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Da ilegalidade da cobrança de comissão por corretagem

Da ilegalidade da cobrança de comissão por corretagem

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O presente artigo pretende analisar uma importante questão de direito do consumidor. Trata-se da obrigatoriedade do pagamento de comissão de corretagem na compra de imóvel na planta.

INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende abordar uma relevante questão relacionada ao direito do consumidor. Trata-se da obrigatoriedade do pagamento de comissão de corretagem na compra de imóvel ‘na planta’.

Importante ressaltar, desde já, que o presente artigo não pretende imputar como ilegal o pagamento de toda e qualquer comissão de corretagem.  O que se pretende é analisar a legalidade do referido pagamento diante, especificamente, da compra de imóvel ‘na planta’.

De forma geral, esse tipo de venda é realizada da seguinte forma: uma incorporadora pretende realizar a construção de unidades habitacionais (apartamentos ou casas), para posterior venda.

Durante as obras, a incorporadora contrata empresas especializadas na venda de imóveis. Referidas empresas enviam corretores ao local da obra e disponibilizam o ‘stand de vendas’ para atrair potenciais consumidores.

Os consumidores interessados comparecem espontaneamente ao ‘stand de vendas’ onde podem realizar a compra.

Ocorre que, ao realizar a referida compra, além do valor relacionado ao imóvel, o consumidor é obrigado a contratar e pagar a comissão de corretagem.

A questão que se coloca é a seguinte: é possível falar em corretagem no caso em comento? Estão presentes todos os requisitos do contrato? Há incidência do Código de Defesa do Consumidor? Se afirmativo, qual sua influência para solução do caso em comento?

Para responder a essas questões, foi realizado um breve estudo do contrato de corretagem disciplinado nos artigos 722 a 727 do Código Civil. Houve, também, análise dos dispositivos do Código de Defesa do Consumidor sobre práticas abusivas.


1  DO CONTRATO DE CORRETAGEM

O primeiro instituto que merece ser elucidado é o contrato de corretagem. O referido contrato está disciplinado no Código Civil Brasileiro de 2002, nos artigos 722 a 729, nos seguintes termos:

Art. 722. Pelo contrato de corretagem, uma pessoa, não ligada a outra em virtude de mandato, de prestação de serviços ou por qualquer relação de dependência, obriga-se a obter para a segunda um ou mais negócios, conforme as instruções recebidas.

Art. 723.  O corretor é obrigado a executar a mediação com diligência e prudência, e a prestar ao cliente, espontaneamente, todas as informações sobre o andamento do negócio. ( Redação dada pela Lei nº 12.236, de 2010 )

Parágrafo único.  Sob pena de responder por perdas e danos, o corretor prestará ao cliente todos os esclarecimentos acerca da segurança ou do risco do negócio, das alterações de valores e de outros fatores que possam influir nos resultados da incumbência. ( Incluído pela Lei nº 12.236, de 2010 )

Art. 724. A remuneração do corretor, se não estiver fixada em lei, nem ajustada entre as partes, será arbitrada segundo a natureza do negócio e os usos locais.

Art. 725. A remuneração é devida ao corretor uma vez que tenha conseguido o resultado previsto no contrato de mediação, ou ainda que este não se efetive em virtude de arrependimento das partes.

Art. 726. Iniciado e concluído o negócio diretamente entre as partes, nenhuma remuneração será devida ao corretor; mas se, por escrito, for ajustada a corretagem com exclusividade, terá o corretor direito à remuneração integral, ainda que realizado o negócio sem a sua mediação, salvo se comprovada sua inércia ou ociosidade.

Art. 727. Se, por não haver prazo determinado, o dono do negócio dispensar o corretor, e o negócio se realizar posteriormente, como fruto da sua mediação, a corretagem lhe será devida; igual solução se adotará se o negócio se realizar após a decorrência do prazo contratual, mas por efeito dos trabalhos do corretor.

Art. 728. Se o negócio se concluir com a intermediação de mais de um corretor, a remuneração será paga a todos em partes iguais, salvo ajuste em contrário.

Art. 729. Os preceitos sobre corretagem constantes deste Código não excluem a aplicação de outras normas da legislação especial.

Maria Helena Diniz traz importantes ensinamentos sobre o contrato de corretagem:

O contrato de mediação é, na verdade, aquele em que o mediador, com imparcialidade, por não estar vinculado àqueles que pretendem efetivar entre si contrato futuro, coloca-os em contato, aproximando-os, esclarecendo dúvidas que, porventura, tenham e prestando-lhes as devidas informações, tendo direito a uma remuneração, a título de indenização pelo resultado. É alheio ao contrato firmado por meio da atividade do mediador. Já na corretagem, o corretor não tem aquela imparcialidade, uma vez que exerce sua função, atendendo um dos futuros contratantes. Por isso já houve quem dissesse que não há contrato de mediação, mas tão somente atividade de mediador, que precede a conclusão do negócio, pois o prepara. A atividade do mediador é concausa da conclusão do negócio. A relação jurídica entre mediador e interessados apenas surge com a conclusão do contrato. Além disso, não há matrícula do mediador. O corretor é intermediário e não mediador. Apesar dessas diferenciações, como o novo Código Civil trata indistintamente os dois institutos, procuramos abordá-los sem efetuar tais distinções, embora nosso estudo esteja mais voltado à corretagem. [...]

O Código Civil, por sua vez, objetiva disciplinar o contrato e não a profissão dos corretores, procurando abranger todas as modalidades de corretagem. O regime civil da corretagem baseia-se no princípio da autonomia da vontade, de modo que as relações entre comitente e corretor permitirão convenções contrárias às normas que, em grande parte, têm caráter supletivo. E, além disso, os preceitos sobre corretagem do novo Código Civil não excluem a aplicação de leis especiais (CC, art. 729).

O corretor terá a função de aproximar pessoas que pretendam contratar, aconselhando a conclusão do negócio, informando as condições de sua celebração, procurando conciliar os seus interesses. Realizará, portanto, uma intermediação, colocando o contratante em contato com pessoas interessadas em celebrar algum ato negocial, obtendo informações ou conseguindo o que aquele necessita.

[...]

Assim sendo, o mediador terá direito a uma compensação condicional, que dependerá da execução da obrigação de resultado. Isto porque na mediação o serviço é prometido como meio para a consecução de certa utilidade; o proprietário do bem a ser vendido, ao contratar o corretor, não objetiva o serviço por ele prestado, mas o resultado útil, que é a obtenção da vontade do contratante para a conclusão do negócio. Logo, apenas quando se verifica tal utilidade é que o corretor terá direito à remuneração. O serviço do mediador somente traduzirá valor econômico quando resultar no acordo para a efetivação do contrato, que constitui a finalidade de seu trabalho. O contrato de corretagem terá por finalidade pôr em acordo comprador e vendedor. Depois que isso é conseguido, em documento devidamente formalizado, fará o corretor jus à sua comissão. Tal atividade não é, portanto, de êxito contratual, mas de intermediação[1].

O principal aspecto que demanda destaque é que o contrato de corretagem pretende permitir a aproximação de partes distintas para a realização de um negócio. Se o proprietário pretende vender um bem imóvel, é possível estabelecer contrato de corretagem para que o contratado localize possíveis compradores. Da mesma forma, se o interesse fosse em adquirir um imóvel.

A contratação da corretagem se dá pela parte interessada em realizar o negócio (o ofertante, ou o possível comprador). Portanto, como bem destacado por Maria Helena Diniz em sua introdução ao tema, o corretor não é um profissional imparcial.

Há interesse comum do corretor e do contratante para realização do negócio. O interesse do corretor se alinha com o interesse da parte que o contratou, retirando sua imparcialidade. Por essa razão que, mesmo diante do atual ordenamento jurídico (que utiliza indistintamente a expressão corretor e mediador), não se pode falar em imparcialidade do corretor.

É verdade que a Lei nº 12.236/2010 alterou os dispositivos do Código Civil sobre o contrato de corretagem (especialmente artigo 723), para inserir a obrigação do corretor em prestar informações sobre o andamento do negócio e outras informações relevantes sobre o contrato.

Apesar desse acréscimo nas funções do corretor, trata-se de dado acessório do contrato de corretagem, que não altera as conclusões sobre a ausência de imparcialidade.

Note-se que Luiz Guilherme Loureiro possui opinião diversa e assim trata o tema em questão:

O dispositivo deixa claro que o corretor é um profissional imparcial, que tem o dever de aconselhar o interessado no negócio, fornecendo-lhe todas as informações pertinentes, independentemente de demanda por parte deste. Em se tratando de venda de imóvel, por exemplo, deve examinar o histórico do bem, constante do Registro de Imóveis, e informar o interessado sobre eventuais ônus, gravames ou riscos decorrentes de penhoras averbadas ou ações reais relativas ao bem, ou qualquer outra inscrição acautelatória.

Além de informações de natureza jurídica, o corretor deve fornecer todo e qualquer esclarecimento que possa influenciar a manifestação de vontade da parte no que concerne ao negócio em tela. A título de exemplo, deve informar se o local onde está localizado o imóvel é sujeito a enchentes, se existe feira pública na via onde o bem se situa, entre outras informações. Tal dever deve ser observado qualquer que seja a natureza, o valor ou a importância do negócio jurídico intermediado por este profissional, sob pena de se tornar responsável pelas perdas e danos sofridos pela parte em virtude da concretização do negócio[2].

A doutrina acima transcrita é clara ao afirmar que, com o advento da Lei 12.236/2010, o corretor tornou-se um profissional imparcial.

Julgamos que essa afirmação não reflete a melhor interpretação. Em primeiro lugar, como já dito, não se pode confundir mediador com corretor. O corretor tem interesse comum com a parte que o contrata, na medida em que sua remuneração está vinculada ao resultado (realização do negócio).

Os deveres expressamente inseridos no Código Civil pela Lei 12.236/2010 não alteram essa conclusão. O que a referida norma fez foi, apenas, explicitar deveres acessórios do corretor, bem como estabelecer responsabilidade pelo descumprimento. Contudo, não houve alteração na essência do contrato.

A Lei 12.236/2010 deixa expresso o dever do corretor em fornecer todas as informações relevantes para que as partes possam decidir pela realização do negócio.

Trata-se, somente, da aplicação do princípio da boa-fé contratual. O artigo 422 do Código Civil já determinava, mesmo genericamente, deveres ao corretor, ao dispor: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

Claro que o corretor não pode ser considerado, stricto sensu, como parte contratante. Porém, agindo em favor do interesse de uma das partes envolvidas no contrato, é sua obrigação agir com boa-fé, prestando todas as informações essenciais ao negócio.

Isto é, apesar de terceiro em relação ao negócio, o corretor é pessoa que influencia na formação de vontade e tem ligação comercial com uma das partes. Logo, por intervir no contrato (mesmo que de forma indireta), deve respeitar o disposto no artigo 422 do Código Civil.

Há mais. Se o corretor, mesmo antes da Lei 12.236/2010, omitisse informação relevante, haveria a possibilidade de anulação do negócio.

Isso porque o artigo 147 do Código Civil assim determina: “Nos negócios jurídicos bilaterais, o silêncio intencional de uma das partes a respeito de fato ou qualidade que a outra parte haja ignorado, constitui omissão dolosa, provando-se que sem ela o negócio não se teria celebrado”.

Evidente que, se o corretor é contratado por uma das partes e silencia intencionalmente qualquer informação para possibilitar a realização do negócio, há omissão dolosa que pode implicar a anulação do contrato. O artigo 148 do Código Civil reforça essa conclusão, ao estabelecer:

Pode também ser anulado o negócio jurídico por dolo de terceiro, se a parte a quem aproveite dele tivesse ou devesse ter conhecimento; em caso contrário, ainda que subsista o negócio jurídico, o terceiro responderá por todas as perdas e danos da parte a quem ludibriou.

Ora, se o corretor omitir determinada informação que poderia inviabilizar o negócio, é evidente que há total subsunção do fato ao disposto no art. 148 do Código Civil. Afinal, é terceiro que age em favor de uma das partes contratantes.

Verifica-se, portanto, que todos os deveres inseridos pela Lei 12.236/2010 já estavam presentes no Código Civil, não sendo propriamente correto falar em inovação.

O mérito da Lei 12.236/2010 está em deixar expressa as obrigações que, apesar de existirem anteriormente, estavam esparsas, facilitando o trabalho de interpretação, sobretudo para as pessoas que, apesar de não possuírem conhecimento jurídico profissional, são regidas pelas referidas normas.

Para o deslinde do presente trabalho, ainda é importante destacar um aspecto do contrato de corretagem. O objeto do contrato em questão não é o serviço prestado pelo corretor, mas sim o resultado desse serviço. Ou seja, o objeto é a concretização do negócio.


2  DA APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

É preciso fixar uma importante premissa para o deslinde do presente artigo. Trata-se da aplicação do Código de Defesa do Consumidor na compra e venda de imóvel ‘na planta’.

O que vai determinar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor não é o objeto envolvido, mas sim as partes contratantes.

Conforme indicado na introdução, o tema em estudo envolve pessoa física (ou jurídica que não possua, como finalidade, compra e venda de imóvel) que espontaneamente comparece a ‘stands de vendas’ para aquisição de unidade imobiliária.

A venda, no caso em análise, é realizada por pessoa física e jurídica considerada fornecedora, nos termos do Código de Defesa do Consumidor.

Ao tratar do conceito de fornecedor e consumidor, o Código assim determina:

Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.

§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

José Geraldo Brito Filomeno nos traz importante lição sobre o conceito de consumidor e fornecedor:

O conceito de consumidor adotado pelo Código foi exclusivamente de caráter econômico, ou seja, levando-se em consideração tão somente o personagem que no mercado de consumo adquire bens ou então contrata a prestação de serviços, como destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de uma outra atividade negocial.

[...]

Abstraídas todas a conotações de ordem filosófica, psicológica e outras, entendemos por ‘consumidor’, qualquer pessoa física ou jurídica que, isolada ou coletivamente, contrate para consumo final, em benefício próprio ou de outrem, a aquisição ou a locação de bens, bem como a prestação de um serviço.

[...]

O traço marcante da conceituação de consumidor, no nosso entender, está na perspectiva que se deve adotar, ou seja, no sentido de se considerar como hipossuficiente ou vulnerável, não sendo, aliás, por acaso, que o mencionado movimento consumerista apareceu no mesmo tempo que o sindicalista, principalmente a partir da segunda metade do século XIX, em que se reivindicavam melhores condições de trabalho e melhoria da qualidade de vida e, pois, em plena sintonia com o binômio poder aquisitivo/aquisição de mais e melhores bens e serviços.

[...]

Fornecedor é qualquer pessoa física, ou seja, qualquer um que, a título singular, mediante desempenho de atividade mercantil ou civil e de forma habitual, ofereça no mercado produtos ou serviços, e a jurídica, da mesma forma, mas em associação mercantil ou civil e de forma habitual[3].

No que tange ao conceito de fornecedor estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor, cabe destacar, ainda, a lição de Luiz Antonio Rizatto Nunes:

O mesmo se dá quando a pessoa física vende seu automóvel usado. Independentemente de quem o adquira, não se pode falar em relação de consumo, pois falta a figura do fornecedor. No exemplo, a situação é daquelas reguladas pelo direito comum civil, inclusive quanto a garantias, vícios, etc. É por isso que a definição da relação de consumo é fundamental para descobrir se é aplicável ou não o CDC.

Agora, é evidente que, conforme dissemos, basta que a venda tenha como base a atividade regular ou eventual para que surja a relação de consumo. Usando os mesmos exemplos, vai-se definir como relação de consumo a venda do computador pela loja de roupas, se tal estabelecimento imprime uma regularidade a esse tipo de venda, visando a obtenção de lucro. Da mesma maneira, haverá relação de consumo se a pessoa física compra automóveis para revender, fazendo disso uma atividade regular[4].

Pois bem, dos ensinamentos doutrinários acima transcritos e da legislação pertinente, é possível concluir, em síntese, que consumidor é a pessoa física ou jurídica que adquire produto ou serviço para benefício próprio ou de outrem, na qualidade de destinatário final. Vale dizer, sem a finalidade de revenda.

Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica que, com habitualidade, fornece bens e serviços no mercado de consumo. Note-se que o traço mais relevante na conceituação de fornecedor é a habitualidade.

A essência do Código de Defesa do Consumidor é identificar e proteger a parte hipossuficiente (hipossuficiência econômica ou técnica).

A hipossuficiência econômica é intuitiva. Basta o exemplo de uma pessoa física da classe média brasileira (segundo critério do IBGE) adquirindo produtos de uma empresa transnacional.

A hipossuficiência técnica decorre do monopólio do fornecedor sobre as informações e procedimentos referentes aos produtos ou serviços. Por exemplo, há total hipossuficiência técnica entre um taxista e uma fabricante de veículos.

Pois bem, voltemos ao caso em comento. De um lado temos a construtora que oferece unidades habitacionais (casas ou apartamentos) para venda. No outro polo, temos a pessoa física ou jurídica que as adquire para uso próprio.

A condição de consumidor é inequívoca. Basta verificar que a pessoa física ou jurídica adquire a unidade como destinatário final.

De fato, se a unidade fosse adquirida, por exemplo, por imobiliária para posterior revenda, não estaria presente o conceito de consumidor e, consequentemente, não seria possível a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.

Por sua vez, a condição de fornecedor também é inequívoca, na medida em que estamos diante de pessoa jurídica (construtora) que, com habitualidade, se dedica ao comércio de unidades habitacionais.

Portanto, no caso em análise, estão presentes os requisitos necessários para a incidência do Código de Defesa do Consumidor.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, nesses casos, estabelece a aplicação do Código de Defesa do Consumidor como premissa:

A relação jurídica mitigada na espécie submete-se, inegavelmente, ao sistema do Código de Defesa do Consumidor, visto que o autor, na qualidade de compromissário comprador, apresentou-se perante as requeridas, sociedades envolvidas no processo de construção e comercialização do empreendimento imobiliário, para aquisição de imóvel de índole residencial (ou não comercial) como destinatário final (e não com o ânimo de revenda). E a vulnerabilidade do primeiro perante as últimas, do ponto de vista construtivo-financeiro, é flagrante, uma vez que as informações essenciais do processo de edificação e de sua viabilidade econômica concentram-se na figura dos empreendedores[5].


3 DA IMPOSSIBILIDADE DE COBRANÇA DE COMISSÃO POR CORRETAGEM

Fixadas as premissas nos itens supra, é preciso responder à questão principal: é possível, nas condições acima expostas, a cobrança de comissão pela corretagem na comercialização de imóvel ‘na planta’?

Conforme já exposto, a principal característica do contrato de corretagem é a intermediação das partes (aproximação) para realização do negócio.

No caso em análise (operações realizadas em ‘stands de vendas’), não há que se falar em qualquer intermediação prestada ao consumidor. Isso porque é o consumidor que, espontaneamente, se apresenta para realizar a compra. Portanto, não há prestação de serviço de corretagem nos termos do art. 722 e seguintes do Código Civil. E, mesmo se houvesse qualquer intermediação, jamais seria em favor do consumidor.

Afinal, se o próprio consumidor, sozinho, procura e se apresenta espontaneamente ao ‘stand de vendas’, é evidente que não se pode falar em intermediação.

A negociação se dá diretamente entre construtora e consumidor. Não há corretagem para aproximação das partes. Logo, se não há prestação de serviços, é evidente que o consumidor não pode ser compelido ao pagamento de qualquer comissão.

Visando trazer legitimidade para cobrança da comissão, muitas construtoras inserem em seus contratos cláusulas afirmando que a compra e venda é feita por intermédio de corretores e que o consumidor contratou os respectivos serviços. Ocorre que as referidas cláusulas são incapazes de salvar a cobrança.

Não é possível falar em livre contratação do serviço de corretagem pelo consumidor. A aquisição do imóvel é condicionada à contratação formal (formal, na medida em que não houve efetivamente prestação de serviço) de corretagem. Em outras palavras, ao consumidor só é permitido adquirir o imóvel se fizer a aquisição formal do serviço de corretagem.

Trata-se, na verdade, de prática abusiva conhecida como venda casada, vedada pelo Código de Defesa do Consumidor:

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:(Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994)

I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos;

Sobre a vedação disposta no artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor, Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin assim se manifesta:

O Código proíbe, expressamente, duas espécies de condicionamento do fornecimento de produtos e serviços. Na primeira delas, o fornecedor nega-se a fornecer o produto ou serviço, a não ser que o consumidor concorde em adquirir também um outro produto ou serviço. É a chamada venda casada. Só que, agora, a figura não está limitada apenas à compra e venda, valendo também para outros tipos de negócios jurídicos, de vez que o texto fala em ‘fornecimento’, expressão muito mais ampla[6].

Luiz Antônio Rizatto Nunnes, de forma mais pragmática, ilustra a venda casada:

No primeiro caso, existem exemplos bem conhecidos da prática abusiva. É o caso do banco que, para abrir a conta corrente do consumidor, impõe a manutenção de saldo médio ou, para conceder um empréstimo, exige a feitura de um seguro de vida. Há, também, o caso do bar em que o garçom somente serve bebida ou permite que o cliente continue na mesa bebendo se pedir acompanhamento para comer, etc.

É preciso, no entanto, entender que a operação casada pressupõe a existência de produtos e serviços que são usualmente vendidos separadamente.

[...]

O que não pode o fornecedor fazer é impor a aquisição conjunta, ainda que o preço global seja mais barato que a aquisição individual, o que é comum nos ‘pacotes’ de viagem. Assim, se o consumidor quiser adquirir apenas um dos itens, poderá fazê-lo pelo preço normal[7].

Verifica-se, portanto, que a venda casada se constitui, essencialmente, pela imposição de aquisição conjunta de bens ou serviços que poderiam ser adquiridos individualmente.

No caso em análise, estão presentes todos os requisitos legais para a configuração da prática abusiva (venda casada). Ao consumidor, não é permitido a não contratação formal da corretagem e, como resta evidente, trata-se de produtos e serviços que podem ser comercializados separadamente.

De fato, quanto a esse último aspecto, não há qualquer dúvida da possibilidade de fornecimento individualizado. Nenhuma venda de imóvel demanda serviço de corretagem. É notório que a compra e venda de qualquer bem pode ser feita livremente entre as partes.

Assim, configurada a venda casada, é de rigor a conclusão pela impossibilidade da cobrança da comissão de corretagem. O Tribunal de Justiça de São Paulo possui entendimento no mesmo sentido:

Em relação à comissão de corretagem e ao SATI, entretanto, não há qualquer indicativo de que estes serviços tenham sido prestados em favor dos autores e tampouco de que foram tidos como facultativos, à escolha dos adquirentes. São serviços que se confundem com a própria atividade de corretagem, cuja retribuição foi reconhecida como devida. A contratação forçada, imposta ao comprador do imóvel, representa prática abusiva e está definida no art. 39 do Código de Defesa do Consumidor. O consumidor não tem escolha e acaba por aceitar as condições impostas ilicitamente pelo vendedor e seus prepostos. Daí o direito de restituição que deve ser reconhecido aos autores da quantia que pagaram indevidamente.

[...]

Nesse sentido, é a Jurisprudência deste Tribunal: “Ap. n. 0145194-42.2011.8.26.0100, rel. Des. Alexandre Lazzarini, dj. 06-09-2012; Ap. n. 0183974-85.2010.8.26.0100, rel. Des. Clóvis Castelo, dj. 30-07-2012; Ap. n. 9212356- 17.2005.8.26.0000, rel. Des. Viviani Nicolau, j. 07-06-2011; Ap. n. 0145152-90.2011.8.26.0100, rel. Des. Paulo Alcides, dj. 30-08-2012; Ap. n. 0155968- 34.2011.8.26.0100, rel. Des. Milton Carvalho, dj. 16-08-2012[8].

Pois bem, é preciso analisar, ainda, um último argumento favorável à necessidade de pagamento, pelo consumidor, da comissão de corretagem.

Existiria, somente, um acordo entre as partes contratantes que transferiria a obrigação de pagamento da comissão de corretagem para o consumidor. Vale dizer, seria, apenas, uma transferência de encargo monetário do serviço contratado pela construtora.

O raciocínio seria perfeito se a questão envolvesse dois particulares em posição de igualdade. A tese cede diante da aplicação do Código de Defesa do Consumidor.

Em primeiro lugar, a afirmação não se sustenta em função da própria estrutura de negócio montada pelas construtoras. A partir do momento em que os contratos elaborados unilateralmente pelos fornecedores obrigam o consumidor a contratar o serviço, não há que se falar em simples transferência de encargos financeiros.

Afinal, foge a qualquer lógica afirmar, em contrato, que o consumidor contrata o serviço e, posteriormente, para tentar salvar a cobrança, afirmar que, na verdade, a contratação é feita em favor da construtora, mas com encargos transferidos ao consumidor.

Ainda que assim não fosse, a tese não pode prevalecer, por se tratar de cláusula inserida unilateralmente pelo fornecedor, que implica iniquidade ao consumidor.

O Código de Defesa do consumidor determina:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

[...]

IV - Estabeleçam obrigações consideradas iníquas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou equidade;

[...]

XV – estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor; (negrito inserido)

O Tribunal de Justiça de São Paulo adota o entendimento aqui exposto:

No mérito, observa-se que, em casos como esses, nos quais o consumidor adquire o imóvel ao ir até o stand de vendas da incorporadora, não há propriamente a contratação dos serviços de assessoria imobiliária ou corretagem, tendo o consumidor eventualmente feito a contratação somente para concretizar sua única verdadeira vontade de comprar o imóvel, havendo clara configuração de venda casada, vedada pelo art. 39, I, do Código de Defesa do Consumidor. Quem verdadeiramente contratou e se beneficiou de tais serviços foi a ré, que coloca corretores e advogados em seu stand visando seus interesses de vender as unidades, sendo ilegal tentar transferir os pagamentos de tais serviços ao consumidor, ainda que por meio de cláusula contratual, que, portanto, é nula[9].

No que tange à liberdade de contratação e respeito ao Código de Defesa do Consumidor, é de rigor transcrever o ensinamento de Nelson Nery Junior que, pela riqueza e precisão, praticamente exaure o tema:

No que respeita aos aspectos contratuais da proteção ao Consumidor, o CDC rompe com a tradição do Direito Privado, cujas bases estão assentadas no liberalismo que reinava na época das grandes codificações europeias do século XIX, para: a) relativizar o princípio da intangibilidade do conteúdo do contrato, alterando sobremodo a regra milenar expressa pelo brocado pacta sunt servanda, e enfatizar o princípio da conservação do contrato (art. 6º, nº V); b) instituir a boa-fé como princípio basilar informador das relações de consumo (art. 4º, caput e nº III; art. 51, nº IV); c) impor ao fornecedor o dever de prestar declaração de vontade (contrato), se tiver veiculado oferta, apresentação ou publicidade (art. 30);

Isso porque as regras tradicionais do Direito Privado, fundadas na dogmática liberal do século XIX, não mais atendem às necessidades das relações jurídicas de hoje, notadamente em se tratando de negócios jurídicos de massa, realizados sob a forma de contratos padronizados e de adesão. O excesso de liberalismo, manifestado pela preeminência do dogma da vontade sobre tudo, cede às exigências da ordem pública, econômica e social, que deve prevalecer sobre o individualismo, funcionando como fatores limitadores da autonomia privada individual, no interesse geral da coletividade.

Ao lado da ordem pública social e da ordem pública econômica, fala-se modernamente em ordem pública de proteção dos consumidores, com especial incidência nas relações de consumo por contrato de compra e venda. Com efeito, as regras ortodoxas do Direito Privado não mais atendem à ordem pública de proteção do consumidor, notadamente quanto aos vícios do consentimento, à noção de causa no contrato, ao regramento da cláusula penal, à teoria das nulidades e à proteção contra cláusulas abusivas. Daí a necessidade de cria-se um microssistema informado por modernas técnicas de implementação de regras de ordem pública modificadoras da então ordem jurídica privada vigente no Brasil, em atendimento aos preceitos universais que reclamam seja feita defesa mais efetiva dos direitos do consumidor[10].

Resta claro que, quando há incidência do Código de Defesa do Consumidor, não se pode interpretar o contrato com a visão liberal pura do Século XIX. Vale dizer, o pacta sunt servanda não é mais um dogma do direito privado que torna as cláusulas contratuais leis imutáveis.

A sistemática do Código de Defesa do Consumidor determina que a interpretação dos contratos entre fornecedor e consumidor seja feita com fundamento na premissa de que, se não for nula, a liberdade contratual é muito reduzida.

Não se pode invocar liberdade contratual e pacta sunt servanda para afirmar ser válida qualquer cláusula que imponha ao consumidor o pagamento de corretagem contratada pela construtora em benefício desta. Afinal, como vimos no início do presente, é a construtora que seleciona os corretores para agir em seu interesse.

No sentido do afastamento do pacta sunt servanda, há julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo

REVISÃO DE COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA - contrato firmado entre particular e construtora, que não se sujeita às normas dos SFH - Aplicação do Código de Defesa do Consumidor por se tratar de relação de consumo - Princípio do pacta sunt servanda relativizado em virtude do princípio da equidade e boa-fé[11].

Verifica-se, portanto, que, depois de todas as análises, não se pode admitir a cobrança de corretagem do consumidor que, espontaneamente, se apresenta ao ‘stand de vendas’ para aquisição de unidade habitacional.


4  DA RESTITUIÇÃO EM DOBRO

Cabe analisar uma última questão. Trata-se da repetição do valor da comissão de corretagem paga pelo consumidor. Referido pagamento é vedado pelo Código de Defesa do Consumidor. Assim, em caso de pagamento, o consumidor tem direito à restituição.

A questão que se coloca é: cabe a restituição em dobro? O artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor assim determina:

Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.

Luiz Antonio Rizatto Nunes, ao tratar do tema, afirma:

Para a configuração do direito à repetição do indébito em dobro por parte do consumidor, é necessário o preenchimento de dois requisitos objetivos: a) cobrança indevida e b) pagamento pelo consumidor do valor indevidamente cobrado.

A norma fala em pagar em ‘excesso’, dando a entender que existe valor correto e algo a mais (excesso). Mas é claro que o excesso pode ser tudo, quando o consumidor nada dever. Então, trata-se de qualquer quantia cobrada indevidamente. Mas a lei não pune a simples cobrança (com exceções que na sequencia exporemos). Diz que há a necessidade de que o consumidor tenha pago. Isto é, para ter direito a repetir o dobro, é preciso que a cobrança seja indevida e que tenha havido pagamento pelo consumidor. A hipótese legal soa estranho, uma que não parece normal que alguém que não deva pague novamente. Mas os pagamentos em função de cobrança indevida não são raros.

Tome-se o exemplo do empresário atarefado que deixa na mão da secretaria seus pagamentos pessoais. Digamos que a administradora envia duas faturas para cobrar o mesmo débito. É possível que, por equívoco, seja feito o pagamento duas vezes. Ou pior: nos chamados débitos automáticos em conta. Podem ser debitadas duas tarifas idênticas; podem ser enviadas duas (ou mais) contas de serviços públicos prestados etc. (pode acontecer nesses casos de débito em conta corrente de o próprio banco lançar o débito mais de uma vez). Nesses casos, não há dúvida de que o consumidor tem direito a repetir pelo dobro, sendo o valor acrescido, claro, de correção monetária e juros de mora.

E a norma, ao final da redação, dá ainda uma saída ao credor para que ele tente não repetir o dobro do cobrado e recebido indevidamente: dispõe que o credor não responde em caso de ‘engano justificável’.

Antes de mais nada, diga-se que, se for feito algum engano justificável na cobrança indevida, ainda assim remanesce, obviamente, o direito de o consumidor repetir o valor singelo, acrescido de correção monetária e juros legais.

A prova da justificativa para o engano é, também, por evidência, ônus do credor. E, em nossa opinião, somente poderá ser apresentada: a) se não houve por parte do consumidor cobrança extrajudicial do valor a repetir. Se existiu cobrança amigável, o credor deveria ter pago de volta pelo menos o valor singelo corrigido e acrescido de juros de mora legais. Se não o fez, não poderá, depois, ir a juízo alegando engano justificável. Nenhuma justificação é possível se ele resistir em devolver amigavelmente o que recebeu de forma indevida; b) se, não tendo havido cobrança amigável e ao ser citado no processo, o credor deposita incontinenti o valor cobrado, ainda que no quantum singelo.

[...]

Superados esses obstáculos preliminares, caberá ao credor provar o engano de maneira cabal[12].

É possível concluir que, para repetição em dobro do valor indevidamente pago, é necessário que tenha existido a cobrança indevida e o efetivo pagamento pelo consumidor. É necessário, ainda, que não exista nenhum engano justificável por parte do credor, sendo certo que a prova da existência de eventual erro justificável cabe a este.

No caso em análise, entendemos presentes todos os requisitos para repetição em dobro da comissão de corretagem.

Julgamos não existir a hipótese de erro justificável capaz de afastar a cobrança em dobro. Isso porque a cobrança deriva de corretagem contratada pela construtora em seu benefício, cujo ônus fora indevidamente imputado ao consumidor.

Ademais, trata-se, como visto, de prática abusiva. Não se pode falar de erro justificável, quando a prática adotada pela construtora é abusiva e decorre de contrato cujas cláusulas foram elaboradas unilateralmente pelo fornecedor.

Contudo, o Tribunal de Justiça de São Paulo não coaduna desse entendimento:

COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. ASSESSORIA IMOBILIÁRIA E COMISSÃO DE CORRETAGEM. Verbas arcadas pelo adquirente. Consumidor que vai até o stand de vendas da vendedora com intenção de apenas comprar o imóvel, e não contratar tais serviços. Vendedora como verdadeira contratadora e beneficiária dos serviços. Venda casada. Art. 39, I, CDC. Responsabilidade da vendedora pelo pagamento. Devolução das quantias pagas de forma simples, e não em dobro. Ausência de comprovação de má-fé. Precedentes. Honorários advocatícios bem fixados diante da baixa complexidade e brevidade da demanda, julgada antecipadamente. Recursos não providos[13].

O Tribunal de Justiça de São Paulo entende, portanto, que não haveria má-fé das construtoras na cobrança da comissão de corretagem. Logo, diante da ausência de má-fé, seria devida apenas a devolução simples, acrescida de juros e correção monetária.

Não nos parece que a decisão do Tribunal de Justiça seja a mais acertada. Se o artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor determina que o pagamento em dobro somente será elidido se houver erro justificável, não há que se falar em ausência de má-fé para afastar a repetição em dobro.

A má-fé não é requisito elencado pelo Código de Defesa do Consumidor para pagamento em dobro do valor indevidamente cobrado. Logo, julgamos que a orientação do Tribunal de Justiça não se coaduna com o texto legal e deve ser afastada.


5  CONCLUSÃO

O contrato de corretagem é disciplinado pelo Código Civil, nos artigos 722 e seguintes. Referido contrato pretende a aproximação de partes distintas para a realização de um negócio.

A contratação da corretagem se dá pela parte interessada em realizar o negócio (o ofertante, ou o possível comprador). O corretor não é um profissional imparcial. O fato do artigo 723 do Código Civil, com redação da Lei 12.236/2010, afirmar que o corretor é responsável pela mediação, não o torna imparcial em relação às partes.

O corretor não se equipara ao mediador. O corretor tem interesse comum com a parte que o contratou.

É verdade que a Lei nº 12.236/2010 alterou os dispositivos do Código Civil sobre o contrato de corretagem. Houve a inclusão da obrigação do corretor prestar informações sobre o andamento do negócio e outros dados relevantes sobre o contrato.

Apesar desse acréscimo nas funções do corretor, não há que se falar em imparcialidade. As alterações tratam de aspecto acessório do contrato. Não houve mudança na essência do contrato, que continua ligando corretor e contratante por um interesse comum.

Ademais, mesmo antes da Lei 12.236/2010, havia o dever de boa-fé e a necessidade de prestação de informações verídicas pelos envolvidos na negociação, dentre eles, o corretor.

Verifica-se, portanto, que todos os deveres inseridos pela Lei 12.236/2010 já estavam presentes no Código Civil, não sendo propriamente correto falar em inovação da ordem jurídica.

Segundo a legislação de regência, consumidor é a pessoa física ou jurídica que adquire produto ou serviço para benefício próprio ou de outrem, na qualidade de consumidor final. Isto é, sem a finalidade de revenda.

Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica que, com habitualidade, fornece bens e serviços no mercado de consumo. Note-se que o traço mais relevante na conceituação de fornecedor é a habitualidade.

O Código de Defesa do Consumidor toma como premissa para conceituação de consumidor e fornecedor a hipossuficiência econômica ou técnica.

Diante dos conceitos legais, é de rigor afirmar que a relação entre construtora e adquirente final de unidade imobiliária é regida pelo Código de Defesa do Consumidor.

No caso em análise, não há que se falar em qualquer intermediação (corretagem) prestada ao consumidor. É o consumidor que, espontaneamente, se apresenta para realizar a compra. Portanto, não há prestação de serviço de corretagem nos termos do art. 722 e seguintes do Código Civil. E, mesmo se houvesse qualquer intermediação, jamais seria em favor do consumidor.

Logo, se não há prestação de serviços, é evidente que o consumidor não pode ser compelido ao pagamento de qualquer comissão.

A existência de cláusula contratual afirmando que a compra e venda é feita por intermédio de corretores e que o consumidor contratou os respectivos serviços, não legitima a cobrança de comissão.

Não se pode falar em livre contratação do serviço de corretagem pelo consumidor. Ao consumidor só é permitido adquirir o imóvel se fizer a aquisição formal do serviço de corretagem. Afinal, a obrigação da contratação consta de cláusula inserida unilateralmente pelo fornecedor em contrato de adesão. Assim, sendo prática abusiva (venda casada), a existência de cláusula contratual não legitima a cobrança de comissão de corretagem.

O dogma do liberalismo do Século XIX, pacta sunt servanda, não se aplica no caso em comento, regido pelo Código de Defesa do Consumidor. Não se pode falar em liberdade de contratação e partes igualitárias no contrato.

Caso tenha sido realizado o pagamento pelo consumidor, há o direito à repetição dos valores a título de comissão de corretagem. Segundo o artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor, a referida repetição deve ser feita em dobro, acrescida de juros e correção monetária.

Contudo, esse não é o entendimento que prevalece no Tribunal de Justiça de São Paulo. O referido tribunal afirma que, diante da ausência de má-fé das construtoras, não se pode impor a obrigação de devolução em dobro, sendo de rigor a devolução simples dos valores.

Não concordamos com essa posição do Tribunal de Justiça de São Paulo, na medida em que, frente ao artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor, não é necessária má-fé para determinar a repetição em dobro.


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Notas

[1] DINIZ, Maria Helena. Direito Civil Brasileiro. 3º Volume. 21ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 440/442.

[2] LOUREIRO, Luiz Guilherme. Curso Completo de Direito Civil. 3ª. ed. São Paulo: Método, 2010. p. 572/573.

[3] FILOMENO, José Geraldo Brito. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado. 6ª. ed. São Paulo: Forense Universitária, 1999. p. 40/46.

[4] NUNES, Luis Antonio Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 90/91.

[5] TJ-SP. Apelação nº 0016596-91.2012.8.26.0114. 3ª Câmara de Direito Privado. Julgado em 26/11/2013.

[6] BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado. 6ª. ed. São Paulo: Forense Universitária, 1999. p. 312/313.

[7] NUNES, Luis Antonio Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 482/483.

[8] TJ-SP. Apelação nº 0113205-18.2011.8.26.0100. 10ª Câmara de Direito Privado. Julgado em 26/11/2013.

[9] TJ-SP. Apelação nº 0015720-74.2013.8.26.0576. 7ª Câmara de Direito Privado. Julgado em 02/09/2014.

[10] JUNIOR, Nelson Nery. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado. 6ª. ed. São Paulo: Forense Universitária, 1999. p. 433/434.

[11] TJ-SP. Apelação nº 9166422-65.2007.8.26.0000. 9ª Câmara de Direito Privado. Julgado em 30/08/2011.

[12] NUNES, Luis Antonio Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 510/512.

[13] TJ-SP. Apelação nº 0015720-74.2013.8.26.0576. 7ª Câmara de Direito Privado. Julgado em 02/09/2014.


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CORRERA, Marcelo Carita. Da ilegalidade da cobrança de comissão por corretagem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4203, 3 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31889. Acesso em: 24 abr. 2024.