Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/26796
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Morte e Vida Severina. Vida a Severina! Um estudo de caso à luz dos Direitos Humanos

Morte e Vida Severina. Vida a Severina! Um estudo de caso à luz dos Direitos Humanos

Publicado em . Elaborado em .

Severina, jovem que fora torturada pelo pai, é levada a Tribunal do Júri em razão de sua morte.

Resumo: O objetivo da referida monografia é abordar a história da tortura e as consequência desse crime, considerando seu transcorrer no tempo e as formas como já foi permitido e aceito no meio social chegando à fase de sua criminalização. Em que pese ser proibido, esse crime é utilizado tanto pelo Estado como pelos particulares em situações inimagináveis como, por exemplo, em ambiente doméstico. Esse trajeto histórico é importante para demonstrar que a utilização desse instrumento de horror para a extração de confissão, de prova, de informação, ou ainda de violências sexuais desmedidas; a fim de satisfazer os interesses do agente-violador, apenas demonstram o quão aviltante é o ser humano para com seu próximo, mesmo que esse próximo seja um pai para com a filha. No que se refere a sua legislação em âmbito internacional, o grande marco histórico ocorre com o advento das duas Grandes Guerras Mundiais e a confirmação de que a humanidade poderia ser dizimada com técnicas aprimoradas desse delito, conforme ocorrido na Alemanha nazista e as sequelas que as bombas atômicas lançadas sobre comunidade das duas cidades japonesas. Fazendo surgir um verdadeiro sistema jurídico de proteção aos direitos humanos voltados ao princípio da dignidade humana, vetor que conduzirá a partir daí o ordenamento jurídico a nível global. Por fim, foi realizado um estudo de caso no qual foi realizada uma ponte entre o crime de tortura e as violências sexuais que uma mulher sofreu por vários longos anos de sua vida, em seu ambiente familiar, perfazendo um caso de incesto. Este caso apresenta um desenrolar jurídico nem sempre satisfatório, com consequências dramáticas, mas com um desfecho final emocionante, modificando a sua trajetória.

Palavras-chave:Tortura. Estupro. Dignidade da pessoa humana.

Sumário: 1  INTRODUÇÃO. 2  DA TORTURA. 2.1  A Questão Histórica da Tortura. 2.1.1 Fase Privada da Tortura. 2.1.2 Fase Institucionalizada da Tortura. 2.1.3 Fase Criminalizada da Tortura. 2.1.4 A “Industrialização” da Tortura nos Séculos XX e XXI. 2.1.5 Tortura no Brasil. 2.2  Conceito. 3  INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS E NACIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS. 3.1  A Organização das Nações Unidas - ONU. 3.1.1 A Declaração Universal dos Direitos Humanos. 3.1.2 O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. 3.1.3 O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. 3.1.4 A Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes. 3.2  A Organização dos Estados Americanos - OEA. 3.2.1 A Convenção Americana sobre Direitos Humanos. 3.2.2 A Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura.3.2.3 A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher.. 3.3 A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 3.3.1  A Lei do Crime de Tortura n. 9455/1997. 4  O ESTUDO DE CASO. 4.1  Uma Justiça Seletiva. 4.2  O Caminho Percorrido pelo Ministério Público. 4.3  A Mobilização Social e o Pedido de Desaforamento. 4.4O Desfecho da Vida de Severina. 5  CONCLUSÕES. REFERÊNCIAS

 

“Quando perdermos a capacidade de nos indignarmos com as atrocidades praticadas contra os outros, perdemos também o direito de nos considerarmos seres humanos civilizados”.

Wladimir Herzog


 1 INTRODUÇÃO

 Inicialmente será apresentada uma breve digressão histórica da tortura durante a construção da humanidade desde seus primórdios, bem como quais foram suas motivações e legitimidade. Destarte, tal procedimento fora utilizado de várias maneiras e com finalidades distintas, sempre de forma a aviltar o ser humano com a utilização do corpo e alma da vítima, a fim de extrair confissões e provas, no intuito de subjulgar e punir aquele que estivesse sob o poder do mais forte.

 Os dois conflitos bélicos de ordem mundial, ocorridos no século XX, foram por demais violentos principalmente em relação ao segundo que fora encerrado com o lançamento sobre a população civil de duas cidades japonesas de armas atômicas de poder ofensivo nunca antes imaginado.

 As imagens das vítimas inocentes desses conflitos calaram no espírito humano, no qual passou a entender que a violência perpetrada no mesmo, por seu semelhante, independentemente em que local esteja, alcançará a todos, pois caracterizar-se como crime de lesa-humanidade.

 Ainda na segunda metade do século XX, vários regimes totalitaristas fizeram ressurgir desmedidamente o expediente da tortura nos porões das apoiadas ditaduras na America Latina, para manterem-se no poder. Logo na entrada do século XXI, pode-se observar que os atentados de 11 de setembro de 2001, ocorridos nos Estados Unidos, legitimaram um regime de exceção, naquele país, possibilitando prisões arbitrárias e campo como o de Guantánamo.

 Em seguida e como consequência desses fatos, será feita uma análise da legislação que promoveu a criação dos primeiros instrumentos jurídicos utilizados para identificar, reconhecer, conceituar e regrar o que vem a ser direitos humanos, assim como os pensamentos dos filósofos e doutrinadores na defesa e efetividade da dignidade humana, sendo o período do último pós-guerra marco temporal, no qual fora idealizado um verdadeiro sistema internacional de proteção a tais direitos, sempre buscando os Estados identificar e ampliar direitos e garantias fundamentais.

 O supracitado sistema busca assegurar o reconhecimento ao direito de ter direitos e poder reclamá-los sem violação ao princípio da soberania estatal. Os reflexos deste pensamento de garantias do ser humano em face ao Estado podem ser observados, em nosso país, pela promulgação da Constituição de 1988, que teve como princípio vetor a dignidade da pessoa humana.

 Na esfera infraconstitucional, a Lei de Tortura foi promulgada para especificar tais delitos e penalizar seus agentes, sejam eles na esfera pública ou privada.

 Assim, este trabalho tem por objetivo apresentar o conceito, a análise e as consequências do crime de tortura, desde os meandros de sua ocorrência até a maneira como ainda é utilizada nos dias atuais. Pois embora comumente alardeado por ser praticado pelo Estado, em suas modernas masmorras, como delegacias e presídios, é também utilizado por particulares, em situações em que aquele normalmente não alcança, por ser a princípio, ambiente inviolável e sagrado, como lares.

 Ademais, para demonstrar, concretamente, que a tortura pode ser praticada por qualquer pessoa, é realizado um estudo de caso ocorrido no Agreste de Pernambuco, em um ambiente familiar, tendo como autor e vítima, pai e filha, respectivamente. O delito se perpetuou por 28 anos, através de estupros, lesões corporais, morais e psíquicas, inclusive alastrando-se sobre outras vítimas, quais sejam os filhos desse incesto.

 Ao final de todo esse martírio, a vítima, já resignada à sua sina, modificou sua trajetória ao cometer um ato de amor a uma filha comum, que estaria em vias de se transformar em mais uma vítima de seu algoz. Do inquérito policial até o julgamento, foi sendo verificada a condição real da “parricida”. A história de Severina, assim como tantas outras, além do desamparo em que viveu e o que a motivou a praticar o delito.

 Analisamos o papel de todas as autoridades envolvidas no presente caso, desde a Polícia Judiciária até o Júri, sem nos eximir de falar no papel desempenhado pela sociedade, do seu posicionamento diante do crime. Por fim, esclareceremos as circunstâncias que justificaram os atos praticados pela real vítima do fato. Afinal, esse delito quando praticado contra um ser humano deve indignar a todos, além de fazer buscar meios para que não se repita.

 Utilizamos o método hipotético dedutivo para adentrar no mundo dos institutos jurídicos, através de uma ação argumentativa, fazendo uso da contradição entre a doutrina e a norma jurídica, na tentativa de apresentar uma reflexão sobre o tema. Essa análise só foi possível através da pesquisa bibliográfica realizada.

 Será proporcionado pelo presente trabalho um enfoque mais acentuado ao quesito: violação da dignidade da pessoa humana nos âmbitos da Justiça e da família.

 Diante de todo o exposto questiona-se o seguinte: Severina esteve sob tortura, em seu ambiente familiar, ao ser acusada como autora intelectual da morte do seu pai-agressor?


2 DA TORTURA

2.1 A QUESTÃO HISTÓRICA DA TORTURA

 A agressividade humana se materializa através de várias maneiras, mas é na tortura que ela alcança o seu ápice e faz aflorar a verdadeira inferioridade da raça humana, tida como um ser “racional” e, portanto, “evoluída”.

 É exatamente essa racionalidade que distingue o homem dos outros animais, e, paradoxalmente, só o animal homem comina tamanha dor em seu semelhante, assim, como elucida Borges (2004, p. 16): “Seres inferiores atacam e ferem a caça para devorá-las em seguida. O homem, no entanto, movido pelo espírito de destruição é capaz de infligir dores, movido por simples prazer, por vingança e até por sentimentos mais inferiores”.

 Desse relato se extrai que o homem na medida em que “evolui” não deixa de utilizar a tortura como mecanismo de dominação, humilhação, degradação a outrem no interesse próprio ou alheio, aprimorando técnicas e fazendo-as de uma forma a não deixar vestígios.

 O tempo passa, as fases sociopolíticas e econômicas se alteram no mundo e aquele, continua a utilizar esse instrumento a fim de fazer valer seu poder. Conseguiu no campo da tecnologia, desde a primeira Revolução Industrial, uma evolução incomensurável, mas em contrapartida, seu grande desafio é manter-se humano dentro dessas conquistas.

2.1.1 FASE PRIVADA DA TORTURA

É lamentável reconhecer que o instituto da tortura converge com o processo de civilização humana. A utilização do corpo humano como forma de extração de depoimentos, de provas, de punição; enfim, de pura sevícia e com a finalidade principal de confissão do suposto crime, é prática reiterada que vai de tempos mais remotos até este exato minuto em qualquer parte do mundo.

A vítima de tortura era e continua a ser considerada como “coisa”, só que por motivos e finalidades diferentes, conforme a história se apresenta, assevera Borges (2004):

A origem do suplício adivinha do costume ou direito que tinham os senhores de torturar seus escravos, a quem chamavam andrópoda (gado de pés humanos) em contra-posição [sic] a tetrápoda (gado de quatro patas) (BORGES, 2004, p.45).

Apreende-se, deste pequeno relato, que a igualdade de todos perante a lei humana e até mesmo em relação à interpretação da lei divina não ocorreram num mesmo momento nem de uma só vez. Ainda hoje as desigualdades existem e são quase intransponíveis, sob o ponto de vista socioeconômico.

A tortura como forma de prova e punição era praticada pelos particulares, na Grécia Antiga, ainda de forma arcaica evoluindo para um sistema complexo, disseminada no âmbito da comunidade para corroborar a diferença entre os cidadãos e os escravos, ou ainda, os estrangeiros denominados metecos, segundo nos testemunha Peters (1989):

Qualquer cidadão, diante da suspeita de estar frente ao autor de um delito ou de alguém que pudesse comprometer a democracia, podia fazer-se seu acusador, mesmo porque lhe seria atribuída parte dos bens confiscados ao suspeito, afinal considerado culpado e assim condenado, ficando o resto para remunerar os juízes (BORGES, 1989, p.43).

Seu início ocorre de forma primitiva na Grécia, só acontecendo a sua institucionalização um tempo depois, nos direitos penais gregos e romanos.

No caso da Grécia, as vítimas, na época, eram normalmente aquelas pessoas que se encontravam em condição desfavorável economicamente, e sem privilégios, como os escravos, os negociantes e os estrangeiros, nos quais não eram considerados como cidadãos da polis. Conforme palavras de Peters (1989, p. 21): “O depoimento dessas pessoas igualava-se aos dos cidadãos por meio da coerção física”.

Assim, só através da confissão extraída com a prática da tortura que as vítimas eram consideradas e passavam a ser respeitadas como pessoa detentora de direitos na seara penal.

Em Roma, não há diferença quanto aos meios de se obter a confissão do acusado no ilícito praticado. Todavia, apenas se enquadravam os escravos como réus, nos crimes de lesa-majestade, bem como nos delitos particulares, conforme elucida Teixeira (2004).

Em que pese todo o suplício, a sua prática não ocorria de forma indiscriminada, pois, seu algoz só poderia utilizar o uso dos tormentos em crimes considerados capitais e atrozes.

Com o advento do Império Romano, ocorreu uma divisão social entre os honestiones (classe governante) e humiliores (o restante do povo, os que se ocupavam dos negócios menos importantes, os pobres e os desarraigados); os homens que não eram escravos, só podiam ser torturados em casos de crimes de traição, ou ainda, a critério do Imperador, segundo Borges (2004).

2.1.2 FASE INSTITUCIONALIZADA DA TORTURA

Na Europa, entre os séculos VI e XII, praticamente não existia o direito público, apenas o privado. As partes, vítima e acusado, manifestavam-se através de juramentos tanto para a iniciativa da ação quanto para a defesa.

Desta forma, a confissão era a prova mais pujante daquele sistema precário, que podia levar o acusado à absolvição ou ao arquivamento da acusação. Se a acusação fosse contra algum humiliores, este era submetido aos ordálios, segundo o qual apenas o poder divino é que poderia salvá-lo, elucida Borges (2004).

Enquanto imperou o sistema dos ordálios, tudo se resolvia com mais simplicidade, porque a decisão era posta nas mãos de Deus. Depois, no entanto, era mister ingressar-se no íntimo das pessoas para buscar a verdade. [...] avultou-se a necessidade do emprego da tortura primeiro no Direito comum, depois também no Direito eclesiástico (BORGES, 2004, p.61, grifos nossos).

Entretanto, o ápice da tortura ainda estava por vir, dar-se-ia na Idade Média, com o advento do sistema inquisitivo, por parte do Direito canônico (autoridades religiosas) e o Direito secular (autoridade pública), regidos pela Europa cristã, quando institucionalizam a tortura, anui Borges (2004).

Alcança neste momento, contornos cruéis e meios insidiosos, com regras e registros reduzidos a termo, denominado “Manual dos Inquisidores” (um roteiro de como se fazer uma tortura), conforme previsto em normas criadas pela Igreja com a finalidade de punir os eclesiásticos e leigos, sem qualquer respeito ao princípio da dignidade humana.

[...] os crimes que interessavam à Inquisição eram os que, direta ou indiretamente, pareciam atentar à fé e aos costumes, aqui incluindo não só as heresias, que nasciam no seio da Igreja, como o judaísmo, mais tarde a heresia protestante, a feitiçaria, a usura, a blasfêmia, a bigamia e outros (TEIXEIRA, 2004, p.13).

Percebe-se que nesta época, não havia separação entre crime e pecado, a questão se confundia e, desse modo, era considerado como uma coisa só. E o acusado, no caso mais comum, o clérigo, obtinha como sanção a penitência, segundo a qual “é o arrependimento ou remorso por erro que se cometeu, esp. por haver ofendido os mandamentos divinos”, dicionário Houaiss (2012). Nasce com isso, o instituto da pena que se conhece nos dias atuais.

Importante salientar que a penitência só acontecia após a confissão ser extraída de forma draconiana, já que fora considerada como rainha das provas. E assim, a tortura mesmo que não produzisse a verdade dos fatos, haveria de “limpar” os pecados do acusado, salienta Teixeira (2004).

2.1.3 FASE DE CRIMINALIZAÇÃO DA TORTURA

Antes de eclodir a Revolução Francesa em 1789, o governo monárquico foi terreno fértil, produzindo as maiores barbáries no ser humano, como forma não só de extrair a “verdade” do ilícito, que fora supostamente cometido, mas principalmente para retirar do meio social aquele que fosse considerado mau exemplo para a sociedade, como anui Teixeira (2004).

Os Estados apresentavam-se como despóticos e a tortura, já era utilizada dentro do processo penal, passa agora a ser praticada de forma secreta e com intuito de manter a segurança do Estado. Se antes da obscuridade, o corpo do suplicado era objeto dos piores maus-tratos, imagine agora essa prática sendo exercida de forma sigilosa?

Conforme nos ensinou o grande filósofo Hobbes (1651), a origem da pena e o direito de punir advêm da cessão que os homens fizeram de parte de suas liberdades para que pudessem desfrutar entre os concidadãos, aquela parcela que excedeu, com segurança. E essa parcela que sobejou é o que legitima a sociedade, de forma fundamentada e lícita, punir o agente causador do delito. Mas, conforme nos alerta o filósofo do Período Iluminista, Beccaria (2004, p.19), que “Todo exercício do poder que deste fundamento se afastar constitui abuso e não justiça”.

Destarte, ao analisar essas palavras, apreende-se que, de certa forma, já é uma “penalidade” para o ser humano abdicar de parte de sua liberdade em troca dessa suposta segurança. E, ainda ser vítima de abusos por aquele ente que, em tese, deveria protegê-lo, é o que se pode tipificar como um apoderamento ilícito dessa autoridade.

Diante desse período, ocorrido no século XVIII, esse filósofo visionário se destacou por apresentar uma obra que é considerada até os dias atuais, um marco histórico. Seja por sua grandiosidade ou ineditismo, ou ainda, pela coragem para não ser considerado um herege, o fato é que o Marquês de Beccaria conseguiu soprar uma brisa humanista por toda a Europa.

Fez com que os representantes dos Estados repensassem seus sistemas penais, bem como refletissem sobre a finalidade da pena e o procedimento do processo criminal daquela época. Conseguiu resumir em sua obra Dos Delitos e Das Penas[1], os abusos cometidos em face do ser humano, bem como a forma cruel, desproporcional e injusta como as penas eram aplicadas.

Destacou o Título XII para falar só sobre tortura, segundo qual já considerava uma barbárie humana, sem finalidade alguma, conforme transcreve em suas palavras: “O que importa é que nenhum crime conhecido fique sem punição”, elenca Beccaria (2007, p.37), e, para melhor expressar o pensamento desse filósofo:

Diria ainda que é monstruoso e absurdo exigir que um homem acuse-se a si mesmo, e procurar fazer nascer a verdade por meio dos tormentos, como se essa verdade estivesse nos músculos e nas fibras do infeliz! (BECCARIA, 2007, p.38).

Percebe-se, por conseguinte, o quão aviltante, desnecessária e sem finalidades é a tortura tanto para o ser humano quanto para o sistema penal, ou ainda, para a segurança da sociedade. Pois o que realmente importa é que os crimes não fiquem impunes, mas, em contrapartida, a punição precisa ser na medida certa ao tipo penal cometido, para que se torne pedagógica ao meio social.

Após esse impacto, há uma reação social contrária à tortura. O ideal iluminista influencia os juristas e legisladores da época conseguindo aos poucos, abolir, pelo menos oficialmente, a sua prática.

Vários países, gradativamente, foram extraindo de seus códigos esse tipo penal e alguns realmente conseguiram suspender sua aplicação. A Revolução Liberal ocorrida em 1820 em Portugal consegue extinguir o Tribunal da Inquisição, abolindo, oficialmente, a tortura, segundo proclama Borges (2004).

2.1.4 A “INDUSTRIALIZAÇÃO” DA TORTURA NOS SÉCULOS XX E XXI

O ser humano é capaz de muitas hostilidades que se traduzem em violências desmedidas, atrozes e, na maioria das vezes, voraz, com finalidades quase sempre sem sentido ou, quando o tem, são, no mínimo, insignificantes, dentro do contexto da dignidade humana.

Aquela essência do ser que é humano, que deveria ser sempre preservada e enaltecida é vergonhosamente aviltada por questões espúrias da mentalidade capitalista em relação ao que real e verdadeiramente importa na vida do homem.

Assim, após as duas Grandes Guerras mundiais ocorrera um retrocesso quanto à utilização e finalidade da tortura que fez o mundo filosófico, jurídico e social ficar em estado de alerta, principalmente em dois casos específicos produzidos em massa, quais sejam: as atrocidades cometidas pelos franceses aos argelinos e a barbárie nazista contra os judeus, como assinala Borges (2004).

Conforme será demonstrado neste trabalho, esses fatos não foram produzidos de forma isolada na França ou Alemanha. Outros Estados, como por exemplo, os Estados Unidos também apresentaram sua parcela de desumanidade ao atacarem com bombas atômicas, ou seja, armas nucleares poderosíssimas, as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, em agosto 1945.

Quanto ao exemplo da França, o ano era 1954 e, na Argélia francesa, começara uma revolta entre os argelinos para adquirirem sua independência perante a força do império Francês, como nos esclarece Borges (2004), ao relatar as denúncias do diretor do órgão da imprensa liberal:

[...] a França se viu sacudida pelas denúncias de Henri Alleg, feitas em seu livro La Torture, em que o diretor Alger Republican, órgão da imprensa liberal, relatara contra as atrocidades cometidas pela nobre e civilizada nação francesa contra os movimentos argelinos de libertação, com a prática de tortura contra revolucionários árabes e, inclusive, contra o próprio jornalista (BORGES, 2004, p.91).

Esse período nefasto da história francesa marcou de tal forma os intelectuais da época, que intitular como apenas um retrocesso são muito pouco, pois se percebe uma total degradação consciente e intencional do homem para com o homem, independentemente de ser o colonizador contra o colonizado. No entanto a explicação para esse retorno foi condensada em três fenômenos sociais indicados por Mellor[2] (apud Borges 2004):

[...] o aparecimento do Estado totalitário e as condições modernas de guerra; [...] o asianismo, que define como política estatal a exaltação do papel do espião, não colocando freios ao tratamento concedido a prisioneiro de guerra (MELLOR apud BORGES, 2004, p. 92).

O advento dos Estados modernos trouxe esses fenômenos para acurar as informações que lhe interessassem, e também, que fossem elas revestidas de segurança e rapidez, fatos que só poderiam ser conseguidos se extraídos dos supostos espiões através da tortura.

Na visão desses estados totalitários era necessária a criação da denominada “inteligência político-militar”, para se especializar nas técnicas de espionagem, contraespionagem e interrogatório, arremata o mesmo autor. Esse era o discurso utilizado pela polícia política, de modo a torturar supostos suspeitos e rotulá-los como inimigos do Estado.

Quanto ao exemplo da Alemanha nazista, a investidura de seu líder através do Partido Nacional-Socialista, Adolf Hitler, em 1932 aconteceu em plena vigência da Constituição de Weimar promulgada em 1919.

Ocorre que, os legisladores constitucionais derivados da época, imbuídos no discurso da figura daquele ditador, que utilizara a Teoria Decisionista, criada pelo jurista e filósofo político alemão do século XIX Carl Schmitt, com intuito de fundamentar o artigo 48 daquela Carta[3]. E, assim aprovar e amparar o que viria a ser base da ideologia nazista como um verdadeiro “estado de exceção”, conforme anui Silva (2007, p.37): “Para decifrar o caráter sócio-intervencionista da Constituição de Weimar, a teoria deci­sionista procura entender o cunho políti­co do mundo jurídico”.

Destarte, ocorre um estado de exceção quando acontece um suposto conflito sociopolítico e simultaneamente é identificado pelo representante do Poder Executivo um “vazio jurídico” para dirimir tal situação. Ou ainda, dentro do interesse do mesmo governante quando o mesmo pode ser “criado” para justificar a promulgação de normas que servirão de base para seu poder arbitrário.

Percebe-se, um verdadeiro retrocesso quanto à separação dos Poderes, além de um excesso de poder delegado ao Chefe do Executivo que poderá criar normas que terão por finalidade supostamente restabelecer a ordem social ao status quo ante.

Essa decisão política é que serve de pressuposto para a criação dessas normas e a urgência da solução desse conflito justificam tal procedimento.

Portanto, a “exceção” poderia ser instituída a qualquer momento, a depender da necessidade do Estado e da decisão do governante, no qual seria apresentada como uma solução para a situação supostamente instaurada.

Quando a intenção do governante é pautada pela ética, tal procedimento poderá ser normalmente validado pelo Estado Democrático de Direito, já que se caracteriza por um prazo limitado de tempo.

Mas quando ocorre o contrário, configura-se como um terreno fértil para a criação de várias normas com finalidades de ditadura pura, que foi o que aconteceu naquele Estado com a figura de Hitler. Pois se tornaram vigentes sob o fundamento do regime nazista para defender a “segurança e ordem públicas” daquele Estado contra o povo judeu que supostamente era considerado um inimigo natural e, assim, poder justificar as atrocidades por ele cometidas, conforme assevera Silva (2007, p.39): “A ‘exceção’ configura um signo, pressuposto do decisionismo, critério que a Constituição de Weimar trazia prescrito em seu art. 48”.

Com esse discurso, o ditador nazista cometeu as maiores atrocidades junto ao povo judeu, criando tribunais especiais, tipificando crimes políticos e intensificando métodos de tortura nunca antes utilizados.

Após a criação e julgamento desses crimes pelo Tribunal de Nuremberg, uma legião de tratados foram criados a fim de constituir um verdadeiro sistema jurídico internacional contra a prática de crimes que lesassem a humanidade. Entretanto, esse aparato criado ainda não é suficiente para extirpar esse mal dos Estados signatários, como será apontado por essa pesquisa, logo abaixo.

Outro momento aterrador para a humanidade foram os atentados terroristas ocorridos em Nova York e Washington, em 11 de setembro de 2001. Houve, conforme análise de vários especialistas, um retrocesso significativo para o momento em que a humanidade vivenciava.

Apesar de não ser novidade para o mundo, o exercício clandestino da tortura, a ocorrência desses eventos conseguiu adeptos até então convictos que sua prática deveria ser abolida. Debates ocorreram em todo o mundo sobre a sua necessidade e consequente eficácia, a fim de ser utilizada como forma de extração de informações ou denúncias dos supostos suspeitos de cometer tais crimes, como esclarece Oliveira (2009):

Nos Estados Unidos, berço e por momentos refúgio da democracia do mundo, espíritos sérios, em seguida aos ataques às “torres gêmeas”, debatem publicamente sobre sua conveniência para arrancar informações de terroristas (OLIVEIRA, 2009, p.10).

Esses acontecimentos influenciaram sobremaneira à sociedade que volta a defender, conforme abordado acima, a prática de tortura utilizando uma justificação impulsionada pelo impacto cruel e desolador em que se prostrou aquele povo, no que se refere às perdas de tantas e tantas vidas inocentes.

Contudo, a idealização do amparo legal da prisão de Guantánamo, base militar americana localizada em Cuba é muito similar ao que ocorreu na Alemanha nazista, segundo reflexão de Freitas:

O governo americano, sob a escusa de combater o terrorismo, gradativamente, desde os atentados de 11 de setembro de 2001, atribuiu poderes supremos ao Poder Executivo que passou a suspender direitos fundamentais de qualquer pessoa que tenha envolvimento direto ou indireto com hostilidades que atentem contra a integridade da nação norte-americana.

Tal atitude implica na legitimação de espaços de exceção, criando uma “guerra preventiva”, sem a ameaça de ataque iminente, e a criação da figura do “inimigo absoluto” encarnado na figura do terrorismo teológico-político (FREITAS, 2012, p.09).

Pelo que se pode extrair do texto, a legitimidade do estado de exceção ocorreu com um simples ato do então representante do Poder Executivo daquela Nação, que, achando pouco, ampliou seu poder de destruição ao ser ratificado pelo Senado. Assim, continua o mesmo doutrinador:

[...] Bush, como resposta aos atentados de 11 de setembro, promulgou um decreto que ficou conhecido como o “military order”, onde autoriza detenções por tempo indeterminado [...]. E, continua a [...] “Guerra ao Terror” ultrapassou os limites territoriais americanos e tornou-se uma questão global, pois, [...] com a promulgação do famigerado USA Patriot Act, passou-se a permitir a manutenção de estrangeiros suspeitos em atividades que ponham em perigo a segurança nacional dos Estados Unidos (FREITAS, 2012, p.12, grifos do autor).

E, numa análise mais profunda, vai além, ao fazer uma comparação com os campos de concentração nazista perfilhando uma série de barbáries em plena vigência no século XXI:

A fim de coibir qualquer obstáculo na luta contra o “terror”, a baía de Guantánamo tornou-se um campo de concentração, um local onde as normas constitucionais e suas garantias fundamentais não são aplicadas, assemelhando-se consideravelmente com os campos de concentração nazistas (FREITAS, 2012, p.09).

A comunidade internacional que defende os Direitos Humanos deve estar atenta para que essa violência não gere ou aprofunde a intolerância já tão arraigada no povo americano, que se autointitula uma nação acima das outras nações. E ademais, conforme alerta Freitas (2012, p. 20): “O estado de exceção é a morte da democracia, os norte-americanos agindo por um impulso e por um medo incessante de atos terroristas, colocam em evidência todas as premissas constitucionais a que tanto se orgulham”.

Importante se faz crer que o exercício da tolerância é de extrema importância para situações como as elencadas acima acabem e as discriminações tornem-se mínimas no que se refere à raça, cor, etnia, religião ou qualquer outra forma de diferença que exista entre as culturas.

Dever-se-á ser enaltecido o igual direito de viver e conviver dentro da comunidade humana de forma pacífica, e o respeito a essas diferenças deverá ocorrer sem que haja necessidade de subjulgar qualquer cultura ou religião em relação a qualquer outra, seja ela islâmica, judaica, católica, protestante; enfim, deve-se ser exercitada a denominada “tolerância universal”, explica Bobbio (2004):

Se somos iguais, entra em jogo o princípio da reciprocidade, sobre o qual se fundam todas as transações, todos os compromissos, todos os acordos, que estão na base de qualquer convivência pacifica [...]; e completa: [...] a tolerância, nesse caso, é o efeito de uma troca, de um modus vivendi, de um do ut des, sob a égide do ‘se tu me toleras, eu te tolero’ (BOBBIO, 2004, p. 189).

Há no que se pode extrair da história recente, uma verdadeira “industrialização” da tortura por parte dos Estados, em nome da Segurança Nacional. O processo sequenciado, maquinado e aperfeiçoado, ganha contornos aprimorados, só vistos em uma indústria produtora de desumanidades, conforme produzido nos campos de concentração nazista na antiga Alemanha, e, hoje, reproduzidos nos recônditos da baía de Guantánamo.

Contudo, aqui no Brasil, a ocorrência da tortura em suas masmorras atuais como delegacias, quartéis, locais públicos não tão iluminados e lares, como será apresentado no estudo de caso logo abaixo, se não tem a perfeição e adestramento daqueles acima, ocorre porque as finalidades são distintas. Mas a prática é fato e os números são assustadores. E, ao final, o grande desafio é o homem permanecer, como dito no início, humano.

2.1.5 A TORTURA NO BRASIL

O instituto da tortura chegou ao Brasil através do sistema penal Português, similar ao que ocorria no Ancien Régime, segundo qual servia para garantir a verdade dos fatos. Os três períodos mais marcantes foram: o Código Afonsino em 1446, na sequência, as Ordenações Manuelinas em 1521 e, por fim, as Ordenações Filipinas em 1603.

Mesmo com a proclamação da Independência, o país continuou a utilizar as normas e regras das Ordenações Filipinas (1603) até a promulgação do Código Criminal em 1830, ou seja, mais de dois séculos utilizando esse procedimento aterrador.

No Título CXXXIII, do Livro V, intitulado Dos Tormentos, o legislador da época deixou à análise do magistrado, caso a caso, quando e como deveria o acusado ser exposto ao suplício. Dependia, aquele, do montante e qualidade das provas apresentadas em juízo e, ainda, de forma gradual, analisava os indícios que permeavam o acusado. Podendo, inclusive, repetir o tormento, caso julgasse o resultado da primeira “sessão” insuficiente para satisfazer seu convencimento, conforme anui Teixeira (2004).

Oficialmente, a abolição da tortura, açoites e demais penas cruéis, só ocorreram com a primeira Constituição Política do Império do Brasil em 1824, na qual trazia em seu artigo 179 o destaque das garantias das inviolabilidades dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros.

Todavia, essa suposta extinção ocorre apenas para os cidadãos, já que os escravos não eram assim considerados, e, além disso, o artigo 60[4] do antigo Código Criminal de 1830 tinha penas previstas com açoites públicos, caso tentassem fugir ou roubassem, por exemplo. Essa discrepância é apontada de forma brilhante, por Silva Júnior[5] (apud TEIXEIRA, 2004):

Para todos os efeitos civis – contratos, herança, etc – o escravo não era considerado pessoa, sujeito de direitos. No entanto, para o direito penal, melhor dizendo, para efeito da persecução penal, o escravo era considerado responsável humano, isso caso figurasse como réu [...] Numa palavra: sendo réu era pessoa, sendo vítima, coisa (SILVA JÚNIOR apud TEIXEIRA, 2004, p. 24).

Essa contradição desumana permaneceu ainda por longos anos, apesar das supostas qualidades liberal que existiam tanto da Constituição Imperial como do Código Criminal de 1830. Essa é uma das características mais fortes defendidas neste trabalho, qual seja o perfil escravocrata da sociedade brasileira e o enraizamento cultural da tortura no Brasil até os dias atuais.

Não obstante, o espírito liberal consagra-se de vez com o advento da Proclamação da República, em 1891. Contudo, os resquícios da violência do Brasil Império ainda são percebidos principalmente nos escravos negros alforriados, nos pobres e índios, esclarece Teixeira (2004, p.28): “A República Velha, com suas elites governantes, não tolerou os movimentos de oposição e os combateu com violência”.

Observa-se que essa violência é a prática da tortura que permeará toda a história do Brasil, entre as forças opressoras e oprimidas (Estado e cidadãos), entre os ricos e os pobres, heterossexuais e homossexuais, homens e mulheres, adultos e crianças, brancos e índios; enfim, entre os concidadãos brasileiros.

Na era do então Presidente da República, o ditador Getúlio Vargas (1930-1945), período em que o mundo vivia a sua Segunda Grande Guerra, há um retrocesso mundial e a tortura volta a ser prevista em códigos e atos de forma aviltante aqui no Brasil. Foram quinze anos de autoritarismo, de uma ideologia dicotômica entre o comunismo e o socialismo.

Em 1937 ocorre à promulgação da Constituição do Estado Novo, e com ela a pena de morte foi ressuscitada. O Código Penal de 1940, por sua vez, passou a prever em seu artigo 44 a tortura como circunstância agravante genérica para qualquer crime que houvesse o emprego de violência contra a pessoa.

Com o advento da queda de Vargas, em 1945, a democracia é reinstalada, mas os suplícios para os que são mais despossuídos permanecem, relembra Teixeira (2009):

Mas os presos comuns continuam vítimas de tormentos, sendo a tortura aplicada para fins meramente punitivos, ou mesmo aquela aplicada nos interrogatórios policiais para extorquir confissões ou informações (TEIXEIRA, 2004, p.29).

Essa é uma fase que haverá uma mudança no perfil dos torturáveis, que deixará de atingir apenas os mais necessitados, para alcançar os supostos subversivos, ou seja, os então considerados inimigos do Estado.

Em 1964, ocorre o golpe militar, a questão da segurança do Estado ressurge e com ela a institucionalização da tortura nos porões dos quartéis, delegacias e locais escolhidos para tais práticas.

Métodos de tortura importados dos Estados Unidos são aqui disseminados, espalhando na sociedade um terror inimaginável até para os mais céticos, elucida Teixeira (2004, p. 30): “Pode-se dizer que a ditadura não inventou a tortura, mas exacerbou-a [...]”. Neste período quem não fosse a favor das regras impostas pelo sistema era considerado subversivo e, portanto, achava-se atentando tanto ao Estado quanto à democracia.

Com o fim da ditadura, o tão aguerrido espírito realmente democrático é reduzido a termo na Constituição Federal de 1988. O Brasil passa a ser signatário de vários tratados internacionais, dentre eles os que versam sobre direitos humanos e tortura.

Contudo, o arraigado germe da prática da tortura permanece até este exato minuto em algum recôndito deste país, podendo incorrer em quartéis, delegacias, fóruns e até em lares. Independentemente do regime se apresentar como democrático ou autoritário, do Brasil República, Império ou Colônia, o fato é que a tortura faz parte da herança cultural do seu povo por razões ainda não totalmente difundidas. É a denominada fase da Segurança Pública.

2.2 O CONCEITO DE TORTURA

A semântica do vocábulo “tortura” ocorre da união de duas expressões que originalmente advêm das palavras questio, segundo a qual além de designar o próprio processo investigatório em direito penal, assinala a corte que administrava a justiça. E a palavra tormentum, que identificava uma forma de punição, na qual era incluída a pena de morte. Assim, como anui Borges (2004, p. 53): “Quando o tormento era aplicado num interrogatório, falava-se em questio per tormenta ou questio tormentum, ou seja, uma investigação feita através de um meio outrora destinado aos escravos”.

Com o evoluir da linguagem e o estudo de sua etimologia essas expressões (questio e tormentum) se tornaram sinônimas. O jurisconsulto Ulpiano (apud Teixeira 2004), assim a denominava, em sua obra (Digesto, XLVII, X, 15, § 15)[6]:

Por quaestio [tortura] devemos entender o tormento e o sofrimento do corpo com a finalidade de obter a verdade. Portanto, nem o interrogatório em si nem as ameaças leves dizem respeito a este édito. Assim, a quaestio deve ser entendida como força e tormento, pois são estas coisas que determinam seu significado (ULPIANO apud TEIXEIRA, 2004, p.7).

A definição imprecisa do conceito de tortura, provocações e punições foram motivos de confusão entre os juristas da época. Alguns defendiam como método de prova outros como método de punição, contudo, num ponto todos concordavam:

[...] a tortura era de fato um meio, ou uma forma incidental de se obter uma confissão [...]. E ainda: [...] A literatura acerca da tortura indica-nos que os magistrados sabiam exatamente o que era a tortura e por que ela era utilizada (PETERS, 1989, p. 69).

O que se percebe é que havia uma divergência entre a teoria e a prática. Excetuando as dificuldades normais de cada cultura linguística, a conceituação da tortura, na prática, é idêntica em quase todos os Estados, porque é possível verificar e medir a brutalidade e os meios empregados para se obter tais confissões. E, também, o sadismo em seu agente ativo, embora não seja fácil prová-lo, enumera Peters (1989, p.68) “Nas fontes vernáculas e latinas os termos usados são tortura, quaestio, tormentum e, às vezes martyrium, cuestion, questione e question”.

Assim, independentemente do vocábulo utilizado em cada língua, o fato é que na prática a tortura é o ato pelo qual um ser humano pratica noutro, de forma cruel, degradante, vil, causando-lhe dor, lesões físicas e psíquicas, levando na maioria das vezes a óbito.


3 INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS E NACIONAIS DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS E INCRIMINAÇÃO DA TORTURA.

3.1 A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU

Um grande divisor de águas para o Direito Internacional foi a Segunda Guerra Mundial, principalmente para a normatização dos direitos humanos. A primeira vez que os limites das fronteiras entre os Estados foram ultrapassados para que esses direitos fossem respeitados dentro de princípios e regras voltadas para assegurar a dignidade humana.

Ademais, o terror e o choque produzidos com os números levantados de vítimas, de refugiados e as atrocidades perpetradas em total desconsideração ao ser humano, advindos após tais confrontos bélicos, fez surgir documentos eminentemente voltados para a preservação da humanidade.

O horror estabelecido nos regimes totalitários e o positivismo tão radicalmente produzido fez emergir quão insensível e capitalista estava à comunidade internacional, que segundo Comparato (2011, p. 226): “[...] suscitou em toda parte a consciência de que, sem o respeito aos direitos humanos, a convivência pacífica das nações tornava-se impossível”.

A Organização das Nações Unidas nasce com distinções nítidas da Liga das Nações, já que a intenção daquela foi, continua o ilustre professor (2011, p.226): “[...] colocar a guerra definitivamente fora da lei”. E, ademais, “[...] todas as nações do globo empenhadas na defesa da dignidade humana”.

Os direitos do homem têm caráter dinâmico, mutável que se constroem conforme a raça evolui, conseguindo-os através de lutas em defesa de melhores condições e liberdades, assevera Bobbio (2004). Seria uma construção ideológica de forte caráter axiológico voltado para interesses de classes políticas dominantes com claro intuito de produzir mais riquezas e, principalmente, manterem-se no poder.

Entretanto, essa retórica não é só utilizada pela classe opressora, serve também de discurso para a classe oprimida conseguir através desses embates melhores condições de vidas e consequentemente inéditas liberdades. E assim continua Bobbio: “O problema é estreitamente ligado aos da democracia e da paz”. “[...] O reconhecimento e a proteção dos direitos do homem estão na base das Constituições democráticas modernas” (2004, p. 01).

 De forma pontual, a construção jurídica dos direitos humanos formulados nos instrumentos é uma utopia, pois não são direitos tidos, reconhecidos e exercidos por toda a comunidade humana, critica pertinentemente, o professor Flores (2009).

Afinal, lembra-nos ele, essa construção interessa e enaltece a forma ocidental de querer relacionar-se com o resto do mundo. E esclarece que, o cerne da questão está nas fases e nos contextos socioeconômicos da imposição capitalista para satisfazer suas demandas e necessidades, e assim continuar impondo seus métodos de produção.

Em síntese, argui assim sua defesa:

 A partir desse princípio de dignidade, consideramos os direitos humanos como produtos culturais, quer dizer, como convenções surgidas como reação diante dos entornos de relações que o capital veio impondo desde o século XVI até a atualidade (FLORES, 2009, p.213).

 Independentemente das posições doutrinárias, criou-se uma proteção internacional voltada para os direitos humanos de forma ainda rudimentar, mas que seria o prelúdio de tantos outros instrumentos importantes, sejam eles de forma geral ou específica, para reconhecer e defender direitos voltados à comunidade humana.

3.1.1 A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM - 1948

 Desde a sua criação em dezembro de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos constituiu um marco histórico para a comunidade humana. Essa universalidade, explica Bobbio (2004, p.24), de maneira elucidativa, quando assim traduz: “[...] universal no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens”.

 Em que pese seu alcance global, outro fator importante para sua proclamação se referiu às atrocidades cometidas nos pós-guerras pelos Estados aos seus cidadãos e a possibilidade real da humanidade ser exterminada com uma simples ativação de armas nucleares.

 Vale ressaltar, primeiramente, que o resultado exitoso do Tribunal de Nuremberg, criado após a Segunda Grande Guerra, com a finalidade de julgar e condenar as barbaridades perpetradas pela Alemanha nazista contra os judeus foi, ao final, de extrema importância para tipificar os crimes de lesa-humanidade. Conseguindo identificar e punir seus agentes pelo delito da tortura que ali fora praticado a título de experimentos médico-legais, além de dizimar milhões de seres humanos inocentes, sob a forma de discriminação étnica e racial.

 Esse Tribunal, após condenar vários médicos sob a acusação de terem utilizados práticas contrárias ao juramento de Hipócrates, elaborou um conjunto de regras ao qual reduziram a termo num instrumento denominado Código de Nuremberg. Este código se tornou um padrão para a atual ética na medicina, principalmente no campo da pesquisa com seres humanos, em todo o mundo.

 Entre algumas normas importantes, uma destaca-se por determinar que: “O experimento deve ser conduzido de maneira a evitar todo sofrimento físico ou mental desnecessários e danos” (artigo 4º do referido código).

 Esse período avassalador de tantas violências e derrames de sangue fez surgir regras que abominaram as condutas realizadas junto ao povo judeu e, por conseguinte, se voltaram para proporcionar efetividade a tais direitos, a fim de que novas atrocidades como aquelas, jamais se repetissem em qualquer outra circunstância; além de princípios como igualdade, solidariedade e liberdade nos quais foram elencados no corpo da Declaração, conforme assevera Comparato:

A Declaração, retomando os ideais da Revolução Francesa, representou a manifestação histórica de que se formara, em âmbito universal, o reconhecimento dos valores supremos da igualdade, da liberdade e da fraternidade entre os homens [...] (COMPARATO, 2011, p.238).

 Insta destacar, a fim de ratificar, que esse documento inicial produzido pela Assembleia Geral da ONU, volta-se para a criação de um conjunto de princípios e regras destinado à dignidade humana, dentro de um contexto histórico enfraquecido com tantos horrores e atrocidades ocorridas; fazendo a comunidade humana enxergarem que algo deveria ser feito para cessar, abolir os desmandos dos Estados totalitários, conforme continua Comparato (2011).

O pecado capital contra a dignidade humana consiste, justamente, em considerar e tratar o outro – um indivíduo, uma classe social, um povo – como um ser inferior, sob o pretexto da diferença de etnia, gênero, costumes ou fortuna patrimonial (COMPARATO, 2011, p.241).

 A Organização das Nações Unidas, a partir da referida Recomendação, construiu um verdadeiro sistema internacional de direitos humanos[7], sendo alguns especificamente criados para conceituar, punir e erradicar crimes em espécie, como por exemplo, o delito de tortura.

 A observância universal a tais direitos, exigida na referida Declaração e a forma pontual e clara quando reduziu e proclamou em seu artigo 3º, que: “Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante” (ONU, 1948), eleva e tenta dar efetividade ao princípio da dignidade humana irradiando reconhecimento e proteção a todos os seres humanos perante as atrocidades que um Estado despótico pode causar aos seus cidadãos.

3.1.2 O PACTO INTERNACIONAL DE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS – ONU 1966

 Aprovado pela Resolução 2.200 (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em dezembro de 1966, esse instrumento faz parte de um apropriado sistema jurídico de direitos humanos que converge para assegurar as diferenças e eliminar as desigualdades, bem como proteger os indivíduos contras as possíveis violações de seus direitos civis e políticos[8].

 Tais direitos são os de primeira geração, no qual o Estado deve agir negativamente, ou seja, abster-se e proceder de forma a assegurar e proteger, esses direitos, quais sejam: direito à vida, de não ser torturado, de não ser escravizado, nem submetido servidão, direito à liberdade, direito à igualdade perante a lei, entre tantos outros, além de prevenir e combater a tortura ou tratamentos desumanos, degradantes e cruéis, conforme previsto em seu artigo 7º:

Art. 7º Ninguém poderá ser submetido a tortura, nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes. Será proibido, sobretudo, submeter uma pessoa, sem seu livre convencimento, a experiência médicas e científicas (OEA, 1966).

 A questão do livre convencimento do paciente, quer dizer que o paciente passará a ser tratado e respeitado como um ser verdadeiramente humano, com opiniões e vontades, e não apenas uma “coisa”. Assim, em outras palavras, a utilização do corpo humano como objeto de estudos e experiências médicas-científicas ocorridas nos campos nazistas de concentração ou, por exemplo, como no caso a ser estudado logo abaixo, em que um pai se serve sexualmente de sua própria filha por vários anos.

 No que se refere às minorias, o Pacto não define o seu conceito, entretanto, um Relatório aprovado em 1977, na Subcomissão de Luta contra as Medidas Discriminatórias e de Proteção das Minorias, subordinada à Comissão dos Direitos Humanos esclareceu a noção de minoria populacional do artigo de forma objetiva. Cotejar-se-á dois dos quatro critérios harmônicos com o atual trabalho:

[...] a noção de minoria discriminada pressupõe o fato político de que tais grupos não se encontram em situação de poder na sociedade [...]; e último lugar, a discriminação violadora desse direito humano supõe que discriminadores e discriminados pertencem ao mesmo Estado (COMPARATO, 2011, p. 336).

 Esse destaque se faz necessário para identificar e enquadrar no aludido Pacto as violações que ocorrem nas parcelas vulneráveis da sociedade que são torturadas como forma de discriminação, intimidação, punição e até mesmo submetida à servidão pessoal, fato a ser neste trabalho analisado.

 Historicamente no Brasil, de forma contrária, pode-se afirmar que as minorias seriam os grupos sociais privilegiados e que detêm o poder estatal, portanto, os “discriminadores” apontados pelo professor Comparato (2011).

3.1.3 O PACTO INTERNACIONAL DOS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS – ONU 1966.

Instrumento que elenca uma série de direitos concernentes à proteção das classes ou grupos sociais desfavorecidos, contra o predomínio socioeconômico exercido pela minoria detentora do poder, além de fazer possibilitar aos menos favorecidos uma melhor condição de vida.

Aqui o Estado passa a ter uma postura ativa, portanto, positiva, de em nome dessa população, agir contra a discriminação entre as classes sociais. De modo que, a igualdade social é aqui o ponto central na busca dos direitos perquiridos nas políticas públicas ou programas de ação do governo de cada país, elucida Comparato (2011).

Vale ressaltar que violência gera violência e o Estado só conseguirá reduzi-la se diminuir a distância existente na escala que relaciona os mais ricos aos pobres. Isso se faz extremamente necessário para que essa classe vulnerável tenha reconhecido seus direitos civis e políticos, além dos econômicos, sociais e culturais que são complementares, interligados e indivisíveis, ainda ser considerados sujeitos de direitos perante a sociedade na qual vivem.

 Sabe-se que a ideia circular, de encaixe perfeito entre os direitos civis e culturais com os direitos econômicos, sociais e culturais[9] para a comunidade humana é vital. Afinal, para que o indivíduo viva de forma digna, faz-se necessário atender as necessidades básicas elencadas em tal pacto, como por exemplo: direito à alimentação, à moradia, ao trabalho, à educação etc.

Portanto, torna-se necessário fazer algumas reflexões dentro desse ambiente, a exemplo de efetivar o princípio da solidariedade, vetor do aludido pacto. Mas como será possível, se os indivíduos encontram-se substancialmente tão desiguais?

E ainda, como possibilitar educação para que o conhecimento chegue a todos? Assim a importância dessa igualdade é a oportunidade proporcionada para que todos tenham reconhecidos seus direitos, e deles tomem conhecimentos, para então saber exigi-los.

Do mesmo modo, para que o indivíduo tenha condições de exercer esses direitos de forma horizontal, ou seja, com igualdade de condições com a sociedade no qual está inserido, torna-se primordial que tenha todas as possibilidades e qualificações exigidas no mercado capitalista de produção. E para essa concretização, os direitos à educação e ao trabalho apresentam-se, também, como vetores, a fim que essas pessoas consigam efetivar de forma independente, consciente e digna todos os outros direitos.

 Afinal, a maneira que o sistema mercardual, ao qual o homem está inserido, se apresenta nos dias atuais, torna totalmente desumana a condição de vida, conforme assevera Comparato (2011, p.357): “A medida que o capitalismo se torna cada vez mais financeiro e especulativo, o fator trabalho passa a ser considerado como um insumo dispensável no sistema produtivo.”

Portanto, a falta de oferta de trabalho faz crescer as desigualdades sociais e consequentemente dificulta o desenvolvimento educacional da população mais carente, faltando-lhes com isso, dentre outros, dignidade como pessoas que também são.

3.1.4 A CONVENÇÃO CONTRA A TORTURA E OUTROS TRATAMENTOS CRUÉIS, DESUMANOS E DEGRADANTES – ONU 1985.

 Dentro do sistema global e com a finalidade de assegurar a dignidade humana de forma mais efetiva, a ONU aprovou em 1985, outro documento de valor inestimável para tal comunidade, agora de forma mais específica, qual seja Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes[10]. Este documento, adotado pela Resolução 39/46, em dezembro de 1984, determina que os Estados devam acordar que:

Art.1º Para fins da presente Convenção, o termo “tortura” designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido, ou seja, suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerarão como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram (ONU, 1985).

Esse instrumento sintetizou neste artigo o conceito do que seria a prática da tortura e sinalizou para que Estados-partes signatários criassem leis ou decretos voltados para sua erradicação em suas legislações internas.

Insta destacar que todo documento internacional voltado à proteção dos direitos humanos é utilizado de forma secundária, em homenagem ao princípio da soberania estatal. Assim, conforme nos ensina Piovesan (2012, p. 227): “[...] o Estado tem a responsabilidade primária pela proteção desses direitos, ao passo que a comunidade internacional tem a responsabilidade subsidiária”.

Contudo, a importância da criminalização e do controle efetivo pela ordem internacional da prática da tortura se fazem necessários para quando haja violação por parte do Estado agressor, e este possa ser punido, sendo obrigado a reparar os danos às vítimas. Além de determinar que o agente torturador seja manifestamente afastado das funções que ali exerce, devendo responder de forma irrepreensível por seus atos sem privilégios e muito menos imunidade em relação ao cargo que exerce.

Em que pese na esfera internacional o crime de tortura ser considerado próprio, isto é, apenas os agentes estatais podem cometê-lo, no Brasil, ao contrário, ele foi tipificado como comum, podendo assim qualquer pessoa cometê-lo, assunto que será explicado logo abaixo.

 Ressalte-se que a tortura é um crime de lesa-humanidade e, ao ser assim elencado no Tribunal de Nuremberg, adquire determinado significado, qual seja: quando praticado num ser humano, todos são por ele alcançados, de modo que o Estado-violador e a comunidade internacional de direitos humanos devem estar sempre atentos, trabalhando em conjunto no que diz respeito ao seu controle e punição.

 Ademais, conforme prevêem seus artigos 5º ao 8º a jurisdição é compulsória e universal para seus torturadores, isto é, todos os Estados-membros são obrigados a punir seus agentes torturadores independentemente do limite da jurisdição, ratificando com isso, a legitimidade universal que qualquer país signatário tem de processar o acusado ou, se for o caso, extraditá-lo, caso algum outro Estado-parte o tenha solicitado, para que enfim, possa ser devidamente punido, independentemente que haja algum acordo bilateral entre os mesmos, preceitua Piovesan (2011).

 Existe ainda a possibilidade do sistema de monitoramento que institui três instrumentos: as petições individuais, os relatórios e as comunicações interestatais que, juntos, funcionam como formas de controle para que esse crime não ocorra nos recônditos mais longínquos dos Estados signatários.

O Brasil, assim como qualquer outro Estado, ao ratificar esses vários tratados que versam sobre tais direitos, tem a obrigação de averiguar, punir e ressarcir as vítimas deste nefasto crime, sob pena de incorrer num ilícito internacional.

3.2 A ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS - OEA

Com intuito de melhorar suas relações comerciais, de igualar as normas jurídicas, além de facilitar pacificamente as controvérsias que por ventura existissem, aprimorando a defesa da democracia e respeitando o princípio da não-intervenção, bem como elencando princípios em sede de direitos humanos, foi criada a OEA – Organização dos Estados Americanos, em 1948, elucida Arrighi (2004):

[...] os Estados americanos [...] foram criando, gradualmente, um sistema de instituições especializadas, uma tessitura de normas jurídicas e um conjunto de princípios comuns de conduta, tanto em suas relações recíprocas como nas relações entre cada Estado e seus cidadãos (ARRIGHI, 2004, p.01).

Assim, esse organismo não nasceu de uma só vez, ao contrário, foi se construindo com o decorrer de suas necessidades para aprimorar suas relações, identificando e resolvendo os problemas pelas suas similitudes, conseguindo com isso, maior estabilidade e segurança em relação a outros organismos existentes em outros continentes, conforme conclui Arrighi (2004):

Alguns assuntos só têm sentido se vistos e resolvidos de uma perspectiva universal, e há outros, [...] que só podem ser enfrentados de forma eficaz no contexto de uma comunidade de valores e interesses que só ocorrem entre países de mesma região (ARRIGHI, 2004, p.05).

Destarte, quanto mais próximos dos problemas, mais rápido e de forma menos traumática será a sua resolução. Até porque culturalmente são muito parecidos e, consequentemente, os interesses serão administrados por seus pares de forma mais pontual.

Entretanto, a criação da entidade regional (OEA) não excluiu nem mitigou a global (ONU), ao contrário, ampliou e fortaleceu tais proteções, oferecendo um maior e melhor amparo legal às vítimas, pois, a depender da necessidade concreta, uma ou outra conseguirá atender e dirimir tais conflitos da forma que seja mais favorável.

Vale ratificar que tais documentos são complementares, sem caracterizar, portanto, hierarquia entre a ONU, OEA, África ou Europa.

3.2.1 A CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS – OEA 1969

 Documento de maior importância na seara dos direitos humanos para a região dos Estados americanos, a supracitada Convenção foi firmada com a finalidade de ofertar maior proteção e garantia a tais direitos, em âmbito regional. Realizada e aprovada na Conferência ocorrida em Costa Rica, no ano de 1969, mais comumente conhecida como Pacto de San José da Costa Rica[11], elenca direitos fundamentais básicos, similar ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, promulgado pela ONU, esclarece Arrighi (2004):

[...] esses mesmos Estados foram elaborando um conjunto de normas e criando instituições regionais para proteger os direitos dos indivíduos, além da proteção (ou da falta de proteção) oferecida pelo direito nacional, suprindo ou complementando suas falhas e carências (ARRIGHI, 2004, p.99).

 Vale salientar que a Convenção Americana não proclama, de forma particular, direitos elencados no Pacto de Direito Social, Econômico e Cultural, e essa omissão foi intencional, naquele momento, por interesse de adesão da nação Norte Americana.

Entretanto, em 1988, na Conferência Interamericana de São Salvador, a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos aprovou um Protocolo Adicional à Convenção, assim denominado “Pacto de San Salvador”[12], alcançando e protegendo direitos econômicos, sociais e culturais, formando hoje o denominado PIDESCAS.

Com isso, os Estados-membros não poderão se eximir desses deveres e deixar de assegurar o pleno exercício aos seus cidadãos. E estes, por sua vez, não poderão deixar de lutar por novos direitos para concretizar sua progressiva necessidade de aperfeiçoar-se, seja de forma técnica ou científica, contudo, não deixando de respeitar seu lado ético e moral, assevera Comparato (2011).

 Assim, o indivíduo que tenha algum direito violado poderá dentre tantos instrumentos, optar por aquele que melhor se adéqua a sua situação. Portanto, no que diz respeito à tortura, a Convenção estatui:

1 – Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.

 2 – Ninguém deve ser submetido a torturas nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos e degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com respeito devido à dignidade inerente ao ser humano (OEA, 1969).

 Dessa maneira, a vítima de tortura terá a oportunidade de melhor fundamentar seu direito e exigir tanto a punição como o reconhecimento da omissão do Estado-parte, agente violador, bem como a reparação do dano. Assim, conforme enaltece Piovesan (2012):

O sistema interamericano salvou e continua salvando muitas vidas; tem contribuído de forma decisiva para a consolidação do Estado de Direito e das democracias da região; tem combatido a impunidade; e tem assegurado às vítimas o direito à esperança de que a justiça seja feita e os direitos humanos sejam respeitados (PIOVESAN, 2012, p.357).

 Apreende-se do supracitado relato que o sistema é efetivo e tem conseguido diminuir as omissões ocorridas nos Estados, acabando com a impunidade desmedida e estimulando avanços centrados no valor supremo da dignidade humana.

Essa é uma luta que perfaz um longo caminho ainda ser trilhado, unindo sociedades e Estados, num processo segundo o qual outro fator primordial que servirá para asseverar tal princípio é o espírito democrático neste Continente. Afinal, sem democracia a injustiça reinará e consequentemente violações a raça humana serão outra vez, perpetradas nessas nações.

3.2.2 A CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR E PUNIR A TORTURA – OEA 1985

 Reconhecida e ratificada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, em dezembro de 1985, na Colômbia, este instrumento constitui uma reafirmação à Convenção sobre a mesma espécie delitual em âmbito global, só que asseverando a proteção aos princípios da dignidade humana e da liberdade de valores tão vitais aos indivíduos.

Além de trazer os cuidados para que não ocorra, mesmo em Estado de Exceção, prática tão comum nos Estados da America Latina, no período da ditadura; bem como no exemplo trazido atualmente da baía de Guantánamo, base militar dos Estados Unidos em Cuba, podendo tornar-se uma verdadeira violação ao Estado Democrático de Direito e risco iminente a qualquer indivíduo supostamente acusado de atos terroristas.

Logo, assim preceitua a incriminação da tortura[13]:

Art. 2º Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por tortura todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim. Entender-se-á também como tortura a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica.

Não estarão compreendidos no conceito de tortura as penas ou sofrimentos físicos ou mentais que sejam unicamente consequência de medidas legais ou inerentes a elas, contanto que não incluam a realização dos atos ou aplicação dos métodos a que se refere este artigo (OEA, 1985).

Este é mais um instrumento do sistema internacional de proteção aos direitos humanos que assegura à vítima mais uma opção para fundamentar seu direito, além de ratificar a obrigação que o Estado-membro tem de proteger, assegurar e punir tal prática em suas dependências públicas ou lugares a ermos. Assim, conforme esclarece Borges (2004, p.124): “Nem a periculosidade do detido ou condenado, nem a insegurança do estabelecimento carcerário ou penitenciário podem justificar a tortura”.

Ademais, por ser um crime imprescritível, independe a situação interna ou externa, em termos de beligerância que se encontre Estado-parte, agente violador de cometer tal delito. Vale frisar, nenhuma conjuntura atípica que esteja passando um país poderá justificar tal prática e, dessa forma, querer derrogá-lo ou não interpretá-lo conforme tal documento.

Insta ressaltar uma importante decisão proferida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ocorrida em 1995 no Haiti[14], sobre um caso de violação dos direitos das mulheres daquele País. Em sua fundamentação, a Comissão realizou uma interpretação extensiva do crime de tortura para absorver os crimes de estupro e abuso sexual, conforme enumera Piovesan (2012):

[...]o estupro e o abuso sexual são formas de tortura que produzem um dos mais severos e longos efeitos traumáticos. E, acrescenta [...] em conformidade com resolução do Conselho de Segurança da ONU, o estupro é considerado violação e ofensa aos princípios do direito humanitário, devendo ser juridicamente condenável e punido no plano internacional (PIOVESAN, 2012, p.276).

 Em que pese ter sido resultado da guerra civil ali ocorrida, o exemplo abriu precedentes na seara internacional, podendo ser utilizado como base jurisprudencial, de modo a fundamentar qualquer outro exemplo, mesmo que de âmbito particular, já que é um crime de lesa-humanidade, logo, imprescritível e insuscetível de qualquer benefício.

3.2.3 A CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR, PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER – 1994.

Sabe-se que a necessidade de criação de um instrumento que proteja uma minoria humana em seus direitos advém do lamentável paradoxo de suas graves e reiteradas violações.

No caso das mulheres esse contexto e caminho não foram diferentes e continuam a ser trilhados diariamente, numa luta constante, principalmente no ambiente familiar, local que deveria ser sagrado e inviolável em termos de proteção e segurança. Mas, ao contrário, o espaço doméstico é o mais fértil para a ocorrência de tantas agressões físicas, psíquicas, morais e sexuais contra a mulher independentemente de ser criança, adolescente ou adulta.

Um agravante a todos esses maus é ainda constatar que seu agressor é, em regra, um parente próximo, normalmente o pai, irmão, marido ou companheiro, aquele que normalmente detém a sua confiança.

 O referido instrumento foi alcunhado como “Convenção de Belém do Pará”[15] e, conforme anui Piovesan (2012), ainda ser ele o primeiro documento internacional a conceituar os tipos de violências que atingem as mulheres, independentemente do Estado, posição socioeconômica, cor, raça, idade, religião etc.

A finalidade precípua de tal instrumento é proteger o gênero feminino em face do masculino, do sexo mais frágil em detrimento do mais forte. Portanto, conceitua a violência contra a mulher de forma explícita e enfática como:

Art. 1º

Para os efeitos desta Convenção deve-se entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado.

Art. 2º

Entender-se-á que violência contra a mulher inclui violência física, sexual e psicológica:

1. que tenha ocorrido dentro da família ou unidade doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou haja convivido no mesmo domicílio que a mulher e que compreende, entre outros, estupro, violação, maus-tratos e abuso sexual:

2. que tenha ocorrido na comunidade e seja perpetrada por qualquer pessoa e que compreende, entre outros, violação, abuso sexual, tortura, maus tratos de pessoas, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no lugar de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimentos de saúde ou qualquer outro lugar, e

3. que seja perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra (OEA, 1994).

 O reconhecimento da mulher como detentora de direitos e garantias fundamentais, demonstra que rompeu um preconceito milenar mundial, ocorrido praticamente em todas as religiões e comunidades existentes nas quais a identificava como inferior em relação ao gênero masculino.

Estigma que ainda permanece enraizado historicamente em muitas culturas estejam elas localizadas tanto no lado Oriental como no Ocidental. No Brasil a violência contra a mulher ocorrida no âmbito privado é tão devastadora que chega a alarmar, principalmente em relação aos números que chegam a ser informados, vale salientar, quando registrados.

 O silêncio das vítimas ainda é o grande vilão social para erradicação ou pelo menos para a sua diminuição, já que a inviolabilidade do lar é garantia constitucional que termina assegurando aos agressores vasto amparo legal e largo terreno para continuar delinquindo.

E fato ainda mais grave ocorre quando a violência chega ao conhecimento do Estado, e este permanece omisso em sua obrigação legal de prevenir, investigar e punir tais violações. O Brasil, neste sentido, conseguiu um feito histórico, negativamente falando, o de ser o primeiro país a ser condenado no âmbito do sistema regional de direitos humanos num caso de violência doméstica, qual seja o de Maria da Penha[16], conforme nos faz assimilar Piovesan (2012).

Caso emblemático que fez nascer a Lei n. 11.340/2006, ao qual foi batizada pelo seu nome. Insta ressaltar que o valor da indenização pecuniária recebido pela vítima deste caso demonstra o quanto à dignidade da pessoa humana neste País é relegada tanto no âmbito da responsabilidade civil quanto da penal.

3.3 A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL – 1988.

 A fase ditatorial vivida pela Nação brasileira no período ocorrido entre 1964 e 1984 foi a mais autoritária e violenta desde seu início como República. Momento em que direitos fundamentais foram supridos da sociedade e o delito de tortura era comumente empregado para impor terror a qualquer cidadão. Entretanto, vários atos populares ocorreram fazendo com que a sociedade se reunisse e clamasse pelo retorno da democracia.

 A pressão popular foi tamanha que os representantes políticos não tiveram outra saída a não ser atender o anseio social e eleger uma Assembleia Constituinte, destinada a produzir o texto, segundo qual foi denominado Nova República, conforme relembra Silva (2008, p. 88): “[...] a Nova República, que haveria de ser democrática e social, a concretizar-se pela Constituição que seria elaborada pela Assembleia Nacional Constituinte, livre e soberana [...]”.

Sob a luz dessa nova energia, elabora-se o texto constitucional com intuito de inaugurar uma nova fase político social-democrática no Brasil, qual seja Estado Democrático de Direitos, que ao ser concluído foi saudado com o nome de Constituição Cidadã[17], segundo Silva (2008, p. 90) foi batizada: “porque teve ampla participação popular em sua elaboração e especialmente porque se volta decididamente para a plena realização da cidadania”.

 Dessa forma, vários direitos foram elencados naquele significativo documento, mais precisamente um, o crime de tortura que, de forma muito especial, os legisladores constituintes pioneiramente elevaram ao âmbito constitucional, inclusive blindando-o como cláusula pétrea, segundo Cunha (2007) são cláusulas que correspondem a um núcleo de normas insuscetíveis de serem alteradas.

Assim, o referido delito localiza-se no artigo 5º, incisos III e XLIII da CRFB/1988, que assim o define:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

[...]

XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem (BRASIL, 1988).

 Portanto, apreende-se desse conteúdo que, além da igualdade de todos perante a lei, independentemente da condição social, econômica, escolaridade, cor, gênero, idade, escolha da identidade sexual; enfim, todos têm os mesmos direitos pelo mais importante ali elencado, qual seja dignidade da pessoa humana, no qual todos os outros princípios convergem. Ademais, são crimes de lesa-humanidade e, deste modo, prevê que são inafiançáveis e insuscetíveis de qualquer benefício pela sua gravidade e lesão.

 Mas, apesar de toda a ênfase do texto constitucional, a verdade é que a prática desse crime é fato corriqueiro no Brasil, principalmente nas dependências públicas, locais que deveriam ser assegurados exatamente o contrário. E pior, por agentes públicos que deveriam respeitar e proteger tais vítimas.

Cabe à sociedade como um todo vigiar, exigir esclarecimentos e informações de como esses agentes procede em seus interrogatórios ou nas formas de obtenção dessas confissões, ou ainda, como se provém à averiguação desses supostos delitos imputados a essas vítimas. Enfim, fazer um acompanhamento da legitimidade e ética pautadas nas condutas desses agentes.

 E, por conseguinte, o estado Brasileiro punir de forma exemplar para que não ocorra a complacência entre os Poderes Judiciário e Executivo nessas averiguações e julgamentos com sentenças que sempre atenuam suas penas, diante de uma sociedade completamente passiva, conforme assegura Jesus (2010).

3.3.1 A LEI DO CRIME DE TORTURA N. 9.455/1997

 Apesar de todo o esforço do Poder Constituinte em criminalizar a prática da tortura na Carta Magna, os legisladores infraconstitucionais, de forma contrária, só a tipificaram como um ilícito penal autônomo em 1997, ou seja, nove anos depois.

Esse lapso temporal foi bastante prejudicial para as vítimas e, por outro lado, demais benéfica para os agentes torturadores, pois foram apenados por outros tipos de crimes, como por exemplo: lesão corporal, maus-tratos e abuso de autoridade, que têm penas em abstratos bem mais leves, adverte Piovesan (2012).

 Ademais, para o próprio estado Brasileiro essa inércia legislativa foi, porque não dizer, bastante satisfatória já que o instituto da responsabilidade civil não seria, nestes casos, acionado pelas famílias, e nem responderia perante a Corte Internacional, sobre a violação dos tratados por ele ratificados.

Assim, após sua entrada em vigor, a Lei 9.455/97 recebeu pontuais observações dos estudiosos do direito por causa do conceito, da denominação do agente ativo, bem como, em relação à restrição quanto à discriminação racial e religiosa, entre outras.

Em que pese todas as críticas, ninguém contesta que constitui o principal instrumento de combate à tortura na jurisdição brasileira. Far-se-á, portanto, uma breve análise dessas principais diferenças.

Art. 1º Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

[...]

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.

§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.

[...]

§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:

I - se o crime é cometido por agente público;

[...]

§ 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada (BRASIL, 1997).

 Quanto às observações, no que se refere ao tipo incriminador, à lei promulgada no Brasil em relação aos tratados internacionais considerou como crime comum e não próprio.

Desta forma, qualquer pessoa pode cometer o crime de tortura e não apenas os agentes do Estado. Neste caso será motivo de causa de aumento de pena ser tal ilícito cometido por um funcionário público, tendo ainda como punição administrativa a perda do cargo público, ou ainda, ser classificado para outros tipos mais brandos, conforme palavras de Jesus (2010):

[...] é a possibilidade do crime de tortura ser classificado para outros tipos penais, mais comumente a imputação para o delito dos maus-tratos, lesão corporal ou abuso de autoridade, o que atenua a pena (JESUS, 2010, p. 59).

 Outra consequência é trazida por Maia (2006):

Têm sido frequentes casos de alegação de tortura, praticados por padrastos e madrastas, companheiros e companheiras de mães e pais de crianças, sobre enteados e enteadas, ou mesmo sobrinhos ou sobrinhas, de quem têm a guarda de fato (MAIA, 2006, p. 217).

 Em que pese às observações elencadas acima, para o perfil social brasileiro, o legislador infraconstitucional adequou bem os agentes e as vítimas desse delito, principalmente os cometidos contra as mulheres e crianças no âmbito doméstico.

 Destarte, conforme análise de estudo de caso, demonstrar-se-á que o exercício da tortura no Brasil é mais comum do que se imagina, principalmente pela benevolência do silêncio nos lares. Ademais, continua Jesus: (2010, p. 61, grifos da autora) “o legislador optou por construir um tipo penal aberto, cuja definição depende do intérprete da lei”.

Outra ressalva diz respeito à criação da norma em branco, pois segundo Nascimento (2009, p.59) se refere aquelas: “[...] cujo preceito primário exige uma complementação, com vistas a tornar compreensível a descrição típica e o seu próprio âmbito de aplicação”. Assim, ao não especificar o que vem a ser a prática da tortura e deixar para o magistrado tal tarefa, entendeu que havia necessidade daquele em proceder com uma análise mais profunda em cada caso.

 Entretanto, a doutrina não é pacífica em relação a esse tema e faz algumas objeções, como a da obra da autora Jesus (2010), segundo a qual se caracteriza pelo espírito subjetivo e ânimo que o intérprete dará na análise de cada caso. O que para ela abre-se uma possibilidade do mesmo confundir os casos de violência meramente doméstica ou de vingança, por exemplo, com a prática do tipo incriminador em apreço.

 A interpretação e comparação entre a lei editada no Brasil e os instrumentos internacionais merecem ainda alguns destaques, pois aquela é mais restrita que estes, já que se limita a tratar apenas sobre a discriminação racial e religiosa; enquanto que a Declaração (ONU, 1948) trata sobre discriminação de forma mais ampla, seja ela cometida sob qualquer natureza.

A sociedade brasileira é composta por minorias que aos poucos conseguem entender a necessidade de lutar para terem seus direitos respeitados, e entre elas aparecem os homossexuais que são bastante marginalizados. Assim, Piovesan tem alertado que (2012, p. 278): “Note-se, por exemplo, que no País há elevado número de denúncias envolvendo discriminação por orientação sexual das vítimas”.

 Em que pese todo o embate sobre a interpretação, seja ela sobre a restrição ou ampliação do texto infraconstitucional em relação aos documentos internacionais, para a sociedade brasileira a sua tipificação foi importante principalmente para reforçar a punibilidade do agente causador desse devastador crime.


4 O ESTUDO DE CASO

Em destaque, será abordado um caso emblemático ocorrido em 2005, da agricultora Severina Maria da Silva com 37 anos e cinco filhos menores, no município de Caruaru, Agreste de Pernambuco, cidade localizada a 140 km da capital Recife, que foi a Júri Popular por ter sido autora intelectual da morte de seu pai-marido.

Um caso que envolve inicialmente uma justiça seletiva, reinando entre seus operadores um alto grau de discriminação, além de uma total dissociação entre os que aplicam o Direito nas searas Penal e Processual Penal com a disciplina de Direitos Humanos.

Essa carência de conhecimento na aplicação e, por conseguinte, no reconhecimento de vítimas que têm direito a um julgamento justo, faz com que ocorram muitas iniquidades ou julgamentos tendenciosos e parciais, favorecendo apenas uma pequena parcela da sociedade.

Entretanto, no decorrer do processo haverá uma mudança na qual a própria sociedade, representada pelo corpo de jurados mudará esse perfil abordado.

4.1 UMA JUSTIÇA SELETIVA

No Brasil ainda há uma forte tendência de discriminação social e isso se reflete em vários setores da sociedade. No âmbito do Poder Judiciário esse fator é facilmente identificado, desde a forma da abordagem de um policial (militar ou civil) a uma pessoa que tenha como requisitos a pela negra, pobre, analfabeta, mulher, homossexual, criança, idoso, índio etc. Até no momento de seu julgamento, na mais alta e suprema Corte do País.

A pessoa a ser aqui estudada tem nome próprio Severina Maria da Silva, mas em vários momentos do processo é citada pela sua alcunha, qual seja, “Sivoneide”. Como se proferir seu nome e sobrenome elevassem o ser em apreço à condição de pessoa, o que para muitos não lhe cabe tal distinção. Lembrando que, “coisas” é que têm apenas apelido e não sobrenome.

Afinal ao nascer, preencheu todos os requisitos ao qual lhe faz não ter direito à lei, que supostamente escolheu e ajudou criar, quais sejam: pele parda, pobre, analfabeta, mulher e ainda por cima premeditou a morte de seu próprio pai. Vale a pena ressaltar, que esse pai lhe imputou como condição a obrigação de ser seu marido.

O fato, um suposto latrocínio, ocorrido em 15 de novembro de 2005, por volta das 11h30min no Sítio Rafael, distrito de Caruaru-PE, conforme Boletim de Ocorrência sob o n. 2784/2005, que assim descreve o fato:

Tratava-se de um latrocínio, cuja vítima, já qualificada, vestia calça e cinto cremes, sem camisa, o qual fora assassinado com 07 (sete) facadas. [...] dois elementos entraram na residência da vítima [...]; E ainda: [...] acrescenta a esposa da vítima que pediu para os elementos pegaram o dinheiro – cerca de R$ 800,00 (oitocentos reais) – e poupassem seu esposo [...] (PE, 2005, p. 03).

Já na primeira versão oferecida pela esposa-filha, Severina, ainda na fase inquisitorial do procedimento, começa seu Interrogatório na 89ª Circunscrição Policial de Caruaru – PE, afirmando que a vítima era seu pai biológico, entretanto, era molestada desde seus 09 (nove) anos de idade e tivera com ele 12 (doze) filhos, destes apenas 05 (cinco) sobreviveram.

Informa ainda que quando contou para a mãe, a mesma retirou-a do local onde dormia que se encontrava perto da irmã, no chão, e levara para dormir na mesma cama deles, fazendo-a manter relações sexuais ali, com seu próprio pai.

Explica que o pai era uma pessoa violenta e ignorante e que ao completar 21 (vinte e um) anos de idade sua mãe foi expulsa de casa por ele, e ela passou a ser obrigada a ser sua mulher dali por diante. Declara que o pai não tinha uma convivência social salutar, tratando a todos com ignorância, e não permitiu que nenhum dos filhos-netos viesse estudar, e ainda:

[...] a [sic] mais de 08 (oito) anos atrás [sic] chegou a prestar queixa contra seu pai-marido por espancamento, pelo fato da interrogada ter viajado para a cidade de Santa Cruz para pedir esmolas e quando retornou seu pai-marido teve um acesso de ciúmes e espancou a interrogada e ainda a ameaçou de matá-la se ela prestasse queixa do mesmo e mesmo sob essa ameaça a interrogada foi até uma delegacia desta cidade (antiga 2ª Delegacia) e o processo começou a ‘correr’, porém seu pai-marido ‘colocou’ um advogado no caso e resolveu a situação, tendo ido buscar à força a interrogada que encontrava-se na casa da mãe [...] (PE, 2005, p. 09).

Percebe-se, desde o início de seu interrogatório, em suas primeiras palavras a necessidade de explicar a situação na qual vivia diariamente, qual seja, intensa pressão psicológica e espancamentos diários, bem como em total miséria, além de viver sob cárcere privado em sua própria residência e, além disso:

[...] era constantemente ameaçada de morte por seu pai-marido, que sempre a espancava com cabo de enxada e também tentando asfixiá-la apertando-lhe a garganta e isso tudo se dava na frente dos filhos que viviam assustados com a brutalidade do pai (avô) [...] (PE, 2005, p. 09).

Severina tenta, mais uma vez, pedir ajuda ao Estado, mesmo tendo consciência do porque de estar ali, que é prestar um depoimento e, vale salientar, começa não relatando o que ali por último aconteceu, mas ao contrário, o que ali diariamente acontecia desde os seus nove anos de idade.

Mostra, pela segunda vez, a sua posição de vítima que na realidade era, fazendo perceber, ainda nesse relato, que após vários anos tentando se livrar desse mal, não conseguira executar com as próprias mãos, talvez por não reunir tal coragem. Afinal e apesar de tudo, aquele homem era o seu pai biológico.

 O conflito era latente, mas o instinto e o amor maternos que nutria pela filha, Antonia, foram mais fortes e, por consequência, fatores decisivos para a oportunidade que tivera na escolha do desafeto de seu pai-marido. E assim, com a ajuda de uma terceira pessoa propôs:

[...] entregar tal dinheiro ao GALEGO acaso ele forjasse um assalto na casa e tirasse a vida da vítima [...] no caso genitor-marido [...] e também a interrogada se veria livre dos mau-tratos [sic] e ameaças de morte sofridas constantemente; E prossegue: [...] por ser judiada e espancada demais, há muito tempo vinha tendo a idéia [sic] de se ‘livrar’ da vítima (pai-marido) e quando percebeu que o GALEGO poderia executar tal feito aproveitou a oportunidade [...] (PE, 2005, p. 09).

Demonstra, talvez pela religiosidade que as pessoas do interior têm que, apesar de toda a angústia, mesmo assim, não conseguiu ela mesma ceifar o pai. Figura que muitos têm como herói, como referência, segurança emocional e material.

Para ela, porém, significou a decepção, o medo, a raiva, a revolta, o pavor. Tudo aquilo que em sua consciência e também no fundo do seu ser quisesse se ver livre. Tentou até as últimas e só obteve através de um terceiro, aquilo que por suas próprias mãos talvez não conseguisse.

 Mesmo com o exposto acima, o Delegado, com toda a sua “experiência”, bem como a devida acuidade que prestou ao caso, relata em sua Representação encaminhada ao MM Juízo, à forma como já prejulgara os fatos e, assim descreve, como ele próprio aduz: “A concatenação de todo planejamento do hediondo delito” (PE, 2005, p. 27), e mesmo assim requer:

Analisadas as circunstâncias relatadas e tendo em vista as nuanças esclarecedoras do hediondo crime ante a necessidade da conclusão das investigações, com imperiosidade mormente de se preservar a integridade física de testemunhas, além da garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, representamos a V. Exª., no sentido de ser, com fulcro nos artigos 311 e 312 do CPP, decretada a prisão preventiva de SEVERINA MARIA DA SILVA [...] (PE, 2005, p. 28, grifos nossos).

 Desde o início, se percebe na análise do processo que os operadores ao aplicarem o Direito tanto no âmbito policial como no judicial, vale frisar, neste último, apenas inicialmente, não analisaram com acuidade o relato de Severina. Sequer olharam e identificaram ali uma pessoa, que poderia ser a real vítima das circunstâncias que ensejaram o crime.

Há a necessidade de se fazer uma reflexão mais apurada para verificar se isso ocorreu pela característica que o direito Penal e Processual Penal apresenta, qual seja o de ser realizado sob a ótica da Teoria do Delito. Essa reflexão tornar-se importante porque tal fato restringe a análise dos operadores e determina a realização de um corte na averiguação do fato, renegando o exame da situação como um todo.

 Segundo os doutrinadores Zaffaroni e Pierangeli (2006, p.331) essa teoria (Delito) ilustra: “[...] a parte da ciência do direito penal que se ocupa de explicar o que é o delito em geral, isto é, quais são as características que deve ter qualquer delito”. Assim, os elementos que compõem o delito em seu caráter genérico é a conduta, e em seu caráter especifico, são três quais sejam: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Esse assunto será explicitado mais adiante.

 Destarte, o respeito a esse procedimento de forma tão radical termina sendo arriscado, podendo até ser considerado em alguns casos injusto, pois, a linha que separa esse procedimento e a aplicação dos direitos humanos é tênue e, portanto, deixando o operador totalmente insensível para quem está do outro lado do fato.

E a consequência de tal análise e exemplo é que as pessoas envolvidas nos tipos incriminadores tornam-se, na medida em que se multiplicam apenas um número, qual seja o do processo criminal. Mais um, dentre tantos que se têm com relatos similares, ou seja, uma daquelas que se enquadra como não merecedora e, por conseguinte, não digna ao acesso à lei, de forma ampla.

Isso, obvio, tendo como apreciação não só das searas penal e processual penal, mas também a de direitos humanos. Dentro de uma visão e análise de que o Direito é um sistema todo interligado por princípios e regras.

 O resultado do acima abordado foi a de uma mulher, Severina, que apresenta seguintes características: estatura mediana, magra, primária, analfabeta, com endereço fixo, mãe de cinco filhos menores e ainda ser qualificada, prima facie, de alta periculosidade social, ensejando com isso o requerimento da prisão preventiva, a fim de preservar a garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal e assegurar a aplicação da lei penal?!

 Chega-se a fase judicial e como não poderia deixar de ocorrer dentro desse contexto analítico do devido processo legal, o MM. Juiz defere a Representação e decreta a prisão preventiva de Severina, nos exatos termos argumentados pela autoridade policial, em seu inquérito policial, e ainda complementa:

[...] aderindo ao plano e viabilizando-lhe o desfecho por ela desejado, assim delineado, traça seguro norte de que sua liberdade compromete a instrução criminal e a ordem pública. A indiciada virago era filha da vítima, mas mesmo assim, e em completo menosprezo a todo e qualquer costume social [...] (PE, 2005, p. 30).

 Portanto, ratifica-se com esse relato o que aqui vem sendo demonstrado, em vez de estudar o que até então tinha em mãos, resolveu encurtar o caminho e prosseguir com análise superficial realizada pelo outro operador e julgar conforme o número que ali se apresentava.

4.2 O CAMINHO PERCORRIDO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO

 Conforme revelado acima, logo em seu primeiro depoimento, perante a autoridade policial, Severina já expos seu drama. Ainda que de forma incompleta e, portanto, sem se aprofundar na exposição de seus traumas.

Mas o fato é que naquele momento e no decorrer desse procedimento o seu sofrimento permanecerá sem ser ouvido e sequer analisado como deveria. Caso os atores judiciais envolvidos respeitassem o que reza o artigo 1º inciso III da Constituição Federal vigente que determina como fundamento maior a “dignidade da pessoa humana”, ou ainda, considerassem os diversos tratados internacionais em que o Brasil é signatário, tornando-os efetivos, o seu desfecho poderia ter sido menos sofrido.

 Caracterizam-se, portanto, algumas violações de direitos humanos, mas talvez as duas mais significativas para as circunstâncias, quais sejam, a ignorância e o preconceito que fazem bloquear o sentimento maior idealizado pela justiça romana, na qual direciona a sua imagem caracterizada numa deusa, a Iustitia. Roma, por sua vez, apresentou sua imagem assim como tinha feito a Grécia, só com ideais distintos.

A Deusa Iustitia[18] traduz o juízo que deve ser praticado no momento em que os casos de conflitos sociais chegam ao conhecimento do Estado e este tem o poder-dever de dirimi-los. Ela apresenta-se com os olhos vendados, mas a venda não significa ser “míope” ou não querer enxergar o certo, ao contrário, caracteriza a imparcialidade da justiça, e que, ao final, se atribua a cada um que lhe cabe. Essa é a visão atual do Direito brasileiro.

Em relação à Grécia, sua imagem de justiça perfaz-se na Deusa Diké[19], que ao invés da romana, tinha os dois olhos abertos. Segundo entendimento de Ferraz Júnior (2007, p.33), eles representavam: “[...] os dois sentidos mais intelectuais para os antigos eram a visão e audição”. Esse fator visto por muitos como um retrocesso, talvez, quem sabe, tivesse beneficiado a “ré”, Severina.

 A Carta Magna de 1988 inaugura a tutela dos direitos metaindividuais, os assim chamados direitos difusos e coletivos. Com isso, a sociedade brasileira tem à sua disposição uma instituição que exerce várias funções, entre elas, a de fiscal da lei, bem como a de defesa desses direitos, de forma a agir sempre com imparcialidade. Sendo ainda, conforme enumera o texto constitucional, uma: “[...] instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127, caput, CRFB/88).

 No caso dos direitos humanos essa instituição é de vital importância para a interpretação que faz da Constituição Federal e dos Tratados Internacionais nos quais o Brasil é signatário. Principalmente no que se refere aos que versam sobre tais direitos, através do controle de convencionalidade, nos quais sempre deverão ter maior prevalência que as leis infraconstitucionais.

Serve, portanto, com o intuito de agenciar a defesa da ordem jurídica e do estado democrático de direito. Outro fator importante nas atribuições do parquet é o de trabalhar em defesa dos que se revelam mais fracos, proporcionando numa balança imaginária, a equiparação dos pesos que se encontram em conflito, que nas palavras de Arruda (2011, p.35): “[...] saiu do patamar de mero fiscalizador da lei, para ser verdadeiro guardião do direito”.

 Mediante o exposto, o representante do Ministério Público apresenta a Denúncia ao Estado-Juiz com fulcro no artigo 121, § 2º, incisos I e IV do Código Penal vigente[20], e fundamenta utilizando os seguintes argumentos, voltados para a pessoa que ali sofreu por anos, que ao conseguir denunciar seu pai-algoz, não foi bem interpretada:

Consta nos autos que o ofendido era genitor e, ao mesmo tempo, companheiro da primeira acusada. Esta, segundo afirma, fora por ele violentada sexualmente aos nove anos de idade e, a partir de então, estabeleceu-se entre ambos uma relação incestuosa da qual nasceram doze filhos, alguns deles vivos, com problemas mentais e sobrevivendo em meio à miséria. Ele era uma pessoa violenta e a espancava constantemente (PE, 2005, p. 118).

 Baseando-se nos fatos ali transcritos, o representante do parquet cumpre sua função e apresenta a Denúncia como titular da Ação Penal Pública Incondicionada para começar a análise do caso de Severina e tudo o mais que envolve aquele intrigante processo.

 Destarte, ao receber a Denúncia o Estado-Juiz determina a Audiência de Interrogatório, e mais uma vez Severina tenta explicar tudo o que havia passado em todos aqueles anos. Desta vez na íntegra, com toda a crueldade que a vida lhe fez passar nas mãos daqueles que deveriam, a princípio protegê-la, orientá-la, educá-la. E assim começa:

 [...] quando a depoente tinha 9 anos de idade, em um dia em que foi sozinha para o roçado com seu genitor, este no retorno, tirou a camisa, deitou a depoente em um lajeiro e colocou a camisa em sua boca, tampando-a, e forçou relação sexual com a depoente; no que a depoente esperneou, a vítima destes autos, tirou a faca que trazia para sangrar a depoente, atingindo-a na perna; que o genitor da depoente rasgou a camisa e amarrou parte na perna da depoente tampando o sangramento, e tentou novamente manter relação sexual com a depoente, novamente sem conseguir [...]; E prossegue: [...] à noite a depoente se encontrava dormindo no chão, junto com suas irmãs, quando o seu genitor contou para a mãe da depoente, o fato ocorrido, e a mãe da depoente foi buscá-la, colocando-a no meio da cama, dobrando um lençol e tampando a boca dela depoente, e ainda auxiliando na abertura das pernas da depoente para que o genitor da depoente pudesse completar a relação sexual; que a partir daquela data a depoente passou a manter relações sexuais com o pai, pelo menos três vezes por semana [...] (PE, 2005, p. 127, grifos nossos).

 Mesmo com toda a força dessas palavras, em nenhum momento por esse MM. Juiz teve Severina o reconhecimento de que apesar das circunstâncias da morte do pai-marido, também fora vítima dele em vários crimes durante todo o tempo. Até porque fora estuprada dos nove aos catorze anos de idade e vivia sob eterna pressão psicológica do pai, até acontecer aquele desfecho lamentável.

Ademais, sequer a benevolência de ver sua dignidade como pessoa ser ponderada e, por conseguinte, ter sua preventiva revogada, não conseguira. Já que à época do fato, lá no início, era menor.

Portanto, efetuando uma rápida análise objetiva e legal na qual ocorrera o crime (estupro) previsto na antiga redação do artigo 213[21] cumulado com o artigo 224[22], ambos do Código Penal, segundo qual rezava como presunção absoluta de violência, por ser menor de quatorze anos. Logo, teve sua infância totalmente violada, bem como a sua vida como um todo, até ocorrer o desfecho final.

Mas hei que teve outro grande e perturbador fator, talvez aquele determinante e que a fez agir, mesmo sob todos os dilemas e conflitos que se imagina uma filha tenha para com um pai, quando concretiza:

[...] a depoente percebeu que a sua filha Antonia, que também é filha de seu genitor, estava com o corpo reformando, saindo os seios, e que o genitor da depoente, pai e avô da menor, estava comentando a reforma da mesma e procurando apalpar-lhe os seios, demonstrando intenção de manter relações com a filha e neta Antonia; que a vizinha da depoente, de nome Zezita, certa vez, comentou para a depoente, que havia visto a vítima destes autos, apalpando a menina, Antonia, na área da casa [...] (PE, 2005, p. 128, grifos nossos).

 Imagina-se, nesse momento, que conflito Severina não teve mais uma vez de conviver e sozinha resolver? Que dilema não foi enfrentar entre escolher matar o pai ou concorrer em ter a mesma atitude que sua mãe tivera com ela? Até que ponto teria ela a capacidade de se autodeterminar nesse momento?

Segundo os mestres Zaffaroni e Pierangeli (2006), o elemento culpabilidade é graduável, dentro do conceito do delito, podendo, dependendo das circunstâncias em que aquele ocorreu, ser aquela (culpabilidade) “esvaziada” em seu conteúdo. Assim, com suas palavras:

[...] para reprovar uma conduta ao seu autor (isto é, para que haja culpabilidade), requer-se que este tenha tido a possibilidade exigível de compreender a antijuridicidade de sua conduta, e que tenha atuado dentro de um certo âmbito de autodeterminação, mais ou menos amplo, ou seja, que não tenha estado em uma pura escolha. Estes dois pilares da reprovação jurídica dão um conteúdo certo e difícil ao capítulo da culpabilidade, desautorizando a imputação de “esvaziamento” do conceito (ZAFFARONI, PIERANGELI, 2006, p. 521, grifos nossos).

Fazendo-se uma reflexão sobre essa explicação, fica difícil imputar um crime a uma pessoa que, estando sob forte pressão psicológica diariamente, lhe fosse quase impossível exigir o reconhecimento da “vontade-livre” de cometer tal ato. Ou seja, a consciência totalmente desimpedida para agir querendo tal resultado.

Afinal, Severina se encontrava numa bifurcação: ou permitia que o pai-marido cometesse os mesmos crimes que cometeu nela em sua filha Antonia, de apenas 11 (onze) anos de idade, ou então, agiria conforme seu instinto maternal determinava.

Dando continuidade aos ensinamentos dos mestres acima citados:

Quando os limites da autodeterminação se encontram tão reduzidos que só resta a possibilidade física, mas o nível de autodeterminação é tão baixo que não permite a sua revelação para os efeitos da exigibilidade desta possibilidade, estaremos diante de uma hipótese de inculpabilidade (ZAFFARONI, PIERANGELI, 2006, p. 521).

 Deste modo, como exigir a capacidade de autodeterminação a uma pessoa que naquele contexto sofria semelhante pressão psicológica, conforme provam suas palavras ainda em depoimento: “[...] o genitor da depoente disse que se a depoente impedisse que ele mantivesse relações com a filha Antônia, mataria a depoente, no que chegou a comprar uma peixeira de 12 polegadas [...]” (PE, 2005, p. 128).

 Mas, mesmo assim, o operador em âmbito judicial não se sensibilizou, quem sabe talvez nem considerasse ou enxergasse ali uma pessoa, que teve sua vida destruída e que estava vendo a vida da filha trilhar o mesmo caminho que a dela.

E, neste momento, indaga-se: onde se encontram e para que sirvam os estudos sobre direitos humanos nas academias. Qual a finalidade de ser signatário de vários tratados internacionais. E exatamente por que, a Constituição Federal de 1988 elegeu como princípio maior a dignidade da pessoa humana se, em sua aplicação, eles não são nem lembrados.

 Ora, foi analisando essa pressão psicológica sofrida por Severina, que o Ministério Público começa a refazer os passos que ela precisou percorrer até chegar nesse dia, verificando inclusive a possível omissão do Estado, conforme ela mesma relatara, dando sequência em seu interrogatório perante aquele Juízo, ao assim aduzir:

[...] há 08 anos atrás [sic] a depoente deu parte do seu genitor, pois este a espancou, correndo de madrugada e conseguindo chegar a 2ª. Delegacia de Caruaru, onde prestou a queixa, onde foi entrevistada pela TV Asa Branca, que filmou a depoente e seus filhos[...]; [...] que a depoente acatando determinação de um policial militar, voltou a residir na casa de seu genitor e companheiro [...] (PE, 2005, p. 129, grifos nossos).

 Mesmo com todo esse relato, Severina permanece em prisão preventiva e seus cinco filhos com sua tia de oitenta anos. Em 28 de abril de 2006, após 162 dias presa, o então Defensor Público que atua no caso, patrono de Severina, chega a requerer a revogação de sua prisão, principalmente fundamentando ponto a ponto os motivos ensejadores que a levou a tanto.

Quanto ao fato de mostrar-se pertinente, como medida assecuratória da instrução criminal e zelosa para com a ordem pública, alega que:

[...] as testemunhas já foram inquiridas e a instrução processual encontra-se praticamente concluída. Já em razão do periculum libertatis do acusado, esclarece que Severina [...] além de exercer a atividade de agricultora, também administra sua casa, contando com sete (7) [sic] filhos [...]. Por fim, quanto a garantia da ordem pública, ratifica que [...] é genitora de sete filhos, havendo notícias que estão em creches, e assim desacompanhados do aconchego materno [...] (PE, 2005, p.151).

 Em respeito ao procedimento legal, o então magistrado solicita o parecer do Ministério Público, que de forma racional e humana assim defere tal pleito:

Analisando o pleito elaborado em prol da requerente, vê-se que, de fato, assiste razão à defesa, haja vista que in casu não se tem nos autos demonstração do periculum in mora. Ademais [...] o MM Juiz, ressaltando a gravidade do delito, apontou como fundamentos para a decretação da prisão o asseguramento da instrução criminal, bem como a garantia da ordem pública. [...] verifica-se, igualmente, do presente caderno processual que a ré é primária, não possui antecedentes criminais, conforme mostra a certidão de fls. 85, e tem endereço nos autos. E ainda: [...] há que se considerar que a processada vem contribuindo para a elucidação dos fatos – uma vez que confessou o delito que lhe é imputado, não se podendo desprezar a circunstância de haver nos autos fortes indícios da contribuição da vítima para o desencadeamento do evento delitógeno (PE, 2005, p. 160, grifos nossos).

Foi nesse parecer que ocorreu uma análise mais aprofundada sobre a situação que Severina vivia em seu próprio âmbito familiar. Quando então é vista como pessoa, como sujeito passivo daquele caso.

Começa o difícil caminho que percorrerá os membros do Ministério Público para provar que, naquele caso específico, havia uma vítima maior. Que o olhar do Estado-Juiz tinha que ser “invertido”, visualizado sob outro ponto de vista, outro ângulo. Sob o qual a análise tinha que ser profunda e completa e os atos precisavam ser apurados não do ponto de partida ocorrido em 2005, mas de muito antes, ou seja, retroceder 28 anos no tempo.

Assim, para melhor ilustrar todo o drama ali vivido, é suficiente fazer uma conta aritmética de multiplicação básica, qual seja 28 (vinte e oito) anos versus 03 (três) relações por semana; prevendo que o ano tem 52 (cinquenta e duas) semanas em média, isso quer dizer que foram 4.368 (quatro mil, trezentas e sessenta e oito) vezes, obrigada a ter relações sexuais - lembrando que parte delas a lei considerara verdadeiro estupro - ao longo de sua vida com seu próprio pai. Sem contar as diversas vezes em que sofreu agressões físicas, moral e psicológica.

 Como dito acima, a conta matemática é fácil, pois se aprende ainda no ensino fundamental, mas nem essa possibilidade foi conjecturada pelo então magistrado, a fim de se pronunciar, amparado pelos tantos tratados internacionais que versam sobre os direitos humanos.

 Acabou optando em proferir um despacho informando que: “[...]se pronunciaria sobre tal pedido após a audiência de oitiva das testemunhas de defesa” (PE, 2005, p. 168). E assim, manteve a medida cautelar, não colocando Severina em liberdade provisória até seu julgamento.

 Há, como se percebe, um distanciamento entre uma visão voltada aos direitos humanos (pedagogicamente falando) e os procedimentos formais exigidos no Código de Processo Penal. Essa “proteção confortável”, assegurada pela lei, faz gerar um operador de direito mais passivo, menos atuante e, consequentemente, mais omisso em seu dever precípuo que é o de voltar-se a análise do princípio maior, assegurado constitucionalmente, qual seja o da dignidade da pessoa humana.

 As testemunhas foram ouvidas e, em sua maioria, informa que: “[...] já haviam ouvido falar que a vítima dos autos batia na acusada. Que ela ainda era esposa e mãe de seus filhos” (PE, 2005, p.170). Eis que em seu despacho o MM. Juiz, mesmo com todos os indícios e já tendo o parecer favorável do MP e das testemunhas, resolve indeferir o pedido de revogação da prisão preventiva, fundamentando sua decisão interlocutória nos seguintes agravantes:

Não cabe a este Juízo, no momento, analisar a participação ou não da acusada no crime – vez que tal fato já restou esclarecido com a própria confissão da mesma e com os depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pelo Ministério Público – mas tão somente a necessidade ou não da permanência da denunciada segregada.” “Não há dúvida de que os fatos imputados a acusada revestem-se de extrema gravidade. E prossegue: [...] Desta forma temos a necessidade de se preservar a credibilidade do Estado e da Justiça em face da intranquilidade que os crimes desta natureza geram na comunidade. E, além do que: [...] Diante do exposto, não vislumbrando qualquer modificação nos autos que enseje a revogação de prisão cautelar [...]; Assim: [...]INDEFIRO O PEDIDO DE REVOGAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA [...] (PE, 2005, p.178 grifos nossos).

 Já havia nessa época uma severa crítica da doutrina sobre a mantença da medida cautelar amparada no fundamento da “garantia da ordem pública”, previsto na antiga redação do art. 312[23] cumulado com o Parágrafo Único do art. 310[24], ambos do CPP, que poderia ser utilizado de forma análoga e conceder a liberdade provisória a Severina. Posto que, segundo o doutrinador Avena (2009, p. 881) “[...] deve ser admitida a prisão preventiva em hipóteses de real e inequívoco abalo social provocado pela prática de crimes de extrema gravidade [...]”.

Portanto, nos casos em que não se configurassem tais realidades deveria ser deferida a liberdade provisória que, como no caso em tela, não houve abalo social nem a acusada era de altíssima periculosidade, e ainda, pudesse importar no desassossego social. E, mesmo assim, manteve-se a medida cautelar amparada nesses supostos requisitos.

 Os trabalhos da Defensoria Pública e do Ministério Público não esmorecem, ao contrário, o defensor público amparado no parecer da promotoria, impetra um Habeas Corpus cumulado com pedido de Concessão Liminar; e, com fulcro no constrangimento ilegal, em face do excesso de prazo, além da infundada custódia cautelar, requer a sua liberdade, nos seguintes termos:

[...] que meras conjecturas não servem de suporte para o decreto segregatório, aliando-se à náfega invocação de infração hedionda, bem ainda não se levando em consideração a primariedade, bons antecedentes, residência e atividade laboral reconhecidas, mãe de sete filhos [sic]; e assim descipiendo dizer-se que indemonstrado o periculum libertatis da paciente e dessa maneira patente o constrangimento ilegal que se impôs [...] (PE, 2005, p.192, grifos nossos).

 Em grau de recurso, sobe para julgamento no Tribunal de Justiça da Capital, em Recife, no qual é indeferido com seguinte fundamento:

Como sabido, a concessão de liminar em habeas corpus é medida de extrema exceção, não prevista em dispositivos legais, somente admissível pela doutrina e jurisprudência como forma de sanar ilegalidades insanáveis [...]; E prossegue: [...] Na hipótese em tela, o constrangimento não se mostra com a nitidez transmitida da inicial, estando a exigir um exame mais minucioso [...]; E, ademais: [...] Ante o exposto, indefiro a liminar pleiteada (PE, 2005, p.208, grifos nossos).

 A Ementa é publicada com seguinte teor: “[...] as alegadas condições favoráveis da paciente – primariedade, residência fixa, profissão definida e bons antecedentes – não são suficientes para obstar a providencia cautelar constritiva” (PE, 2005, p. 269).

 E o Acórdão no qual manteve a segregação de Severina é assim proferido: “[...] por decisão unânime, em denegar a ordem do presente habeas corpus [...]” (PE, 2005, p.269). Insatisfeito com o pedido de revogação da prisão de Severina, o então MM. Juiz, assim fundamenta sua decisão pela mantença da segregação de Severina como providência da preservação da ordem pública:

O delito de que se cuida chocou profundamente a comunidade. A mandante, como multiplamente noticiado nos autos, convivia maritalmente com o extinto, apesar de ser seu genitor. [...] seu combativo Defensor em traçar perfil violento da vítima, um sexagenário, sinaliza para uma futura sustentação de tese de inexigibilidade de conduta diversa, argumento assíduo nas tribunas do júri sempre que no banco dos réus se senta uma mulher. Sem qualquer incursão no mérito, por incabível, não se pode deixar de estranhar que alguém atravesse trajetória de vida que inclui a geração de numerosa prole (nada menos do que doze filhos), compartilhando o mesmo teto e leito com o próprio pai, e já no acaso da existência deste é que se dê por imersa em insuportáveis pressões ou ameaças. (PE, 2005, p.312, grifos nossos).

 Abstrai-se dessas palavras que o MM. Juiz exerceu um olhar tendencioso, apresentando um juízo de valor capaz de entrever um viés discriminatório e supostamente como se o genitor-marido estivesse sendo o “envolvido” sexualmente por Severina.

Essa inversão analítica da situação, na qual entrevê a manipulação ocorria por parte de Severina para com seu pai que, naquele momento, foi qualificado como um “sexagenário”, insinuando um comportamento que visa colocar o pai-avô-violador como sendo o “inocente” daquela história.

Afinal, não se pode escusar que esse “sexagenário”, por ele descrito, era um homem robusto que detinha além do poder patriarcal (com análise na essência da palavra), um desvio de personalidade com características de agressividade e violência.

Ademais, já havia demonstrado interesse em continuar cometendo os mesmos crimes (estupro, abuso sexual, agressões físicas e psíquicas, além de maus-tratos e cárcere privado etc) com sua filha-neta, Antônia. E, mesmo sob toda essa análise, ainda continua com seguintes fundamentos a sua indignada visão do caso.

 A crueldade das palavras acima demonstra o perfil de um operador de direito no âmbito do Poder Judiciário exercendo uma exacerbada parcialidade e pré-julgamento totalmente contrários aos ditames legais. Profissional que deve por obrigação assegurar a direção processual regida pela estrita legalidade sem comprometer a defesa nem a acusação.

 Ratifica-se o entendimento acima abordado (dissociação entre a aplicação de Direitos Humanos e as searas Penal e Processual Penal), nos quais deveriam estar interligados, já que o Direito Penal e uma parte do Processual Penal são direcionados às pessoas.

 E ainda complementa:

Teço tais considerações apenas para apontar o impacto que a prematura libertação [...]; [...] traria em seu bojo sobre a ordem pública. [...] O ofendido foi abatido no recesso do lar, por dois homens por menos da metade de sua idade, orquestrados e sob promessa de recompensa pela mandante (PE, 2005, p.312).

 Eis que o defensor público encarregado deste caso não se acanha, nem se abate com mais essa demonstração de insensibilidade no âmbito da Justiça. Talvez tenha nesse momento ganho mais força, pois postula um Recurso Ordinário, em sede do Habeas Corpus, mantendo o pedido em caráter de liminar, ratificando o: “[...] gritante excesso de prazo, DUZENTOS E CINQUENTA E UM DIAS de segregamento e, assim configurando constrangimento ilegal” (PE, 2006, p.234, grifos do autor).

 Com os mesmos fundamentos do Habeas Corpus anterior e consubstanciado no excesso de prazo, além do agravante de perceber que a segregação de Severina embasava-se apenas no inquérito policial, assim pleiteia nova revogação da prisão cautelar:

Registre-se que o decreto cautelar foi exarado, como já se disse, logo no início do inquérito policial, representação eivada de fatos aferidos de fogadilho, objetivando demonstrar à sociedade sem a devida aferição dos fatos. Os fatos vieram à tona na conclusão do inquérito policial e no curso da instrução criminal (PE, 2006, p.236, grifos nossos).

 Percebe-se nas palavras do aguerrido defensor, que houve além da forma precipitada da decretação da prisão preventiva de Severina, um suposto julgamento antecipado, ou talvez, uma carência mais humana na análise dos autos e fatos que envolviam aquela situação.

Aguarda-se que a Colenda Corte, após o prazo legal e consequente instrução pormenorizada das informações constantes na peça exordial, possa analisar, com um olhar mais atento e humano, o pedido de deferimento da cautelar.

Em 14 de novembro de 2006, passados quase um ano de segregação cautelar, enfim, Severina consegue por decisão unânime da Quinta Turma do STJ, a revogação de sua prisão preventiva (PE, 2006, p. 289).

No curso de um processo, como in casu, em que há um homicídio doloso, deve o representante de o Ministério Público apresentar Denúncia (ato que se inicia uma ação penal pública), por deter a titularidade da referida ação que, nesse exemplo, é incondicionada.

Vale salientar que mesmo apresentando a denúncia, não fica adstrito ao pleito condenatório, devendo atuar com imparcialidade, podendo inclusive requerer ao Plenário do Júri a absolvição do acusado; posto ser uma de suas funções, a de guerrear as violações aos direitos humanos e de democratizar o entendimento e utilização das normas previstas tanto na Carta Magna, como nos Tratados Internacionais que versam sobre esse tema, e assim, os fazer efetivar a quem de direito possa.

 Em que pese todo o exposto, o procedimento deve ser seguido e o magistrado em sua decisão deve julgar procedente ou não a denúncia, caso se convença da existência do crime e de indícios que o réu seja o seu autor, pronunciando os acusados.

O instituto da Pronúncia significa que o MM. Juiz dará prosseguimento no processo criminal para que os acusados possam ser julgados pelos seus pares, isto é, por um Tribunal de Júri Popular, conforme regia a antiga redação do art. 408 do Código de Processo Penal[25].

 Assim, determina o MM. Juiz: “Examinando-se toda a prova colacionada aos autos, encontro indícios suficientes para levar os réus ao julgamento perante o Tribunal Popular do Júri” (PE, 2005, p. 321).

4.3 A MOBILIZAÇÃO SOCIAL E O PEDIDO DE DESAFORAMENTO

 Ocorre a mobilização social quando um grupo de pessoas é despertado por alguma injustiça, ferramenta que une indivíduos por um mesmo ideal e que converge com a intenção de resolver uma questão na qual só aquele que detém o poder facilmente conseguiria.

Essa união gera um “peso” na contrabalança capaz de equalizar esse dito poder. Mas essa mobilização vai além, não deixa calar aquilo que muitos sabem, veem, mas fazem como se não existisse. A violência contra a mulher, no âmbito familiar, é fato gravíssimo e corriqueiro nos recônditos deste País, principalmente nos interiores.

Tudo começou quando um grupo de estudantes da Faculdade do Vale do Ipojuca – FAVIP trouxe para ser analisado em sala de aula o caso de Severina. Os acadêmicos de Direito se reuniram para constituir, às suas expensas, um advogado particular para efetuar no auxílio técnico junto ao representante da Defensoria Pública.

Esse fato gerou uma grande expectativa nesse meio, chegando ao tão contestado e discriminado programa do Cardinot, exibido pela TV Jornal, afiliada do SBT – Sistema Brasileiro de Televisão, em Pernambuco.

 O então jornalista comentou em seu programa, em 11 de novembro de 2008, por volta das 07h, que a verdadeira vítima era Severina, por ter sido estuprada por seu genitor desde quando tinha 09 anos de idade, não lhe havendo outra saída, senão a que empregou no caso.

Essa mobilização fez com que terceiras pessoas se organizassem para distribuir materiais impressos (panfletos) que explicavam a Lei Maria da Penha no momento em que ocorresse o julgamento em Plenário, conforme relata o representante do parquet em seu pedido de desaforamento (PE, 2008, p. 425).

 Uma das características daquele apresentador televisivo é fazer alertas, e um desses foi o de avisar que iria ficar acompanhando o caso, e que inclusive a população de Caruaru encontrava-se revoltada.

Esse fator, por mais simples possa parecer, foi decisivo para a fundamentação utilizada pelo Ministério Público em relação ao desaforamento, além da coesão pública voltada para absolvição de Severina. Afinal, esse meio de comunicação tem grande audiência, mas sofre severas críticas do meio acadêmico, por utilizar uma linguagem sem embasamento jurídico, muitas vezes do senso comum.

Todavia, neste caso, foi peça chave de suma importância por oferecer um olhar mais humano e digno àquela ao qual seria a real vítima, primeira pelos pais e depois pelo seu Estado de origem.

 O então promotor de justiça requer o desaforamento e assim fundamenta seu requerimento:

O caso ganhou imensa notoriedade na cidade de Caruaru, principalmente pelo fato de se tratar de um trágico desfecho de uma relação incestuosa que se perdurou por mais de vinte anos, isto contando apenas após a idade que a requerida ficou maior de dezoito anos de idade. O fato é que o [sic] meios de comunicação em geral alardeiam que a requerida é quem foi vítima de um bárbaro crime de estupro, que foi obrigada a manter relações sexuais com o seu genitor desde quando ainda era menor de quatorze anos de idade e assim fazem espraiar aos quatro cantos de Caruaru que não havia outra solução para a requerida senão a empregada no caso, qual seja o homicídio da vítima (PE, 2005, p.426, grifos nossos).

 Esse caso ganhou realmente notoriedade naquela Comarca, apesar do alto grau de religiosidade, amparado nos costumes católicos para as pessoas de municípios menores, principalmente do interior deste País. Mas a verdade é que o fato chocou a comunidade, gerando revolta e indignação pelas características e circunstâncias que o envolveram.

O ambiente familiar, envolto pela violência perpetrada a uma menor, durante tantos e tantos anos, bem como a omissão do Estado e, por fim, a nítida possibilidade da sequência de todos esses atos e fatos com uma segunda vítima, qual seja, Antônia, de apenas onze anos, à época.

Tudo isso fez asseverar as palavras no requerimento do promotor, que ainda alegou a influência que os jurados teriam recebido, já que são pessoas como todas as outras naquela cidade podendo agir com parcialidade, e assim:

 [...] que terceiras pessoas já estavam preparando movimento de distribuição de material referente à lei Maria da Penha para distribuir às pessoas que comparecerem à sessão do júri, ou seja, inclusive os jurados que sem qualquer distinção chegam ao fórum pelos portões destinados aos jurisdicionados (PE, 2005, p.426).

 E como não poderia deixar de reconhecer a audiência do programa televisivo supracitado, complementa: “[...] em virtude da repercussão que a imprensa promoveu, enfatize-se, em favor da ré, [...] o programa de televisão do Cardinô [sic], da TV Jornal, a expectativa é de um plenário lotado para assistir o julgamento de um ‘incesto’” (PE, 2005, p.427).

Além da mobilização no setor das comunicações, outro seguimento da sociedade também contribuiu para o desfecho do caso, pela consequência que àquele setor gerou, foi o meio acadêmico numa faculdade local, como dito acima.

Dando sequência, o promotor enfatiza suas palavras: “[...] espera-se também grande movimento dos estudantes universitários em favor da requerida, todos sob o enfoque da violência contra a mulher” (PE, 2005, p.427).

 Insta ressaltar que o pedido de desaforamento: “[...] consiste no deslocamento do julgamento pelo júri para Comarca distinta daquela onde tramitou o processo criminal”, declara o doutrinador Avena (2010, p.802).

E que se fundamenta nas seguintes hipóteses previstas nos artigos 427, caput, e 428, caput, ambos do Código de Processo Penal (BRASIL, 2012)[26], conforme assim delimita: interesse de ordem pública, gerado basicamente pela intranquilidade social; dúvida sobre a imparcialidade dos jurados, acaso exista um comoção social no sentido de uma tendência prévia do julgamento, podendo ainda ser pela segurança pessoal do réu e, por fim, o não aprazamento da data para o júri no prazo de até seis meses, fator que caracteriza excesso de trabalho na comarca.

 Portanto, conforme o exposto acima, o atento promotor requer o desaforamento daquele processo para outra Comarca, a fim de garantir a imparcialidade do julgamento pelos jurados e assegurar o interesse da ordem pública, como assim reduz a termo:

[...] não restando laivos de incerteza, quanto ao comprometimento da ordem pública para a consecução do julgamento em epígrafe nesta comarca, assim como, não havendo dúvida do comprometimento da imparcialidade dos jurados, e bastando para tanto que paire dúvidas, para proceder a um julgamento isento da ré, fazendo justiça no caso concreto [...] ; [...] requer o pedido de desaforamento. (PE, 2005, p.433).

 Dessa forma, segundo o Termo de Julgamento datado em 22 de abril de 2010, o processo de Severina é desaforado para a Comarca da Capital, Recife - PE, para ser julgado pelo órgão julgador da 3ª Câmara Criminal, que por unanimidade deferiu o pedido, passando a apresentar seguinte numeração: 0041053-61.2010.8.17.0001 (PE, 2010, p. 488).

 Após todo o trâmite processual legal necessário, para quando ocorre um desaforamento como in casu, sai em pauta o Termo de Designação para a realização do julgamento de Severina, datado para o dia 26 de maio de 2011, às nove horas, em Audiência de Sessão da 4ª Vara do Tribunal do Júri da Capital.

4.4 O DESFECHO DA VIDA DE SEVERINA

O princípio da dignidade da pessoa humana fundante da Constituição Federal vigente adotou a visão opositora ética kantiana de que todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas.

E, para não deixar de utilizar suas palavras na íntegra, o autor sintetiza tal pensamento na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos[27], através do qual, sabiamente classifica como: “[...] imperativo prático” orientando pedagogicamente a conduta do ser humano segundo qual “age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (2002, p.59).

E ainda, não estando totalmente seguro da postura retilínea que deveria seguir o ser humano, sedimenta assim a frase acima, o ilustre filósofo da antiga Prússia (1785):

[...] o homem - e, de uma maneira geral, todo ser racional - existe como um fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade [...]. E prossegue: [...] Os seres, cuja existência não assenta em nossa vontade, mas na natureza, têm, contudo, se são seres irracionais, um valor meramente relativo, como meios, e por isso denominam-se coisas, ao passo que os seres racionais denominam-se pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, ou seja, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, portanto, nessa medida, limita todo o arbítrio (KANT, 2002, p.58, grifos nossos).

 Inconcebível permitir que um pai se ache no direito de “apossar-se” da filha como fez o exemplo trazido nesses autos. Que alguém pratique a quantidade de violações humanas em outrem, como as que ele praticou sem ter nenhuma punição, quiçá impedimento.

A omissão familiar, social e estatal que ali juntas permitiram que esse fim trágico ocorresse é o que talvez de pior tenha existido e ocasionado tantas consequências graves, como os estupros ocorridos naquele ambiente, além das agressões físicas, morais e psicológicas sofridas por Severina; os filhos indesejados e com sequelas que foram gerados e, por fim, a morte do seu causador.

Tantos danos poderiam ter sido evitados se um ente desses sequer tivesse tido uma ação no momento certo. Como se pode extrair, a omissão gerou consequências devastadoras para as pessoas ali envolvidas, bem como para a sociedade.

 Uma filha não pode jamais ser considerada “coisa” para alguns homens que se intitulam “pai” e, que por isso, acham-se no direito de primeiro se “servirem” de suas filhas, da forma mais violenta e humanamente aceitável no seio de tantos lares brasileiros, para não dizer no mundo. Já que casos como esse, lamentavelmente ainda ocorrem, inclusive, em países considerados centrais.

 Conforme todo o relato e análise percebe-se que a absolvição de Severina ocorreu bem antes do seu julgamento em Plenário do Júri. A conscientização social advinda de fora do Judiciário fez soprar a brisa da justiça e dela fazer valer a força espiritual dos que acreditam que leis existem tanto para punir como para absolver.

Que ali havia uma vítima maior e que muito possivelmente outras vítimas viriam, caso aquela atitude drástica (já que outras foram tomadas, porém, não consideradas) não fosse tomada, com intuito de fazer estancar a violência que ocorria no silêncio daquele lar, conforme relatara Severina, em seu Termo de Interrogatório:

[...] a vítima disse que se a interroganda não aceitasse que ela, vítima, se relacionasse com ANTONIA, filha da acusada e da vítima, esta, a vítima, mataria a interrogada; Que a vítima tentou durante três dias ‘ser dona’ da menina; [...] Que a vítima lhe bateu durante esses três dias; Que a interroganda passou três dias dormindo no pé da parede, para evitar que a vítima se apossasse da menina; Que a vítima dizia que se ela não fizesse um acordo, a mataria [...] (PE, 2010, p. 577, grifos nossos).

 A torpeza da atitude de seu pai-marido para com ela e a filha-neta é tão repulsiva que faz qualquer ser humano parar e analisar um pai monstruosamente violento.

E o mais grave, quantos desses soltos por aí não existem praticando os mesmo atos ou ainda piores, inclusive neste momento em que são analisados esses autos, sem que suas vítimas tenham a quem recorrer, como o ocorrido com Severina?

 Ao adentrar-se na análise do caso, é possível antever que aquele ambiente familiar era totalmente deturpado e que na concepção de uma menina de nove anos, exigir dela discernimento para eticamente reprovar tais posturas que encontrava ali, em sua família, é algo quase impossível.

Afinal, ao olhar para os lados e observar as condutas do pai e da mãe, bem como dos familiares próximos e, por fim, seus vizinhos, os quais todos sabiam o que ali se passava e ninguém tivera sequer uma atitude para proteger essa criança. Ou ainda, para dizer-lhe que tudo o que se passava naquele ambiente era totalmente contrário à moral, aos costumes éticos e religiosos, além de ser legalmente proibido.

 Sabe-se que a educação doméstica é aquela em que os exemplos passados pela autoridade patriarcal (família em sentido estrito) devem ser seguidos, mesmo que na maioria das vezes os filhos não gostem, muito menos concordem, mas são obrigados a cumprir. É o denominado senso de obediência aos pais que caracteriza a aparente harmonia do convívio num lar.

Assim, as atitudes e atos que, naquele local são tomados, e reiteradamente repetidos, vão se conduzindo como algo comum, para ser posto em questionamento. E ainda que fosse questionado, concretamente, não se saberia a quem questionar, já que isso é o que se fomenta a denominada educação familiar, sob a qual ninguém deve se intrometer, por ser “assunto dos outros”.

 Essa foi toda a vida de Severina no seio daquele ambiente. Uma criança, a princípio, que não tinha a quem pedir socorro, exatamente por saber que não seria ouvida, afinal todos ali sabiam o que acontecia e nada faziam para estancar tal mal. E este foi reiteradamente praticado por longos vinte e oito anos, até o dia em que ela percebeu que ele poderia ser praticado também em face de sua filha Antônia, algo que para uma verdadeira mãe era uma monstruosidade deixar acontecer.

E, entre o conflito de deixar que algo similar acontecesse com sua filha, Severina chegara a um divisor moral e ético insuportável, e ainda, se encontrava numa bifurcação: ou presenciaria o retorno de tudo aquilo que passou em vida (que já não tinha muito valor) ou acabaria com a do agressor, seu pai-marido. Importante ressaltar que a noção de vida, ou melhor, o interesse de viver ela havia perdido há vinte e oito anos.

 Ademais, toda pessoa tem direito a uma infância e, no caso de uma menina, há a ideia das “estórias” que são contadas como sendo de fada no que se refere a casamentos com príncipes encantados. Em que essa menina pode escolher seu “príncipe” e com ele se casar e ter filhos.

No caso de Severina, esse direito e sabor lhe foram roubados (com toda a essência que a tipologia apresenta na seara Penal) durante 28 anos e, por consequência, cinco filhos que, pela proximidade genética, dois apresentam problemas especiais.

 Assim, conforme consta em seu relato em Plenário:

[...] Que começou a trabalhar com seis anos de idade; Que não sabe ler nem escrever; Que só sabe assinar o nome; Que a interroganda não teve infância; Que a mãe da interroganda foi conivente com a situação; Que a vítima amarrou a interroganda com uma camisa e amarrou a boca da interroganda para que ela não gritasse [...] (PE, 2010, p. 578, grifos nossos).

Essa realidade nua e crua fez enxergar uma comunidade católica inteira da cidade de Caruaru, região Nordeste de um País periférico em relação aos do centro (como asseverado acima) ditos como desenvolvidos e, consequentemente, criadores de um verdadeiro sistema de direitos humanos que a todos supostamente faz ser alcançados.

Mesmo tendo sido deferido o pedido de desaforamento daquele julgamento para outra comarca, agora, uma localizada na capital, logo, outro palco, com outro público e atores da seara Judiciária.

 Mesmo assim, aquele espírito humano não esmoreceu, ao contrário, sobrepujou todas as expectativas e fez efetivar a justiça. Aquela tão desejada por todos, tanto divina (para aquela comunidade e envolvidos) como a dos homens, através da conduta profissional do então promotor do parquet, investido em sua constitucional imparcialidade, para fundamentar tal pedido, relatada na sentença do Júri:

Hoje, a ré submetida a julgamento perante este 4º Tribunal do Júri, tendo o Representante do Ministério Público, em Plenário, pedido a absolvição da acusada, esgrimindo a tese de inexigibilidade de conduta diversa, posição referendada pela defesa (PE, 2010, p. 585, grifos nossos).

 A tese encontrada e defendida para culminar na absolvição de Severina em Plenário, pelo representante do parquet, foi à inexigibilidade de conduta diversa, segundo qual não se encontra prevista no Código Penal brasileiro de forma explicita; devendo o operador do direito interpretá-la com base na teoria finalista da ação, sob a modalidade supralegal de excludente de culpabilidade. Isso ocorre porque se encontra excluído um dos seus elementos, qual seja, a exigibilidade de conduta diversa.

Vale salientar que a intenção deste trabalho não é adentrar no âmbito penal, materialmente falando, sobre o instituto da culpabilidade. Mas apenas, configurar o caminho percorrido para se conseguir a liberdade de Severina, e sua consequente libertação de todos os cárceres a que esteve submetida em vida até então.

 Destarte, o cometimento de um crime é analisado pelos elementos que o constituem, quais seja: fato típico cumulado com o ato ilícito, bem como a culpabilidade do agente, isto é, neste requisito é realizado um juízo de valor de sua conduta. Assim, conforme explicitado pelo doutrinador Bitencourt:

 Os elementos que integram a culpabilidade, segundo a teoria normativa pura (a concepção finalista), são: a) imputabilidade; b) possibilidade de conhecimento da ilicitude do fato; c) exigibilidade de obediência ao Direito (BITENCOURT, 2009, p. 373).

Para melhor explicar o que seria cada um desses elementos, faz-se necessário continuar com os ensinamentos do mesmo autor (2009, p. 374) que assim aborda o conceito da imputabilidade, como sendo: “[...] a capacidade ou aptidão para ser culpável”. Em suma, é a consciência livre e desimpedida de ali estar praticando algo que é ilícito.

No que se refere à possibilidade de conhecimento da ilicitude do fato, esta se configura quando o agente necessariamente: “[...] conheça ou possa conhecer as circunstâncias que pertencem ao tipo e à ilicitude”, e, por fim, a exigibilidade de obediência ao Direito, que segundo ele, caracteriza-se: “[...] pelo conhecimento do injusto penal”; em outras palavras é o conhecimento e o agir em total conformidade com o que está previsto no direito.

 Após todo o exposto, importa ressaltar que a inexigibilidade de conduta diversa se enquadra quando dependendo das circunstâncias em que o autor se encontra e comete o fato considerado típico e ilícito, caso sejam anormais e, ao final, levem o agente a não ter outra opção senão aquela praticada. Pois, conforme elucida Bitencourt (2009, p. 376): “Nessas circunstâncias, ocorre o que se chama inexigibilidade de outra conduta, que afasta o terceiro elemento da culpabilidade, eliminando-a, consequentemente”.

 A promotoria seguiu essa linha de defesa, porque não seria possível elencar as hipóteses previstas no artigo 23 e seus incisos no Código Penal brasileiro nas quais se referem ao estado de necessidade e a legítima defesa. O primeiro vem conceituado no artigo 24 do referido código e a segunda, no artigo 25 do mesmo diploma, prescrevendo assim:

 Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem (BRASIL, 2012).

 Na análise concreta do fato, para a caracterização do estado de necessidade tornar-se-ia necessário o preenchimento simultâneo dos requisitos exigidos no tipo penal, quais sejam: “[...] perigo atual e inevitável; não-provocação voluntária do perigo; direito próprio ou alheio; elemento subjetivo; finalidade de salvar o bem do perigo e, por fim, a ausência de dever legal de enfrentar o perigo” (BITENCOURT, 2009, p. 335).

 Severina não se encontrava, no momento do homicídio, em perigo iminente e nem poderia ser considerado inevitável a sua atitude. A idealização premeditada do crime, descaracterizou o que poderia ser a não-provocação voluntária do perigo. Como o preenchimento da norma se perfaz com a cumulatividade desses elementos, ao faltar qualquer deles, resta prejudicada a sua utilização.

No que refere à legítima defesa, os requisitos objetivos e subjetivos necessários para seu preenchimento de forma concomitante são, nas palavras de Bitencourt (2009, p.341): “[...] agressão injusta, atual ou iminente; direito próprio ou alheio; meios necessários usados moderadamente; elemento subjetivo; animus defendendi”.

Em conformidade com o caso, esses elementos também não poderiam ser reclamados já que o crime foi configurado como ocorrido numa emboscada, e as agressões que Severina sofria não estavam, exatamente, ocorrendo naquele momento.

 Na esteira das impossibilidades acima descritas, restou, conforme abordado em Plenário do Júri pela promotoria, a inexigibilidade de conduta diversa a Severina pelo conjunto de agressões e violências causadas pelo seu pai-marido.

Não sendo, portanto, possível e humanamente esperado outra conduta, senão aquela ao qual conseguiu materializar, com a ajuda de terceiros, para eliminar todo o seu sofrimento e os de seus filhos.

Vale salientar que, se utilizou a ajuda de terceiros é porque sozinha não poderia e talvez não conseguisse consumá-lo. Afinal, não é fácil dimensionar ou quantificar os conflitos e angústias passadas por essa mulher-mãe-filha e que teve que vivenciar para chegar a esse desfecho.

Sofrimentos e abusos que nenhum ser humano sob nenhum pretexto presume-se possível passar ou ainda, que qualquer outro imagine admissível ocorrer.

 Ademais, qual mãe imbuída de instinto materno teria agido de forma diversa do de Severina, que se sentia a única responsável pela segurança de Antônia, já que não tivera ninguém que agisse assim para com ela? Nenhum ser poderá retirar ou mitigar o grau de responsabilidade que Severina teve para com sua filha nem questionar a prova de amor, mesmo não tendo recebido esses exemplos de sua mãe.

 Nem muito menos a que ponto chegou para fazer valer essa sua noção, e que consequências teve que enfrentar e conviver para o resto de sua vida. Essa mãe jamais poderá ser questionada por omissão do dever de cuidado para com um filho. Fato que também foi vítima, seja pela família em seu sentido estrito, seja pelo Estado do qual procurou amparo por cinco vezes e não obteve nem o direito de ver suas alegações ser averiguadas.

Conforme esclareceu em seu Termo de Interrogatório:

[...] procurou as autoridades policiais por cinco vezes, para denunciar o fato; Que na cidade de Brejo da Madre de Deus, a vítima chegou a ser presa por uma noite, e teve um revolver apreendido pela autoridade policial; Que em Caruaru a vítima contratou um advogado e se livrou da queixa prestada pela interroganda (PE, 2010, p. 577, grifos nossos).

 O problema reside no fato de que para toda ação ou omissão existe uma reação com consequências e respostas nem sempre satisfatórias ou mesmo aceitáveis, já que normalmente trata com valores tão caros como a vida de outrem.

 Mas o evento é que os danos sofridos e suportados por toda a vida de Severina foram enormes de ser absorvidos e por que não dizer por qualquer pessoa sã que tivesse a possibilidade de ter o menor amparo familiar, social ou estatal possível?

Julgar ou emitir juízos de valores para quem está de fora de uma situação como a que aqui foi estudada pode até parecer fácil, mas o difícil é se colocar em seu lugar e usar da devida sinceridade na resposta ao se fazer a seguinte pergunta: em seu lugar e circunstâncias, alguém teria feito diferente?

 A aferição em escalas, caso seja possível racionalmente ser realizada, dos danos suportados por Severina e a conduta que teve com seu pai-marido foi muito bem analisada pelo corpo de jurados que conseguiu visualizar as circunstâncias na qual o evento danoso ocorrera, e reconhecer todas as violações por ela sofridas.

Assim, a absolvição de Severina foi o reconhecimento de sua posição como real vítima de todo aquele episódio e o início da reparação pelo Estado ocorrendo dentro do Poder Judiciário. A necessidade de restabelecer a dignidade dessa pessoa é de suma importância, já que é mãe de cinco filhos que dependem totalmente dela.

 A volta do equilíbrio na sociedade torna-se necessária diante de toda essa turbação social a qual se instalou naquela família, mais precisamente Severina e, hoje, seus cinco filhos.

Espera-se que essa mulher supere todos os seus dramas e consiga, enfim, viver de forma plenamente livre e alcance um pouco de felicidade dentro de sua nova realidade, porque conforme nos ensina o mestre Almeida (2011, p.40): “A diversidade de violações não impede o que é mais rico no gênero humano: a consciência do Ser diante dos desafios, como também a infinita capacidade de superação”.

 Portanto, torce-se para que Severina consiga superar todas as suas dificuldades e viva com dignidade, além de poder ver seus filhos crescerem da forma que toda mãe sonha, dentro de um padrão aceitável socialmente de normalidade.


5 CONCLUSÕES

 Podemos concluir que em todo percurso histórico a tortura é um mal que aflige o homem e o acompanha em toda a sua trajetória de mudanças e evoluções, na qual era admitida socialmente nas relações ocorridas entre particulares até o seu impedimento legal, que vai da fase privada até a criminalizada.

 Atualmente, o mundo tem assistido, até certo ponto passivo, o exemplo da prisão de Guantánamo, base militar Americana em solo cubano, e nada de concreto tem sido efetivado para erradicar esse mal, mesmo com tantos Tratados e Convenções Internacionais vigentes que abominam esse retrocesso.

 A tortura chegou ao Brasil pelo antigo sistema penal Português e foi utilizada em todas as fases sociopolíticas vivenciadas até então. Entre a sua permissão, logo no início, e proibição, nos tempos atuais, poucas são as consciências reais da sua não utilização, conforme podemos verificar em lugares como delegacias, quartéis e, inclusive, lares.

 Em que pese ainda ser prática ilegal em muitos Estados, o fato é que após a 2ª Guerra Mundial, com a criação das Organizações das Nações Unidas, um verdadeiro sistema internacional jurídico de reconhecimento e proteção ao princípio da dignidade humana foi criado. Esse sistema assegura instrumentos voltados à garantia dos direitos humanos tanto no âmbito global quanto no regional. Para atender nossas vítimas, o documento de maior destaque é o Pacto de São José da Costa Rica, na seara regional, amparada pela Organização dos Estados Americanos- OEA.

 Um marco nacionalmente reconhecido foi à promulgação da Constituição Federal em 1988, intitulada como a primeira Carta “Cidadã”, documento firmado com duas finalidades essenciais: restabelecer a nossa ordem democrática e assegurar efetividade aos direitos humanos, fazendo convergir todos os princípios àquele considerado vetor, qual seja dignidade da pessoa humana. Esse princípio buscou encerrar o efeito nefasto de quase três décadas de ditadura, sistema que se utilizou da tortura como ferramenta corriqueira para manter-se inatingível e no poder.

 Nela podemos encontrar o crime de tortura, como aquele que é imprescritível, inafiançável e insuscetível de qualquer benefício pela gravidade da lesão que gera na humanidade. Com a criação da Lei de Tortura, na esfera infraconstitucional, como crime comum, o tipo tornou-se suscetível de ser cometido por qualquer pessoa, fator importante que se adequou tão bem a nossa cultura, possibilitando-nos enquadrar e punir os agressores de forma a banir esse mal no Brasil.

 O caso apreciado relatou a violência ocorrida num lar, no Agreste de Pernambuco, de um pai que obrigou a filha manter com ele relações sexuais por vários anos, tendo como consequência a geração de doze filhos, dos quais apenas cinco permaneceram vivos, em que dois apresentam sequelas físicas.

 Esse caso teve repercussão local pelo seu contexto, já que essa filha fora acusada de ter sido a mentora do homicídio de seu pai-agressor. Todavia, quando Severina começou a relatar seu depoimento deu-se início a uma verdadeira história de horror e agressões físicas, psíquicas e morais que passara em seu ambiente doméstico desde os nove anos de idade.

 A caracterização do cometimento da tortura ocorre com o preenchimento de elementos previstos nos documentos internacionais e na norma nacional, quais sejam: tratamento ou castigo pessoal cruel, desumano e degradante; violação da integridade física, psíquica e moral; privação da liberdade; dores ou sofrimentos agudos, físicos e mentais; intimidação e coerção; utilização de métodos que visam anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental; bem como, submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça; e, por fim, o próprio estupro, no qual a ONU considerou, na história recente do Haiti, como mais um elemento configurador da tortura.

 Ocorre que, os anos que Severina passou sob a guarda, poder e autoridade de seu pai, dadas as riquezas de detalhes informados em seus depoimentos, preencheram todos os elementos descritos e que estão previstos nos documentos supracitados.

 Afinal, foi coagida a ter e manter relações sexuais dos nove aos trinta e sete anos de idade, ao menos três vezes por semana; foi mantida em cárcere privado por todo esse tempo, sob condição de total miséria, sem poder sair de casa para estudar ou ir a um médico para ter seus filhos, sendo de alguma forma vigiada pelos colaboradores daquele, no qual teve inicialmente a mãe-esposa e, por fim, a própria família que sabia e nada fazia para impedir.

 Das poucas vezes que teve oportunidade de fugir, ao total, cinco vezes, foi a delegacias e em nenhuma dessas oportunidades teve sua acusação considerada. Sofreu tortura psicológica e moral e teve mitigada sua capacidade de discernimento do que é certo e errado dentro daquele contexto deturpado, no qual todos sabiam o que ali ocorria e tratavam como se fosse “normal”.

 Antes, porém, de idealizar o homicídio de seu pai-agressor, teve como momento crucial, a informação da vizinha, que a mesma tinha visto aquele apalpando os seios de sua filha-neta Antonia, de apenas onze anos de idade. Ao abordar-lhe o episódio, o agressor afirmou que tinha a intenção de manter relações sexuais com a filha-neta, por ela já estar “pronta”, e, que, se Severina o impedisse ele a mataria, tendo inclusive comprado uma faca-peixeira para realizar tal ato.

 Severina foi a Júri Popular e conseguiu sua absolvição com a tese defendida pelo Ministério Público de inexigibilidade de conduta diversa, por não ter a capacidade de autodeterminar-se naquele momento. Em que pese concordar com todos esses argumentos, entendo que ela na verdade esteve sob tortura caracterizada de todas as formas conforme exposto, dadas as circunstâncias aqui confrontadas.

 E que a impossibilidade de autodeterminar-se retirou um dos elementos que configuram o delito, qual seja culpabilidade, esvaziando assim seu conteúdo. Ademais tanto o estupro quanto a tortura são verdadeiros assaltos à intimidade da pessoa, constituindo inequivocamente um mal absoluto, que degrada e avilta não só a vítima, mas a humanidade enquanto seres civilizados, simplesmente por serem paradoxos da liberdade e da integridade física do ser humano.

 O pior é que não deixam de serem acontecimentos supostamente de um ser humano para com outro, caracterizado por violências que deixam marcas indeléveis para o resto da vida, tanto no corpo quanto na alma do indivíduo.

 Portanto, fatos como esses têm que ser erradicados e só conseguiremos reduzir a tortura, com a união da família, da sociedade e do Estado, zelando pela integridade de nossos filhos e mulheres.


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Manoel S. Moraes de. Violação aos direitos na vida cotidiana de jovens da periferia urbana do recife. Resistência à Violência: construção social da juventude como sujeito de direitos, Recife, n. 5, p.36-40, 2011.

ARRIGHI, Jean Michel. OEA – Organização dos Estados Americanos. Série entender o mundo vol. 4. São Paulo: Monole, 2004.

ARRUDA, Eloísa de Souza. Direitos humanos: O descompasso entre a fundamentação e a efetiva promoção. Direitos Humanos: Desafios e perspectivas, Belo Horizonte, n. 3, p.11-38, 2011.

ARQUIDIOCESE, de São Paulo. Brasil: nunca mais. 38. ed. São Paulo: Vozes, 2009.

AVENA, Norberto. Processo Penal: esquematizado. 2. ed. São Paulo: Método, 2010.

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 23 nov. 2012.

______, Decreto-Lei n. 2.848 de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 23 nov. 2012.

______, Decreto-Lei n. 3.689 de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm> Acesso em: 23 nov. 2012.

______, Lei n. 8.069 de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm> Acesso em: 23 nov. 2012.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2007.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte geral I. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 9. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2004.

BORGES, José Ribeiro. Tortura: aspectos históricos e jurídicos. São Paulo: Romana Jurídica, 2004.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Dicionário compacto do direito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed. São Paulo, Atlas, 2007.

FLORES, Joaquín Herrera. Teoria crítica dos direitos humanos: os direitos humanos como produtos culturais. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009.

FON, Antonio Carlos. Tortura: a história da repressão política no Brasil. 4. ed. São Paulo: Global, 1979.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 36. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.

FREITAS, Érico Bruno Galvão. Zona de anomia no “campo” de Guantánamo: reflexões sobre soberania e vida nua na “guerra contra o terror”. 2012. No prelo.

HERZOG, Wladimir. Instituto Wladimir Herzog. Disponível em: <http://www.vladimirherzog.org.br>. Acesso em: 21 nov. 2012.

HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martin Claret, 2007.

HOUAISS, Antonio. Dicionário eletrônico: versão monousuário 3.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

JESUS, Maria Gorete Marques de. O crime de tortura e a justiça criminal: um estudo dos processos de tortura na cidade de São Paulo. São Paulo: IBCCRIM, 2010.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2002.

MAIA, Luciano Mariz. Do controle judicial da tortura institucional: à luz do direito internacional dos direitos humanos. 2006. 306 f. Tese (Doutorado) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006. Disponível em: <http://apublica.org/wp-content/uploads/2012/06/DO-CONTROLE-JUDICIAL-DA-TORTURA-INSTITUCIONAL-NO-BRASIL-HOJE.pdf> Acesso em: 21 nov. 2012.

MATTOSO, Glauco. O que é tortura. São Paulo: Nova Cultural/Brasiliense, 1986.

NASCIMENTO, Lorena Lima. Direito Penal: parte geral – doutrina, jurisprudência e exercícios. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2009.

OLIVEIRA, Luciano. Do nunca mais ao eterno retorno: uma reflexão sobre a tortura. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 2009.

ONU. Declaração dos direitos do homem e do cidadão. Disponível em: <http://unicrio.org.br/img/DeclU_D_HumanosVersoInternet.pdf>. Acesso em: 21 nov. 2012.

PETERS, Edward. Tortura: uma visão sistemática do fenômeno da tortura em diferentes sociedades e momentos da história. São Paulo: Ática, 1989.

PERNAMBUCO, Inquérito Policial n. 213.005951-2, 2005. Caruaru. p.03, 2011.

______, Inquérito Policial n. 213.005951-2, 2005. Caruaru. p.10-118, 2011.

______, Procedimento n. 703.0021838, 2005. Caruaru. p.30, 2011.

______, Processo n. 216.000040-8, 2005. Caruaru. p.127-433, 2011.

______, Habeas Corpus, n. 139.783-1, 2005. Recife. p.192-269, 2011.

______, Recurso Ordinário n. 01610321 – Habeas Corpus n. 63340, 2006. Brasília. p. 234-236, 2011.

______, Alvará de Soltura n. 53, 2006. Recife. p. 286-289, 2011.

______, Desaforamento n. 0182015-5, 2010. Recife. p.488 e 520, 2011.

______, Processo n. 0041053-61.8.17.0001, 2010. Recife p.577-585, 2011.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

SILVA, Frederico Silveira. O Decisionismo de Carl Schmitt e sua relação com a discricionariedade e a medida provisória. Revista CEJ, Brasília, Ano XI, n. 39, p. 36-43, out./dez. 2007. Disponível em <http://www.cjf.jus.br/revista/numero39/artigo05.pdf> Acesso em 07 de dez. de 2012.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

TEIXEIRA, Flávia Camello. Da tortura. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. V. 1, parte geral. 6. ed. São Paulo: revista dos Tribunais, 2006.


Notas

[1] Dei Delitti e Delle Pene, título original escrito em 1764.

[2] MELLOR apud Borges: La torture, son histoire – son abolition – as réapparition ao XX siècle. Paris: Les Horizons Littéraires, 1949, apud: Edward PETERES.

[3] Artigo 48 da Constituição de Weimar de 1919: “Se no Reich alemão houver alteração ou perigo grave da segu­rança e ordem pública, o presidente do Reich pode adotar as medidas necessárias para o restabelecimento da segurança e ordem públicas, intervindo, em caso de necessidade, com o au­xílio das forças armadas. Para este propósito, pode suspender temporariamente, total ou parcialmente, os direitos fundamen­tais estabelecidos nos arts. 114, 115, 117, 118, 123, 124 e 153.”

[4] Art. 60 do antigo Código Criminal do Império do Brazil. Se o réo fôr escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital, ou de galés, será condemnado na de açoutes, e depois de os soffrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a traze-lo com um ferro, pelo tempo, e maneira que o juiz designar.

O numero de açoutes será fixado na sentença; e o escravo não poderá levar por dia mais de cincoenta. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm> Acesso em 21 nov. 2012. Versão escrita no Português da época.

[5] Silva Júnior. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 27, p.327, apud COIMBRA. Tratamento do injusto penal da tortura, p. 151.

[6] Usou-se a edição de C. M. Galisset: Corpus Júris Civilis Academicum Parisiense in quo Justiniani Instituciones, Digesta, sive Pandectae, Codex, Authenticae, seu Novella Constitutiones, et edicta comprehenduntur.

[7] O sistema internacional jurídico de direitos humanos se constitui em seu âmbito global dos referidos documentos: Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o Segundo Protocolo Facultativo Contra a Pena de Morte e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais Culturais. Já os documentos de proteção específica constituem a Convenção para a Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio, a Convenção Internacional contra a Tortura, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher e a Convenção sobre os Direitos da Criança, entre outros.

[8] O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos foi ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992 e aprovado pelo Decreto Legislativo n. 226 em 12 de dezembro de 1991, por conseguinte, promulgado pelo Decreto n. 592 em 06 de julho de 1992.

[9] O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais foi ratificado pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992 e aprovado pelo Decreto Legislativo n. 226 em 12 de dezembro de 1991, por conseguinte, promulgado pelo Decreto n. 591 em 06 de julho de 1992.

[10] O Brasil ratificou a presente Convenção em 28 de setembro de 1989 e aprovou através do Decreto Legislativo n. 4 em 23 de maio de 1989, e promulgado pelo Decreto n. 40 de 15 de fevereiro de 1991.

[11] A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos, em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, foi ratificada pelo Brasil em 06 de novembro de 1992 através do Decreto n. 678.

[12] O Protocolo de San Salvador entrou em vigor em novembro de 1999 e foi ratificado pelo Brasil em 30 de dezembro de 1999, através do Decreto n. 3.321.

[13] A Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura aprovada pelo Brasil através do Decreto Legislativo n. 4, em 23 de maio de 1989.

[14] Inter-American Commission on Human Rights, Report on the Situation of Human Rights in Haiti, 1995.

[15] Adotada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos em 6 de junho de 1994 e ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995.

[16] Comissão Interamericana de Direitos Humanos, caso n.12051.

[17] Expressão proferida por Ulysses Guimarães, então Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, no momento da promulgação da Constituição Federal, em 05 de outubro de 1988. Disponível em: <www.pmdb-rs.org.br/memoria/fl_adm/uploads/.../arquivo_20.doc> Acesso em 21 nov. 2012.

[18] O símbolo da justiça Romana representada na deusa Iustitia, segundo a qual se apresenta com os olhos vendados, segurando nas mãos a balança e o fiel, sem a necessidade da espada e que tem por significado saber agir.

[19] O símbolo da justiça Grega representada pela deusa Diké, segundo a qual tinha os olhos abertos e na mão direita uma espada, já na mão esquerda uma balança e dois pratos, sem o fiel no meio. Tem como significado o saber prático.

[20] Art. 121. Matar alguém:

§ 2° Se o homicídio é cometido:

I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;

IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido;

[21] Antiga redação do artigo 213 do CP. Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

[22] Antiga redação do artigo 224 do CP. Presume-se a violência, se a vítima: a) não é maior de 14 (catorze) anos; b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.

[23] Antiga redação do art. 312 do CPP. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

[24] Antiga redação do art. 310 do CPP. Quando o juiz verificar pelo auto de prisão em fragrante que o agente praticou o fato, nas condições do art. 19, I,II,III, do Código Penal, poderá, depois de ouvir o Ministério Público, conceder ao réu liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação.

Parágrafo Único. Igual procedimento será adotado quando o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autoriza a prisão preventiva (arts. 311 e 312).

[25] Antiga redação do art. 408 do CPP. Se o juiz se convencer da existência do crime e de indícios de que o réu seja o seu autor, pronunciá-lo-á, dando os motivos do seu convencimento.

§ 1º [...]

[26] Art. 427. Se o interesse da ordem pública o reclamar ou houver dúvida sobre a imparcialidade do júri ou a segurança pessoal do acusado, o Tribunal, a requerimento do Ministério Público, do assistente, do querelante ou do acusado ou mediante representação do juiz competente, poderá determinar o desaforamento do julgamento para outra comarca da mesma região, onde não existam aqueles motivos, preferindo-se as mais próximas.

Art. 428. O desaforamento também poderá ser determinado, em razão do comprovado excesso de serviço, ouvidos o juiz presidente e a parte contrária, se o julgamento não puder ser realizado no prazo de 6 (seis) meses, contado do trânsito em julgado da decisão de pronúncia.

[27] Título original Grundlegung zur metaphysik der sitten, escrito em 1785.


ABSTRACT: The purposeof thismonographis to addressthe history of tortureandthe consequencesof this crime, consideringitscoursein time andformsas has beenallowedand acceptedin social circlesreachingphaseofits criminalization. Despitebeing banned, this crimeisused bothby the State andby individualsinunimaginablesituations, for example, in a domestic environment. Thishistoricalpathis importantto demonstratethat the useof this instrument ofhorrorto extractconfession, evidence, information, or sexual violencerampant, in order to satisfythe interestsof the agent-rapist, only demonstratehowdemeaningisthehuman being towardshis neighbor,even if thatneighborisa father tohis daughter. Regardingtheir legislationinternationally,the bigmilestoneoccurswith the adventof the twoWorld Warsand the confirmation thathumanitycould bewiped outwithimproved techniquesthatoffense;asoccurredin Nazi Germanyandthe sequelsthat pumpsatomicdropped ontwo Japanese citiescommunity. Giving rise toa truelegal systemofhuman rights protectiongearedto the principle ofhuman dignity, vector leadingfrom there thelegal systemglobally.Finally, we conducted acase studywas performedin whicha bridgebetweenthe crime of tortureandsexual violencethat a womansuffered forseveralyears ofhis life, in hisfamily,making acase ofincest. This casepresents alegalcoursenot alwayssatisfactory, with dramatic consequences, but with afinal outcomeexciting, changing its trajectory.

Key-words:  Torture. Rape. Human dignity.


Autor


Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pela autora. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi.