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O Grande Irmão: resenha do livro de Carlos Fico

O Grande Irmão: resenha do livro de Carlos Fico

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A exumação de João Goulart reabre uma ferida antiga que somente será curada quando a infâmia da traição for removida da História do Brasil.

Em homenagem a exumação do ex-Presidente João Goulart, realizada no dia 13/11/2013, republico aqui a resenha de um livro que ajudou a esclarecer vários pontos importantes acerca do golpe de estado de 1964.

O livro de Carlos Fico tem cinco capítulos, mas pode ser dividido em quatro partes: 1- a campanha americana de desestabilização feita contra Goulart; 2- a concretização do golpe concebido, estimulado e fomentado pela CIA entre os traidores de farda; 3- o apoio incondicional aos EUA durante a era Castelo Branco; 4- o afastamento dos EUA após a morte de Castelo Branco e o recrudescimento da ditadura. A obra lança luz sobre um dos períodos mais negros e nojentos da história das relações Brasil/EUA. Com base em documentos liberados pela Casa Branca o historiador conseguiu traçar o roteiro completo das operações secretas que culminaram na derrubada de João Goulart a mando de Lyndon Johnson. Em nosso país, os interesses do presidente norte-americano foram instrumentalizados pelos militares. Gostemos ou não, eles traíram o juramento que haviam feito de defender o Brasil e sua Constituição de 1946 e desprezaram vontade popular que levou Jango ao poder. Dentre os traidores se destaca Castelo Branco, cujo nome ficará eternamente na infâmia.

“O então tenente-coronel Castelo Branco, por exemplo, estabeleceu fortes laços de amizade nos campos de batalha italianos com o militar norte-americano Vernon A. Waters. Essa relação de confiança seria fundamental para que Walters obtivesse informações privilegiadas dos militares na época do golpe de 1964, então como adido militar da embaixada dos Estados Unidos no Rio de Janeiro.”

Nos final dos anos 1930 o Brasil havia sido sistematicamente cortejado pela Casa Branca. Consoante Moniz Bandeira (O MILAGRE ALEMÃO E O DESENVOLVIMENTO DO BRASIL, Editora Ensaio, 1994) durante o governo de Getúlio Vargas a Alemanha de Hitler havia se tornado um grande parceiro comercial do Brasil. O distanciamento do nazismo ocorreu lentamente. Este fenômeno foi investigado satisfatoriamente por Antonio Pedro Tota (O IMPERIALISMO SEDUTOR, Editora Companhia das Letras, 2000). Após o final da II Guerra Mundial as relações Brasil/EUA voltaram a esfriar. Os EUA descartaram rapidamente o aliado pobre sul-americano do qual não precisava mais, vetando sua entrada no Conselho de Segurança da ONU. Tudo isto apesar de brasileiros terem morrido na Europa para derrotar a besta nazista que havia sido apoiada por empresários norte-americanos como Henry Ford.

Nas palavras de Fico “... a avaliação sobre a desimportância estratégico-militar da América Latina consolidou-se desde os anos 1950.” Em consequencia a URSS resolveu preencher o espaço deixado pelos americanos “...desde meados dos anos 1950, após a queda de Stalin, a União Soviética do premiê Nikita Khrushcev adotara uma nova estratégia de atuação, apoiando países em desenvolvimento, inclusive na América Latina, tendo em vista a expansão de seu poderio.”

À medida que os EUA se distanciavam e a URSS tentava se aproximar da América Latina alguns países da região começaram a esboçar certa autonomia. Foi assim, que, segundo Carlos Fico, “... em agosto de 1960, na Costa Rica, com os ministros das relações exteriores latino-americanos, ficou estabelecido uma condenação a quaisquer interferências extracontinentais (ou seja, as da União Soviética), mas também se definiu que uma intervenção dos Estados Unidos em qualquer república americana seria censurada.”

A mudança de orientação na política externa brasileira somente ocorreria após o golpe de estado 1964. Depois que os traidores de farda tomaram o poder de maneira violenta, nosso país rompeu relações com Cuba e apoiou a adoção de sanções econômicas contra a ilha de Fidel.

Durante o governo Kennedy a interferência americana na América Latina se concentrava na propaganda da democracia e na ajuda humanitária com vistas à superação da miséria (Aliança para o Progresso). Com a morte de Kennedy, Johnson mudaria o paradigma. “A principal acusação contra Johnson em relação à América Latina dirigia-se ao que ficou conhecido, precisamente, como ‘Doutrina Mann’, segundo a qual os Estados Unidos deixariam de questionar a natureza dos regimes que estavam recebendo sua assistência militar e econômica, desde que se mantivessem anticomunistas, mesmo que fossem autoritários ou ditatoriais.”

O autor parece endossar tese de que o golpe de  estado 1964 foi uma conseqüência necessária da Guerra Fria. Nessa linha Fico afirma que “...a problemática cubana ensejou, como já foi visto, a Aliança para o Progresso e, no caso brasileiro, tornou simplesmente inadmissível para os Estados Unidos a hipótese de um regime com qualquer pretensão esquerdista, justamente no maior país da América do Sul, algo que ampliaria a órbita de influência comunista. Esse cuidado explica a campanha de desestabilização de Goulart e o apoio ao golpe.” Esta explicação só tem validade se admitirmos a hipótese de que João Goulart era comunista.

Os biógrafos de Jango admitem que ele era mulherengo, oportunista, populista e até intelectualmente preguiçoso. Mas ninguém afirmou até hoje que ele tenha sido efetivamente um comunista. Apesar de suas vacilações aparentes e concretas, João Goulart era nacionalista e reformista. A verdade é que ele pode ter sido indevidamente tratado como adepto do comunismo pelos agentes da CIA que municiavam Lyndon Johnson com informações sobre o Brasil. Isto provavelmente ocorreu porque Jango, com toda justiça, ameaçou  o monopólio de algumas empresas norte-americanas que operavam no Brasil  e que não reinvestiam aqui os lucros que obtinham para melhorar e ampliar os serviços que forneciam à população brasileira (caso da ITT no ramo de telefonia, p.e.).*  Nesse sentido, me parece mais plausível a tese de que os EUA utilizaram a Guerra Fria como uma cortina de fumaça para estimular o golpe de estado de 1964 para poder manter e ampliar os lucros das empresas norte-americanas que operavam em nosso país. O próprio autor do livro analisado admite que o “... ‘nacionalismo’ brasileiro, na visão norte-americana, poderia produzir obstáculos aos negócios. Esse temor sempre esteve presente nas avaliações dos Estados Unidos, especialmente em relação aos empresários que demandavam medidas protecionistas.” Tudo bem pesado, pode-se chegar a conclusão de que os traidores fizeram bem o serviço sujo da CIA no Brasil. Eles silenciaram a oposição, castraram os sindicatos e permitiram aos gananciosos capitalistas norte-americanos uma lucrativa temporada de caça predatória em solo brasileiro.

Nossas próprias deficiências ajudaram o trabalho dos agentes norte-americanos e de seus corrompidos prepostos fardados brasileiros. Naquela época o “... universo da política era avaliado com rigor e a imprensa brasileira vista com desprezo. A atividade jornalística no país era considerada irresponsável, indigna de confiança, oportunista e frequentemente venal: ‘centenas de artigos que se pretendem notícias honestas são, na verdade, comprados e pagos pelos interesses de companhias, organizações e políticos’. Obter espaço para notícias favoráveis era fácil para qualquer um , inclusive para governos estrangeiros, desde que dispostos a pagar pelos ‘suplementos especiais’. Fofocas e boatos seriam publicados como notícias. Os jornais responsáveis seriam minoria. Avaliação tão negativa já havia chegado ao embaixador Tuthill, três anos antes, quando o então ministro do Planejamento, Roberto Campos, disse-lhe que os jornais brasileiros eram incapazes de se manter sem chantagem.” Pelo que temos visto nos últimos meses, nada mudou na imprensa brasileira. Afinal, a roubalheira tucana no Metrô de São Paulo tem sido tratado como "caso de cartel" e um conhecido jornal paulista tem feito de tudo para ligar Fernando Haddad e o PT ao caso da corrupção dos fiscais na Prefeirura de São Paulo ao tempo de Gilberto Kassab/José Serra.

No Brasil do princípio dos anos 1960 as iniciativas golpistas da CIA encontraram solo fértil. “A ausência de apoio militar foi a razão pela qual Goulart deixou o Rio de Janeiro, no dia 1º, em direção a Brasília, pois poderia ser preso. Realmente não havia outra saída já que, além das tropas de Mourão estarem próximas da fronteira do estado do Rio de Janeiro, dois generais muito chegados ao presidente, Oromar Osório e Cunha Mello, não conseguiram evitar que as forças legalistas aderissem aos revoltosos e, na verdade, Oromar nem voltou para relatar seu fracasso. Além disto, o general comandante do II Exército (São Paulo), Amauri Kruel, afinal resolveu aderir ao golpe, abandonando Goulart, de quem era compadre. O general Morais Âncora, comandante do I Exército (Rio de Janeiro), recomendou a Goulart que deixasse o Palácio das Laranjeiras.”

O comandante em chefe das Forças Armadas não teve condições de resistir ao golpe militar. Sem qualquer apoio entre os militares, Goulart resignou-se. Talvez soubesse que “... nunca houve na história brasileira um presidente da República que tenha enfrentado uma campanha externa de desestabilização tão grande...” . Segundo Fico foi “... no contexto da campanha para as eleições parlamentares de 1962 que a intervenção norte-americana no processo político brasileiro intensificou-se, ultrapassando, em muito, os níveis ‘normais’ de propaganda ideológica que os Estados Unidos habitualmente faziam em qualquer país, enaltecendo os costumes norte-americanos e defendendo o capitalismo contra o comunismo.”

A campanha de desestabilização de Goulart a partir de 1962 foi sistemática e diversificada. Sob orientação da CIA as agências americanas de ajuda humanitária distribuíram dinheiro aos candidatos da oposição, forneceram passagens aéreas para brasileiros influentes viajarem para os EUA, traduziram e imprimiram livros para os militares, selecionaram a dedo os órgãos da imprensa que receberiam verbas para propaganda, etc. Depois do sucesso do golpe de estado esta estratégia não foi abandonada, na verdade foi intensificada.

Fico reproduz na integra o texto do Plano de Contingência para o Brasil formulado pelos americanos (Operação Brother Sam) e demonstra como os traidores seguiram a risca as recomendações dadas por mestres estrangeiros. Nada disto é novo. “O dado novo, que ainda não foi destacado por outros analistas, é que, ao contrário das negativas de envolvimento de brasileiros na ‘Operação Brother Sam’, havia (como, aliás, não poderia deixar de ser) um contato brasileiro cuidando da entrega das armas e munições e do combustível, o general-de-brigada José Pinheiro de Ulhoa Cintra, ‘um dos grandes revolucionários do Exército’, segundo Castelo Branco, de quem era homem de confiança por ter sido seu cadete na Escola Militar de Realengo e subordinado nos campos da Itália. Enteado do ex-presidente Eurico Dutra, Ulhoa Cintra era tido como um homem ‘violento, querendo fazer bobagem’, segundo o general Costa e Silva. Ele tinha sido excluído da lista de promoções de 25 de novembro de 1963 e odiava Goulart por isso e pelo perfil político do presidente.”

Carlos Fico foi rigoroso na seleção e interpretação dos documentos que utilizou para escreve sua obra. Além disto, O GRANDE IRMÃO (Editora Civilização Brasileira, 2008) aborda temas espinhosos, como a utilização, pelas Forças Armadas dos EUA, de bases secretas no Brasil. Antes de ler esta obra eu desconhecia que logo após a decretação do AI-5 os americanos removeram do Brasil em sigilo um equipamento que era empregado para detectar os níveis de gases raros na atmosfera, “...capaz de monitorar testes ou explosões nucleares no mundo.”

A exumação de João Goulart será realizada para que se possa investigar se ele foi envenenado. Há relatos de que isto teria ocorrido, inclusive a mando dos EUA. Se esta hipótese se confirmar será inevitável um abalo nas relações entre Brasil e EUA e um aumento do conflito entre as viúvas da Ditadura e aqueles que exigem a punição dos traidores de farda que torturaram e mataram brasileiros para instrumentalizar o regime de exceção criado com o Ouro Norte-Americano.

Algum tempo depois do golpe de estado de 1964, que foi instigado e apoiado pelos EUA dentre outras coisas para salvar o monopólio da norte-americana ITT no Brasil, o setor de telefonia foi estatizado.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Fábio de Oliveira. O Grande Irmão: resenha do livro de Carlos Fico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3805, 1 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25847. Acesso em: 23 abr. 2024.