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Desobediência civil, ocupação da terra e o resgate das promessas incumpridas da modernidade

Desobediência civil, ocupação da terra e o resgate das promessas incumpridas da modernidade

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A desobediência civil incomoda porque consubstancia abertamente um discurso provocativo (embora, não destruidor) ao status quo. Afinal, não se pode esperar indefinidamente as promessas incumpridas da modernidade. A luta pela efetivação dos direitos fundamentais que garantem o acesso a terra surge neste contexto.

RESUMO:

Este ensaio não pretende esmiuçar a questão agrária pelo viés da função social da propriedade rural. O objetivo primordial da investigação consiste em reler a "estigmatizada" ocupação da terra como genuína manifestação da teoria da desobediência civil, tal qual apontado – por que não afirmar, paradoxalmente – por John Rawls, o "filósofo do liberalismo". O estudo constrói o momento abstrato da luta popular, trabalhando com o instante hipotético de fundação do ideal Social no Estado. Aponta o potencial transformador do Direito e a capacidade mobilizadora da Constituição.

ABSTRACT:

This essay is not intended to scrutinize the agrarian bias of the social function of rural property. The primary goal of research is to reread the "stigmatized" occupation of land as a genuine manifestation of the theory of civil disobedience, as we pointed out - why not say, paradoxically - by John Rawls, the "philosopher of liberalism." The study builds the abstract moment of popular struggle, working with the hypothetical moment of foundation of the State Social ideal. Points to the transformative potential of law and mobilizing capacity of the Constitution.

PALAVRAS-CHAVES:Questão agrária. Ocupação da terra. Teoria da desobediência civil. John Rawls.

KEYWORDS:Agrarian question. Land occupation. Theory of civil disobedience. John Rawls.

Sumário: Introdução; 1. O momento da luta - A insurgência do Ideal Social no Estado Democrático de Direito; 2. A teoria da Desobediência Civil; 2.1. O Estado de "Quase-Justiça" e a regra da maioria: Deve o homem obedecer às leis e instituições injustas?3. O discurso emancipatório da desobediência civil; 3.1. Condições à Desobediência Civil Legítima: Ocupando o Latifúndio da Cidadania; Conclusão; Bibliografia.


INTRODUÇÃO:

"Deixem-me dizer-lhes, com o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor."

Ernesto Che Guevara.

"Tenho sonhado mais que o que o Napoleão fez.

Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo

Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu".

Fernando Pessoa – Tabacaria.

Neste trabalho entendeu-se absolutamente desnecessário ratificar a inescrupulosa distribuição antidemocrática da terra no Brasil por meio de dados estatísticos. A concentração, antes de tudo, é uma questão "a olho nu". [01]

No debate atual sobre o conflito e a problemática agrária se poderá ponderar que não há mais espaço para a reforma social do campo, haja vista o processo hegemônico da modernização orientada para o agro negócio. Ainda restaria argumentar que os movimentos sociais se desvincularam do seu propósito inicial (até louvável, diriam!), vivendo com o dinheiro público para organizar empreitadas criminosas abertamente violadoras do sagrado direito de propriedade.

No ensaio, porém, a observação desloca-se para outro ponto referencial. Para fins desta investigação científica, não interessa o papel indispensável da agricultura familiar para o sucesso do setor agrícola brasileiro, tampouco o desastre irreparável que a monocultura expansiva tem ocasionado ao meio ambiente [02].

Este estudo constrói o momento abstrato da luta popular. Trabalha com o instante hipotético de fundação do ideal Social no Estado. Aponta o potencial transformador do Direito e a capacidade mobilizadora da Constituição.

Aqui, "invasão" se transforma em "ocupação" por que se tem ciência que a linguagem autoritária produz subjetividade e forja o consenso na sociedade. (A quem isto interessa, será momento para outra oportunidade).

Entendido nesse contexto, a mobilização popular pela ocupação pacífica da terra poderá ser entendida como hipótese justificada de desobediência civil. Tal enfoque, necessariamente agregador da moral e o direito, permitirá reverter o processo de criminalização dos movimentos sociais, concebendo-se a luta pelo acesso a terra como uma forma de discurso legítimo e propulsor dos direitos fundamentais.

A teoria, portanto, insere a ocupação da terra como instrumento da desobediência civil e, neste sentido, permite que a mobilização social observe limites de justificação.

A desobediência civil reconhece a Democracia como o espaço mais apropriado para a "guerra" discursiva e por isto, deve ser difundida como um instrumento destinado a efetivar os direitos fundamentais cravados no solo da Constituição da República.

(É possível, porém, que a desobediência civil seja a forma mais obediente de se conservarem as coisas. Afinal, as revoluções são perigosas e custam demais).


1.O MOMENTO DA LUTA - A INSURGÊNCIA DO IDEAL SOCIAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.

"Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir

Pela fumaça, desgraça que a gente tem que tossir

Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair

Deus lhe pague!".

Chico Buarque.

"Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!"

Fernando Pessoa - Álvaro de Campos.

No atual estágio de maturidade democrática em que no encontramos, será preciso suturar as veias abertas da América Latina e juntar o que sobrou da fratura exposta por Eduardo Galeano.

O formalismo tecnicista do positivismo enclausurou o potencial transformador do Direito, na tentativa de tornar os direitos fundamentais mera cartilha de intenções. No universo jurídico, a retórica do Estado Liberal falhou, no âmbito econômico produziu um verdadeiro caos social.

E não é só. Ao caos sócio-econômico promovido pelo neoliberalismo da periferia somam-se a introjeção dos valores individualistas, cujo apreço pela competição e pelo egoísmo segue os paradigmas do mercado, enfraquecendo a rede de solidariedade social, o que favorece a consolidação de sentimentos de incômodo, de medo e insegurança [03] que, indubitavelmente, desaguarão nas formas perversas de controle da população pobre.

O resultado é a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais [04]. A luta pela efetivação dos direitos sociais fundamentais será mesmo árdua. De um lado a ausência de políticas públicas destinadas a materializar os valores constitucionais, do outro a hipertrofia punitiva, seletiva, criminalizadora da miséria.

O que se observa, neste aspecto, é um Estado Liberal clássico -que se modifica para se conservar- mantendo os seus postulados em relação aos grupos sociais privilegiados, ao mesmo tempo em que se demonstra paternalista e punitivo com a camada pobre da população que, atônita, observa o recuo das proteções sociais ou a sua transformação em típicos instrumentos de vigilância.

Como diria Löic Wacquant, "a "mão invisível" do mercado de trabalho precarizado encontra o seu complemento institucional no punho de ferro do Estado que se reorganiza de maneira a estrangular as desordens geradas pela difusão da insegurança social" [05] que ele mesmo promove.

Neste ambiente, os "sem terra" passam a ser exemplo sintomático de "populações problemáticas".

A exata compreensão acerca de uma política estatal de criminalização da marginalidade é essencial para situar como se programam as políticas de controle no bojo da transformação do Estado caritativo para um Estado de profilaxia punitiva.

Afinal, a criminalização da pobreza e dos conflitos sociais desloca tudo o que é público para o penal [06]. A questão da terra vira, assim, um problema de polícia (dispensa-se aqui retornar ao triste "massacre de Eldorado do Carajás).

A modificação da estrutura fundacional do Estado Liberal acarretou, portanto, transformações sensíveis na rede de relações sociais. Mas, se é verdade que, com o neoliberalismo, assiste-se a uma histeria punitiva que criminaliza a pobreza e controla as pretensões de emancipação social do pobre, também é verdade que a insurgência do Estado Social plantou no seio da Constituição as armas que legitimam a própria luta democrática.

Dessa forma, a necessidade de superação do formalismo vazio do Estado Liberal, possibilitou – no âmbito dos direitos civis – o aparecimento de um Estado Social de Direito, agregador, em que os textos constitucionais passam a incorporar a co-originalidade entre direito e moral [07], buscando resgatar as promessas não cumpridas da modernidade - "questão relevante para países como o Brasil em que o welfare state não passou de um simulacro (modernidade tardia)". [08]

Não há dúvidas de que a luta popular pelo resgate das promessas incumpridas em solo latino americano constitui um importante fator de difusão dos valores democráticos próprios do princípio da Justiça. Isso não quer dizer que a luta pela efetivação dos direitos humanos em matéria de acesso democrático à propriedade da terra esteja desassociada de outra face, negativa, indicativa de um dever geral consciente da sua responsabilidade.

Afinal, o processo de vivificação da Constituição que retira os fatores reais do poder do lugar em que descansavam, deve permanecer refém de um limite ético constitucional, incorporando a si o apreço pela moralidade – núcleo da legitimidade democrática de suas ações. (Por este motivo, se excluirá a violência do núcleo de legitimação da ocupação da terra como meio de desobediência civil organizada).

A noção de responsabilidade, portanto, permite fundir deveres e direitos fundamentais em um mesmo plano axiológico, conferindo legitimidade aos mecanismos de mobilização popular [09].

Dessa forma, a análise jurídica que nos permitirá concluir pela legitimidade das ocupações de terra como verdadeira manifestação da desobediência civil não retira a capacidade de apontar os excessos não justificados.

Neste contexto, os comportamentos que por ventura possam ser atribuídos individualmente, por exemplo – saques, destruição de espécies e animais, etc. – não apenas fogem do âmbito de justificação da teoria da desobediência civil (não violência e natureza discursiva) analisada mais a frente - como devem ser objeto de imposição sancionatória. [10]

Vicente de Paulo Barreto, analisando o pensamento de Kant, explica que a teoria da responsabilidade nos remete à livre subjetividade do agente [11], erigindo-se como mecanismo capaz de manter o vínculo de coesão social em singela harmonia.

Nestes termos, é preciso considerar que

"os seres humanos consideram-se uns aos outros como agentes morais, ou seja, seres capazes de aceitarem regras, cumprirem acordos e de agirem obedecendo a essas determinações. Em torno desses compromissos é que se constitui o tecido de direitos e obrigações regulatórios da vida humana social, que tem na pessoa o seu epicentro" [12]

Neste contexto, deve se ter em mente que os atos levados a efeito pelos indivíduos, na medida em que constituem retrato fiel da racionalidade e autonomia ínsitas ao agente moral, jamais se desvinculam de sua dimensão de responsabilidade e que, portanto, apontam a razão legitimante da sanção. [13]

Por isto, é preciso deixar claro – na exata linha do que indica John Rawls [14]

que, "embora cada pessoa deva decidir por si se as circunstâncias justificam a desobediência civil, disso não se infere que deva decidir como lhe aprouver. (...) Para agir de maneira anônima e responsável o cidadão deve seguir os princípios políticos que fundamentam e orientam a interpretação da Constituição. (...) Se chegar à conclusão, após a devida ponderação, de que a desobediência civil se justifica e se comportar de maneira compatível com essa conclusão, age de forma conscienciosa. E embora possa estar equivocado, não o fez o que lhe aprouvesse." (Grifos nossos).

A consideração ressaltada por Rawls é de extremo valor e deve ser percebida como um verdadeiro liame entre a luta pela materialidade dos valores típicos do Estado Social e a consciência dos limites produzidos pela própria Carta Constitucional.

Afinal, se é a sociedade democrática quem reconhece em cada cidadão a responsabilidade pela singular interpretação dos princípios de Justiça e por seu próprio comportamento à luz de tais princípios [15], não seria de se estranhar que ela mesma reprime-se os excessos produzidos fora do escudo dado pela legitimidade constitucional.

A teoria da responsabilidade – fincada nos valores constitucionais fundamentais –traz também outras considerações importantes e que se dirige aos "senhores proprietários" (no caso, de terras com grande extensão e baixo ou nenhum índice de produtividade).

Sob este ângulo, Vicente de Paulo Barreto [16], lastreado nos apontamentos de Paulo Ricoer, indica que, no séc. XXI, a teoria da responsabilidade deve incluir como uma de suas dimensões a ideia de solidariedade.

Ora, a solidariedade é certamente a fundamentação ontológica da própria função social da propriedade.

Por este conceito de responsabilidade, explica Vicente Barreto, constrói-se uma ponte entre a moral e a política, onde uma concepção do homem e da sociedade, que contemple o individual e o coletivo de maneira integral, venha a ser o conceito fundador da ordem jurídica do séc.XXI. Assim, o princípio da solidariedade ganha um conteúdo jurídico, visto que é em função deste que o outro, o nosso semelhante, surge como uma pessoa com finalidade em si mesma, a ser garantida através da ordem jurídica, que deixa de ser estritamente individualista e incorpora a dimensão da pessoa como agente moral, membro de uma coletividade e, portanto, sujeito da vontade coletiva. [17]

A confluência entre a ideia de responsabilidade e solidariedade é relevante na exata medida em que fortalece os vínculos de cooperação social, incluindo todos os indivíduos na busca por uma sociedade livre e justa.

Não é outra coisa que almeja a Constituição da República Federativa do Brasil ao instituir os seus princípios fundamentais.

Dessa forma, é sob o prisma da construção de uma sociedade plural, democrática e menos desigual que deve ser analisado qualquer quadro que pretenda dar conta da questão agrária no país.

Assim, ainda que se pretenda ponderar que é a mesma Constituição quem fornece vários valores primordiais de proteção do homem e que estes, constantemente, atuariam de forma colidente, o fato é que a extração dos sentidos que autorizam determinados comportamentos à luz do texto constitucional não é tão arbitrária quanto poderia parecer. [18]

A dogmática jurídica tradicional ruiu junto com o formalismo tecnicista, alijado do substrato social do direito e do Estado. Neste ambiente, toda interpretação extraída da Carta Maior da República deve conceber o direito como uma possibilidade de transformação da realidade, na busca daquilo que a própria Constituição buscou, qual seja a construção de um Estado Democrático (e Social) de Direito. [19]

Com o neo constitucionalismo, portanto, o direito se reaproxima da moral, assumindo o seu papel como arena em que se digladiam os discursos e, principalmente, transforma a Constituição em condição de possibilidade hermenêutica, concebendo-a como um "fenômeno construído historicamente como produto de um pacto constituinte, enquanto explicitação do contrato social". [20]

Dessa forma, o sentido da Constituição, embora a tradição nos conduza a vários, somente nos possibilitará aceitar como legítima a interpretação que reconheça sua força normativa, dirigente, programática e compromissária.

Diria Rogério Gesta Lea [21]l,nesse sentido, que

"a perspectiva cívica da Constituição impõe percebê-la como um projeto político, um modelo de desenvolvimento para o futuro, um futuro que não se pode prever, mas apenas construir. A Constituição, portanto, é um projeto inacabado, um processo constituinte que liga permanentemente o presente ao futuro".

Dessa forma, amplia-se o significado da norma constitucional, ultrapassando-se o conceito de ordem quadro para uma ordem fundamental da comunidade. Assim, os direitos fundamentais deixam de serem percebidos numa relação meramente vertical entre Estado e cidadãos, para se conceberem a partir de mecanismos horizontais de garantia e proteção das relações sociais e intersubjetivas. [22]

Neste terreno, diga-se de passagem, a retórica da modernização do campo e da "inclusão" proporcionada pelo agronegócio converte-se em um mero recurso lingüístico totalmente esvaziado democraticamente. [23]

Talvez seja mesmo difícil romper os substratos históricos responsáveis por fincar na terra o germe da desigualdade social, mas – independente do século em que alguns ainda pretendam viver – o fato é que, no dia de hoje, é preciso colocar em marcha o processo de vivificação da Constituição, seja pelo caminho da jurisdição, seja pela desobediência civil responsável por agrupar corpos pobres e marginalizados na luta pela materialidade dos valores cultivados no solo constitucional.

Agora, não há mais como evitar completamente os riscos do conflito divisor.

Ou se honram as liberdades fundamentais - pressuposto implícito da sociedade política democrática – ou a injustiça deliberada na distribuição da terra no Brasil induzirá ao estrangulamento social.

Nesta hipótese, sobrará pouco entre a submissão – que desperta um desprezo explosivo – e a resistência – que rompe definitivamente os laços da comunidade [24].

Parece melhor a desobediência civil.


2.A TEORIA DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL:

"Se a desobediência civil parece ameaçar a concórdia civil, a responsabilidade não recai sobre quem protesta, mas sobre aqueles cujo abuso da autoridade e do poder justifica tal oposição, pois empregar o aparato coercitivo do Estado para manter instituições injustas é, em si, uma forma de força ilegítima à qual os homens têm o direito de resistir no momento apropriado." [25]

John Rawls

O núcleo de toda a problemática envolvendo a legitimidade da desobediência civil repousa sobre as implicações próprias do chamado "governo da maioria", além da complexa correlação entre direito e moral, no que se refere precisamente ao dever – ou não - de cumprir leis injustas.

Para enfrentar estes problemas - antecedentes imprescindíveis ao estudo da desobediência civil - é preciso estabelecer a premissa apontada por John Rawls segundo o qual, do ponto de vista da teoria da justiça, existiria um dever natural a apoiar e promover as instituições justas. [26]

A questão desloca-se, portanto, à investigação a cerca de se é possível afirmar a existência de instituições totalmente justas (a incidir aquele dever natural apontado por Rawls); qual o papel reservado à maioria; se há um dever de obedecer às leis injustas (e sua relação com a moral) para somente então, saber se é plausível conferir à desobediência civil um título de legitimidade às ações levadas a efeito pelos movimentos de luta social pela distribuição da terra.

2.1.O ESTADO DE "QUASE-JUSTIÇA" E A REGRA DA MAIORIA:

Deve o homem obedecer às leis e instituições injustas?

"E [também] daqui se pode concluir claramente quem é o homem equitativo. Ele é alguém que por escolha e hábito faz o que é equitativo, e que não é inflexível quanto aos seus direitos, se contentando em receber uma porção menor mesmo que tenha a lei do seu lado. E a disposição correspondente é a equidade, a qual é um tipo especial de justiça e, de modo algum, uma qualidade diferente". [27]

Aristóteles

Seguramente a pergunta segundo a qual devemos ou não obedecer a uma lei injusta não pode prescindir em primeiro do que se entende por justo, injusto, justiça e injustiça (para fins de constituir tal lei).

Intuitivamente, entende-se por justiça exatamente aquilo que Aristóteles chamaria "daquela disposição moral que torna os indivíduos aptos a realizar atos justos e que os faz agir justamente e desejar o que é justo, e analogamente, por injustiça aquela disposição que leva os indivíduos a agir injustamente e desejar o que é injusto". [28] Neste contexto,

"ora o termo ‘injusto’ é tido como indicativo tanto do indivíduo que transgride a lei quanto do indivíduo que toma mais do que aquilo que lhe é devido, o indivíduo não equitativo. Consequentemente, fica claro que o homem que obedece a lei e o homem equitativo serão ambos justos. O ‘justo’, portanto, significa que é legal e aquilo que é igual ou equitativo". [29]

A proposição apontada por Aristóteles é de extrema relevância, haja vista que permite extrair como paradigma fundamental que: 1) O justo é o legal; 2) O transgressor da lei é injusto; 3) O justo é equitativo; 4) O homem não equitativo é injusto; 5) ‘Transgredir’ a lei por equidade não necessariamente é algo injusto, haja vista que a equidade, "embora justa, não é a justiça legal, porém retificação desta". [30]

A equidade, portanto, conserta o defeito da lei que assim se encontra em razão da natureza do caso.

Sob este ângulo,

"a justiça é a virtude perfeita por ser ela a prática da virtude perfeita, além do que é perfeita num grau especial, porque o seu possuidor pode praticar a sua virtude dirigindo-se aos outros. (...) E a justiça, por conseguinte, não é uma parte da virtude, mas a totalidade desta e o seu oposto, a injustiça, não é uma parte do vício, mas a totalidade deste". [31]

A justiça compreendida como uma virtude perfeita (justiça universal), assim como estabelecido em seu sentido absoluto por Aristóteles, não nos traria muito dificuldade para responder àquela pergunta inicial e que tanto custa à legitimidade da desobediência civil [32] - Deve o homem obedecer às leis injustas?

Afinal, é como diria John Rawls: "É evidente que não há nenhuma dificuldade para se explicar por que devemos obedecer a leis justas promulgadas na vigência de uma constituição justa." [33]

Neste prisma, a problemática desloca-se exatamente à hipótese em que a correspondência entre o justo e o legal passa a não coincidir, seja porque o procedimento que cria a lei permite que a seja injusta (arranjos políticos); seja porque intencionalmente se utiliza da lei com fins injustos (arranjos eleitoreiros e condição ideológica); seja porque se mantem lacunas na lei (e de lei), como meio de obstaculizar a efetivação dos princípios fundamentais. [34]

Por isto, a principal, real e verdadeira "questão está em saber em quais circunstâncias e até que ponto somos obrigados a obedecer a arranjos institucionais injustos". [35]

Para Hawls, quando a estrutura básica da sociedade é razoavelmente justa, a injustiça da lei, em geral, não será razão suficiente para não observá-la. Entretanto, é preciso analisar – segundo as condições e circunstâncias vigentes – até que ponto estas leis excedem certos limites da injustiça, oportunidade em que não será mais prudente dizer que determinada lei injusta deve ser obedecida. A justificativa primeira, portanto, e que legitima a não obediência, reside no grau de injustiça das leis e das instituições [36].

A argumentação levada a efeito por John Rawls fornece a razão pela qual devemos obedecer tanto as leis injustas como as justas, ao mesmo tempo em que aponta os limites até onde tal obediência não poderá mais ser exigida de forma legítima (graus de injustiça).

Sobre o tema em apreço, importante contribuição pode ser atribuída a Gustav Radbruch, certamente um dos maiores filósofos e juristas do século passado:

"Será, muitas vezes, necessário ponderar se a uma lei má, nociva e injusta, deverá ainda reconhecer-se validade por amor da segurança do direito; ou se, por virtude da sua nocividade ou injustiça, tal validade lhe deverá ser recusada. Mas uma coisa há que deve estar profundamente gravada na consciência do povo e de todos os juristas: pode haver leis tais, com um tal grau de injustiça e de nocividade para o bem comum, que toda a validade e até o caráter de jurídicas não poderão jamais deixar de lhe ser negados". [37]

Pois bem, pouquíssimas pessoas entenderiam que um mínimo de injustiça na lei autorizaria anular o dever que todos possuem em obedecer às leis vigentes.

Rawls explica isto, ao aduzir que em uma sociedade, qualquer regime constitucional viável que satisfaça razoavelmente os princípios de justiça, não conseguirá produzir mais do que uma situação de quase justiça. [38]

Neste sentido, mesmo uma Constituição justa passa a ser concebida como exemplo de uma justiça procedimental imperfeita. Nas palavras de John Rawls:

"Devemos lembrar que na convenção constituinte o objetivo das partes é encontrar, entre as constituições justas (aquelas que atendem ao princípio da liberdade igual), a que tem maiores probabilidades de conduzir a uma legislação justa e eficaz, em vista dos fatos gerais em relação à sociedade em questão. A constituição é considerada um procedimento justo, mas imperfeito, estruturado para garantir o resultado justa na medida em que as circunstâncias o permitam. É imperfeito porque não há nenhum processo político factível que garanta que as leis promulgadas segundo seus parâmetros serão justas". [39]

Em síntese, o dever natural de apoiar e promover as instituições justas nos obriga a obedecer às leis injustas até certo limite, haja vista que – em geral - uma situação de quase-justiça é a única viável e factível na atual sociedade (dado o próprio procedimento imperfeito da constituição).

Ora, se, como regra, temos o dever de apoiar uma constituição justa – numa situação de quase-justiça -, então também devemos respeitar um dos seus princípios primordiais: a regra da maioria.

Indica Rawls, com razão, que a regra da maioria se justifica como a melhor maneira de garantir uma legislação justa, não se vislumbrando outra forma de se fazer um regime democrático funcionar. O argumento possui certa naturalidade, pois, é como afirma o próprio Rawls: "se adotarmos a regra da minoria, não há um critério óbvio para escolher qual minoria deve decidir e transgride-se a igualdade". [40]

Não há nada, absolutamente nada, porém, que garanta que a vontade da maioria está correta, motivo pelo qual se reafirma: mesmo "quando adotado o princípio da maioria, as partes aceitam tolerar leis injustas apenas em certas condições". [41]

A situação-limite de injustiça (legal ou das instituições) que deve ser suportada encontra-se iluminada pela Constituição Federal, que por sua vez estrutura-se como principal mecanismo indutor da mobilização.

A ruptura conduzida pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é significativa e se espaira por todos os ramos da ciência jurídica, "constitucionalizando" cada canto do saber produzido pelo Direito.

Por isto, a Constituição de 88 dirige a produção legislativa derivada e auxilia na construção dos limites que indicam até que ponto se deve obedecer a uma lei injusta ou tolerar instituições injustas (que criam óbices à efetivação dos direitos fundamentais sociais).

Com uma mensagem ideológica (social) bastante clara, a atual Constituição demonstra sua face pervasiva, condicionando tanto os órgãos do Estado quanto os particulares em suas relações sociais. [42]

Neste ambiente, o princípio da maioria – conforme aventado por Rawls – sofre um impacto direto. Afinal, é preciso levar em conta um novo olhar sobre o Direito:

"Nestes tempos de pós-positivismo, a liberdade de conformação do legislador passa a ser contestada de dois modos: de um lado, os textos constitucionais dirigentes, apontando para um dever de legislar em prol dos direitos fundamentais e sociais; de outro, o controle por parte dos Tribunais, que passaram não somente a decidir acerca da forma procedimental da feitura das leis, mas acerca de seu conteúdo material, incorporando os valores previstos na Constituição". [43]

Haveria, assim, no regime democrático próprio do neo constitucionalismo no Estado Social, a prevalência do princípio da constitucionalidade sobre o princípio da maioria, "o que significa entender a Constituição também como um remédio contra as maiorias." [44]

Pois bem, antes de definir a essência jurídica e moral da desobediência civil, era preciso estabelecer estas considerações.

Esta teoria se destina a uma sociedade quase justa, que reconhece a imperfeição do procedimento legal. De qualquer forma, portanto, sabe-se que não é toda instituição ou lei injusta que legitimará a desobediência, mas tão somente aquelas que passarem de certos limites, estreitamente ligados ao perfil constitucional brasileiro, calcado em uma constituição provocadora, indutora e instigadora do cidadão como agente realizador das promessas não cumpridas da modernidade.


3.O DISCURSO EMANCIPATÓRIO DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL:

"Até quando você vai levar cascudo mudo?

Muda, muda essa postura.

Até quando você vai ficando mudo?

Muda que o medo é um modo de fazer censura.

(...)

Escola, esmola

Favela, cadeia

Sem terra, enterra

Sem renda, se renda.

Não, não!"

Gabriel Pensador.

Ao se levantar da cadeira para mudar e efetivar a luta pelo Direito, dois caminhos poderão ser tomados. De um lado a militância, opositora do próprio sistema político, artífice da ruptura e da resistência. [45] Do outro, a modalidade discursiva da desobediência civil que se dirige ao senso de justiça da comunidade e declara que os princípios da cooperação social entre homens livres e iguais não estão sendo respeitados. [46]

A teoria da desobediência civil contemporânea, como nos lembra Vicente de Paulo Barreto, pressupõe sociedades democráticas no contexto do estado de direito.

Neste sentido, ao contrário do corte revolucionário proposto pelo militante, "o contestador civil contemporâneo vale-se dos princípios fundadores da sociedade política, para invocar a desobediência da lei no quadro de uma ordem jurídica, com base na existência de valores superiores como alicerces do corpo social". [47]

Dessa forma, deixa-se claro que: A uma, a desobediência civil é um tipo de objeção específica, diferente de outras formas de oposição à autoridade democrática – desde manifestações legais e transgressões das leis à luta armada e à resistência organizada. [48] A duas, a desobediência civil será legítima nas condições pelas quais a ação se justifica em um regime democrático de quase-justa.

3.1.CONDIÇÕES À DESOBEDIÊNCIA CIVIL LEGÍTIMA: OCUPANDO O LATIFÚNDIO DA CIDADANIA.

"E diz o Poeta ao Vigário,

com dramática prudência:

‘tenha meus dedos cortados,

antes que tal verso escrevam...’

LIBERDADE, AINDA QUE TARDE

ouve-se em redor da mesa.

e a bandeira já estava viva,

e sobe, na noite imensa.

e os seus tristes inventores

já são réus – pois se atreveram

a falar em Liberdade

(que ninguém sabe o que seja)." [49]

Cecília Meirelles

Hawls define a desobediência civil como um "ato político público, não violento e consciente contra a lei, realizado com o fim de produzir mudanças nas leis ou nas políticas de governo". [50]

Segundo John Rawls, portanto,a desobediência civil trata-se de um ato político, na exata medida em que age "não só no sentido de dirigir à maioria que detém o poder político, mas também porque é um ato orientado e justificado por princípios políticos, isto é, pelos princípios de justiça que regem a Constituição e as instituições em geral". [51]E arremata: "Ao engajar-se na desobediência civil, uma minoria obriga a maioria a ponderar se deseja que suas ações sejam construídas dessa maneira, ou se, à vista do senso de justiça em comum, quer reconhecer as reivindicações legítimas da minoria" [52].

A natureza pública da desobediência civil estaria radicada do fato de que em todas as hipóteses, o ato se dirige aos princípios públicos e é efetivamente realizado em público (não de forma secreta, por ex).

Ocorre que a característica, talvez mais sintomática, da teoria da desobediência civil descrita por John Rawls seja a não violência. O "filósofo do liberalismo" assim se expressa sobre o tema:

"Podemos compará-la ao discurso público e, por ser uma forma de discurso, uma expressão da convicção política profunda e consciente, acontece no foro público. Por este motivo, dentro outros, a desobediência civil é não violenta. Tenta evitar o uso da violência, principalmente contra pessoas, não por ser em princípio contra o uso da força, mas porque é a derradeira expressão da própria argumentação. Praticar atos violentos com probabilidade de ferir e causar danos é incompatível com a modalidade da desobediência civil". [53]

O caráter não violento da desobediência civil constitui um aspecto fundamental da legitimidade da ação mobilizadora, permitindo, inclusive, que a conduta levada a efeito seja justificada e, portanto, se exclua da possibilidade de contra ataque pelo controle punitivo penal.

A observação é extremamente relevante, desde que se apontou neste mesmo ensaio, a problemática envolvendo a profilaxia punitiva do Estado Penal e, consequentemente, as estratégias de criminalização da miséria.

Juarez Cirino dos Santos aponta que

"a situação de exculpação [54] definida como desobediência civil tem por objeto ações ou demonstrações públicas de bloqueios, ocupações etc, realizadas em defesa do bem comum, ou de questões vitais da população, ou mesmo em lutas coletivas por direitos humanos fundamentais, como greve de trabalhadores, protestos de presos e, no Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), desde que não constituam ação ou manifestações violentar ou de resistência ativa contra a ordem vigente – exceto obstruções e danos limitados no tempo – e apresentam reconhecível com os destinatários respectivos." [55]

E acrescenta:

"Autores de fatos qualificados como desobediência civil são possuidores de dirigibilidade normativa e, portanto, capazes de agir conforme o direito, mas a exculpação se baseia na existência objetiva de injusto mínimo, e na existência de motivação política ou coletiva relevante, ou, alternativamente, na desnecessidade de punição, por que os autores não são criminosos – portanto, a pena não pode ser retributiva e, além disso, a solução dos conflitos sociais não pode ser obtida pelas funções de prevenção especial e geral atribuídas à pena criminal". [56]

Pelo exposto de forma brilhante por Juarez Cirino é possível concluir que a natureza não violenta, considerando o fundamento mobilizador da desobediência, não permite ao Estado – inconformado pela pressão social quanto à política de governo injusta – utilizar-se do direito penal como mecanismo de controle.

Mas note-se que a justificação da desobediência civil possui seus limites e, portanto, deverá respeitar certas condições favoráveis. Avancemos a elas, segundo aponta John Rawls.

Com efeito, a primeira questão cinge-se em saber os tipos de injustiça que são objetos apropriados para a desobediência civil. Neste sentido, indica Rawls que

"a violação do princípio da liberdade igual é, então, o objeto mais apropriado da desobediência civil. Esse princípio define o status comum da cidadania igual num regime constitucional e repousa na base da ordem política". [57]

A consideração é salutar, pois as desigualdades existentes na distribuição equitativa do acesso a terra ofendem diretamente o núcleo do princípio da liberdade igual. Vejamos o que diz a respeito, Rawls:

"Assim, quando se nega a certas minorias o direito de votar ou de ocupar cargos públicos, ou o direito de propriedade e o de ir e vir, ou quando certos grupos religiosos são reprimidos e se negam a outros diversas oportunidades, essas injustiças podem ser óbvias para todos. Integram-se publicamente à prática reconhecida, se não à letra, dos arranjos sociais." [58] (Grifos nossos).

Enfim ratificado que a luta pela ocupação da terra, em vistas a democratização do acesso, constitui modalidade de desobediência civil, será preciso indicar outras condições segundo as quais tal exercício deverá ser reconhecido como totalmente legítimo.

Outra condição propícia a conferir legitimidade à desobediência civil é a necessidade de esgotamento das vias tradicionais de protesto, donde se pode "supor que já se fizeram os apelos normais à maioria política e que fracassaram". [59]

Quanto a esta condição, certamente nem o argumento mais reacionário poderia dar conta de negar todas as tentativas realizadas no sentido de estabelecer uma reforma agrária efetiva e socializante no Brasil.

Desde muito antes de Francisco Julião até os atuais movimentos de luta pela terra, já se tentou de praticamente tudo na via política clássica. Todas as deliberações são absolutamente esmagadas. A denominada ‘bancada ruralista’ no Congresso Nacional brasileiro é extremamente forte, mobilizando-se como um servo intransigente do "agro business", núcleo ideológico do pensamento proprietário feudale, portanto, inescrupulosamente refratária das pretensões inclusivas dos movimentos sociais.

A terceira e última condição para a legitimidade da desobediência civil é a que custa mais caro aos grupos de luta pelo acesso equitativo a terra. Trata-se de um dos pontos principais da teoria da Justiça, qual seja a moderação.

A exigência de moderação atinge a minoria destinada à desobediência civil de duas formas básicas. Em um primeiro aspecto é percebida como mecanismo capaz de construir uma solução ideal teórica em que as minorias – distintas – devem "realizar uma aliança política cooperativa a fim de regular o nível geral de contestação" [60]. Sob esta ótica, a moderação impõe a necessidade de lidar com um problema provável, qual seja a possibilidade de vários grupos minoritários agirem em desobediência civil "provocando distúrbios graves, que poderiam muito bem solapar a eficácia da constituição justa". [61]

Mas convenhamos que este não é o maior inconveniente. O problema mais sério encontra-se na forma pela qual a desobediência civil será exercida, ainda que o seja não violentamente.

Pois bem, encontrar o meio termo entre o excesso e a deficiência no exercício da luta pelo direito de acesso a terra é bastante complexo. O que se tem ao certo é que tanto um quanto o outro não direcionam o indivíduo ao caminho da virtude e poderão ser, ao final, passíveis de críticas e severas restrições [62].

O que se pretende afirmar neste ponto é simplesmente a necessidade de se incorporar a responsabilidade para com os outros membros da sociedade (alteridade), evitando que o ato da minoria em desobediência civil signifique a violação aos direitos de terceiros, muitas vezes alheios ao interesse pela qual se luta.

Será difícil, por óbvio, apontar em que local se encontram tais limites de moderação. Importa saber que existem e que a proporcionalidade das ações levadas a efeito em relação ao fim almejado (acesso democrático a terra) não poderão exorbitar-se. Neste contexto, a ocupação de propriedade não muito extensa, em efusiva produção, certamente não será legítima ainda que realizada de forma não violenta contra as pessoas. Isso porque, não se pode conceber que o alinhamento ideológico dos integrantes dos movimentos sociais – frequentemente contra a produção trangênica, por ex. – sirvam como fundamento para a deflagração desordenada de protestos sociais.

No ponto, fazem-se sábias as palavras de Aristóteles:

"A virtude moral é uma mediania e em que sentido ela o é, a saber, que é mediania entre dois vícios (um do excesso e o outro da deficiência); e que ela é uma tal mediania porque visa atingir o ponto mediano nas paixões e nas ações. É por isso que constitui árdua tarefa ser bom, pois é difícil encontrar o ponto mediano em qualquer coisa." [63]

Por tal ordem de motivos é que se salienta o quanto problemática é a situação de definir parâmetros de moderação à atuação dos movimentos sociais de luta pela terra. Somente o caso concreto poderá apontar a forma pela qual a desobediência civil, sob este aspecto, será legitimamente exercida. [64]

A teoria da desobediência civil, considerada todas as condições apontadas, oferece um importante instrumento para a efetivação dos direitos fundamentais, no caso, a democratização do acesso a terra no Brasil.

Neste contexto, consciente de todos os limites, a ocupação da terra erige-se como mecanismo legítimo de pressão social do Poder, demonstrando sua vital importância ao controle do governante, ora chamado a lembrar do senso de justiça fundador da comunidade política democrática.


CONCLUSÃO:

"Debulhar o trigo

Recolher cada bago do trigo

Forjar no trigo o milagre do pão

E se fartar de pão

(...)

Afagar a terra

Conhecer os desejos da terra

Cio da terra, a propícia estação

E fecundar o chão".

Chico Buarque.

Dentro da ordem democrática, engasgada pelas tensões sociais, a sublevação da dignidade representada na mobilização popular organizada, constitui o último grande esforço humano no sentido de lembrar que "em nossa opinião sincera e ponderada, as condições da livre cooperação estão sendo violadas" [65].

Não há fuga viável.

A desobediência civil incomoda porque consubstancia abertamente um discurso provocativo (embora, não destruidor) ao status quo. Afinal, não se pode esperar indefinidamente as promessas incumpridas da modernidade.

A luta pela efetivação dos direitos fundamentais que garantem o acesso a terra surge neste contexto. A etapa pós-industrial da globalização na realidade periférica emerge num ambiente desarticulado socialmente, em que a maioria da população, compondo um exército de miseráveis, assiste ao enfraquecimento dos Estados nacionais, aliado à exclusão formal da população pobre dos mecanismos de produção.

O Estado Liberal desfacelou as redes de proteção social, fundou uma sociedade panóptica e refém da insegurança social que ele próprio provocara. O medo do outro se torna uma opção estética e a criminalização da miséria uma estratégia de controle pelo Poder.

Aponta-nos Rawls que, juntamente com eleições livres, um Judiciário independente, com prerrogativas para interpretar a Constituição, a desobediência civil, consciente de seus limites, ajuda a manter e fortalecer as instituições justas. [66]

A razão é simplória: O seu avesso rompe tudo e refunda a própria comunidade política, o que aos fatores reais do poder parece interessar bem menos do que a desobediência civil. Por isto, não é demais dizer que a disposição geral de engajar-se na desobediência civil justificada acrescenta estabilidade à sociedade [67].

Dentro desta perspectiva, a ocupação da terra – como forma de manifestação legítima da desobediência civil – dentro dos limites de justificação, erige-se como importante indutor da maturidade jurídica da democracia constitucional.

Ao tomar para si a potência da transformação, o homem toma consciência da energia emancipatória do Direito, caminha na direção da dignidade e afirma a máxima efetividade dos direitos fundamentais.

Neste momento,

"o sonho de cada um, pessoal, intransferível e indecifrável, floração de um orquidário narcísico numa estufa fechada, acaba por desaguar num oceano simbólico, onde se inauguram os circuitos de intercâmbio coletivo capazes de tecer o tecido da vida social".

Hélio Pellegrino.


BIBLIOGRAFIA:

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WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos, Rio de Janeiro: Revan, 2003.


Notas

Ver também Wacquant, Loïc. Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos, Rio de Janeiro: Revan, 2003 e Giorgi, Alessandro de. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2006.

A pressão popular que outrora obrigara a burguesia a fazer algumas concessões, adaptando o seu projeto de poder a um modelo de Estado Social, jamais imaginaria chegar à atual consolidação de um regime liberal-paternalista, na precisa expressão de Loïc Wacquant. (Wacquant, Loïc. Op. cit. p 148 ).

Neste contexto, o recurso maciço ao encarceramento acompanha o desmantelamento do Estado providência concebendo um modelo de Estado mínimo na esfera social e econômica e um Estado penal máximo, vigilante, que manipula o medo e a insegurança para dar roupagem pós-moderna a antigas formas de restrição sobre a liberdade. (KARAM, Maria Lúcia - Org. Op. cit. p.2). O discurso do medo passa a ser o pano de fundo das intervenções urbanas que pretendem dar conta da conflitividade, produzindo uma espécie de consenso social nas práticas de repressão fora do direito, entendido como um entrave ao fim da insegurança. A arquitetura do medo é a principal fonte legitimadora da emergência, na qual o risco que ameaça toma a forma de um inimigo que deve ser enfrentado de forma excepcional e urgente.

Vera Malagutti Batista afirmaria que:

"A diminuição do poder político do Estado faz com que o desamparo provocado pela destruição das redes de proteção coletiva gere uma ansiedade difusa e dispersa que converge para a obsessão por segurança. (...)A incerteza é vendida como estilo de vida e o medo torna-se uma opção estética" (BATISTA, Vera Malagutti, ibid p.52).

  1. A propósito, para satisfazer alguma curiosidade, noticia-se: "O Censo Agropecuário 2006, divulgado no dia 30 de Junho de 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostra que a concentração de terras persiste no País. A concentração e a desigualdade regional é comprovada pelo Índice de Gini da estrutura agrária do País. Quanto mais perto esse índice está de 1, maior a concentração. Os dados mostram um agravamento da concentração de terras nos últimos 10 anos. O Censo do IBGE mostrou um Gini de 0,872 para a estrutura agrária brasileira, superior aos índices apurados nos anos de 1985 (0,857) e 1995 (0,856). De acordo com o instituto, enquanto os estabelecimentos rurais de menos de 10 hectares ocupam menos de 2,7% da área total ocupada pelos estabelecimentos rurais, a área ocupada pelos estabelecimentos de mais de 1.000 hectares concentra mais de 43% da área total.(http://www.estadao.com.br/noticias/economia,concentracao-de-terras-aumenta-no-brasil-aponta-ibge,443398,0.htm) acessado em 26 de Julho de 2010.
  2. O mesmo senso - acima descrito - constatou que a soja foi a cultura que mais se expandiu no País na última década, segundo mostra o Censo Agropecuário. No período entre 1995, quando foi realizado o levantamento anterior, e o Censo atual, a soja apresentou um aumento de 88,8% na produção, alcançando 40,7 milhões de toneladas, em 15,6 milhões de hectares, com um aumento de 69,3% na área colhida. Em termos absolutos, segundo o IBGE, houve um aumento de 6,4 milhões de hectares de soja, sendo que grande parte desta área pertence à Região Centro-Oeste. Ainda de acordo com o Censo, "com o objetivo de reduzir os custos de produção", os produtores optaram pelo cultivo da soja transgênica no Brasil: 46,4% dos estabelecimentos agropecuários que cultivaram soja em 2006 utilizaram sementes geneticamente modificada. Também foi utilizada uma grande quantidade de semente certificada (44,6%) e, em 96,8% da área, a colheita foi realizada de forma totalmente mecanizada. Na maior parte das áreas cultivadas também foram feitos uso de agrotóxicos (95,1%) e adubação química (90,1%).
  3. Karam, Maria Lúcia (Org.). Globalização, Sistema Penal e Ameaças ao estado Democrático de Direito, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005 p.1
  4. Com razão Zigmund Bauman acrescenta que a era moderna – da qual surgem os valores neoliberais- representa justamente a procura emergencial por uma nova ordem. Ao escolher limitar a liberdade em nome da segurança, a modernidade escolheu buscar incessantemente a ordem ainda que esta venha acompanhada de mais mal-estar. (BAUMAN, Zigmund. O mal-estar da pós-modernidade. Trad.Mauro Gama e Claúdia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.15-20)
  5. WACQUANT, Loïc, Ibidem, p. 147.
  6. O que surge daí é a "formação política de um tipo novo, espécie de "Estado centauro", cabeça liberal sobre corpo autoritário, que aplica a doutrina do "laissez faire, laissez passer" ao se tratar das causas das desigualdades sociais, mas que se revela brutalmente paternalista e punitivo quando se trata de assumir as conseqüências". (WACQUANT, Loïc, Ibidem, p. 55).
  7. Passagem interessante dos ensinamentos de Gustav Radbruch e que dá conta da relação entre direito e moral pode ser observada no seguinte ponto: "A relação entre a moral e o direito apresenta-se-nos como uma relação muito especial. O direito começa por se encontrar ao lado da moral, mas estranho a ela, diferente dela e até, possivelmente, oposto a ela, como acontece com os <meios> colocados ao lado dos <fins>. Posteriormente, como meio para a realização de certos valores morais, o direito toma, porém, parte no valioso deste fim. Deste modo, embora com reserva da sua autonomia, é absorvido pela Moral". RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito, Coimbra, 1947, pg. 113.
  8. STRECK, Lenio Luiz. Os obstáculos ao acesso à justiça e a inefetividade da Constituição. Passados vinte anos, (ainda) o necessário combate ao (velho) positivismo. JurisPoiesis: Revista do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro: Universidade Estácio de Sá, ano 10, nº 10, 2007. Pg.157.
  9. Explica Vicente de Paulo Barreto que a distinção entre a teoria da virtude e a teoria do justo, expressa a progressiva separação entre dois tipos de sistemas normativos, ainda que o estado democrático de direito pressuponha a necessária complementaridade entre a moralidade e o direito. O autor assinala que o positivismo pretendeu separar a responsabilidade em duas esferas distintas de atuação, o que é impossível dada a sua dupla função: submete a pessoa livre ao julgamento de sua consciência ou faz com que o direito responda pelas conseqüências de suas ações nas relações sociais. A responsabilidade, entretanto, antes de ser jurídica, permanece como uma questão filosófica, pois suscita a indagação a respeito da unidade da pessoa, sobre a identidade pessoal, a respeito de quais são os limites da autonomia racional e como se situa a questão da alteridade. BARRETO, Vicente de Paulo. Bioética, responsabilidade e sociedade tecnocientífica. JurisPoiesis: Revista do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro: Universidade Estácio de Sá, ano 10, nº 10, 2007.
  10. A tarefa de impor sanções deve ser conduzida primária e fundamentalmente pelo direito civil e administrativo. Desde já, estabelece-se como premissa que a punição pelo direito penal – a nosso juízo impossível de incidir no caso estrito da desobediência civil (como será visto) – também fora destes casos deverá respeitar sua fragmentariedade e princípios inerentes. A observação, embora não seja objeto deste ensaio científico, é extremamente relevante em tema de luta pela terra, haja vista a estratégia de criminalização dos movimentos sociais e difusão de um estigma negativo na mass media, donde resulta a produção de um falso consenso social marginalizante daquelas pessoas.
  11. Observação salutar: Desde a ruptura promovida pela insurgência do inconsciente pela psicanálise, afirmações do tipo "livre subjetividade do agente" devem ser tomadas com o máximo de cautela.
  12. BARRETO, Vicente de Paulo. Bioética, responsabilidade e sociedade tecnocientífica. JurisPoiesis: Revista do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro: Universidade Estácio de Sá, ano 10, nº 10, 2007. Pg. 319.
  13. Ibidem, pg. 319. Indica Vicente de Paulo que o processo de evolução da moralidade iniciou-se com a passagem do estado vingatório para um estado de justiça, que representou o que Ost chamou de "ato fundador do direito".
  14. HAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Pg. 484.
  15. Ibidem, pg.484.
  16. BARRETO, Vicente de Paulo. Bioética, responsabilidade e sociedade tecnocientífica.
  17. Ibidem.
  18. O presente ensaio não pretende construir – pelo espaço e profundidade teórica que demandaria – a saída científica da ponderação de interesses, núcleo das soluções propostas por Robert Alexy em sua "teoria dos princípios".
  19. STRECK, Lenio Luiz. Os obstáculos ao acesso à justiça e a inefetividade da Constituição. Passados vinte anos, (ainda) o necessário combate ao (velho) positivismo. JurisPoiesis: Revista do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro: Universidade Estácio de Sá, ano 10, nº 10, 2007. Pg. 159
  20. Ibidem, pg.164
  21. LEAL, Rogério Gesta. Os direitos fundamentais sociais e o mínimo existencial: Desafios de uma equação político-jurídica. JurisPoiesis: Revista do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. Rio de Janeiro: Universidade Estácio de Sá, ano 10, nº 10, 2007.
  22. Ibidem.
  23. Não se trata de luta pela obtenção de (sub) emprego em plantações de cana, muito menos de integrar os milhares de hectares de soja que arrasam a Amazônia brasileira. A mobilização pretende apelar ao senso de justiça comunitário para garantir muito mais, ou seja, assegurar a democratização da propriedade agrária, do acesso a terra.
  24. RAWLS, John, Uma Teoria da Justiça, pg. 477.
  25. RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. 3ª ed. Martins Fontes, São Paulo, 2008, pg.485.
  26. Há outros deveres naturais para além daquele que consiste em apoiar e promover os arranjos institucionais que atendam aos princípios de justiça. Dessa forma, resumidamente, aduz-se que Rawls aponta a existência de um dever de respeito mútuo, consistente no "dever de manifestar a alguém o respeito que lhe é devido como ser moral, isto é, na qualidade de ser dotando de um senso de justiça e uma concepção do bem". O respeito mútuo, prossegue, é demonstrado de várias maneiras e correspondem – grosso modo – a dois aspectos da personalidade moral. "Quando necessárias, razões devem ser expostas aos interessados; devem ser apresentadas de boa fé, com a convicção de que são razões fortes, definidas por uma concepção mutuamente aceitável de justiça que leva em consideração o bem de cada um". RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Pg. 420/421. Outro dever natural relevante refere-se ao dever de auxílio mútuo (este dever decorre da possibilidade de surgirem situações em que venhamos precisar de ajuda de outrem, e não reconhecê-lo significaria nos privarmos deste mesmo auxilio). Ibidem, pg.422
  27. Aristóteles, Ética a Nicômaco, 3ª ed. Edipro. Baurú- SP, 2009, pg. 173. (1138a).
  28. Ibidem, pg.145 (1129ª1, 10).
  29. Ibidem, pg.146 (1129b1).
  30. Ibidem, pg. 173 (1137b1, 20, 25).
  31. Ibidem, pg. 148 (1130ª, 15).
  32. Em todos os casos a desobediência civil é apontada aqui como instrumento legítimo de luta pela efetivação dos valores fundamentais de acesso a terra.
  33. RAWLS, John, Uma teoria da Justiça. Pg.437
  34. Na primeira hipótese, cita-se ao problema aventado por Rawls – e que será explorado – sobre como a própria Constituição é o maior exemplo de justiça procedimental imperfeita. Na segunda hipótese, em total relação com a primeira, aponta-se a força devastadora da bancada ruralista presente no Congresso Nacional, oportunidade em que direcionam a produção legislativa no sentido de criminalizar o movimento de luta pela terra, dificultando a regularização das propriedade legitimamente ocupadas. Finalmente, a terceira hipótese, facilmente observável na total ausência de instrumentos legais (lato sensu) efetivos ao cumprimento da função social da propriedade rural e acesso democrático a terra.
  35. RAWLS, John, Uma teoria da Justiça. Pg.437
  36. Ibidem, pg. 439.
  37. RADBRUCH, Gustav, Cinco minutos de filosofia do direito (terceiro minuto) in Filosofia do Direito, Coimbra, 1947.
  38. Ibidem, pg.440.
  39. Ibidem, pg. 441.
  40. Ibidem, pg.443.
  41. Ibidem, pg.442. A propósito, ressalta-se que o princípio da maioria não pode ser colocado em procedimento ideal e, portanto, se insere na mesma situação de quase-justiça que conforma toda a sociedade. No procedimento ideal (descrito por Rawls às fls. 445, op. cit) as leis e políticas são justas, pois seriam instituídas "no estágio legislativo por legisladores racionais, dentro das limitações impostas por uma constituição justa e que se esforçam conscientemente por seguir os princípios de justiça como seu critério". (...) "É preciso haver votação em condições ideais. (...) No procedimento ideal, a discussão legislativa deve ser concebida não como uma competição de interesses, mas como a tentativa de descobrir a melhor política tal como definida pelos princípios de justiça".
  42. Aponta Lenio Streck: "É nesse contexto que se move o discurso jurídico em tempos de Estado Democrático de Direito: de um lado, as promessas da modernidade (incumpridas) previstas na Constituição que esperam efetivação, de outro, em face da inefetividade desses direitos, o aumento das demandas que acabam chegando aos Tribunais e a discussão em torno dos limites desta atuação". STRECK, Lenio Luiz, op. cit. pg.165.
  43. Ibidem, pg. 165.
  44. Ibidem, pg. 165.
  45. Diria Rawls que "a ação militante não se enquadra dentro dos limites da fidelidade à lei, mas representa uma oposição mais profunda à ordem jurídica". (RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Pg. 457).
  46. HAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Pg. 454.
  47. BARRETO, Vicente de Paulo. O fetiche dos Direitos Humanos e outros temas. Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2010. Pg. 90.
  48. HAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Pg. 452.
  49. MEIRELLES, Cecília em o Romance XXIV ou Da Bandeira Da Inconfidência.
  50. Ibidem, pg. 453.
  51. Ibidem, pg.455.
  52. Ibidem, pg. 455.
  53. Ibidem, pg. 456.
  54. Não constitui matéria deste ensaio aprofundar a teoria do delito, razão pela qual apenas observa-se que: As situações de exculpação incidem sobre a culpabilidade, um dos três elementos da teoria tripartite do conceito analítico de crime (fato ilícito, antijurídico e culpável). A capacidade de culpabilidade levará em conta inúmeros atributos, dentre os quais se inclui a chamada dirigibilidade normativa.
  55. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal – parte geral. 3ª ed. Lumen Juris. 2008. Curitiba. Pg. 345.
  56. Ibidem, pg. 346. No mesmo sentido, ver René Ariel Dotti, Curso de Direito Penal: parte geral, 2001, pg. 428 e na Alemanha, comparar com Claus Roxin, Strafrecht, 1997, §22, n.130-133, pg. 880-881.
  57. RAWLS, John, Uma teoria da Justiça. Pg. 464. O autor assevera que, em contraste, as violações ao princípio de diferença são mais difíceis de averiguar. Assim, "a não ser que as leis tributárias, por exemplo, sejam claramente elaboradas para atacar ou reduzir a liberdade igual fundamental, elas não devem, normalmente, ser contestadas por meio da desobediência civil. O recurso à concepção pública de justiça não é suficientemente claro. É melhor deixar a resolução dessas questões para o processo político, contando que as liberdades iguais exigidas estejam asseguradas. Nesse caso, pode-se chegar a um compromisso razoável". Ibidem, pg.463.
  58. Ibidem, pg. 463.
  59. Ibidem, pg. 464.
  60. Ibidem, pg. 465.
  61. Ibidem, pg.465.
  62. Basta pensar que o bloqueio de uma estrada como forma legítima de protesto poderá, dependendo do caso (soluções alternativas de vias; tempo de manifestação, etc.), se tornar excessivo e acabar saindo da rede de legitimidade da desobediência civil.
  63. Aristóteles, Ética a Nicômaco. Op. cit. Pg. 83-84 (1109a1, 20, 25).
  64. Já se demonstrou que o homem injusto é eminentemente não equitativo, o que corresponderia dizer que o justo é o igual e, se o igual é uma mediania, então o justo é uma espécie de mediania também. (Aristóteles, Ibidem – 1131a1, 10). O justo é, portanto, o proporcional e o injusto é aquilo que transgride a proporção. Neste diapasão, tomando-se novamente as lições de Aristóteles, afirma-se que o desejo de luta, que transforma o indivíduo e o torna num agente ativo de emancipação social deve sempre se encontrar relativamente equilibrado. Pois, "aquele que se excede na autoconfiança é temerário; aquele que se excede no medo e é deficiente em autoconfiança é covarde". Entre o medo e a autoconfiança, a mediania é a coragem. Aristóteles, Ética a Nicômaco. Pg. 79 (1107b1, 20).
  65. A expressão é de Rawls e já foi, inclusive, mencionada. (op. cit. pg. 476).
  66. RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Pg. 476.
  67. Ibidem, pg. 477.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELCHIOR, Antonio Pedro. Desobediência civil, ocupação da terra e o resgate das promessas incumpridas da modernidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3142, 7 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21022. Acesso em: 25 abr. 2024.