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Copa, mesa e cama: turismo sexual em grandes eventos.

Aspectos sociais e legais

Copa, mesa e cama: turismo sexual em grandes eventos. Aspectos sociais e legais

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As Varas da Infância e da Juventude por todo o Brasil esforçam-se por proteger as vítimas do turismo sexual, evitar ou minorar os danos, mas não é o suficiente. O Governo Federal tem as suas ações reduzidas a cartazes em aeroportos e hotéis.

Sumário: I. “Ultra Aequinoxialem non Peccati”? Não existe Pecado do Lado de Baixo do Equador?  II. “Dura Lex Sed Lex”? A Lei é dura, mas é a Lei?. III. “Hoc Ipsum Est”. Eis o Caso. IV. “Ubi Bene, Ubi Patria”. Onde se está Bem, aí está a Pátria.


I. “Ultra aequinoxialem non peccati”? Não existe pecado do lado de baixo do Equador?

Não existe pecado do lado de baixo do Equador? Antes de ser uma pergunta, essa foi uma afirmação feita pelo historiador e teólogo holandês, Caspervon Barlaeus, em seu livro de viagens de 1660, Rerum per octennium in Brasilien (apud PARKER) no qual ainda escrevia “é como se a linha que divide o mundo separasse, também, a virtude do vício”. Logo, caberia às zonas temperadas,  à Europa, o berço das virtudes e aos trópicos, às américas meridionais, a alcova dos vícios. Os quentes trópicos, não os tristes trópicos de Claude Lévi-Strauss[1], tiveram uma imagética construída sobre a difundida ideia de que, em meio às palmeiras, coqueiros e pássaros exóticos, apenas pulsaria uma ardente licenciosidade, uma lascívia docilmente permitida e albergada por uma ética sexual, naturalmente, lúbrica. Desde os tempos do descobrimento das Américas, os corpos nus e “disponíveis” dos povos nativos, principalmente, das suas integrantes do sexo feminino, eram o faiscante motivo no cenário onde descortinava-se o  Éden nas novas terras. Eram o mais desejado prêmio para aqueles que conseguissem sobrepujar as agruras da travessia oceânica, sempre ameaçadora e traiçoeira. Generalizavam-se os relatos de que as mulheres nativas, chamadas de índias, por ser aqui o caminho para as Índias, ou a própria Índia, ofereciam-se, voluntariamente, ao gozo das delícias da carne com o homem branco, pelos quais nutririam um incomensurável fascínio. Não havia o que se falar em violência sexual contra as nativas ou qualquer sorte de abusos que fossem da natureza do congresso de corpos. As índias sequer exigiriam espelhinhos ou bugigangas para o ofertório de seus sexos que só pediam em troca o pleno deleite e o chamego do homem europeu.

Mais de quinhentos anos se passaram, muito ocorreu e foi mudado sobre os trópicos, mas o estigma continua, ainda que o aclamado“Éden” e as suas florestas tenham sido, em grande parte, devastados, ainda que as nativas desses trópicos continuem a serem devassadas. Devassadas pelo forasteiro, devassadas pelos nativos de suas próprias “tribos”. Devassadas pela miséria social, devassadas por uma legislação que durante esses mais de quinhentos anos, em sua aplicação, só pune e reconhece a violência sexual quando praticada contra mulheres brancas e das classes superiores. E as índias, e as filhas das filhas das índias? Ah, essas se entregam ao bel-prazer, não são vítimas de quaisquer tipos de exploração sexual. Se algo as vitimiza, esse algo são os seus próprios vícios. Foi assim que, passados cinco séculos, o conquistador e o invasor continuaram as mesmas práticas sexuais dos tempos selvagens no Brasil, prosseguiram com a mesma perspectiva, os mesmos desejos e o mesmo elã de seus antecessores, apenas não ficam no Brasil por tanto tempo e mudaram de nome, ao invés de invasores, eles são chamados de“turistas sexuais”.

As práticas de exploração selvagem advindas desse turismo, perpetua-se em razão de uma ambiência selvagem e sexualmente predatória, sobre a qual repousa a sociedade brasileira. As nativas, índias e negras, essas últimas, não nativas, mas integradas ao processo de estigmatização e de exclusão, continuam a serem reificadas e abusadas através do sangue e da pele de suas descendentes índias, brancas, negras e mestiças, herdeiras de uma sociedade de enclaves, herdeiras de uma dor tatuada no tempo. A dor de serem as imperdoáveis pecadoras vitimizadas pelos pecadores com perdão. Não existe pecado do lado de baixo do Equador? Existe, e quem o comete é o modelo perverso de construção social brasileira.


II. “Dura Lex Sed Lex”? A Lei é Dura, mas é a Lei?

As Ordenações Portuguesas que estiveram vigentes no Brasil até 1830 no que tange às disposições penais, tipificava a prostituição, sendo a mesma, portanto, crime. Após 1830, com a promulgação do Código Penal do Império, o comércio carnal passou a ser atípico, sendo incriminadas, tão somente, as práticas que o favoreceriam, propiciando-o. Vozes ecoadas tanto do direito temporal quanto do direito espiritual proclamaram a importância da função da meretriz. No Direito brasileiro Nélson Hungria (1958) afirmava que “o meretrício é um mal inexpurgável que, de certa forma, deve ser mantido”.Da frase de São Tomás de Aquino (apud HUNGRIA)“a prostituição é comparável à cloaca de um palácio; removida aquela, torna-se este um lugar fétido e impuro”depreende-se que a prostituição foi, historicamente, um dos instrumentos de manutenção da ordem familiar patriarcal, ficando as prostitutas responsáveis por purgar a lascívia masculina de forma com que essa não fosse encetada à ordem familiar estabelecida. Dentre as tutelas penais regulatórias, proibitivas e abolicionistas, o legislador pátrio fez a opção pelo abolicionismo, portanto, não se imiscuindo o Estado nas práticas do comércio carnal, mesmo que incriminando alguns atos concernentes à exploração da prostituição.Aproveitemos para nos lembrar das lições do GrandeMagalhães de Noronha (1998), que nos informa que há três tipos de rufiões: o “maquereau”, que faz uso da coação para explorar a prostituta, infundindo-lhe terror; o “comerciante”, que faz da exploração sexual uma atividade comercial, associando-se à meretriz; e o “cafinflero”, que utiliza-se tal como um Don Juan de seu poder de sedução, sendo, geralmente, amante da prostituta.

Penalistas contemporâneos como André Estefam (2009) e Renato de Mello Jorge Silveira (2006), são favoráveis à descriminalização inclusive, dessas práticas, classificando o legislador de moralista. Silveira afirma que essas atitudes de favorecimento ao “não se utilizarem de violência ou grave ameaça, somente se justificam se houver uma perspectiva histórica de repressão ao que se considera impudico. Desta feita, as condutas devem ser afastadas de qualquer sorte de previsão penal”[2]. Estefam enfatiza as exceções, quais sejam “situações em que a incidência do Direito Penal se mostra razoável e plenamente justificada: trata-se do abuso e da exploração da prostituição mediante violência, grave ameaça ou qualquer situação em que se deem vícios no consentimento ou quanto à prostituição infantil ou de pessoas vulneráveis”. Os autores são acordes no que concerne à autonomia da vontade e à liberdade de escolha daquela ou daquele que o Código denomina de vítima, inclusive, afirmando que é essa “escolha”, desde que livre e sem vícios, que deve ser tutelada pelo legislador. Estefam arremata a questão argumentando que “a incriminação ofende o Texto Maior por malferir a dignidade da pessoa humana, que não tolera a tipificação penal de comportamentos exclusivamente imorais”. Aplaudiríamos ardorosamente os autores se não observássemos que o legislador nos códigos penais brasileiros tipificaram as práticas sexuais que poderiam atingir a família, melhor ainda, às “moças de família”, descriminalizando a prostituição ao nosso ver, por ser essa uma “lida” de moças não contempladas pelo status quo, marginalizadas política e socialmente, às quais caberiam a função de “expurgar” os vícios do macho libidinoso, devolvendo-o “limpo” à sociedade que as exclui.

Se fôssemos fotografar a violência sexual no Brasil, através do tratamento dado pelo legislador, o diagnóstico poderia ser alvissareiro. Durante a colonização do país, a lei vigente em solo pátrio eram as Ordenações Portuguesas e no que tange ao âmbito criminal, o Livro V das Ordenações Filipinas esteve vigente de 1603 a 1830. Nele podemos repousar os olhos sobre uma lei repressora que punia os crimes de estupro, conjunção carnal pelas vias “normais”, ou seja, introdução do pênis do homem na vagina da mulher, com a pena de morte. No entanto, sabemos que essa rigidez era aplicada, tão somente se as vítimas fossem mulheres brancas e virgens, se solteiras, mulheres pertencentes às classes abastadas e se o criminoso fosse um despossuído, pois rezava a Lei no seu Título XVIII “se o praticar com mulher que ganhe dinheiro per seu corpo ou com scrava, não se fará execução” (sic). Mesmo sendo brancas e não escravas, as mulheres estupradas das classes inferiores, uma vez “desonradas”, teriam por destino, geralmente, a sarjeta dos bordéis, já que não seriam mais portadoras de quaisquer moedas de troca no mercado matrimonial. Cumpriam pena pelo crime do qual haviam sido vítimas. Não havia o que se falar em estupro das índias ou das negras escravas, muito menos quando praticados pelos senhores dessas últimas. Essas eram mulheres naturalmente, sexualmente, disponíveis, lascivas, erotizadas pelo imaginário do invasor, sedutoras, quando o que ocorria era uma condição de vulnerabilidade social e subalternização, estando em jogo as suas próprias sobrevivências. Mesmo Gilberto Freyre (2006), na sua obra-prima Casa Grande e Senzala, criticado por aqueles que afirmam que o “mestre de Apipucos” enfatizou tão apenas o caráter idílico das relações entre, principalmente, brancos e negras, afirma em seu livro que dentre os povos brancos, negros e índios, o mais libidinoso e luxurioso era o povo branco, o povo invasor. Com o Código Criminal do Império de 1830, as penas para os crimes sexuais continuaram rigorosas, assim como a aplicabilidade da maioria dos crimes continuou restrita, por lei e de fato, às chamadas mulheres “honestas”.O legislador de 1830 intitulou os crimes sexuais de “Crimes contra a Segurança da Honra”. Portanto o bem jurídico tutelado das vítimas era a honra, honra sua, honra de seus pais e de seus irmãos, honra de seus maridos, de suas famílias. Logo, aquelas que eram consideradas já “desonradas” não eram tuteladas pela lei e mesmo quando essa a tutelasse, as penas para os criminosos eram significativamente minoradas. Vejamos como o art. 222 do vetusto Código Criminal de 1830 tipifica o crime de estupro, IN VERBIS:

Art. 222. Ter copula carnal por meio de violencia, ou ameaças, com qualquer mulher honesta.

Penas - de prisão por tres a doze annos, e de dotar a offendida.

Se a violentada fôr prostituta.

Penas - de prisão por um mez a dousannos. (sic)

Despiciendo dizer que a pena no caso da vítima ser prostituta não era aplicada. Mais ainda, dificilmente o delito chegaria sequer à polícia judiciária, quem dirá às barras da Justiça. Inobstante o grau de violência empregado na prática de todos os crimes sexuais, fossem os de sedução, rapto, atentado violento ao pudor ou estupro, não haveria aplicação de pena nos casos nos quais os réus se casassem com as ofendidas. O posterior Código Criminal de 1890, promulgado após a proclamação da República e a abolição da escravatura, intitulava os crimes sexuais de “Da Violência Carnal”, migrando do bem jurídico “honra” para o bem jurídico “carne”, sendo que o espírito conservadore patriarcalda lei, bem pouco foi modificado, ao contrário, abrandou as penas a serem aplicadas aos criminosos. No que tange ao crime de estupro, as penas continuaram diferenciadas na hipótese da vítima ser mulher “honesta” ou prostituta, a chamada “mulher pública”. Quanto aos outros crimes carnais não havia essa distinção simplesmente porque a prostituta não era considerada uma vítima dos mesmos quando contra elas os eram cometidos.

A Lei Penal de 1940, denominou, ab initio, os crimes dessa seara de “Crimes contra os Costumes”, enfatizando não mais a honra das vítimas, ou suas carnes, mas a moral social em detrimento da sexualidade individual. Um desses crimes que revela o desenho patriarcal dos interesses que protegia e que já era existente na ordem penal pátria desde as Ordenações Filipinas, e que já foi aqui mencionado, era o Crime de Sedução previsto no revogado art. 217,IN VERBIS:

Art. 217. Seduzir mulher virgem, menor de 18 (dezoito) anos e maior de 14 (quatorze), e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.

 Esse crime era uma afronta às famílias que tinham na virgindade de suas filhas, o valor maior para a contratação de um bom casamento, para as suas adequações ao modelo social vigente. Uma mulher desvirginada, deflorada, era uma mulher excluída de um padrão que determinava para ela um casamento onde exerceria as funções de esposa e de mãe de “família”.  Uma vez desvirginada e não casada, estaria “perdida” para sempre. O fato do casamento é tão mais importante do que a violência porventura sofrida pela mulher menor, entre quatorze e dezessete anos no caso, que não importa como houvesse ocorrido o crime, caso o criminoso se casasse com a vítima, teria a sua pena extinta (dispositivo revogado, inciso VII do art. 107 do CP) e isso ocorria em todos os tipos penais que tratavam dos crimes sexuais contra menores. Uma vez casados, crimes sanados. E esse dispositivo esteve vigente até 2005.Mesmo com as mudanças do Código Penal vigente, subtraindo o tipo da Sedução com a Lei 11.106/2005 e, mais recentemente, com a reforma introduzida pela Lei 12.015/2009, que passou a denominar os crimes sexuais de “Crimes Contra a Dignidade Sexual”, valorizando o individual sobre o social, os crimes sexuais quando perpetrados contra mulheres em situação de vulnerabilidade, não em função de suas idades, podendo ser menores ou maiores,mas de vulnerabilidade social, continuam a serem invisíveis para a Justiça, já que são invisíveis para a sociedade, já que são invisíveis para o Estado, já que elas não sofrem abusos, já que são, assim como as suas antecessoras na História do Brasil, índias e negras, naturalmente libidinosas e sexualmente disponíveis.Esse estado de coisas, no qual meninos e meninas, moças e rapazes, mulheres e homens estão em condição de abandono, é salão encerado para que o turismo sexual continue a grassar nas terras tupiniquins e a bailar a sua coreografia medonha na qual os próximos passos são o tráfico de drogas, o tráfico de armas, o tráfico de pessoas e o tráfico de órgãos humanos. A lei é dura, mas é a lei? A lei no Brasil tem sido dura tão apenas para proteger os interesses do status quo e dos que as legislam. Para os que estão socialmente excluídos, a sua não aplicação é bastante dura para ferir as suas dignidades.


III. “Hoc Ipsum Est”. Eis o Caso.

Na terra em que tudo dá, entendemos que “Turismo Sexual” não é nada mais, nada menos, que a perpetuação de uma prática capitaneada pelo próprio homem branco colonizador, proveniente das zonas temperadas, das zonas “virtuosas” e que continua a encontrar em “TerrasBrasilis”, um solo fértil, um solo em que tudo dá e onde dá pra fazer tudo, já que, se os próprios homens locais, herdeiros dessa mentalidade perversa, se o próprio Estado vilipendia, maltrata e exclui não só mulheres, mas também homens, que não são favorecidos com políticas públicas de saúde, educação e geração de emprego, por que o alienígena agiria de forma diferente? Ao contrário, o alienígena, o turista sexual, ao aportar nos trópicos tendo jovens mulheres e homens como objetos de desejo, os dá visibilidade, os alça à condição de seres existentes, nem que seja, estritamente, para satisfazer à própria lascívia. A menina, a mocinha, o rapazinho que não são considerados como sujeitos de direito pela sociedade local, sentem-se valorizados, especiais e os seus algozes recebem as cores de príncipes encantados, através dos quais poderão receber um passaporte para a redenção, para um casamento, para a possibilidade de formação de uma família, mesmo que o que se venha a encontrar do outro lado seja um outro inferno, a crença preponderante é de uma possível inclusão social ultramares.

Esse fenômeno está presente na sociedade brasileira, mais ainda nas cidades praianas das regiões norte, nordeste e sudeste, durante o ano inteiro, mas em tempos de grandes eventos, quando a afluência de turistas multiplica-se geometricamente, o processo ganha dimensões exponenciais e se esse contingente de cidadãos continua transparente para as políticas públicas, o aumento de crimes sexuais contra maiores e menores, o tráfico de seres humanos e a seu reboque, o tráfico de drogas e de armas atingemuma dimensão cujos efeitos são devastadores para os mais diversos âmbitos da sociedade.

Corroborando a tese de que o problema é, antes de tudo, social e endêmico, números fornecidos pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, indicam que não só durante grandes eventos, mas durante a consecução de grandes obras o aumento da prostituição e dos crimes de estupro galgam índices astronômicos, chegando a um incremento de 208%. Quanto à violência sexual praticada contra crianças e adolescentes, a insuficiência no número de Conselhos Tutelares e a conivência familiar endossam a criminalidade. Estudos revelam que grande parte das crianças e adolescentes que se prostituem são vítimas de abuso sexual perpetrado por seus próprios parentes, sejam pais, padrastos, tios ou irmãos, com a omissão das mães. As mães se omitem para não perderem os homens que provêm a família economicamente. No entanto, muitas vezes, essas mães é que são as provedoras, mas elas silenciam diante dos abusos porque não querem perder o homem que, dentro de casa, lhe dá respeitabilidade social e eleva a sua autoestima, não importando ser um abusador de suas filhas. São essas mães e demais parentes, mesmo quando não abusadores, que incentivam os filhos, geralmente, as filhas a se prostituírem, sujeitando-as às mais diversas violênciasque não se exaurem na violência sexual, mas que envolvem lesões corporais leves e graves, tráfico e, em muitos casos,as suas mortes.

Para a Copa do Mundo de 2014 estão sendo esperados, segundo o Ministério do Turismo, cerca de 600.000 turistas, uma grande parte, do sexo masculino. Em junho de 2013 haverá a Copa das Confederações e em 2016, os Jogos Olímpicos. Para adolescentes e jovens em situação de precariedade social, uma viagem para uma existência digna se avizinha. Assim como, sempre fazem brilhar os seus olhos, a chegada de aviões fretados com homens europeus, vindos ao país, exclusivamente, com o objetivo de fazerem turismo sexual. O fretamento de aviões com esse mister e a política de turismo do país a espalhar cartazes ao redor do mundo nos quais corpos sedutores em trajes mínimos de mulheres brasileiras eram o principal chamariz para que a moeda estrangeira adentrasse o território nacional pela prática do turismo, eram corriqueiros e institucionalmente estabelecidos. Logo, nada mais adequado ao Estado do que ser omisso diante da prostituição e dos abusos sexuais, uma vez sofridos pelas “iscas”, quais sejam, jovens das periferias dos grandes centros, quando não, vindos de cidades do interior onde não lhes eram oferecidas quaisquer perspectivas de desenvolvimento humano.

Mas algumas medidas têm sido tomadas para combater o turismo sexual, parcas, diga-se de passagem, não em sua fonte, mas em seu desaguadouro. O que ocorre é que detectou-se que essa espécie de turismo é bem menos lucrativa do que o turismo familiar, cultural e de passeio[3]. As Varas da Infância e da Juventude por todo o Brasil esforçam-se por proteger as vítimas, evitar ou minorar os danos. Mas não é o suficiente. O Governo Federal tem as suas ações reduzidas a cartazes em aeroportos e hotéis nos quais estão os dizeres de que o país não é lugar de turismo sexual com menores. A fiscalização da entrada de “acompanhantes” não registradosnos quartos dos hóspedes de hotéis foi aumentada, no entanto, como resultado, o que se viu foi o desvio desse contingente que saiu dos hotéis e passou a hospedar-se em “flats” mais permissivos ou a alugar apartamentos ou casas por temporadas nas quais as festas orgíacas com menores e prostitutas (de ambos os sexos) correm soltas, despiciendo salientar o quanto de drogas lícitas e ilícitas “animam” essas festas. A realidade é que há uma economia que gira em torno do turismo sexual. Essa economia não diz respeito apenas às agências de turismo, transporte aéreo e hotéis, mas a um sem número de atores que congestionam essa teia, quais sejam, motoristas de táxis, recepcionistas de hotéis e pousadas, donos de boates, bares, motéis e restaurantes, garçons, os agenciadores dos “acompanhantes”, as famílias dos “acompanhantes” até desembocarmos nos traficantes de drogas, de armas e de seres humanos. Não fossem esses últimos crimes que dilaceram uma sociedade em todas as suas camadas, sustentamos que essa economia continuaria a livremente dinamizar-se “suprindo” a ausência de políticas públicas estatais.


IV.“Ubi Bene, UbiPatria”. Onde se está Bem, aí está a Pátria.

Lembremo-nos dos argumentos, aqui já suscitados, de que as políticas que, porventura, existam contra a prostituição são de natureza moralizadoras, e de que quaisquer medidas repressivas quanto às suas práticas ferem a autonomia da vontade de homens e mulheres de disporem de seus corpos da maneira que melhor lhes aprouver, indo essas medidas de encontro às suas próprias dignidades. Seríamos favoráveis a esses argumentos, se as pessoas que viessem a dispor comercialmente de seus corposhouvessem sido contempladas com políticas públicas inclusivas, tais como as de saúde, educação, moradia e geração de emprego. Se pessoas para as quais a sociedade abriu todas as possibilidades para um mínimo existencial digno, nesse mínimo estando contemplado a nosso ver uma formação em um curso técnico ou em um curso superior, escolhessem como atividade laboral o comércio carnal, nada teríamos a nos opor. No entanto, os fatos e os dados nos mostram que a grande maioria dessas pessoas que fazem essa “livre” escolha, que agem segundo as suas “autonomias”, são aquelas que não podemos sequer dizer que foram esquecidas pelo estado, pois entendemos que nunca foram, ao menos, lembradas por ele. E, se por acaso, alguma vez foram focalizadas pelas políticas estatais, mais ainda no que concerne às políticas de incentivo ao turismo, o foram para servirem de apelo aos alienígenas que viriam ao Brasil para confirmarem a percepção do teólogo Gaspar vonBarlaeus de que não haveria pecado do lado de baixo do Equador. Se seriam abusadas, se sofreriam desilusões ou violência, isso não era um problema social a ser enfrentado e devidamente solucionado. Não seria um problema social, político e, ainda menos, legal. Não somos favoráveis à criminalização da prostituição, não é isso que propomos. Mas queremos chamar a história do Brasil e o seu modelo político e social às falas. Queremos tirar o véu de hipocrisia que encoberta o “mens legis” ao normatizar os crimes sexuais, historicamente, de forma à manutenção da família patriarcal e bem menos ou nada com vistas à manutenção do bem-estar físico e emocional das suas vítimas. Queremos tirar o véu da hipocrisia de que o legislador é historicamente liberal ao não tipificar a prostituição, quando inferimos que ele assim o fez, porque ela foi um forte instrumento de manutenção de “corpos de reserva” para a preservação da virgindade das moças, porque evitaria a existência de tantas “teúdas e manteúdas”[4] e porque serviam como filtro de purgação dos “vícios” para os quais as santas mães de família não poderiam ser expostas. Mas tendo em vista que estes fatores pertencem ao passado, o que faria hoje o Estado e o legislador serem a favor da prática no caso brasileiro? Defendemos que os são favoráveis pelas mesmas razões que os são omissos em relação ao turismo sexual. Somos da opinião de que a prostituição proporciona às suas praticantes aquilo que o Estado as nega e, portanto, a mantém como forma de serem menos pressionados a implementarem políticas sociais. Examinando o fenômeno, vemos, através dele, que homens e mulheres, rapazes e moças a quem chamamos de vítimas do turismo sexual, quer pratiquemo meretrício por vontade própria ou não, aprendem na vida que o Estado pode ser visto sim, pode ser tocado sim, pode ser escutado sim, mesmo em uma língua estrangeira e que ele anda de avião. O Estado para essas pessoas é esse estrangeiro que é visto não como um algoz, mas como aquele que poderá socorrê-las de sua própria pátria, que não é pátria, mas “padrasta”, a fim de atribuir-lhe um nome, um lugar no mundo, uma existência, uma cidadania. Se existe hoje, alguma preocupação com o turismo sexual, ele existe porque se percebeu que ele não é tão lucrativo além de ser um caminho para a prática de crimes considerados mais graves como o tráfico de drogas, de armas e de pessoas, como já aludimos.

Estamos em contagem regressiva para abrirmos as portas da “casa-Brasil” para “copas, mesas e camas”. Os Municípios que hospedarão os jogos correm contra o tempo na construção de infraestrutura. De acordo com o Ministério dos Esportes e Orçamento Anual dos Municípios do Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Fortaleza e Natal, cidades praianas onde tradicionalmente ocorre o turismo sexual, desde 2010 essas capitais têm gasto cerca de 5 milhões de reais por ano em políticas de prevenção e combate à exploração sexual de crianças e adolescentes, enquanto que os investimentos na Copa giram em torno de 2 bilhões de reais[5]. Não se encontram estatísticas a respeito do turismo sexual, suas cifras são ocultas e sabe-se que não se elaboram ou se implementam políticas públicas sem dados e orçamento. Segundo o Centro de Referência em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Estados e Municípios estão ausentes das discussões, inertes nas ações e omissos em seus orçamentos[6]. Salientando que os investimentos pífios quando os há, são apenas para crianças e adolescentes, pois mulheres e homens adultos em vulnerabilidade social sequer são considerados quando se trata de exploração sexual, afinal são “autônomos” e fazem o que bem entenderem com seus corpos e as suas sexualidades. O fato é que, a despeito de taças, medalhas e troféus que alguns jovens do país venham a ganhar, grande parte deles, seguem sem copa, mesa, cama e sala, sejam sala de estar, sala de estudo ou sala de trabalho, e continuam a contabilizar gols ao serem chutados pela pátria amada canarinha no fundo das redes de esgoto.


REFERÊNCIAS:

Livros:

ESTEFAM, A.Crimes Sexuais. São Paulo: Saraiva, 2009.

FREYRE, G. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Global Editora, 2006.

HUNGRIA, N. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958.  vol. 8.

LÉVI-STRAUSS, C. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

NORONHA, E. M. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1998. vol.3.

PARKER, R.G. Corpos, prazeres e paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo. São Paulo: Best Seller, 1991.

PIERANGELI, J. H. Códigos Penais do Brasil: Evolução Histórica. São Paulo: Javoli, 1980.

Dicionário:

COSTA, W. V. Latim: minidicionário de expressões jurídicas. São Paulo: Ícone, 2005.

Leis:

Código Penal. Antônio Clarét Maciel do Santos, org. São Paulo: Rideel, 1996.

Código Penal, Código de Processo Penal, Constituição Federal, Legislação Penal e Processual Penal. Luiz Flávio Gomes, org. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

Internet:

Jornal Gazeta do Povo http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/infancia-sem-copa/

Acessado em 02 de março de 2013.


Notas

[1] O antropólogo belga Claude Lévi-Strauss viveu no Brasil de 1935a 1939, tendo publicado o livro “Tristes Trópicos” em 1955 como  produto  dessa experiência.

[2]Bases Críticas para a reforma do Direito Penal Sexual. Tese de livre-docência. Faculdade de direito da USP. São Paulo, 2006. P. 412, apud Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 1115

[3] Segundo dados apresentados pelo Jornal Gazeta do Povo de Curitiba.

[4] Denominação legal dada às mulheres que mantinham uma relação amorosa e eram mantidas economicamente por um homem sem serem casadas com ele,geralmente um homem já casado.

[5] De acordo com os mapas orçamentários desenhados pelo Jornal Gazeta do Povo de Curitiba.

[6] Citado no Jornal Gazeta do Povo de Curitiba. 


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMPOS, Andrea Almeida. Copa, mesa e cama: turismo sexual em grandes eventos. Aspectos sociais e legais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3533, 4 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23870. Acesso em: 25 abr. 2024.