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A lesão corporal culposa no trânsito e a aplicação da Lei nº 9099/95

A lesão corporal culposa no trânsito e a aplicação da Lei nº 9099/95

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Subtraindo a competência dos Juizados Especiais Criminais, a referida lei incidiu em flagrante inconstitucionalidade, pois a competência determinada expressamente pela Constituição Federal não poderia ter sido reduzida por lei infraconstitucional.

O art. 291 do Código de Trânsito Brasileiro determina que "aos crimes cometidos na direção de veículos automotores, previstos neste Código, aplicam-se as normas gerais do Código Penal e do Código de Processo Penal, se este Capítulo não dispuser de modo diverso, bem como a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, no que couber."

Nada obstante, o seu § 1º., excepcionando o caput e, pior, afrontando a Constituição Federal, dispõe que se "aplica aos crimes de trânsito de lesão corporal culposa o disposto nos arts. 74, 76 e 88 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, exceto se o agente estiver: sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência; participando, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística, de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente; transitando em velocidade superior à máxima permitida para a via em 50 km/h (cinquenta quilômetros por hora)."

Ocorre que o art. 303 ao estabelecer que "praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor (sic - péssima redação para definir um tipo penal), a pena é de detenção, de seis meses a dois anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor, deu a este crime a natureza jurídica de infração penal de menor potencial ofensivo, nos termos do art. 61 da Lei 9.099.95, salvo se ocorrer a causa de aumento de pena de um terço à metade, quando, evidentemente não mais se tratará de uma infração penal de menor potencial ofensivo, em razão da incidência de uma destas causas de aumento de pena: se o agente não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação; praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada; deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente; no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros. Portanto, não ocorrendo circunstância que indique a causa de aumento de pena, obviamente o crime de lesão corporal culposa não pode deixar de ser uma infração de menor potencial ofensivo, pois a pena privativa de liberdade não ultrapassa dois anos de detenção.

Ora, este artigo do Código de Trânsito Brasileiro afronta o disposto no art. 98, I da Constituição Federal, pois a competência dos Juizados Especiais Criminais é ditada pela natureza da infração penal, estabelecida em razão da matéria e, portanto, de caráter absoluto, ainda mais porque tem base constitucional; neste sentido, Mirabete e Ada, respectivamente:

“A competência do Juizado Especial Criminal restringe-se às infrações penais de menor potencial ofensivo, conforme a Carta Constitucional e a lei. Como tal competência é conferida em razão da matéria, é ela absoluta.”[1]

"A competência do Juizado, restrita às infrações de menor potencial ofensivo, é de natureza material e, por isso, absoluta.”[2]      

Igualmente Cezar Roberto Bitencourt, para quem “a competência ratione materiae, objeto de julgamento pelos Juizados Especiais Criminais, apresenta-se da seguinte forma: crimes com pena máxima cominada não superior a dois anos e contravenções penais.”[3]

Sidney Eloy Dalabrida também já escreveu:

 “A competência do Juizado Especial Criminal foi firmada a nível constitucional (art. 98, I, CF), restringindo-se à conciliação (composição e transação), processo, julgamento e execução de infrações penais de menor potencial ofensivo. É competência que delimita o poder de julgar em razão da natureza do delito (ratione materiae), e, sendo assim, absoluta.”[4]

Repita-se que a competência da qual ora falamos tem índole constitucional (art. 98, I da Carta Magna), sendo nulos todos os atos porventura praticados, não somente os decisórios, como também os probatórios, “pois o processo é como se não existisse.”[5]                                              

Se assim o é, ou seja, se a própria Constituição estabeleceu a competência dos Juizados Especiais Criminais para o processo, julgamento e execução das infrações penais de menor potencial ofensivo, é induvidoso não ser possível a exclusão desta competência em razão de determinadas circunstâncias que, sequer, determinam uma causa de aumento de pena.

É bem verdade que a própria Lei nº. 9.099/95 prevê duas hipóteses em que é afastada a sua competência (arts. 66, parágrafo único e 77, § 2º.), mas este fato não representa obstáculo ao que dissemos, pois se encontra dentro da faixa de disciplina possível para a Lei nº. 9.099/95, permitida pelo art. 98 da Constituição. Em outras palavras: ao delimitar a competência dos Juizados, poderia a respectiva lei, autorizada pela Lei Maior, estabelecer exceções à regra, observando, evidentemente, os critérios orientadores estabelecidos pela própria lei. Efetivamente, na Lei nº. 9.099/95 há duas causas modificadoras da competência: a complexidade ou circunstâncias da causa que dificultem a formulação oral da peça acusatória (art. 77, § 2º.) e o fato do réu não ser encontrado para a citação pessoal (art. 66, parágrafo único)[6]. Porém, o certo é que tais disposições não ferem a Constituição Federal, pois as duas hipóteses se ajustam perfeitamente aos critérios da celeridade, informalidade e economia processual propostos pelo legislador (art. 62, Lei nº. 9.099/95). Nada mais razoável e proporcionalmente aceitável que retirar dos Juizados Especiais o réu citado por edital (ao qual será aplicado, caso não compareça, o art. 366 do CPP) e um processo mais complexo: são circunstâncias que, apesar de excluírem a competência dos Juizados, ajustam-se perfeitamente àqueles critérios acima indicados e são, portanto, constitucionalmente aceitáveis.

Observa-se que se as leis respectivas “podem definir quais são as infrações, podem, também, o menos, que é excluir aquelas que, mesmo sendo de menor potencial ofensivo, não são recomendadas para serem submetidas ao Juizado, desde que não se subtraia de todo a competência estabelecida constitucionalmente”, como bem anotou Luiz Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho.[7] (grifo nosso).

Destarte, subtraindo a competência dos Juizados Especiais Criminais, a referida lei incidiu em flagrante inconstitucionalidade, pois a competência determinada expressamente pela Constituição Federal não poderia ter sido reduzida por lei infraconstitucional.

O texto constitucional é explícito ao garantir ao autor da infração penal de menor potencial ofensivo o procedimento oral e sumariíssimo. Segundo Antonio Scarance Fernandes, “a incorporação, nos ordenamentos, de modelos alternativos aos procedimentos comuns ou ordinários gera para as partes o direito a que, presentes os requisitos legais, sejam obrigatoriamente seguidos. (...) Em relação à extensão do procedimento, têm as partes direito aos atos e fases que formam o conjunto procedimental. Em síntese, têm  direito à integralidade do procedimento.”[8]

Ademais, “o procedimento pode ser visto como as regras de um jogo, que devem ser obedecidas para que seja legítima a competição. O cumprimento dos atos e fases procedimentais se impõe tanto ao Juiz quanto às partes e a todos os sujeitos que participarem do processo, isso porque o procedimento é integral. Além disso, prevendo a lei um procedimento específico para determinada relação de Direito Material controvertida, não cabe ao Juiz dispensá-la, impondo-se sua observância, em respeito ao devido processo legal. Justifica-se isso em virtude de os atos previstos na cadeia procedimental serem adequados à tutela de determinadas situações, daí serem imprescindíveis, ou seja, o procedimento ostenta uma tipicidade.”[9]

A propósito, mutatis mutandis, veja um trecho do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 2.797-2:

“(...) Esta Suprema Corte, ao exercer o seu poder de indagação constitucional - consoante adverte CASTRO NUNES (“Teoria e Prática do Poder Judiciário”, p. 641/650, 1943, Forense) - deve ter presente, sempre, essa técnica lógico-racional, fundada na teoria jurídica dos poderes implícitos, para, através dela, mediante interpretação judicial (e não legislativa), conferir eficácia real ao conteúdo e ao exercício de dada competência constitucional, consideradas as atribuições do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça[10], tais como expressamente relacionadas no texto da própria Constituição da República. (...) Vê-se, portanto, que são inconfundíveis – porque inassimiláveis tais situações - a possibilidade de interpretação, sempre legítima, pelo Poder Judiciário, das normas constitucionais que lhe definem a competência e a impossibilidade de o Congresso Nacional, mediante legislação simplesmente ordinária, ainda que editada a pretexto de interpretar a Constituição, ampliar, restringir ou modificar a esfera de atribuições jurisdicionais originárias desta Suprema Corte, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça estaduais[11], por tratar-se de matéria posta sob reserva absoluta de Constituição. (...) Em suma, Senhora Presidente, o Congresso Nacional não pode - simplesmente porque não dispõe, constitucionalmente, dessa prerrogativa – ampliar (tanto quanto reduzir ou modificar), mediante legislação comum, a esfera de competência originária do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça dos Estados[12]. (...) O ponto está em que às leis ordinárias não é dado impor uma dada interpretação da Constituição. De tudo resulta que a lei ordinária que se limite a pretender impor determinada inteligência da Constituição é, só por isso, formalmente inconstitucional. (...) Coisa diversa, convém repisar, é a lei pretender impor, como seu objeto imediato, uma interpretação da Constituição: aí, a questão é de inconstitucionalidade formal, ínsita a toda norma de gradação inferior que se proponha a ditar interpretação de norma de hierarquia superior. (...) Daí a correta lição expendida pelo ilustre magistrado ANDRÉ GUSTAVO C. DE ANDRADE (“Revista de Direito Renovar”, vol. 24/78-79, set/dez 02), que também recusa, ao Poder Legislativo, a possibilidade de, mediante verdadeira “sentença legislativa”, explicitar, em texto de lei ordinária, o significado da Constituição. Diz esse ilustre autor: ´Na direção inversa – da harmonização do texto constitucional com a lei – haveria a denominada interpretação da Constituição conforme as leis, mencionada por Canotilho como método hermenêutico pelo qual o intérprete se valeria das normas infraconstitucionais para determinar o sentido dos textos constitucionais, principalmente daqueles que contivessem fórmulas imprecisas ou indeterminadas. Essa interpretação de mão trocada se justificaria pela maior proximidade da lei ordinária com a realidade e com os problemas concretos. O renomado constitucionalista português aponta várias críticas que a doutrina tece em relação a esse método hermenêutico, que engendra como que uma ‘legalidade da Constituição a sobrepor-se à constitucionalidade das leis’. Tal concepção leva ao paroxismo a idéia de que o legislador exercia uma preferência como concretizador da Constituição. Todavia, o legislador, como destinatário e concretizador da Constituição, não tem o poder de fixar a interpretação ‘correta’ do texto constitucional. Com efeito, uma lei ordinária interpretativa não tem força jurídica para impor um sentido ao texto constitucional, razão pela qual deve ser reconhecida como inconstitucional quando contiver uma interpretação que entre em testilha com este.”

Diante do exposto, este dispositivo do Código de Trânsito Brasileiro não deve ser aplicado pelo Juiz, pois, como se sabe, o controle de constitucionalidade judiciário no Brasil tem o caráter difuso[13], podendo “perante qualquer juiz ser levantada a alegação de inconstitucionalidade e qualquer magistrado pode reconhecer essa inconstitucionalidade e em conseqüência deixar de aplicar o ato inquinado”, na lição do constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho.[14]


Notas

[1]  Juizados Especiais Criminais, São Paulo: Atlas, 1997, p. 28.

[2]  Juizados Especiais Criminais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2ª. ed., p. 69.

[3]  Juizados Especiais Criminais e Alternativas à Pena de Prisão, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 3ª. ed., p. 59.

[4] Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCrim, n.º 57, agosto/1997.

[5] Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo Penal, São Paulo: Saraiva, Vol. II, 12ª. ed. p. 503.

[6] “TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS - SEÇÃO CRIMINAL - CONFLITO DE COMPETÊNCIA N. 590-9/194 (200603891424) - Relator: Des. Elcy Santos de Melo - EMENTA: Processual Penal. Conflito negativo de competência. Juizado Especial Criminal. Citação pessoal. Autor do fato não encontrado. Deslocamento da competência. Justiça Comum. Art.66, parágrafo único, da Lei n. 9.099/95. Encontrando-se o autor do fato em local incerto e não sabido e, portanto, inadmissível a sua citação pessoal, correta a postura do juiz do Juizado Especial Criminal em determinar a remessa dos autos para a Justiça Comum, a teor do que determina o art. 66, parágrafo único, da Lei n.9.099/95, ali firmando a sua competência, ainda que presente nos autos o endereço atualizado do acusado ou sendo este encontrado após o deslocamento processual.Conflito provido.” Idem: “TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS - Ementa: Processual Penal. Conflito negativo de jurisdição. Juizado Especial Criminal. Citação pessoal. Paciente não encontrado. Modificação da competência para o juízo comum: artigo 66, parágrafo único, da Lei n. 9.099/95. Conflito procedente. Não localizado o autor do fato delituoso para a citação na forma pessoal perante o juizado especial criminal, dá-se o deslocamento da competência para o juízo criminal comum julgar e processar o feito, nos termos do artigo 66, parágrafo único, da Lei n. 9.099/95. Conflito conhecido e provido. Competência do juiz suscitado.” (Conflito de Competência nº. 520-4/194 - 200400741029 – Rel. Des. Floriano Gomes).

[7] Lei dos Juizados Especiais Criminais (com Geraldo Prado), Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 15.

[8] Teoria Geral do Procedimento e o Procedimento no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, pp. 67/69.

[9] Luciana Russo, “Devido processo legal e direito ao procedimento adequado”, artigo publicado no jornal “O Estado do Paraná”, na edição do dia 26 de agosto de 2007.

[10] E também dos Juizados Especiais Criminais, cuja competência encontra sede igualmente na Carta Magna.

[11] Repetimos: e também dos Juizados Especiais Criminais.

[12] Idem.

[13] Segundo José Afonso da Silva, entre nós, este “sistema foi originariamente instituído com a Constituição de 1891 que, sob a influência do constitucionalismo norte-americano, acolhera o critério de controle difuso por via de exceção, que perdurou nas constituições sucessivas até a vigente.” (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros, 10ª. ed., 1995). 

[14] Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 17ª. ed., 1989, p. 34.


Autor

  • Rômulo de Andrade Moreira

    Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos do Ministério Público do Estado da Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador - UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG) e IELF (SP). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Rômulo de Andrade. A lesão corporal culposa no trânsito e a aplicação da Lei nº 9099/95 . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3990, 4 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29224. Acesso em: 24 abr. 2024.