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Responsabilidade do depositário de bens apreendidos em decorrência de infrações ambientais

Responsabilidade do depositário de bens apreendidos em decorrência de infrações ambientais

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Os objetos apreendidos pelo IBAMA ficarão sob a responsabilidade do ente ambiental que empreendeu a fiscalização e, excepcionalmente, poderão ser confiados a fiel depositário, que será responsabilizado nas hipóteses em que restar caracterizada a culpa ou dolo.

1. Da colocação do problema

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e demais entidades/órgãos (tais como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, as Secretarias Estaduais de Meio Ambiente etc) encarregados do exercício do poder de polícia em matéria ambiental deverão proceder à apreensão de produtos e instrumentos relacionados à infração de natureza ambiental.

Nesse contexto, o art. 25 da Lei nº 9.605/98 dispõe que, "verificada a infração, serão apreendidos seus produtos e instrumentos, lavrando-se os respectivos autos". Essa apreensão, segundo a legislação de regência, terá caráter cautelar (art. 101, § 1º, do Decreto nº 6.514/2008) ou sancionador (art. 3º, IV, do Decreto nº 6.514/2008).

No que tange à destinação dos bens apreendidos, em se tratando de animais, serão libertados em seu habitat ou entregues a jardins zoológicos, fundações ou entidades assemelhadas, desde que fiquem sob a responsabilidade de técnicos habilitados (art. 25, § 1º, da Lei nº 9.605/99). Na hipótese de apreensão de produtos perecíveis ou madeiras, serão estes avaliados e doados a instituições científicas, hospitalares, penais e outras com fins beneficentes (art. 25, § 2º, da Lei nº 9.605/99).

Verifica-se, pois, que a própria Lei regulou, de maneira suficiente, a destinação dos produtos e instrumentos apreendidos em razão da prática de infração contra o meio ambiente.

A problemática que se coloca, porém, não diz respeito à destinação desses bens, mas, sim, à responsabilidade daquele que fora designado para desempenhar deveres de guarda e conservação da coisa, no período que medeia entre a apreensão e a destinação prevista em lei.

A priori, os objetos apreendidos ficarão sob a responsabilidade do ente ambiental que empreendeu a fiscalização. Excepcionalmente, poderão ser confiados a fiel depositário, até o julgamento do processo administrativo. Nesse sentido, dispõe o art. 105 do Decreto nº 6.514/2008, verbis:

"Art. 105. Os bens apreendidos deverão ficar sob a guarda do órgão ou entidade responsável pela fiscalização, podendo, excepcionalmente, ser confiados a fiel depositário, até o julgamento do processo administrativo."

O art. 106, por sua vez, dispõe que:

"Art. 106. A critério da administração, o depósito de que trata o art. 105 poderá ser confiado:

I - a órgãos e entidades de caráter ambiental, beneficente, científico, cultural, educacional, hospitalar, penal e militar; ou

II - ao próprio autuado, desde que a posse dos bens ou animais não traga risco de utilização em novas infrações."

É certo que os órgãos e entes ambientais, federais e estaduais, não dispõem, na maioria dos casos, da estrutura física e dos recursos materiais necessários à guarda segura e adequada de todos os bens apreendidos nas rotineiras fiscalizações. Assim, inexiste dúvida acerca da necessidade de o ente fiscalizador valer-se da faculdade prevista nos arts. 105 e 106 do Decreto nº 6.514/2008, consistente na indicação de depositário para a guarda e conservação dos bens apreendidos.


2. Das obrigações e responsabilização do depositário

A Lei nº 9.605/98 não se preocupou em disciplinar a relação entre depositante e depositário. O Decreto nº 6.514/2008 tampouco. Dessa forma, essa relação há de ser regida pelas regras atinentes ao depósito voluntário, notadamente no que toca às responsabilidades e aos deveres do depositário.

A obrigação primária do depositário consiste na guarda e conservação da coisa depositada, devendo proceder, no exercício desse múnus, com o cuidado e diligência que costuma ter com o que lhe pertence. É o que prevê o art. 629 do Código Civil.

No que tange à responsabilização do depositário, o próprio art. 629 do Código Civil admite a responsabilização do depositário que, por dolo ou culpa, descumpre o dever de guarda e de conservação da coisa depositada. A contrario senso, mostra-se incabível a responsabilização do depositário que não deu causa, culposa ou dolosamente, à perda ou deterioração da coisa depositada.

A aplicação analógica do art. 150 do CPC conduz a essa mesma conclusão. Esse dispositivo prevê, em suma, que "o depositário ou o administrador responde pelos prejuízos que, por dolo ou culpa, causar à parte, perdendo a remuneração que lhe foi arbitrada ...".

Maria Helena Diniz, ao discorrer sobre as obrigações do depositário, aduz que:

"(...) terá a obrigação de: ter na custódia da coisa depositada o cuidado e a diligência que costuma com o que lhe pertence (CC, art. 629, 1ª alínea), respondendo pela sua perda ou deterioração se contribuiu dolosa ou culposamente para que isso acontecesse (RT 536:117). (In Curso de Direito Civil Brasileiro, vol. 3. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 363). (sem grifo no original)."

No mesmo sentido, são as lições de Carlos Roberto Gonçalves:

"O depositário responde por culpa ou dolo, se a coisa perecer ou deteriorar-se, se o depósito for gratuito ou remunerado. O Código não distingue entre os graus de culpa, nem se o depósito foi feito no interesse do depositante ou do próprio depositário, para agravar ou atenuar a responsabilidade. (In Direito Civil Brasileiro, vol. III. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 370)."

Ainda sobre o tema, conferir os seguintes precedentes:

"PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DEPÓSITO. DETERIORAÇÃO DO BEM. NÃO COMPROVAÇÃO DE CULPA DO DEPOSITÁRIO.

I - O auto de penhora original, lavrado mais de cinco anos antes da constatação, foi omisso em relação ao estado do bem, o que impede que se possa realizar um juízo tecnicamente fundamentado a respeito da comparação entre a deterioração verificada ao longo do período e a vida útil natural do bem penhorado.

II - Portanto, não há como formar, com base nos elementos utilizados pelo Juízo recorrido e trazidos aos autos, culpa do depositário pela perda da utilidade dos bens penhorados.

III - Recurso provido. (TRF da 2ª Região, AG 163260 RJ 2008.02.01.003091-3, Relatora Desembargadora Federal LANA REGUEIRA, 4ª Turma Especializada, DJU de 13/05/2009). "

"DEPOSITÁRIO JUDICIAL. DETERIORAÇÃO. NEGLIGÊNCIA. RESPONSABILIDADE. O depositário judicial, enquanto auxiliar do juízo, deve conduzir-se com diligência na vigilância dos bens postos sob sua guarda, não havendo que se cogitar de responsabilidade sobre a deterioração ordinária que é fruto do mero transcurso do tempo. Todavia, quando constatada sua negligência no múnus em que se encontra investido, deve ser declarada a infidelidade, atraindo as conseqüências legalmente previstas. (TRT da 14ª Região, Agravo de Petição nº 01195.2005.003.14.00-0, Relatora Juíza MARIA DO SOCORRO COSTA MIRANDA)."

"ADJUDICAÇAO. CONCRETIZAÇAO. TRADIÇAO. DETERIORAÇAO DO BEM PENHORADO. DEPOSITÁRIO. RESPONSABILIDADE. ART. 148 DO CPC.

I - A adjudicação de bem móvel concretiza-se somente após a tradição deste para o adjudicante.

II - Havendo deterioração na madeira expropriada, por culpa exclusiva de seu depositário, este deve ser intimado para apresentá-la na quantidade, qualidade e no estado de conservação descritos no auto de penhora, sob pena de aplicação das cominações legais, pois é responsabilidade dele zelar pela coisa colocada sob sua guarda, nos termos do art. 148 do CPC. (TRT da 14ª Região, Agravo de Petição nº 144420050911400, Relator Juiz Convocado SHIKOU SADAHIRO)."

Na linha da fundamentação supra, não se pode atribuir ao depositário a responsabilidade na hipótese em que a perda ou deterioração do bem a ele confiado ocorreu por ação exclusiva do tempo, o que geralmente se verifica com o perecimento de madeira apreendida.

De igual modo, havendo prova cabal de que o bem depositado foi furtado e que não houve desídia do depositário no dever de guarda e vigilância que são inerentes ao contrato de depósito, também se mostra inviável a sua responsabilização. Saliente-se, a esse propósito, que o simples registro de ocorrência do furto junto à autoridade policial não é prova idônea a isentar o depositário da responsabilidade, uma vez que este ato apenas tem o condão de provocar a atividade investigatória.

Nesse sentido, veja-se precedente elucidativo do Superior Tribunal de Justiça:

"Habeas corpus. Prisão civil. Depositário Infiel. Furto. Boletim de Ocorrência.

I - Intimado para apresentar os bens penhorados, deve o depositário prontamente atender a determinação ou depositar o equivalente em dinheiro, sob pena de não o fazendo, ser considerado depositário infiel, sujeito à pena de prisão civil.

II - O boletim de ocorrência, com a simples assertiva de que o bem penhorado foi furtado, sem qualquer outro elemento de convicção, não é suficiente para comprovar o caso fortuito e isentar o depositário de responsabilidade. Precedentes.

III - Recurso em habeas corpus desprovido.

(RHC 17185/SP, Rel. Ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/04/2005, DJ 02/05/2005, p. 334)."

Por outro lado, exigir a condenação definitiva do autor do furto para que se possa eximir o depositário da responsabilidade não é a medida mais razoável. Primeiro porque as instâncias penais e administrativas são, em regra, independentes. Segundo porque não se pode confiar a sorte do depositário ao desfecho de uma ação penal que pode nunca vir a existir e, mesmo que venha a ser proposta, pode não atingir um desfecho a tempo e modo desejável.

A melhor solução para a hipótese parece ser a de facultar ao depositário, no bojo do procedimento administrativo, a produção de todas as provas admitidas em direito, além daquelas que não sejam expressamente vedadas pelo ordenamento jurídico, tal como as produzidas por meio ilícitos (provas ilícitas e ilegítimas). Nada obsta que a própria autoridade julgadora determine a realização de diligências necessárias à formação do seu convencimento.

Após a instrução do feito, cabe à autoridade competente, pela livre valoração motivada das provas colacionadas aos autos, decidir pela responsabilização, ou não, do depositário.

De toda sorte, qualquer que seja a causa alegada, o depositário só não será responsabilizado quando não tiver faltado com os deveres que são inerentes à relação entre depositante e depositário, isto é, mesmo que se comprove que a coisa foi furtada, que pereceu por ação do tempo ou por qualquer outra causa, esses atos não podem estar associados a qualquer outro comportamento, comissivo ou omissivo, atribuído ao depositário. Não deve haver qualquer nexo causal entre a perda ou perecimento da coisa e ato ou fato atribuível ao depositário.

Caso, porém, exista prova de que o bem depositado pereceu por culpa do depositário, ele deve ser notificado para que apresente o bem na quantidade, qualidade e no estado de conservação descritos no auto de apreensão e de depósito, sob pena de, não o fazendo, ser constituído contra ele débito equivalente ao do bem cuja guarda e conservação lhe foram confiadas.

Registre-se, ainda, que o Código Civil, na 2ª parte do art. 642, atribuiu ao depositário o ônus da prova acerca da sua não concorrência, dolosa ou culposa, para a perda ou deterioração do bem depositado:

"Art. 642. O depositário não responde pelos casos de força maior; mas, para que lhe valha a escusa, terá de prová-los." (sem grifo no original)

O dispositivo em referência consagrou verdadeira presunção de culpa do depositário, uma vez que a ele caberá a prova da ocorrência do evento externo, alheio à sua vontade, que redundou na perda ou deterioração do bem ambiental que lhe fora confiado. Isso é assim porque, em se tratando de culpa contratual (e não aquiliana), o inadimplemento se presume culposo.

Para Carlos Roberto Gonçalves, o depositário

"(...) só se exonera nos casos de "força maior". Mas, segundo o art. 642 do Código Civil, "para que lhe valha a escusa, terá de prová-los". Há, portanto, em princípio, uma presunção de culpa do depositário, pois, para elidir sua responsabilidade, deve provar a ocorrência da vis major. (In Direito Civil Brasileiro, vol. III. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 370)". (sem grifo no original).

Acerca da presunção de culpa, cite-se, também, precedente do Eg. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:

"DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE DEPÓSITO. DESCUMPRIMENTO PELO DEPOSITÁRIO QUE NÃO RESTITUI OS BENS DEPOSITADOS. CULPA PRESUMIDA. ALEGAÇÃO DE CASO FORTUITO E FORÇA MAIOR. ÔNUS DA PROVA.

I. No contrato de depósito, presume-se o descumprimento culposo do depositário que não devolve a coisa depositada quando assim exigido pelo depositante, ou a devolve deteriorada.

II. Para a elisão da sua obrigação, cumpre ao depositário comprovar que agiu como bom pai de família e que a perda ou deterioração da coisa depositada resultou de caso fortuito ou de força maior.

III. O caso fortuito ou a força maior, por representar fato extintivo do direito do depositante de reaver a coisa depositada, aloja-se na esfera probatória do depositário, a teor do disposto no art. 333, II, do Código de Processo Civil.

IV. Ressumada a quebra contratual imputável ao depositário, ao depositante devem ser indenizados os prejuízos suportados.

V. Recurso conhecido e desprovido. (TJDFT, APC 20020110001922 DF, Relator Desembargador JAMES EDUARDO OLIVEIRA, 6ª Turma Cível, DJU de 18/06/2008)".

Embora o art. 642 do Código Civil refira-se apenas à hipótese de força maior, deve ser aplicado, por analogia, às demais hipóteses nas quais o depositário invoque, em seu favor, escusa de responsabilidade.


3. Da possibilidade de inscrição do respectivo crédito em dívida ativa e da desnecessidade de propositura de ação de depósito

Em suma, mostra-se perfeitamente possível, sob a ótica legal, a constituição de débito contra depositário infiel. Porém, essa responsabilização, no âmbito administrativo, deverá ser precedida da manifestação do interessado, quando, então, poderá trazer aos autos os elementos necessários à comprovação de que não contribuiu, com dolo ou culpa, para a produção do evento danoso. A adoção desse procedimento, que privilegia a ampla defesa e o contraditório, vai ao encontro da regra inserta no art. 3º, III, da Lei nº 9.784/99.

Concluindo-se, pois, pela responsabilização do depositário no âmbito do processo administrativo e não havendo adimplemento voluntário da obrigação, resta saber se o respectivo crédito pode ser inscrito em dívida ativa com vistas à propositura de ação de execução fiscal, ou se é necessário o ajuizamento de ação de depósito.

Como sabido, a dívida ativa é de natureza tributária ou não tributária (art. 2º da Lei nº 6.830/80).

A noção de dívida ativa tributária está prevista no art. 201 do Código Tributário Nacional, a saber: "Constitui dívida ativa tributária a proveniente de crédito dessa natureza, regularmente inscrita na repartição administrativa competente, depois de esgotado o prazo fixado, para pagamento, pela lei ou por decisão final proferida em processo regular".

Por outro lado, a dívida ativa não tributária diz respeito aos demais créditos da Fazenda Pública, tais como os provenientes de empréstimos compulsórios, contribuições estabelecidas em lei, multa de qualquer origem ou natureza, exceto as tributárias, foros, laudêmios, aluguéis ou taxas de ocupação, custas processuais, preços de serviços prestados por estabelecimentos públicos, indenizações, reposições, restituições, alcances dos responsáveis definitivamente julgados, bem assim os créditos decorrentes de obrigações em moeda estrangeira, de sub-rogação de hipoteca, fiança, aval ou outra garantia, de contratos em geral ou de outras obrigações legais (art. 39, § 2º, da Lei nº 4.320/64).

Da análise do citado dispositivo legal, não há dúvida de que o legislador não pretendeu restringir o conceito de dívida ativa não tributária, já que utilizou a expressão "demais créditos da Fazenda Pública" e, logo em seguida, utilizou texto que indica uma relação não exaustiva.

Quanto à noção ampla de dívida ativa não tributária, José da Silva Pacheco leciona que:

"(...) a dívida ativa não-tributária será a resultante de qualquer outro crédito da Fazenda Pública, inscrito na repartição administrativa competente, após a apuração: a) da sua procedência; b) do seu exato valor; c) do sujeito passivo; d) da falta de pagamento no vencimento, no prazo ou no ato, determinados em lei, em regulamento, no contrato, no respectivo título ou decisão final irrecorrível na esfera administrativa (In Comentários à Lei de Execução Fiscal. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 43)."

E, também, o ilustre Professor Humberto Theodoro Júnior:

"(...) a Lei nº 6.830 dá abrangência ampla ao conceito de dívida ativa e admite execução fiscal como procedimento judicial aplicável tanto à cobrança dos créditos tributários como dos não tributários. Até mesmo as obrigações contratuais, desde que submetidas ao controle de inscrição, podem ser exigidas por via da execução fiscal. (In Lei de Execução Fiscal. São Paulo: Saraiva, 2011)."

Nesse contexto, é extreme de dúvidas que o crédito decorrente da responsabilização do depositário, comprovadamente infiel, de bens apreendidos em decorrência de infração ambiental, pode ser inscrito em dívida ativa não tributária, já que amparado em permissivo legal. Seria contraditório admitir que a responsabilidade do depositário infiel está fundada em lei e, por outro lado, negar a inscrição do crédito em dívida ativa, o que, com a devida venia, iria de encontro à regra do § 2º do art. 39 da Lei nº 4.320/64.

Ademais, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que, em se tratando de autarquia, apenas os créditos inerentes à sua atividade poderão integrar a dívida ativa não tributária. Nesse sentido:

"PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO - EXECUÇÃO FISCAL - DÍVIDA ATIVA – DNER - INDENIZAÇÃO POR DANOS AO PATRIMÔNIO DECORRENTES DE ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO - DÍVIDA ATIVA NÃO-TRIBUTÁRIA – IMPROPRIEDADE - EXERCÍCIO EXORBITANTE DE COMPETÊNCIA - VIA PROCESSUAL INADEQUADA.

I - Dívida Ativa da Fazenda Pública, definida como não-tributária, é a que resulta qualquer outro crédito da Fazenda Pública, inscrita no setor administrativo competente, após apuração na forma prevista na legislação de regência; decorre do exercício do poder de império, exercido na modalidade do poder de polícia, e da atividade legalmente conferida à autoridade de direito público.

II - Não é cabível a utilização da via de inscrição da dívida ativa no DNER, para propositura do executivo fiscal visando obter ressarcimento de dano causado ao patrimônio da autarquia em virtude de acidente automobilístico.

III - A competência da Procuradoria-Geral do DNER para apurar liquidação e certeza de créditos de qualquer natureza, para inscrevê-los em dívida ativa e cobrá-los, é restrita àqueles (créditos) inerentes às atividades da autarquia.

IV - Recurso improvido.

(REsp 330703/RS, Rel. Ministro GARCIA VIEIRA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/10/2001, DJ 19/11/2001, p. 242)"

O crédito aqui discutido não está alheio às atividades do órgão/ente ambiental, já que, em última análise, decorre do regular exercício do poder de polícia em matéria ambiental.

Dessa forma, uma vez realizado o prévio controle da legalidade de procedimento no qual se assegurou ao depositário todos os direitos inerentes ao contraditório e à ampla defesa, não se vislumbra óbice à inscrição do crédito em dívida ativa e posterior ajuizamento de ação de execução fiscal, sendo desnecessário o prévio ajuizamento de ação de depósito.

Com efeito, se a finalidade da ação de depósito é a de reaver a coisa depositada (art. 901 do Código de Processo Civil) e, apenas alternativamente, o seu equivalente em dinheiro (art. 904 do Código de Processo Civil), e tendo em vista, ainda, que a Administração pode constituir unilateralmente os seus créditos, a providência judicial não se mostra como necessária e útil ao cumprimento do fim almejado: responsabilização do depositário infiel, com a consequente constituição do crédito em seu desfavor. Rigorosamente, a Administração, em relação à ação de depósito, seria carecedora de ação, por falta de interesse de agir.


4. Da constituição irregular do crédito. Consequências

Por outro lado, é de se reconhecer que inexiste obrigatoriedade de cobrança de débito anteriormente constituído se a sua origem perpetrou-se fora das hipóteses em que a lei admite a responsabilidade do depositário. Em casos tais, deve-se proceder, administrativamente, à baixa do débito e, judicializada a questão, o feito deve ser extinto, com prolação de sentença de mérito em favor do depositário.


5. Da proporcionalidade da medida de responsabilização do depositário

Também podem surgir questionamentos acerca da proporcionalidade/razoabilidade do ato de constituição de débito em desfavor do depositário comprovadamente infiel.

Como sabido, o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade (a maioria da doutrina os entende como sinônimos) é de observância obrigatória em qualquer Estado Democrático de Direito, pois, como ensina Raquel Melo Urbano de Carvalho, "o Estado não pode atuar arbitrária e irracionalmente, estando proibidos o excesso e a insuficiência da ação administrativa" (In Curso de Direito Administrativo. Salvador: JusPodvm, 2009, p. 137).

Acerca da vinculação entre o princípio da proporcionalidade e o Estado de Direito, leciona, ainda, a ilustre Professora:

"Há clara vinculação entre o princípio da proporcionalidade e o Estado de Direito, tendo em vista a própria idéia de direitos fundamentais. Como o Estado de Direito pressupõe a defesa de direitos humanos, cabe afirmar que a exigência da proporcionalidade é intrínseca à sua efetividade formal e material. A proporcionalidade, enquanto proibição de excesso e de insuficiência, resulta da essência dos direitos fundamentais e caracteriza o próprio Estado de Direito". (Op. cit., p. 137).

O princípio da proporcionalidade, portanto, goza de fundamental importância no controle dos atos administrativos, na medida em que impõe que a conduta da Administração Pública seja adequada, necessária e suficiente à espécie. Caso fuja desses padrões, o ato será desproporcional, permitindo-se que o controle seja feito, inclusive, pelo Poder Judiciário. É pacífico o entendimento de que é possível ao Judiciário analisar a proporcionalidade do ato, já que esse aspecto se enquadra no campo da legalidade do ato.

Este princípio está implicitamente previsto no Texto Constitucional. Mas, nem por isso, se pode afirmar que não se encontra expressamente previsto no ordenamento jurídico. A esse propósito, a Lei nº 9.784/99 – que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal – o contemplou de forma expressa, como limite à atuação estatal e, por consequência, como forma de controle dos atos administrativos (art. 2º, caput, Lei nº 9.784/99).

Reconhecendo a importância do princípio da proporcionalidade no controle dos atos administrativos, Maria Sylvia Zanella Di Pietro lenciona que se trata de "princípio aplicado ao Direito Administrativo como mais uma das tentativas de impor-se limitações à discricionariedade administrativa, ampliando-se o âmbito de apreciação do ato administrativo pelo Poder Judiciário" (In Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2009, p. 79).

O princípio ora em estudo desdobra-se em: i) adequação; ii) necessidade; iii) proporcionalidade em sentido estrito.

O ato será adequado quando a medida escolhida for o meio correto para se atingir a finalidade almejada. Para que se observe o subprincípio da necessidade, deve a Administração optar pelo mecanismo que imponha a menor restrição a direitos fundamentais e às prerrogativas dos cidadãos. Isso significa que, havendo duas medidas possíveis à concretização do fim público almejado, deve o Poder Público optar pela medida menos gravosa, sob pena de desproporcionalidade do ato. Finalmente, tem-se, como subprincípio da proporcionalidade, a proporcionalidade sem sentido estrito, segundo a qual é necessário determinar a relação custo-benefício da medida em face do conjunto de interesses em jogo, de modo a ponderá-la mediante o exame dos eventuais danos e dos resultados benéficos viavéis na espécie. É o juízo ponderativo entre o gravame imposto e o benefício trazido.

A própria Lei nº 9.784/99 corrobora essas premissas, ao dispor que, nos processos administrativos, serão observados, entre outros, os critérios de "adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público".

Diante dessa realidade, conclui-se que a constituição de débito contra depositário infiel, nas hipóteses em que restar caracterizada a sua culpa (lato sensu), é a medida adequada porque promove o fim proposto, consistente na responsabilização daquele que, culposamente, não cumpriu o encargo que lhe fora confiado quando do depósito dos bens aprendidos em razão da fiscalização ambiental. É a medida necessária porque, na hipótese, é condição indispensável à concretização do interesse público, adstrito à tutela do meio ambiente. E, finalmente, também é a medida proporcional se analisados os meios de que o Estado dispõe para atingir o fim proposto e aqueles que efetivamente foram empregados, inclusive se comparada com a adoção de uma medida judicial.

Entendimento contrário faria com que toda a atividade fiscalizatória destinada à tutela do meio ambiente, bem de uso comum do povo, padecesse de uma completa inutilidade, fazendo com que os princípios constitucionais insculpidos no art. 225 da Constituição Federal passassem a um plano subalterno de importância.

Ainda nesse contexto, é importante salientar que o meio ambiente, alçado ao status de direito fundamental (art. 225 da Constituição Federal), é bem indisponível, motivo por que não deve haver juízo de discricionariedade da autoridade ambiental competente no que tange à responsabilização do depositário infiel, desde que constatada a sua culpa ou dolo no ato que redundou na perda ou deterioração da coisa que lhe fora confiada.

Registre-se, finalmente, que a celeridade nos procedimentos de destinação dos bens apreendidos, nos moldes previstos no art. 25 da Lei nº 9.605/98, contribuirá para a eliminação de boa parte dos problemas relativos à infidelidade do depositário.


6. Conclusões

À vista de todo o exposto, conclui-se que:

i)a responsabilização do depositário, com a consequente constituição de débito em seu desfavor, apenas se mostra possível nas hipóteses em que restar caracterizada a culpa ou dolo no descumprimento do dever de guarda e de conservação da coisa depositada, sob pena de ilegalidade da exação inscrita contra o depositário (art. 629 do Código Civil);

ii)o art. 642 do Código Civilconsagrou verdadeira presunção de culpa do depositário, incumbindo-lhe a prova da ocorrência do evento externo, alheio à sua vontade, que redundou na perda ou deterioração do bem ambiental que lhe fora confiado. Ademais, em se tratando de culpa contratual (e não aquiliana), o inadimplemento se presume culposo;

iii)deve-se facultar ao depositário, no bojo do procedimento administrativo, a produção de todas as provas admitidas em direito, além daquelas que não sejam expressamente vedadas pelo ordenamento jurídico, tal como as produzidas por meio ilícitos (provas ilícitas e ilegítimas);

iv)insere no âmbito de atribuições da autoridade competente, pela livre apreciação motivada das provas colacionadas aos autos, decidir pela responsabilização, ou não, do depositário;

v)uma vez realizado o prévio controle da legalidade de procedimento no qual se assegurou ao depositário todos os direitos inerentes ao contraditório e à ampla defesa, não se vislumbra óbice à inscrição do crédito em dívida ativa e posterior ajuizamento de ação de execução fiscal, sendo desnecessário o prévio ajuizamento de ação de depósito;

vi)inexiste obrigatoriedade de cobrança de débito anterior constituído, se a sua origem perpetrou-se fora das hipóteses em que a lei admite a responsabilidade do depositário; em casos tais, deve-se proceder, administrativamente, à baixa do débito e, judicializada a questão, o feito deve ser extinto, com prolação de sentença de mérito em favor do depositário;

vii)o ato do Poder Público, que visa a responsabilizar o infiel depositário, na forma preconizada neste parecer, não ofende o princípio da proporcionalidade, já que se mostra como a medida adequada, necessária e suficiente à responsabilização do depositário infiel;

viii)a indisponibilidade dos bens ambientais faz com que a responsabilização do depositário infiel seja ato vinculado da autoridade ambiental competente, nas hipóteses em que for constatada a culpa (lato sensu) do depositário infiel;

ix)a celeridade nos procedimentos de destinação dos bens apreendidos, nos moldes previstos no art. 25 da Lei nº 9.605/98, contribuirá para a eliminação de boa parte dos problemas relativos à infidelidade do depositário.


7. REFERÊNCIAS

CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Administrativo. Salvador: JusPodvm, 2009.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, vol. 3. São Paulo: Saraiva, 2009.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2009.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, vol. III. São Paulo: Saraiva, 2009.

PACHECO, José da Silva. Comentários à Lei de Execução Fiscal. São Paulo: Saraiva, 2009.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Lei de Execução Fiscal. São Paulo: Saraiva, 2011.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Roberto da Silva. Responsabilidade do depositário de bens apreendidos em decorrência de infrações ambientais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3123, 19 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20891. Acesso em: 19 abr. 2024.