumos e medicamentos, fundamentando, nestes casos, as razões da escolha;

9.1.5. nos termos do art. 2º, § 5º do Decreto n.º 5.151/04 c/c art. 13 da Portaria MRE n.º 433, de 22/10/04, somente realize eventos e/ou projetos por meio da OPAS, baseados em termos de cooperação técnica financiados totalmente com recursos nacionais, quando expressamente previstos no Plano de Trabalho do Termo de Cooperação e/ou Aditivo correspondente, restringindo-se tais eventos à transferência de conhecimentos e a prestação de assessoria técnica, exigindo-se para esta última a comprovação do Ministério da Saúde de que não pode executar diretamente as contratações de serviços e/ou aquisições necessárias por meio de outros instrumentos legais;

9.2. determinar à Agência Brasileira de Cooperação - ABC, com vistas a adequação dos atuais procedimentos para aprovação de projetos da OPAS às exigências do Decreto n.º 5.151/2004, que negocie junto a este organismo internacional, com participação do Ministério da Saúde, a revisão do Ajuste Complementar ao Convênio Básico entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Organização Mundial da Saúde e ao Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Repartição Sanitária Pan-Americana para o funcionamento do Escritório de Área da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde no Brasil, firmado pelo Decreto n.º 3.594/00, com base no art. 22 do Decreto n.º 5.032/04 e no Artigo XV do referido Ajuste Complementar;

4.2 Do pedido de reexame e do efeito suspensivo

Acreditando ter havido simbiose dos institutos, o que conduziu à orientação unívoca para diferentes institutos (execução direta ou internacional e indireta, cujos normativos de regência são diversos), por parte daquela Corte de Contas, a Secretaria Executiva do Ministério da Saúde interpôs pedido de reexame junto àquele órgão constitucional, tendo sido suspensos os efeitos daquela decisão, por força do disposto na Lei n. 8.443, de 1992, art. 48. [07]

4.3 Os fundamentos para o pedido de reexame do Acórdão n. 1.018, de 2007

Sustentou o Ministério da Saúde, em síntese, que: a) o Decreto nº. 5151/2004 não alcança a cooperação de execução pelo próprio organismo internacional, a denominada execução direta, modalidade na qual o projeto é executado "pelo pessoal de suas agências, segundo os regulamentos que disciplinam a sua atividade, dos quais não se podem afastar, especialmente para submeter-se a normas internas do País interessado na prestação de tal serviço; b) a própria definição da modalidade de execução nacional caracterizada no Decreto 5151 não se enquadra nos elementos essenciais da cooperação técnica feita pela OPAS/OMS porque b.1) todos os projetos de cooperação técnica da OPAS/OMS, bem como sua administração encontram-se sob responsabilidade total e exclusiva da Organização; b.2) os consultores da OPAS/OMS exercem suas atividades sob responsabilidade exclusiva da OPAS/OMS, e não respondem aos agentes do governo brasileiro, nem a nenhuma outra instituição brasileira; b.3) toda a contratação de pessoal da OPAS/OMS e compras são realizadas estritamente de acordo com as regras e regulamentos da organização; b.4) toda a proposta de serviços de consultoria é realizada pela OPAS/OMS, pois é a própria Organização que os contrata, escolhe, pois será esta a responsável pelo desenvolvimento do projeto de cooperação técnica; b.5) as demais atividades são realizadas pela modalidade produto, novamente, sobre total responsabilidade da organização.

4.4 Da mudança de entendimento: Acórdão n. 2899/2009 – Plenário/TCU

Resultou do pedido de exame referido novo pronunciamento da Corte de Contas, acolhendo a argumentação ministerial, em sua grande maioria, salvante no que toca à oitiva e análise da Agência Brasileira de Cooperação. Nesse sentido, no Acórdão n. 2899/2009 – Plenário/TCU [08], o elucidativo voto do Ministro Relator Walton Alencar Rodrigues entendeu haver duas modalidades de execução de projetos, que são distintas e que é inaplicável o Decreto n. 5.151/2004 aos termos de cooperação firmados com a OPAS, que se enquadrem em modalidade de execução direta ou internacional, verbis:

Todavia, à luz dos elementos acostados aos autos, há duas modalidades de execução de projeto distintas, quais sejam, a execução nacional e a execução internacional (ou direta).

A execução nacional, nos termos do art. 2º, § 1º, do Decreto nº 5.151/2004, define-se como a modalidade de gestão de projetos na qual a condução e direção de suas atividades estão a cargo de instituições brasileiras.

Na execução direta, compete ao organismo internacional a efetiva gestão dos projetos, bem como a identificação, seleção e aprovação dos bens e serviços adquiridos ou contratados. Sua adoção, a critério do Ministério das Relações Exteriores, é possível graças à exceção prevista no art. 2º, § 3º, do próprio Decreto nº 5.151/2004.

Assiste razão à recorrente no tocante à inaplicabilidade do Decreto nº 5.151/2004 aos termos de cooperação firmados com a OPAS, os quais se enquadram em modalidade de execução diversa da regulada pelo referido normativo.

Por tais razões, o Plenário conheceu o pedido de reexame tornando insubsistentes os itens 9.1.2, 9.1.3.3, 9.1.4 e 9.1.5 do Acórdão nº 1.018/2007 - Plenário; bem como conferiu nova redação aos itens 9.1, 9.1.1, 9.1.3.2, 9.1.3.5, 9.1.6, 9.1.7, 9.2 e 9.3 do Acórdão nº 1.018/2007 – Plenário.


5 DA AQUISIÇÃO DE PRODUTOS PARA IMPLEMENTAÇÃO DE AÇÕES DE SAÚDE NO ÂMBITO DO MINISTÉRIO DA SAÚDE

5.1 A Lei n. 10.191, de 2001

Quanto à aquisição de insumos na área de saúde, é interessante notar que em 14 de fevereiro de 2001, foi editada a Lei n. 10.191, a qual dispôs sobre a aquisição de produtos para a implementação de ações de saúde no âmbito do Ministério da Saúde, estabelecendo que as aquisições de imunobiológicos, inseticidas, medicamentos e outros insumos estratégicos, efetuadas pelo Ministério da Saúde e suas entidades vinculadas, para a implementação de ações de saúde, poderão ser realizadas por intermédio de organismos multilaterais internacionais, de que o Brasil faça parte e obedecerão aos procedimentos por eles adotados. [09]

5.2 Obrigatoriedade de licitar ou faculdade posta à Administração Pública para alcançar seus fins?

Com tal dicção normativa, entende-se haver faculdade para a Administração e seus agentes eximirem-se do dever de observância do dever de licitar, porquanto tal diploma trouxe previsão expressa nesse sentido. [10]

A mens legis, atenta ao dinamismo das relações internacionais e seus objetivos, com tal diploma normativo, vislumbrou adequar o direito interno à melhor consecução de atividades desenvolvidas por organismos internacionais, livrando-os das exigências, por vezes, incompatíveis, com as normas adotadas por tais sujeitos de direito internacional, o que, entende-se, apresenta-se mais condizente com o Estado que prevê a prevalência dos direitos humanos, além da cooperação entre os povos entre os princípios que regem as relações internacionais, CRFB/88, art. 4º, incisos II e IX, respectivamente. [11]

Apreciando tal dispositivo e a peculiar situação do Ministério da Saúde, quando da adoção de procedimentos para a aquisição de insumos na área de saúde, por intermédio da OPAS – Organização Pan-Americana de Saúde - no voto condutor do acórdão n. 1018/2007 – TCU - Plenário, ficou consignada a legalidade de tal procedimento, verbis

[...]

Esse artigo não faz distinção sobre os recursos utilizados. Assim, mesmo em se tratando de recursos exclusivamente nacionais, os organismos internacionais não estão obrigados a adotarem os procedimentos nacionais para realizarem as aquisições dos insumos da área de saúde.

Desta forma, não há óbice às aquisições, por organismos internacionais, desses produtos. No entanto, é preciso observar que esse dispositivo legal concede uma faculdade ao gestor, que poderá utilizá-la quando achar conveniente.

Segundo o gestor, as compras de medicamentos através da OPAS são realizadas em situações consideradas estratégicas, por meio de um fundo rotatório, não podendo o ministério abrir mão dessa ferramenta. Citou o exemplo da cartelização das empresas fornecedoras de hemoderivados no ano de 2005. A solução encontrada pelo Ministério da Saúde nessa época foi a contratação da OPAS para o fornecimento desses insumos. A OPAS possui diversos fundos rotatórios, para os quais o Ministério da Saúde não efetua uma contribuição específica, mas apenas pagamentos ou ressarcimentos. Observa-se, entretanto, que houve necessidade de capitalização inicial quando na constituição dos fundos. São dois os fundos utilizados: Fundo de Vacinas e Fundo de Insumos Estratégicos. No caso deste último, consta a informação de que o Ministério da Saúde contribuiu com cinco milhões de dólares em 1999 (fls. 171 a 173).

Ainda segundo o Secretário Executivo, as aquisições de medicamentos, vacinas, inseticidas e kits diagnósticos são realizadas com recursos desses fundos, sendo os demais insumos adquiridos por meio de compra reembolsável. Entende-se que se diferenciam as compras realizadas pelos fundos rotatórios daquelas realizadas por meio de termos de cooperação. Estas últimas seriam as compras reembolsáveis. É possível entender essa distinção por meio do quadro "Inseticidas Adquiridos - 1997 a 2006" (fls. 177 a 178). Continuando, informou que as vacinas somente são compradas no mercado internacional quando não são produzidas pelos laboratórios nacionais, sendo que a OPAS, considerada especialista no processo, garante a qualidade do produto.

Os medicamentos antimaláricos, antiretrovirais e outros também são adquiridos com o apoio da OPAS em face da inexistência de fornecedores nacionais. Também aqui, segundo o gestor, busca-se a garantia de fornecimento de medicamentos com qualidade.

Conclui-se, portanto, que existem duas maneiras do Ministério da Saúde adquirir medicamentos e insumos da área de saúde por intermédio da OPAS. Uma é formalizada por meio de termos de cooperação e são reembolsáveis. A outra é por meio de fundos rotatórios, podendo o Brasil possuir participação na capitalização dos mesmos. No caso de utilização de fundo rotatório, a Secretaria-Executiva não informou qual o instrumento formal utilizado para celebrar a relação com a OPAS.

Sendo assim, para as compras realizadas por meio de termos de cooperação com a OPAS, é conveniente que o gestor observe os princípios da economicidade e da eficiência, uma vez que dispõe de outros instrumentos legais para a consecução desse mesmo fim. O gestor deve buscar o melhor resultado estratégico possível na alocação dos recursos financeiros de forma a obter a melhor relação de custo e benefício. No caso da OPAS, por exemplo, o pagamento de taxa de administração para a realização de compras, embora possa esse organismo observar as diretrizes da Lei de Licitações, implica necessariamente num aumento de custo para a Administração.

Diante do exposto, conclui-se pela legalidade das aquisições de medicamentos e insumos para a saúde do Ministério da Saúde por meio da OPAS. Entretanto, convém que essas aquisições estejam devidamente motivadas, bem como que os planos de trabalhos forneçam com detalhes as especificações dos produtos e quantidades a serem fornecidas.

5.3 Da submissão aos ditames constitucionais

Conquanto se entenda haver atração do contido no Decreto n. 3.594, de 2000, para a modalidade de execução direta ou internacional, referido ato normativo tem alguns de seus regramentos mitigados por irradiação constitucional que projeta efeitos em sentido contrário.

Ilustrativamente, tem-se que referido Decreto prevê serem aplicados os dispositivos do Acordo Básico de Assistência Técnica, assinado em 29 de dezembro de 1964 entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Organização das Nações Unidas, suas Agências Especializadas, incluída a Organização Mundial da Saúde, a peritos, agentes e funcionários da OPAS/OMS envolvidos nos projetos e atividades desenvolvidos ao abrigo daquele instrumento, bem como a equipamentos técnicos e materiais que a OPAS/OMS vier a fornecer em função das mesmas iniciativas.

Ao abrigo de tais disposições várias situações de burla podem ser manejadas, de modo a ferir princípios constitucionais, tais como o do concurso público, o da impessoalidade, o da contratação por procedimento licitatório, assegurando igualdade de condições a todos os concorrentes, donde se impõe a necessária acuidade e preocupação do agente público na eleição da modalidade de execução direta para a concreção de políticas públicas, o que deve ser cotejado com o resultado que se pretende, em especial, indagando acerca da imprescindibilidade de tal meio, se tal poderia ser alcançado com meios próprios disponíveis na Administração Pública, se tal não seria apenas um meio facilitador para aquisição de produtos e equipamentos, entre outros.

A preocupação se justifica à medida que, consoante premissa aqui adotada, o tratado internacional de direitos humanos, não aprovado por quórum qualificado, ingressa em nosso ordenamento como norma de hierarquia supralegal e infraconstitucional, devendo, pois, obediência aos ditames constitucionais.

5.3.1 Da submissão aos ditames constitucionais

Circunstância de ordem prática não versada até o presente momento refere-se à responsabilidade civil do Estado brasileiro quanto às ações e serviços de saúde prestados por intermédio da OPAS, em especial quando da execução direta ou internacional. Estaria o Estado brasileiro indene de tal responsabilidade quando ocorrer dano à saúde de indivíduo no território nacional decorrente da execução de tal política pública?

Conquanto no memorial apresentado pela OPAS/OMS para instruir o processo TC-015.008/2005-6, tal organismo internacional afirme que todos os projetos de cooperação técnica da OPAS/OMS, bem como sua administração encontram-se sob responsabilidade total e exclusiva da Organização, há no ponto, pois, incompatibilidade com o dever constitucional de assegurar a saúde e suas conseqüências, isso porque os arts. 196 e 197 da CRFB/88 ditam que a saúde é direito de todos e dever do Estado, que pode executar ações e serviços de saúde diretamente ou por intermédio de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

Quer-se afirmar que o Estado brasileiro ao promover ações e serviços de saúde, por intermédio das OPAS, ainda que a título de cooperação, estará trilhando o fazer constitucional a ele destinado. Nesse passo, os danos daí decorrentes poderão ser imputados à União, em conseqüência da responsabilidade objetiva oriunda dos atos comissivos (art. 37, §6º, CRFB/88). [12] Por tais fundamentos, a execução na modalidade direta não pode restar indene de qualquer fiscalização, atraindo, por isso, a função de zelo por parte do agente público, principalmente porque se está a falar de programas sanitários, que, não raras vezes, tem sua execução consubstanciada na utilização e/ou aplicação direta de medicamentos ou insumos em indivíduos.

5.4 Da necessidade de oitiva da Agência Brasileira de Cooperação

Não menos importante registro, com fulcro no art. 27, inciso IX, "b", da Lei n. 10.683, de 2003, e arts. 1º, inciso IV, e 30, a Agência Brasileira de Cooperação - ABC, parte integrante do Ministério das Relações Exteriores, é o setor responsável por toda cooperação técnica internacional estabelecida entre o governo brasileiro e outros países ou organismos internacionais, sendo sua função coordenar, negociar, aprovar, acompanhar e avaliar, em âmbito nacional, a cooperação para o desenvolvimento em todas as áreas do conhecimento, recebida de outros países e organismos internacionais e aquela entre o Brasil e países em desenvolvimento, não fazendo distinção entre as modalidades de execução, motivo pelo que os atos complementares firmados com a OPAS devem ser remetidos à ABC para avaliação.


6 DA CONCLUSÃO

Com supedâneo, pois, nos princípios que regem a República Federativa do Brasil nas suas relações internacionais, em especial a prevalência dos direitos humanos e cooperação entre os povos (CRFB/88, art. 4º, incisos II e IX), além da ressalva constitucional (art. 37, XXI) que conferiu à lei excepcionar o dever de licitar, as ações e serviços de saúde implementados no Brasil por organismos internacionais e que necessitem de aquisição de insumos de saúde podem ser viabilizados sem a observância das normas internas relativas às normas gerais e específicas de licitação.


REFERÊNCIAS

Constituição da República Federativa do Brasil. 1998.

Decreto Presidencial n. 3.594, de 2000.

Decreto Presidencial n. 5.151, de 2004.

http://www.stf.gov.br

http://www.opas.org.br

Lei federal n. 8.443, de 1992.

Lei federal n. 10.191, de 2001

PIOVESAN, Flávia. Tratados internacionais de proteção de direitos humanos: jurisprudência do STF. http://www.defensoria.sp.gov.br.

REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 7ª ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1998.

TCU. Acórdão n. 1.018, de 2007. Ata 22/2007 – Plenário. Sessão 30/05/2007. Aprovação 01/06/2007. DOU 05/06/2007.

TCU. Acórdão n. 2.899, de 2009. Ata 51/2009 – Plenário. Sessão 02/12/2009. DOU 04/12/2009.


Notas

  1. http://www.opas.org.br/opas.cfm. Acesso em 18.7.2009.
  2. Decreto n. 3.594, de 8.9.200. Art 1º. O Ajuste Complementar ao Convênio Básico entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Organização Mundial da Saúde e ao Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Repartição Sanitária Pan-Americana/Organização Mundial da Saúde no Brasil, apenso por cópia ao presente Decreto, será executado e cumprido tão inteiramente como nele se contém
  3. REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 7ª ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 14.
  4. Ob. cit. pp. 14-15
  5. PIOVESAN, Flávia. Tratados internacionais de proteção de direitos humanos: jurisprudência do STF. http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/31/Documentos/Artigos/00000034-001_FlaviaPioveasn.pdf. Acesso em 5.7.2009.
  6. TCU. Ata 22/2007 – Plenário. Sessão 30/05/2007. Aprovação 01/06/2007. DOU 05/06/2007 - Página 0
  7. Lei n. 8.443, de 1992. Art. 48. De decisão proferida em processos concernentes às matérias de que tratam as Seções III e IV deste capítulo caberá pedido de reexame, que terá efeito suspensivo.
  8. TCU. Ata 51/2009 – Plenário. Sessão 2/12/2009. DOU 4.12.2009
  9. Lei n. 10.191, de 2001. Art. 1º As aquisições de imunobiológicos, inseticidas, medicamentos e outros insumos estratégicos, efetuadas pelo Ministério da Saúde e suas entidades vinculadas, para a implementação de ações de saúde, poderão ser realizadas por intermédio de organismos multilaterais internacionais, de que o Brasil faça parte e obedecerão aos procedimentos por eles adotados.
  10. CRFB/1988. Art. 37, XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações
  11. CRFB/1988. Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:[...] II - prevalência dos direitos humanos; IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
  12. CRFB/1988. Art. 37, §6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa

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  • Elias Higino dos Santos Neto

    Elias Higino dos Santos Neto

    Advogado da União. Chefe da Divisão de Legislação Aplicada e Estudos Normativos da Consultoria Jurídica no Ministério da Saúde. Especialista em direito processual pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Pós-graduado em direito público pela Faculdade Processus - Brasília. É autor de vários artigos jurídicos. Foi Coordenador Substituto de Procedimentos Licitatórios e Negócios Jurídicos da Consultoria Jurídica no Ministério da Saúde, Técnico Judiciário na Seção Judiciária do Distrito Federal e Analista Judiciário Executante de Mandados no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS NETO, Elias Higino dos Santos Neto . Peculiaridades acerca da aquisição pública de insumos de saúde pelo Ministério da Saúde, por intermédio da Organização Pan-Americana de Saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3093, 20 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20631. Acesso em: 19 abr. 2024.