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Há que se relativizar a admissibilidade de provas ilícitas?

Há que se relativizar a admissibilidade de provas ilícitas?

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Breve análise sobre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o tema "provas ilícitas", após o advento da Constituição de 1988.

A pergunta requer digressão acerca da relatividade ou não da garantia de inadmissibilidade da utilização de provas obtidas por meios ilícitos sob dois aspectos, os quais decorrentes das características do processo penal pátrio:

1) utilização da prova ilícita em favor da acusação;

2) utilização da prova ilicitamente obtida em favor do acusado.

Em primeiro lugar, a matéria fora disciplinada pela Constituição Federal de 1988, sendo, pois, a impossibilidade de utilização de prova ilícita em processo, garantia fundamental da pessoa. Ex verbis: São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos (art. 5.º, LVI, CF/88 e art. 157, CPP).

Devemos recorrer à doutrina de Pontes de Miranda para compreender os limites e a profundidade do acima disposto.

De acordo com douto alagoano:

(...) direitos fundamentais valem perante o Estado e não pelo acidente de regras constitucionais. (...) Tais concepções não lhes alteram a essência: são concepções da proteção e não da existência de tais direitos. A sua essência, sua supra-estatalidade (überstaatlichkeit) é inorganizável pelo Estado; o que é organizável, como demonstrou a ciência de cinquenta anos atrás, é a proteção jurídica[1].

Afirma o grande mestre, em linhas gerais, que a conquista humana dos direitos e garantias fundamentais não se baseiam em simples benesse concedidas pelo Estado aos cidadãos, para além, verdadeiro reconhecimento histórico e imanente à humanidade, para sua conservação e desenvolvimento, oponíveis, em regra, ao próprio Estado, como forma de impedir a ação gravosa desse ente. Trata-se do conceito dos direitos fundamentais de primeira geração, galgados no valor liberdade, e que impõe ao Estado abstenções em face do viver dos cidadãos. O indivíduo, portanto, revela-se como credor do Estado em uma obrigação de non facere.

No Brasil, por força do art. 129, I, CF/88, a acusação em juízo é desenvolvida, na maioria dos casos, por órgão do Estado, o Ministério Público, cuja uma das tarefas no processo penal é a de demonstrar, cabalmente, que determinado indivíduo, agindo ilicitamente, de acordo com o direito penal material, realizou conduta típica. O comportamento humano, seja lícito ou ilícito, revelado no mundo dos fenômenos, imprime-se decisivamente no tempo. O esquecimento não ilide os fatos. Cabe ao parquet, como regra, após apuração preliminar da autoria e materialidade do delito promover a ação penal pública, como forma de realizar o espírito da sanção. Contudo, para que o órgão julgador, também um ente do Estado, possa exarar o decisium condenatório, deverá, nos autos do processo, reconhecer-se as feições do fato, chegar a uma certeza processual, sem a qual não será lícito ao Magistrado emitir seu veredicto.

A certeza processual[2] é construída (informada e moldada) por meio das provas. As manifestações tendentes a ultimar a realidade da sanção, seja positiva ou negativamente de acordo com as soluções legais possíveis, expendidas pelos operadores do direito tornam-se necessariamente vinculadas à forma e ao conteúdo das provas colhidas em contraditório judicial ou às não repetíveis (art. 155, CPP), com exceção à fala defensiva durante o debate no Tribunal do Júri, cujo discurso reconhecidamente pode se pautar em questões extrajurídicas[3].

Em não existindo nos autos prova suficiente para uma condenação, não correspondendo o órgão acusador ao ônus da prova, devendo o Juiz absolver o acusado, sob o fundamento da inexistência de provas (art. 386, II, IV, VI CPP). Provas, portanto, são o caminho necessário pelo qual as partes no processo demonstram a realidade fática, historicamente compreendida, das suas alegações em juízo sob representações jurídicas penais.

Como caminho necessário, a inexistência provas no processo penal, no sentido de revelar a autoria e materialidade do injusto, induz à absolvição do réu.

A garantia acima indicada (art. 5.º, LVI, CF/88 e art. 157, CPP), ademais, revela, subsidiariamente, a aplicação do princípio da legalidade às provas levadas a juízo, sendo que o ordenamento jurídico brasileiro impõe aos órgãos encarregados da investigação e da persecução em juízo de infrações penais estrito cumprimento aos preceitos de dignidade, sigilo, liberdade, democracia, presunção de inocência, não auto-incriminação, devido processo legal e isonomia que circundam a matéria referente às provas. A impossibilidade de se levar ao processo provas obtidas por meios ilícitos, pois, não teve origem em fontes outras que não aquelas relativas aos princípios da liberdade e da dignidade da pessoa humana, entre outros, e que informam ao intérprete da norma o dever de apurar os fatos criminosos mediante as hipóteses previstas no sistema processual brasileiro, garantindo-se, ademais, o respeito a vedações de caráter material, de urbanidade e honradez. Não há se pensar, a priori, da gravidade do fato a ser apurado, da repugnância dos meios empregados pelo imputado[4], mas, não se afastando da presunção de inocência e demais princípios, apurar a verdade possível ao processo e que revelará, por fim, se os termos da acusação eram ou não condignos aos fatos. Assim, em face dos princípios acima elencados, não há infração penal que autorize ao órgão acusador valer-se de meios escusos para apurar a verdade dos fatos. Há que desenvolver atividade lícita para demonstrar nos autos a correlação entre a indelével impressão histórica do fato criminoso àquela levada aos olhos do Magistrado por sua peça inicial.

Ainda nos valendo da sábia doutrina de Pontes de Miranda, os direitos e garantias fundamentais podem ou não apresentar um elemento deveras significativo para sua efetivação, qual seja, a supra-estatalidade. De acordo com o mestre alagoano, o direito supra-estatal, embora aplicável à legislação de determinado Estado, em verdade é anterior a ele. O Estado não o codifica simplesmente, mas assegura sua aplicabilidade. Em face de tal constatação, disserta o referido autor:

Sejam direitos naturais ou não no sejam, já no direito constitucional se erguem diante do Estado, pela preeminência do direito das gentes, que – não obstante sua imperfeição – é o direito humano, no mais alto grau de extensão[5].

Não há se negar, portanto, a relevância das conquistas humanas adquiridas no correr de milênios, não devendo, portanto, o Estado invadir esfera de liberdade e dignidade do indivíduo sendo que seu próprio artífice, quando de sua gênese, preferiu mantê-lo alheio a intervenção odiosa aos olhos de toda humanidade.

Da mesma forma, não podemos negar a supra-estatalidade da proibição de se levar ao processo provas ilícitas em favor da acusação. Como visto, supra-estatal é o direito ou garantia que, independentemente da atuação legiferante de determinado Estado, decorre das conquistas históricas do ser humano, compreendendo um estatuto pessoal e intangível. Pontes de Miranda, ainda, refere-se ao direito das gentes, como forma de fixar a relevância de tais conquistas, demonstra que as mesmas foram absorvidas por égide jurídica superior àquela meramente local. É de se constatar a verdade em suas palavras. Exemplo claro do acerto do mestre repousa no art. 12.º, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, bem como nos arts. 8, 9 e 11, da Declaração Interamericana de Direitos Humanos. Ademais, como visto, a vedação em estudo deriva de princípios outros, também historicamente conquistados, e que perfazem o direito das gentes.

Arremata, pois, o dileto doutrinador:

Os direitos supra-estatais são, de ordinário, direitos fundamentais absolutos. (...) Diante dos direitos supra-estatais, o papel do Estado é apenas definidor de exceções. Quer dizer: o Estado aponta caos em que o direito não existe, devendo, porém, ficar dentro do âmbito que o conceito supra-estatal de cada um desses direitos lhe deixa. Percorramos os parágrafos do art. 150 para verificarmos se a forma, com que se declaram os direitos absolutos, é diferente daquela com que se declaram os direitos relativos, e se os direitos supra-estatais têm a sua[6].

É de se verificar, portanto, concorde nossa argumentação preliminar, que a vedação ao uso de provas ilícitas no processo penal em favor dos argumentos da acusação, é limite constitucional de caráter absoluto. Não existe forma de se compreender possível vedação categórica e que alberga em si o conteúdo jurídico de dezenas de princípios e garantias supra-estatais. A garantia do art. 5.º, LVI, CF/88, não compreende as exceções referidas por Pontes de Miranda. Não dedica ao Estado, em seu conceito, liberdade de relativização. Ou a prova é lícita e será proposta, produzida e valorada ou a prova é ilícita e não será levada aos autos da ação criminal. A relevância jurídica de uma prova ilícita é a de responsabilizar o seu realizador perante as esferas civis, administrativas e criminais.

Interessante decisão do Supremo Tribunal Federal indica-nos o posicionamento majoritário na corte:

E M E N T A: FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA - APREENSÃO DE LIVROS CONTÁBEIS E DOCUMENTOS FISCAIS REALIZADA, EM ESCRITÓRIO DE CONTABILIDADE, POR AGENTES FAZENDÁRIOS E POLICIAIS FEDERAIS, SEM MANDADO JUDICIAL - INADMISSIBILIDADE - ESPAÇO PRIVADO, NÃO ABERTO AO PÚBLICO, SUJEITO À PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR (CF, ART. 5º, XI) - SUBSUNÇÃO AO CONCEITO NORMATIVO DE "CASA" - NECESSIDADE DE ORDEM JUDICIAL - ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA - DEVER DE OBSERVÂNCIA, POR PARTE DE SEUS ÓRGÃOS E AGENTES, DOS LIMITES JURÍDICOS IMPOSTOS PELA CONSTITUIÇÃO E PELAS LEIS DA REPÚBLICA - IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DE PROVA OBTIDA EM TRANSGRESSÃO À GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR - PROVA ILÍCITA - INIDONEIDADE JURÍDICA - "HABEAS CORPUS" DEFERIDO. ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA - FISCALIZAÇÃO - PODERES - NECESSÁRIO RESPEITO AOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS DOS CONTRIBUINTES E DE TERCEIROS. - Não são absolutos os poderes de que se acham investidos os órgãos e agentes da administração tributária, pois o Estado, em tema de tributação, inclusive em matéria de fiscalização tributária, está sujeito à observância de um complexo de direitos e prerrogativas que assistem, constitucionalmente, aos contribuintes e aos cidadãos em geral. Na realidade, os poderes do Estado encontram, nos direitos e garantias individuais, limites intransponíveis, cujo desrespeito pode caracterizar ilícito constitucional. - A administração tributária, por isso mesmo, embora podendo muito, não pode tudo. É que, ao Estado, é somente lícito atuar, "respeitados os direitos individuais e nos termos da lei" (CF, art. 145, § 1º), consideradas, sobretudo, e para esse específico efeito, as limitações jurídicas decorrentes do próprio sistema instituído pela Lei Fundamental, cuja eficácia - que prepondera sobre todos os órgãos e agentes fazendários - restringe-lhes o alcance do poder de que se acham investidos, especialmente quando exercido em face do contribuinte e dos cidadãos da República, que são titulares de garantias impregnadas de estatura constitucional e que, por tal razão, não podem ser transgredidas por aqueles que exercem a autoridade em nome do Estado. A GARANTIA DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR COMO LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL AO PODER DO ESTADO EM TEMA DE FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA - CONCEITO DE "CASA" PARA EFEITO DE PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL - AMPLITUDE DESSA NOÇÃO CONCEITUAL, QUE TAMBÉM COMPREENDE OS ESPAÇOS PRIVADOS NÃO ABERTOS AO PÚBLICO, ONDE ALGUÉM EXERCE ATIVIDADE PROFISSIONAL: NECESSIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE MANDADO JUDICIAL (CF, ART. 5º, XI). - Para os fins da proteção jurídica a que se refere o art. 5º, XI, da Constituição da República, o conceito normativo de "casa" revela-se abrangente e, por estender-se a qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade (CP, art. 150, § 4º, III), compreende, observada essa específica limitação espacial (área interna não acessível ao público), os escritórios profissionais, inclusive os de contabilidade, "embora sem conexão com a casa de moradia propriamente dita" (NELSON HUNGRIA). Doutrina. Precedentes. - Sem que ocorra qualquer das situações excepcionais taxativamente previstas no texto constitucional (art. 5º, XI), nenhum agente público, ainda que vinculado à administração tributária do Estado, poderá, contra a vontade de quem de direito ("invito domino"), ingressar, durante o dia, sem mandado judicial, em espaço privado não aberto ao público, onde alguém exerce sua atividade profissional, sob pena de a prova resultante da diligência de busca e apreensão assim executada reputar-se inadmissível, porque impregnada de ilicitude material. Doutrina. Precedentes específicos, em tema de fiscalização tributária, a propósito de escritórios de contabilidade (STF). - O atributo da auto-executoriedade dos atos administrativos, que traduz expressão concretizadora do "privilège du preálable", não prevalece sobre a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar, ainda que se cuide de atividade exercida pelo Poder Público em sede de fiscalização tributária. Doutrina. Precedentes. ILICITUDE DA PROVA - INADMISSIBILIDADE DE SUA PRODUÇÃO EM JUÍZO (OU PERANTE QUALQUER INSTÂNCIA DE PODER) - INIDONEIDADE JURÍDICA DA PROVA RESULTANTE DE TRANSGRESSÃO ESTATAL AO REGIME CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS. - A ação persecutória do Estado, qualquer que seja a instância de poder perante a qual se instaure, para revestir-se de legitimidade, não pode apoiar-se em elementos probatórios ilicitamente obtidos, sob pena de ofensa à garantia constitucional do "due process of law", que tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas mais expressivas projeções concretizadoras no plano do nosso sistema de direito positivo. A "Exclusionary Rule" consagrada pela jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos da América como limitação ao poder do Estado de produzir prova em sede processual penal. - A Constituição da República, em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em conseqüência, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do "male captum, bene retentum". Doutrina. Precedentes. - A circunstância de a administração estatal achar-se investida de poderes excepcionais que lhe permitem exercer a fiscalização em sede tributária não a exonera do dever de observar, para efeito do legítimo desempenho de tais prerrogativas, os limites impostos pela Constituição e pelas leis da República, sob pena de os órgãos governamentais incidirem em frontal desrespeito às garantias constitucionalmente asseguradas aos cidadãos em geral e aos contribuintes em particular. - Os procedimentos dos agentes da administração tributária que contrariem os postulados consagrados pela Constituição da República revelam-se inaceitáveis e não podem ser corroborados pelo Supremo Tribunal Federal, sob pena de inadmissível subversão dos postulados constitucionais que definem, de modo estrito, os limites - inultrapassáveis - que restringem os poderes do Estado em suas relações com os contribuintes e com terceiros. (HC 28788/RJ. Relator: Ministro Celso de Mello).

Não desconhecemos, contudo, doutrina em sentido contrário, que admite, excepcionalmente, a utilização de provas obtidas por meios ilícitos em favor dos argumentos da acusação. Os expoentes de tal doutrina buscam informá-la de acordo com os postulados de proporcionalidade e de razoabilidade, vislumbrando hipóteses nas quais se poderia admitir a produção e valoração de provas ilícita. É o que se extrai das palavras de Alexandre de Moraes:

Saliente-se, porém, que a doutrina constitucional passou a atenuar a vedação das provas ilícitas, visando corrigir distorções a que a rigidez da exclusão poderia levar em casos de excepcional gravidade. Esta atenuação prevê, com base no Princípio da Proporcionalidade, hipóteses em que as provas ilícitas, em caráter excepcional e em casos extremamente graves poderão ser utilizadas, pois nenhuma liberdade pública é absoluta, havendo possibilidade, em casos delicados, em que se percebe que o direito tutelado é mais importante que o direito à intimidade, segredo, liberdade de comunicação, por exemplo, de permitir-se sua utilização[7].

Não podemos compreender como válidas as palavras do eminente jurista diante do Ordenamento pátrio e, demais disso, das normas internacionais de direitos humanos. A existência humana na República Federativa do Brasil é sustentada pelo primado da democracia (art. 1.º, caput, CF/88), que informa a manutenção das liberdades constitucionais. Pode-se relativizar um direito ou garantia fundamental? Sim, desde que seu conceito histórico o permita e o Estado legifere em favor da exceção. A exceção legalmente prevista, válida para o direito, não é óbice insuportável à liberdade dos cidadãos, a ilegal, sim. Nosso ordenamento jurídico não pressupõe a devassa, mas a colheita legal de provas. Não há exceção à garantia de não uso de provas ilícitas no processo criminal, tendo em vista que o instituto não comporta, conceitualmente, exceções. Quem eventualmente poderia as ter previsto, o legislador constituinte originário, não o fez, não cabendo ao legislador contemporâneo ou ao intérprete inovar de forma gravosa na legislação material e processual penal.

O próprio Supremo Tribunal Federal rechaça a possibilidade de se aplicar o princípio da proporcionalidade como forma de legitimar a utilização de provas obtidas por meios ilícitos pelo Estado:

EMENTA: I. Habeas corpus: cabimento: prova ilícita. 1. Admissibilidade, em tese, do habeas corpus para impugnar a inserção de provas ilícitas em procedimento penal e postular o seu desentranhamento: sempre que, da imputação, possa advir condenação a pena privativa de liberdade: precedentes do Supremo Tribunal. II. Provas ilícitas: sua inadmissibilidade no processo (CF, art. 5º, LVI): considerações gerais. 2. Da explícita proscrição da prova ilícita, sem distinções quanto ao crime objeto do processo (CF, art. 5º, LVI), resulta a prevalência da garantia nela estabelecida sobre o interesse na busca, a qualquer custo, da verdade real no processo: conseqüente impertinência de apelar-se ao princípio da proporcionalidade - à luz de teorias estrangeiras inadequadas à ordem constitucional brasileira - para sobrepor, à vedação constitucional da admissão da prova ilícita, considerações sobre a gravidade da infração penal objeto da investigação ou da imputação. III. Gravação clandestina de "conversa informal" do indiciado com policiais. 3. Ilicitude decorrente - quando não da evidência de estar o suspeito, na ocasião, ilegalmente preso ou da falta de prova idônea do seu assentimento à gravação ambiental - de constituir, dita "conversa informal", modalidade de "interrogatório" sub- reptício, o qual - além de realizar-se sem as formalidades legais do interrogatório no inquérito policial (C.Pr.Pen., art. 6º, V) -, se faz sem que o indiciado seja advertido do seu direito ao silêncio. 4. O privilégio contra a auto-incriminação - nemo tenetur se detegere -, erigido em garantia fundamental pela Constituição - além da inconstitucionalidade superveniente da parte final do art. 186 C.Pr.Pen. - importou compelir o inquiridor, na polícia ou em juízo, ao dever de advertir o interrogado do seu direito ao silêncio: a falta da advertência - e da sua documentação formal - faz ilícita a prova que, contra si mesmo, forneça o indiciado ou acusado no interrogatório formal e, com mais razão, em "conversa informal" gravada, clandestinamente ou não. IV. Escuta gravada da comunicação telefônica com terceiro, que conteria evidência de quadrilha que integrariam: ilicitude, nas circunstâncias, com relação a ambos os interlocutores. 5. A hipótese não configura a gravação da conversa telefônica própria por um dos interlocutores - cujo uso como prova o STF, em dadas circunstâncias, tem julgado lícito - mas, sim, escuta e gravação por terceiro de comunicação telefônica alheia, ainda que com a ciência ou mesmo a cooperação de um dos interlocutores: essa última, dada a intervenção de terceiro, se compreende no âmbito da garantia constitucional do sigilo das comunicações telefônicas e o seu registro só se admitirá como prova, se realizada mediante prévia e regular autorização judicial. 6. A prova obtida mediante a escuta gravada por terceiro de conversa telefônica alheia é patentemente ilícita em relação ao interlocutor insciente da intromissão indevida, não importando o conteúdo do diálogo assim captado. 7. A ilicitude da escuta e gravação não autorizadas de conversa alheia não aproveita, em princípio, ao interlocutor que, ciente, haja aquiescido na operação; aproveita-lhe, no entanto, se, ilegalmente preso na ocasião, o seu aparente assentimento na empreitada policial, ainda que existente, não seria válido. 8. A extensão ao interlocutor ciente da exclusão processual do registro da escuta telefônica clandestina - ainda quando livre o seu assentimento nela - em princípio, parece inevitável, se a participação de ambos os interlocutores no fato probando for incindível ou mesmo necessária à composição do tipo criminal cogitado, qual, na espécie, o de quadrilha. V. Prova ilícita e contaminação de provas derivadas (fruits of the poisonous tree). 9. A imprecisão do pedido genérico de exclusão de provas derivadas daquelas cuja ilicitude se declara e o estágio do procedimento (ainda em curso o inquérito policial) levam, no ponto, ao indeferimento do pedido. (HC n.º 80949. Relator: Ministro Sepúlveda Pertence).

Poder-se-ia supor da apreciação de provas ilicitamente obtidas em Estados de exceção, tais como os fascistas. O rigor científico que deve caracterizar o defensor da democracia, bem como a sistemática análise da norma jurídica, impõe-nos a coerência com a finalidade que ilustra o Texto Constitucional. Vedação a prova ilícita em favor da acusação não compreende exceções.

Diverso, contudo, é o tema proposto observado sob o aspecto da defesa. Diversamente de sua ótica sob a acusação, a eventual presença de prova ilícita pro reo encontra substrato jurídico no corpo da Constituição Federal de 1988, basicamente nos princípios da ampla defesa (art. 5.º LV, CF) e da plenitude de defesa no júri (art. 5.º, XXXVIII, a, CF/88), mantida a presunção de inocência (art. 5.º, LVII, CF/88).

Nesse sentido, o posicionamento do E. STF:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. PENAL. GRAVAÇÃO DE CONVERSA FEITA POR UM DOS INTERLOCUTORES: LICITUDE. PREQUESTIONAMENTO. Súmula 282-STF. PROVA: REEXAME EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO: IMPOSSIBILIDADE. Súmula 279-STF. I. - A gravação de conversa entre dois interlocutores, feita por um deles, sem conhecimento do outro, com a finalidade de documentá-la, futuramente, em caso de negativa, nada tem de ilícita, principalmente quando constitui exercício de defesa. II. - Existência, nos autos, de provas outras não obtidas mediante gravação de conversa ou quebra de sigilo bancário. III. - A questão relativa às provas ilícitas por derivação "the fruits of the poisonous tree" não foi objeto de debate e decisão, assim não prequestionada. Incidência da Súmula 282-STF. IV. - A apreciação do RE, no caso, não prescindiria do reexame do conjunto fático-probatório, o que não é possível em recurso extraordinário. Súmula 279-STF. V. - Agravo não provido (STF. AI503717AgR-PR. Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 04/03/2005).


Conclusão:

1) O tema das provas ilícitas envolve, inegavelmente, princípios constitucionais e legais, que determinam posturas aos operadores do direito envolvidos em determinada lide penal, sob pena de nulidade dos atos decisórios levados a efeitos pela Autoridade Judicial natural ao caso e/ou responsabilização civil, administrativa e criminal das figuras implicadas no evento;

2) Embora contemporaneamente doutrina e jurisprudência se refira à flexibilização dos direitos fundamentais inscritos na Constituição Federal, a inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos corresponde a uma salvaguarda de caráter absoluto aos acusados em geral, dado o fato de que o Poder Constituinte Originário não permeou o instituto de ressalvas, cabendo, pois ao Estado zelar pela garantia inscrita em seu Texto Magno;

3) Trata-se do conceito dos direitos fundamentais de primeira geração, galgados no valor liberdade, e que impõe ao Estado abstenções em face do viver dos cidadãos. O indivíduo, portanto, revela-se como credor do Estado em uma obrigação de non facere;

4) Provas, no contexto do processo penal democrático, compreendem o caminho necessário pelo qual as partes demonstram dada realidade fática, historicamente compreendida, das suas alegações em juízo sob representações jurídicas penais;

5) Os direitos e garantias fundamentais podem ou não apresentar um elemento deveras significativo para sua efetivação, qual seja, a supra-estatalidade;

6) O Supremo Tribunal Federal rechaça a possibilidade de se aplicar o princípio da proporcionalidade como forma de legitimar a utilização de provas obtidas por meios ilícitos pelo Estado;

7) Diverso, contudo, é o tema proposto observado sob o aspecto da defesa. Diversamente de sua ótica sob a acusação, a eventual presença de prova ilícita pro reo encontra substrato jurídico no corpo da Constituição Federal de 1988, basicamente nos princípios da ampla defesa (art. 5.º LV, CF) e da plenitude de defesa no júri (art. 5.º, XXXVIII, a, CF/88), mantida a presunção de inocência (art. 5.º, LVII, CF/88).


Bibliografia:

Foucault, Michel: Vigiar e Punir. 34.ed. Petrópolis, 2007.

Franco, Ricardo César: Breve apanhado sobre a produção da prova em processo penal, in Sujeito no Direito, coord. Furlan, Valéria. Curitiba, Editora CRV, 2012.

______: A genealogia do inquérito e da formação da verdade no processo penal: a contribuição de Michel Foucault para o conhecimento do processo penal na história do ocidente, in Temas aprofundados de Defensoria Pública, vol. 2, coord. Gustavo dos Reis e Aluísio Iunes Ré. Salvador, Editora JusPodivm, 2014.

Moraes, Alexandre de: Direito Constitucional. 15.ed. São Paulo – Atlas – 2004.

NUCCI, Guilherme de Souza: Código de Processo Penal Comentado. 8.ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008.

Pontes de Miranda, Francisco Cavalcante: Comentários à Constituição de 1967, vol. 6. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1967.


Notas

[1] Pontes de Miranda, Francisco Cavalcante: Comentários à Constituição de 1967. p. 621.

[2] Sobre o tema da produção da certeza judiciária no âmbito do processo penal, recomendamos a leitura de dois artigos nosso, publicados, respectivamente, Breve apanhado sobre a produção da prova em processo penal, publicado no livro Sujeito no Direito, Curitiba, Editora CRV, 2012, e A genealogia do inquérito e da formação da verdade no processo penal: a contribuição de Michel Foucault para o conhecimento do processo penal na história do ocidente, publicado no livro Temas aprofundados de Defensoria Pública, vol. 2, Salvador, Editora JusPodivm, 2014.

[3] Quesito único sobre as teses defensivas: a principal inovação introduzida pela Lei 11.689/2008, no contexto do questionário, diz respeito à concentração em uma única indagação, em relação às teses da defesa. Não é mais necessário que o juiz presidente colha as alegações expostas em plenário pelo defensor as várias teses levantadas, transformando-as em quesitos a serem submetidos aos jurados. (...) a razão pela qual os jurados absolveram o réu, se for positiva a resposta, torna-se imponderável. É possível que tenha acolhido a tese principal da defesa (por exemplo legítima defesa), mas também se torna viável que tenha preferido a subsidiária (por exemplo, a legítima defesa putativa). Pode ocorrer, ainda, que o Conselho de Sentença tenha resolvido absolver o réu por pura clemência, sem apego a qualquer das teses defensivas (NUCCI, Guilherme de Souza: Código de Processo Penal Comentado. 8.ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2008, p. 812).

[4] Michel Foucault, ao dissertar sobre os princípios gerais adotados pela reforma da legislação penal francesa do século XVIII, anota que os proponentes da reforma preocuparam-se com a repercussão de se adotar penalidades objetivamente previstas, com quantum determinado, chamados pelo pensador de crime hediondo, o último dos crimes, aqueles cuja feição causa horror à sociedade, conforme se depreende do excerto a seguir: Ora, essa influência de um crime não está forçosamente em proporção direta com sua atrocidade; um crime que apavora a consciência tem muitas vezes um efeito menor que um delito que todo mundo tolera e se sente capaz de imitar por sua conta. Raridade dos grandes crimes; perigo, em compensação, dos pequenos delitos familiares que se multiplicam. Não procurar consequentemente uma relação qualitativa, entre o crime e sua punição, uma equivalência de horror: (...). Calcular uma pena em função não do crime, mas de sua possível repetição. Visar não a ofensa passada mas a desordem futura. Fazer de tal modo que o malfeitor não possa ter vontade de recomeçar, nem possibilidade de ter imitadores (Foucault, Michel: Vigiar e Punir. 34.ed. Petrópolis, 2007, p. 78). A dúvida outrora enfrentada possuía significado mais claro àqueles que conheciam as formas de punição francesas advindas do século XVI, tendo perdido sua razão nos dias atuais, em grande parte em vista da via adotada naquela oportunidade.

[5] Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti: op. cit., p. 622.

[6] Idem. Ibdem. P. 629/630.

[7] Moraes, Alexandre de: Direito Constitucional. 15.ed. São Paulo – Atlas – 2004, p. 127.


Autor

  • Ricardo Cesar Franco

    Defensor Público do Estado de São Paulo, nível IV, que atua perante o E. Tribunal de Justiça Militar de São Paulo. Pós-graduado em Direito Processual Coletivo. Mestre em Filosofia do Direito pela PUC/SP. Professor de Filosofia do Direito Penal e de Direito Processual Penal.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRANCO, Ricardo Cesar. Há que se relativizar a admissibilidade de provas ilícitas?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3885, 19 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26733. Acesso em: 25 abr. 2024.