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Comércio internacional e meio ambiente

uma relação desequilibrada

Comércio internacional e meio ambiente: uma relação desequilibrada

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Analisam-se as condições para o possível surgimento de organização internacional específica para o meio ambiente, bem como as eventuais consequências o comércio internacional.

Resumo: O objetivo dos autores deste trabalho é discutir a relação entre comércio e meio ambiente nas relações internacionais. O tratamento da temática no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) será usado como ponto de partida para discussões mais amplas. Na qualidade de organização internacional econômica, dedicada especialmente ao comércio, a OMC considera o tema do meio ambiente de maneira apenas secundária e subordinada aos interesses mercantis imediatos dos Estados, deficiência verificada nas decisões de seu órgão de solução de controvérsias (OSC) e nas limitadas normas de proteção ambiental de seu mais importante acordo (GATT-94). Na segunda seção, com base nos trabalhos de Robert O. Keohane e de John Duffield sobre instituições internacionais, e com fundamento em considerações teóricas sobre o conceito de bens públicos, os autores analisarão as condições para o possível surgimento de organização internacional (OI) específica para o meio ambiente, bem como as eventuais conseqüências desse fato para a relação entre comércio internacional e meio ambiente. A fim de exemplificar a situação contemporânea do tratamento dispensado ao tema ambiental, os autores analisarão, na terceira parte, o caso dos pneus recauchutados, cuja decisão prolatada pelo OSC comprova o desequilíbrio da relação entre comércio e meio ambiente.

Palavras-chave: comércio internacional; meio ambiente; OMC; regimes e organizações internacionais


1. Apresentação do tema

A Organização Mundial do Comércio (OMC) foi criada, em 1994, no âmbito da Rodada Uruguai do General Agreement on Tariffs and Trade (GATT). Seu objetivo principal, segundo expresso nos diversos acordos multilaterais sob sua guarda, é promover a liberalização do comércio entre as nações, finalidade que estaria fundamentada na tradição clássica do pensamento econômico (Narlikar, 2005 p. 2), em especial na teoria das vantagens comparativas, de David Ricardo. Com base nessas premissas, que se tornaram predominantes nas relações econômicas internacionais desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a consecução do livre-comércio acarretaria, como consequência inevitável, o incremento geral da riqueza e do bem-estar das nações.

Como destacam os juristas, a OMC (diferentemente do GATT) é organização internacional (OI) em sentido estrito, uma vez que ela é dotada de personalidade jurídica, atributo que possibilita o exercício de prerrogativas inerentes aos sujeitos de direito internacional. Sua estrutura, de forma geral, não difere muito do padrão adotado na maioria das organizações: Conferência Ministerial, Conselho Geral, Órgão de Solução de Controvérsias, Órgão de Revisão de Política Comercial e diversos Conselhos, Comitês e Grupos Temáticos (Amaral Júnior, 2008, p. 380). Deve-se ressaltar, entretanto, que, apesar de a organização expressamente reconhecer o princípio da igualdade soberana dos Estados, nas rodadas de negociação, acentuam-se os efeitos da desigualdade de poder entre os Estados (Steinberg, 2002, p. 365), como se evidenciou no desfecho da Rodada Uruguai. Apesar disso, na perspectiva do direito internacional, o advento da organização tem sido considerado indicativo da prevalência do princípio do rule of law no âmbito do comércio internacional (Lafer, 2006, p. 77), principalmente em razão de seu mecanismo de solução de disputas. O órgão de solução de controvérsias (OSC), resultado do adensamento de juridicidade do sistema comercial (Idem, pp. 44; 47), seria, dessa forma, o aspecto distintivo da organização, pois ele, por meio de sistema peculiar de sanções (medidas compensatórias autorizadas pelo OSC), possibilita o cumprimento efetivo das normas legais de comércio.

Se o objeto principal da OMC é o comércio, sua atuação, na entanto, gera consequências para muitas áreas de interesse da sociedade internacional. Por causa de suas dimensões múltiplas, a dinâmica comercial está relacionada a diversos outros temas, como, por exemplo, desenvolvimento econômico e social, nível de emprego e condições de trabalho, propriedade intelectual e saúde pública, segurança e meio ambiente. Este, em específico, é diretamente referido nos itens b) e g) do artigo XX do GATT, acordo sobre comércio de mercadorias, incorporado ao sistema de tratados da OMC.

Art. XX. Desde que essas medidas não sejam aplicadas de forma a constituir quer um meio de discriminação arbitrária, ou injustificada, entre os países onde existem as mesmas condições, quer uma restrição disfarçada ao comércio internacional, disposição alguma do presente capítulo será interpretada como impedindo a adoção ou aplicação, por qualquer Parte Contratante, das medidas: (b) necessárias à proteção da saúde e da vida das pessoas e dos animais e à preservação dos vegetais; g) relativas à conservação dos recursos naturais esgotáveis, se tais medidas forem aplicadas conjuntamente com restrições à produção ou ao consumo nacionais;

Conforme esses dispositivos, a regra geral da ausência ou da progressiva diminuição de restrições à circulação de mercadorias poderia ser excepcionalmente contrariada por motivo de proteção ambiental.

Ainda que exista disposição legal e que o tema seja considerado relevante, conforme preâmbulo do acordo de 1994, o meio ambiente é objeto de preocupação apenas secundária no âmbito da OMC:

Recognizing that their relations in the field of trade and economic endeavour should be conducted with a view to raising standards of living, ensuring full employment and a large and steadily growing volume of real income and effective demand, and expanding the production of and trade in goods and services, while allowing for the optimal use of the world's resources in accordance with the objective of sustainable development, seeking both to protect and preserve the environment and to enhance the means for doing so in a manner consistent with their respective needs and concerns at different levels of economic development…” (grifos dos autores).

Decisões do órgão de solução de controvérsias reiteradamente corroboram esse entendimento, uma vez que a aplicação das exceções ambientais ao comércio é restrita e, frequentemente, impossibilitada pelas circunstâncias e pela ambigüidade dos termos contidos nas regras do art. XX.

Essa relação claramente desequilibrada entre comércio e meio ambiente pode ser explicada de duas formas diversas. Primeiramente, deve-se notar que as interações entre os dois temas são analisadas na perspectiva de uma organização cujo escopo é a liberalização do comércio internacional, o que, de antemão, indica tendência para eventuais desequilíbrios de apreciação jurisdicional em detrimento do meio ambiente. As características dos regimes internacionais concernentes aos temas, além disso, são bastante diferentes: o regime de comércio é centralizado pela OMC, organização diretamente dirigida pelos Estados-membros, dotada de relativa efetividade e instrumentalizada com mecanismos de cumprimento normativo (enforcement), aspectos pouco freqüentes nas relações internacionais; o tema ambiental, por sua vez, é constituído por diversos regimes - pertinentes aos variados aspectos naturais do planeta -, sem organização centralizadora específica.

Essa diferença no tratamento dos dois temas no âmbito internacional suscita três questões imediatas: 1) na situação contemporânea das relações internacionais, existem condições favoráveis ao surgimento de organização internacional (similar à OMC) dedicada exclusivamente ao meio ambiente? 2) o desequilíbrio no tratamento dos dois temas seria desfeito ou atenuado caso existisse essa organização? 3) existem diferenças essenciais entre o tema comercial e o ambiental que justifiquem o tratamento desigual no âmbito internacional?  Para responder adequadamente essas duas perguntas, devem ser analisados alguns aspectos teóricos acerca dos conceitos de instituições, de organizações e de regimes internacionais, bem como esboçadas algumas considerações sobre bens públicos globais.


2. Discussão teórica

2.1. Conceito e formação de instituições internacionais

Robert O. Keohane distingue duas perspectivas acerca das instituições internacionais: racionalista e reflexiva. Conforme a primeira, as instituições são formadas com base no cálculo racional dos atores, os quais antecipam as consequências positivas decorrentes da institucionalização: queda nos custos de transação em áreas específicas, oferecimento de maior segurança aos atores e de instrumentos para o cumprimento de normas e de acordos (Keohane, 1988, p. 386). Na perspectiva reflexiva, por sua vez, seus adeptos destacam a espontaneidade do surgimento das instituições, bem como a historicidade inerente a elas. Os seguidores dessa corrente teórica, além de identificarem problemas do racionalismo, asseveram que as instituições decorrem do compartilhamento intersubjetivo de valores, de normas e de práticas[i], que se manifestam, com freqüência, em contextos previamente institucionalizados (Keohane, 1988, p. 389-90).

Ainda que possam parecer excludentes, essas definições fornecidas por Keohane, referentes às instituições, podem ser usadas, conjuntamente, com a finalidade de verificar a existência de condições para o surgimento de organização internacional específica dedicada ao meio ambiente. Keohane, apesar de fazer uso do conceito de instituição, o qual é mais amplo do que o de OIs, expõe argumentos válidos para o surgimento destas. Com base em síntese das duas perspectivas, pode-se afirmar que a criação de OI centralizadora do regime ambiental depende do cálculo econômico e político acerca de seus benefícios e do compartilhamento de valores, de práticas e de normas, concernentes ao tema ambiental. Os Estados, principais atores das relações internacionais, devem, portanto, concomitantemente, antever os êxitos da cooperação e acreditar que, de fato, o meio ambiente é suficientemente relevante para que enseje o esforço de ajuda mútua.

O conceito de cooperação, basilar no estudo das instituições internacionais, deve ser compreendido de forma ampla e nem sempre positiva. Keohane, que destaca a neutralidade do termo[ii], informa que instituições, na perspectiva racionalista, facilitam a cooperação por meio da estabilização de expectativas, do provimento de informações etc.[iii] Em conformidade superficial com esse raciocínio, tem-se a impressão de que o ato de cooperar sucede à institucionalização. Esse entendimento, no entanto, deve ser pormenorizado, pois não parece ser esse o raciocínio subjacente à obra de Keohane. No caso das instituições específicas - como, por exemplo, as OIs em sentido estrito -, nota-se que a institucionalização deve ser precedida por algum grau de cooperação, sem o qual não se inicia qualquer esforço multilateral que resulte no surgimento formal de organização. No que concerne ao tema ambiental, esse mínimo de cooperação, a despeito dos diversos tratados multilaterais concebidos desde a década de 1970, tem sido esporádico, ineficaz e parcial.

2.2. A ordem internacional do meio ambiente: formação e problemas 

Essas características da cooperação internacional relativas ao meio ambiente podem ser explicadas por meio de breve análise da evolução da ordem internacional ambiental. A preocupação da sociedade internacional com o tema é recente, principalmente se comparada com a tradicional governança na área econômica e de segurança. Mesmo que as primeiras regras referentes ao meio ambiente possam ser encontradas no começo do século 20 (Ribeiro, 2008, p. 54), e que se reconheça a importância ambiental do Tratado da Antártica, de 1959, a Conferência de Estocolmo, ocorrida em 1972, foi grande marco inaugural da ordem internacional do meio ambiente. Podem ser mencionados, como relevantes eventos subsequentes, a criação do Programa das Nações Unidas para o meio ambiente (PNUMA), a publicação do relatório Nosso futuro comum (relatório Bruntland), a concepção do conceito de desenvolvimento sustentável, a Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento e o Protocolo de Quioto. Esses grandes eventos internacionais, bem como o arcabouço normativo deles resultante, indiciam a aparente centralidade do tema do meio ambiente na agenda política dos principais atores internacionais.

Esse cenário que, em análise preliminar, indica tendência à cooperação entre os atores, em exame aprofundado, revela os problemas dos diversos regimes ambientais, a inocuidade de suas normas e de seus arranjos jurídicos, bem como a ausência de coordenação sobre assuntos que, em seu cerne, são interdependentes. Se o Tratado da Antártica (1959), a Convenção de Montego Bay sobre direito do mar (1982), e o regime sobre a camada de ozônio (Convenção de Viena, de 1985; Protocolo de Montreal, de 1987) podem ser considerados resultados exitosos da cooperação em temas ambientais sensíveis, em outros itens da agenda, como redução de gases estufa e proteção da biodiversidade, predomina dissenso entre os principais atores internacionais. Estes adotam, no âmbito das negociações, postura diplomática de defesa, por vezes intransigente, do interesse nacional, atuando com fulcro nas premissas do realismo político clássico de jogo de soma zero, ainda que travestido de juridicidade e de discurso altruísta[iv].

A ausência de consenso sobre aspectos ambientais basilares (e.g. metas redução de gases de efeito estufa), a posição obstrucionista de alguns Estados importantes (e.g. EUA), a própria contestação de prognósticos científicos por parte minoritária da comunidade de pesquisadores e a abundância de atores interessados (stakeholders)[v] são problemas que protelam a obtenção de consenso mais efetivo acerca de normas ambientais mais rigorosas, que vinculem os Estados, em benefício da humanidade. Essa constatação, embora pessimista, não ignora a expressiva convergência - impulsionada pela pressão da opinião pública internacional e pela crescente conscientização de estadistas - que se observa em temas ambientais específicos (e.g. combate à desertificação, proteção de espécies em extinção) e que, com o tempo, pode alcançar outras vertentes do sistema de proteção ambiental internacional.

A pressão difusa da sociedade civil e da comunidade científica e a iniciativa de pequenos Estados isolados são, entretanto, insuficientes para o desenvolvimento de política de centralização dos temas ambientais no âmbito de organização internacional específica que, como a OMC, possa abarcar (e faça cumprir compulsoriamente), sob a forma de tratado guarda-chuva (umbrella treaty), todos os outros acordos sobre meio ambiente. Essa organização centralizadora possibilitaria a convergência dos diversos regimes ambientais sob a tutela uma única entidade, característica que, possivelmente, contribuiria para o aumento da relevância do tema. Como explicitado por Keohane, essa organização, além disso, facilitaria a cooperação subsequente, pois esta ocorreria em arena fortemente institucionalizada e regida por regras jurídicas (rule based), aspecto que mitigaria os problemas decisórios decorrentes das diferenças de poder entre os Estados (power based).

2.3. Meio ambiente e livre-comércio: bens públicos globais?

A inexistência de condições atuais ao surgimento de organização exclusiva para o meio ambiente não decorre, no entanto, apenas da conduta realista dos Estados. Deve-se notar que o meio ambiente, embora seja considerado, como o próprio livre-comércio, um bem público global, apresenta alguns importantes aspectos distintivos. Estes, por sua vez, podem ser a causa das dificuldades cooperativas na área ambiental. Na teoria econômica, muito influente nos estudos racionalistas das relações internacionais, distinguem-se os tipos de bens existentes em quatro categorias, dependendo de duas características: exclusividade e rivalidade. Exclusivo é um bem que é passível de privação, algo que se pode impedir outra pessoa de ter. Rival é um bem que só pode ser usufruído por um dono, não podendo ser dividido por mais de uma pessoa, sem prejuízo do próprio bem. A partir dessas qualidades, surge a tabela dos tipos de bens:

Rivalidade/Exclusividade

Exclusivos

Não exclusivos

Rivais

Bens Privados

Recursos Comuns

Não Rivais

Club Goods

Bens Públicos

Nota-se, na análise da tabela, que há quatro tipos de bens: bens privados (rivais e exclusivos), club goods (exclusivos e não rivais), bens públicos (não rivais e não exclusivos) e bens ou recursos comuns (rivais e não-exclusivos).

Bens públicos são, por exemplo, o ar e as áreas públicas: ninguém pode ser privado deles e todos podem deles usufruir ao mesmo tempo. São bens que não tem dono e nem restrições. Bens privados são aqueles que somente uma pessoa por vez pode ter, e cujo uso implica exclusão de terceiros. Um exemplo é o sorvete de casquinha, somente uma pessoa pode comer o sorvete e é possível privar terceiros do consumo sorvete. Club goods (bens de clube) são aqueles que, apesar de não serem rivais e por isso permitirem que várias pessoas usufruam ao mesmo tempo, são exclusivos e podem ser negados a alguém. O nome já é bem específico: como um clube, pode ser usufruído por vários membros, mas nem todos podem ser membros. Os recursos comuns, por fim, apesar de não serem exclusivos, significando que não é possível impedir alguém de usufruir deles, eles são rivais, significando que também podem ser esgotados.

Com base nessa classificação, foi elaborado o conceito de bem público global[vi], cujas características coincidem, de certa forma, com as do bem público da teoria econômica, uma vez que são bens não exclusivos e não rivais. O conceito de bens públicos globais concerne, no entanto, apenas aos objetos diretamente relacionados ao sistema internacional. Na classificação proposta em trabalho publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, meio ambiente[vii] e livre-comércio foram considerados bens públicos globais. Essa semelhança entre os dois bens precisa, entretanto, ser devidamente ponderada. Se alguns elementos do meio ambiente - como, por exemplo, oxigênio atmosférico, oceanos e camada de ozônio – atendem plenamente aos requisitos classificatórios dos bens públicos globais, outros – como animais oceânicos e água potável – apresentam características diversas. Estes outros bens, os quais constituem a maior parte dos elementos naturais, são, na realidade, recursos comuns (não exclusivos, porém rivais), porque podem ser esgotados por meio do uso indiscriminado.

Diferentemente do livre-comércio, cuja coordenação internacional centralizada é a forma mais eficiente de promover a regulação, alguns problemas ambientais podem ser mais bem equacionados no âmbito local.  A maioria dos bens relacionados ao meio ambiente, embora de acesso comum, se esgotam com o tempo, como, por exemplo, reservas de madeira em floresta e os cardumes de peixes.

A parábola da tragédia dos comuns[viii], frequentemente referida em estudos sobre meio ambiente, suscita algumas possíveis respostas ao problema dos recursos comuns (sendo que apenas a segunda delas seria plenamente compatível com o advento de OI centralizadora do tema ambiental): privatização, organização centralizada ou gerenciamento local dos recursos. A proposta de privatização prega que o problema dos bens comuns é a não exclusividade. Ao converter os bens comuns em bens privados, evita-se o uso indiscriminado e impensado deles e é possível a preservação. Se os peixes da referida parábola fossem bens privados eles seriam mantidos em criadouros e a produção não colapsaria. A segunda proposta, mais compatível com a ideia de centralização dos regimes ambientais, envolve uma regulação de cima para baixo (top-down) dos bens, em que entidade específica toma as decisões e impõe uma quantidade máxima de peixes a serem pescados. Por ultimo vem uma visão que faz a crítica às duas anteriores. Baseada nos trabalhos da cientista política Elinor Ostrom, esse ponto de vista critica a perspectiva privatista, pois ela afasta da população a posse dos recursos naturais locais, sujeitando aos interesses privados. Também é criticada a aproximação centralizadora por impor à população regras e padrões arbitrários. A perspectiva de Ostrom indica o gerenciamento local dos recursos, com regras e padrões sendo gerados em uma dinâmica de baixo para cima (bottom-up). Os pescadores e as comunidades do lago se organizariam, portanto, de modo a criar seus próprios acordos relativos à preservação dos peixes, punindo qualquer um que pescasse mais do que deveria. É uma proposta que se baseia na sustentabilidade e no envolvimento das comunidades interessadas locais.

Essas considerações sobre a problemática da regulação ambiental indicam que, além inexistir vontade política dos Estados na solução conjunta dos problemas ambientais, estes se referem a dimensões múltiplas da realidade, que dificilmente poderiam ser equacionadas por meio da emulação do modelo centralizador do comércio internacional. O livre-comércio, apesar das dificuldades envolvidas em sua promoção, pode ser qualificado como um valor ou princípio, o que, adotadas certas premissas da teoria econômica, precisa ser realizado por todos os atores de forma relativamente homogênea: mediante supressão de barreiras à circulação de bens e serviços. O meio ambiente, por sua vez, não é exatamente um valor ou princípio, pois concerne a objetos materiais da realidade (e.g. peixes, água, ar). Além disso, mesmo que os atores considerassem igualmente relevante a sua proteção, não existe consenso sobre a melhor forma de realizá-la, como se evidenciou na discussão baseada na tragédia dos comuns. No âmbito internacional, portanto, a principal consequência acarretada pelas características peculiares do problema ambiental é a ausência de condições objetivas para centralização do regime.

   Após essa discussão teórica, as questões propostas no final da primeira seção poderiam ser respondidas da seguinte forma: 1) Na situação contemporânea das relações internacionais, existem condições favoráveis ao surgimento de organização internacional (similar à OMC) dedicada exclusivamente ao meio ambiente? Não. As condições políticas são desfavoráveis e a natureza do problema ambiental não plenamente é compatível com a solução formulada no âmbito de outros regimes internacionais. 2) O desequilíbrio no tratamento dos dois temas (comércio e meio ambiente) seria desfeito ou atenuado caso existisse essa organização? Possivelmente, mas a natureza distinta desses dois fenômenos implica a necessidade de revisar a relação entre eles, que, contemporaneamente, tende à oposição e ao desequilíbrio em desfavor do maio ambiente. 3) Existem diferenças intrínsecas entre o tema comercial e o ambiental que justifiquem o tratamento desigual no âmbito internacional? Sim. Conforme exposto no trecho sobre bens públicos, meio ambiente e comércio são essencialmente diferentes e, por isso, requerem tratamento distinto no âmbito internacional.


3. Comércio e meio ambiente nas organizações econômicas internacionais: o caso dos pneus recauchutados

Por causa da multiplicidade de regimes e de aspectos peculiares ao tema, o meio ambiente tem sido tratado, nas instâncias internacionais diversas, somente de forma incidental. No âmbito da OMC/GATT, nos casos decididos pelo órgão de solução de controvérsias, nota-se a importância secundária que se dispensa ao tema. Em regra, a medida de proteção ambiental, ainda que amparada no art. XX do GATT, só é aceita como último recurso: apenas se não houver nenhuma outra forma disponível de alcançar o objetivo, a restrição comercial/proteção ambiental é juridicamente admissível. Com freqüência, os painelistas do OSC sugerem medidas alternativas que, a despeito de serem menos favoráveis ao meio ambiente, prejudiquem menos o livre-comércio. Este, por conseguinte, é o valor fundamental que deve ser protegido pela organização.

Fábio Morisini, ao estudar a jurisprudência das organizações comerciais, classifica os casos pertinentes à relação entre comércio e meio ambiente em quatro categorias (Morosini, 2007, p. 4), baseadas no tipo de medida ambiental que afeta o livre-comércio. A situação mais comum é aquela na qual determinada política ambiental doméstica, destinada à proteção do meio ambiente nacional, implica restrições comerciais. Em segundo lugar, Morisini cita os casos em que os Estados adotam medidas unilaterais para resguardar o meio ambiente externo à sua jurisdição. Constituem a terceira categoria os casos nos quais a medida protetiva, criadora de barreira para as trocas comerciais, é fundamentada em tratado multilateral. Quando a barreira ao intercâmbio mercantil decorre da regulação de processos produtivos estrangeiros, o caso enquadra-se, finalmente, na última categoria citada por Morosini.

O caso no qual Morosini mais aprofunda sua análise, referente à importação de pneus recauchutados, situa-se na primeira categoria de relação comércio/meio ambiente. Nessa controvérsia, cujo início ocorre no âmbito do Mercosul, concerne às medidas proibitivas, adotadas por Brasil e pela Argentina, contra importação de pneus recauchutados do Uruguai. Na fase em que a disputa ocorreu no Mercosul, a decisão favorável ao Uruguai reconheceu, inclusive em instância recursal, no caso argentino, que as medidas adotadas pelos demandados eram arbitrárias e discriminatórias, e que, por isso, contrariavam os princípios do bloco (Morosini, 2008, pp. 73-90). A despeito das normas ambientais existentes em diversos instrumentos regionais (Art. 50 do Tratado de Montevidéu[ix], Preâmbulo do Tratado de Assunção[x], Declaração de Canela[xi]), a decisão claramente destacou o livre-comércio como principal valor a ser protegido pelo órgão de solução de controvérsia.

Quando levado à OMC, o caso – que envolveu o Brasil como parte demandada e a Comunidade Europeia como demandante - foi tratado de maneira similar, e os resultados foram semelhantes aos das decisões do Mercosul. De forma resumida, os fatos e as discussões subjacentes a disputa podem ser assim descritos (Morosini, 2008, pp. 91-93): no ano de 2000, o Brasil criou restrição à importação de pneus recauchutados de países não membros da Mercosul. Em 2004, a Comunidade Europeia, após consultas, requereu instauração de painel na OMC, no qual o Brasil argumentou que ação tomada teve como intenção proteger a vida animal, vegetal e humana dentro de seu território (o país citou problemas de doenças contagiosas (e.g. dengue). A essa explicação, a Comunidade Europeia contrapôs a tese segundo a qual a ação brasileira teve como objetivo proteger a indústria doméstica, medida que estaria em desacordo com as normas multilaterais de comércio e que, por consequência, acarretaria grande prejuízo aos produtores europeus.

Juridicamente, o OSC da OMC analisou, com fulcro no art. XX do GATT, o caso mediante formulação de três questionamentos, cujas respostas seriam as bases da decisão: 1) há discriminação arbitrária entre países onde prevalecem as mesmas condições? 2) há discriminação injustificável entre países onde prevalecem as mesmas condições? 3) há uma restrição disfarçada ao comércio internacional? Na decisão final, favorável à União Europeia, concluiu-se que as medidas administrativas e políticas adotadas pelo Brasil implicaram discriminação arbitrária ou injustificável ao produto europeu, e uma restrição disfarçada ao comércio internacional, uma vez que o país sul-americano estaria impedindo a importação para ajudar a indústria doméstica de pneus.

A interpretação do artigo XX do GATT formulada pelo OSC é o modelo de decisão nos litígios que envolvem comércio e meio ambiente na OMC. Em síntese, esse padrão pode ser assim descrito: o Estado demandante contesta alguma medida de proteção ambiental adotada pelo demandado. O primeiro, que litiga em nome livre comércio, obtém solução favorável, em detrimento da medida de proteção ambiental. As posições de demandante e de demandado independem do grau de desenvolvimento Estado: países desenvolvidos e países em desenvolvimento figuram, indiscriminadamente, em ambas as posições. O resultado, de igual maneira, depende menos do poder do Estado do que da posição que ele defende: o Estado defensor de medidas ambientais tende a ser derrotado na controvérsia. A OMC, dessa forma, por meio de seu órgão de solução de controvérsia, considera que o aspecto ambiental deve ser tolerado em situações muito restritas, dificilmente observáveis na realidade.

Uma organização centralizadora do regime do ambiental, cuja existência, na atualidade, é bastante improvável, poderia alterar essa situação das seguintes formas: a organização poderia sistematizar o discurso ambiental e, dessa forma, pronunciar-se em nome de todos os atores (stakeholders) envolvidos no tema, o que garantiria maior força política ao discurso e influenciaria todas as outras instâncias decisórias da sociedade internacional, inclusive os organismos econômicos. Além disso, a organização, caso tivesse mecanismo de solução de controvérsias próprio, poderia avocar, prioritariamente, casos relacionados ao meio ambiente para sua esfera decisória. A organização teria, portanto, competência privilegiada no julgamento de casos que evolvessem aspectos ambientais, atributo que deslocaria as controvérsias - como, por exemplo, o dos pneus recauchutados – para sua jurisdição, em detrimento de outras OIs.


 4. Conclusão

Ao longo dos últimos anos, as relações entre comércio internacional e meio ambiente têm apresentado desequilíbrio. Ainda que ambos constem da agenda política dos principais atores internacionais, apenas o comércio internacional tem sido tratado de forma prioritária e verdadeiramente coordenada pelos atores estatais. No âmbito internacional, os arranjos institucionais pertinentes ao comércio são mais bem organizados, centralizados e efetivos, enquanto, no tema ambiental, predominam a descentralização decisória, a multiplicidade de regimes e a dificuldade de cooperação entre os Estados. Da comparação entre as características referentes aos dois temas, resulta a preponderância dos princípios regentes do livre-comércio, em detrimento das normas de proteção ambiental, que se tornam mais vulneráveis no âmbito de instâncias internacionais dedicadas precipuamente à temática econômica, como, por exemplo, a OMC.

Em razão das condições políticas contemporâneas, em que predomina dissenso sobre aspectos fundamentais relativos ao meio ambiente, a criação de organização internacional especializada no tema – que facilitaria a cooperação, conforme explicado por Keohane, e incrementaria a relevância do tema - parece distante e improvável. A própria natureza do tema ambiental, que envolve interesses múltiplos e aspectos diversos, como evidenciado na discussão sobre os bens públicos globais, dificulta a cooperação mínima necessária para concepção desse novo e amplo regime, o qual possibilitaria a reversão do desequilíbrio existente entre meio ambiente e os temas econômicos em geral.

No curto prazo, a tendência, portanto, é que o meio ambiente, no plano internacional, seja caracterizado pela diversidade de regimes - compostos por múltiplos tratados, normas, princípios e práticas -, o que impossibilita a maior coordenação dos atores interessados (stakeholders) e enfraquece a posição do tema perante outros regimes internacionais. Da mesma forma, o meio ambiente continuará a ser referenciado, de forma incidental, em organizações internacionais diversas. No âmbito destas, em especial nas organizações econômicas, a tendência é que o meio ambiente seja considerado matéria secundária, que deve ser observada apenas se o objeto principal da organização não for prejudicado. Os aspectos verificados na jurisprudência do OSC da OMC, portanto, devem perdurar - como padrão e como precedente - no futuro imediato, mesmo em decisões de outras organizações dedicadas ao comércio e às finanças internacionais.


Referências bibliográficas:

AMARAL JR, Alberto do. Introdução ao Direito Internacional Público. São Paulo: Atlas, 2008.

CARBONE, Maurizio. “Supporting or Resisting Global Public Goods” in Global Governance, n.º 13, 2007, pp. 179-198.

DUFFIELD, John. “What are International Institutions” in International Studies Review, Vol. 9, 2007, pp. 1-22.

KAUL, Inge; GRUNBERG, Isabelle e STERN, Marc A. “Defining Global Public Goods”.

KEOHANE, Robert. “International Institutions: Two Approach” in International Studies Quarterly, vol. 32, n.º 4, pp. 379-396, 1988.

LAFER, Celso. Comércio, desarmamento de direitos humanos: reflexões sobre uma experiência diplomática. São Paulo: Paz e Terra, 2006.

MOROSINI, Fábio. The Mercosur and WTO Retreated Tires Dispute: Rehabilitating Regulatory Competition in International Trade and Environmental Regulation (Dissertação de Mestrado defendida pelo autor na Universidade do Texas, Austin, dezembro de 2007)

NARLIKAR, Amrita. The World Trade Organization: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2005.

RIBEIRO, Wagner Costa. A ordem ambiental internacional. São Paulo: Contexto, 2008.

STEINBERG, R. H. “In the Shadow of Law or Power? Consensus-Based Bargaining and Outcomes in the GATT/WTO”. International Organization, V. 56, N.º 2, 2002, pp. 339-374.

VEIGA, José Eli da. A desgovernança mundial da sustentabilidade. São Paulo, Editora 34, 2013.


Notas

[i] John Duffield, ao discorrer sobre o construtivismo, afirma que essa inter-subjetividade é o compartilhamento de modelos mentais entre os atores (What Are International Institutions?, 2007, p. 8)  

[ii] Idem, p. 380.

[iii] Idem, p. 386.

[iv] Idem, p. 37.

[v] O professor José Eli da Veiga, em obra recente, enumera os diversos problemas da ordem ambiental, a qual se caracterizaria pela ausência de governança e por êxitos frágeis aparentes ou vitórias de Pirro (A desgovernança mundial da sustentabilidade, 2007, p. 62)

[vi] “Global public goods must meet two criteria. The first is that their benefits have strong qualities of publicness—that is, they are marked by non rivalry in consumption and non excludability. These features place them in the general category of public goods. The second criterion is that their benefits are quasi universal in terms of countries (covering more than one group of countries), people (accruing to several, preferably all, population groups), and generations (extending to both current and future generations, or at least meeting the needs of current generations without foreclosing development options for future generations). This property makes humanity as a whole the publicum, or beneficiary of global public goods”. (Kaul, Inge; Grunberg, Isabelle e Stern, Marc A. Defining Global Public Goods, pp. 2 e 3).

[vii] Conforme explicitado por Maurizio Carbone, na lista de bens públicos globais, o meio ambiente foi representado por três itens: camada de ozônio, clima e sustentabilidade ambiental (Carbone, Maurizio. Supporting or Resisting Global Public Goods? The Policy Dimension of a Contested Concept, p. 182)

[viii] Nessa parábola, em volta de um lago, vive uma comunidade baseada na pesca. Eles conseguem do lago o que precisam para sobreviver até que se desenvolvem novas tecnologias, e os mecanismos de pesca melhoram. Com isso, eles passam a pescar mais peixes do que deveriam, e os peixes no lago não conseguem mais se reproduzir no ritmo em que seria necessário para manter o volume de pesca. Os pescadores sabem que estão pescando mais do que deveriam, mas decidem continuar pescando, porque é melhor pra eles. Mesmo que um pescador pare de pescar os outros continuarão a fazer errado. Finalmente os peixes do lago acabam, e toda a sociedade que se baseava na pesca quebra.

[ix] “Artigo 50:  Nenhuma disposição do presente Tratado será interpretada como impedimento à adoção e no cumprimento de medidas destinadas à: d) Proteção da vida e saúde das pessoas, dos animais e dos vegetais;”

[x] “Entendendo que esse objetivo deve ser alcançado mediante o aproveitamento mais eficaz dos recursos disponíveis, a preservação do meio ambiente, o melhoramento das interconexões físicas, a coordenação de políticas macroeconômicas e a complementação dos diferentes setores da economia, com base nos princípios de gradualidade, flexibilidade e equilíbrio...”.

[xi] No item I da Declaração de Canela, de 1992, assevera-se “La crisis ambiental amenaza la sobrevivencia em la Tierra. Vivimos en un ecosistema cuyo equilibrio es esencial para toda la humanidad, la protección del ambiente y la conservación racional de los recursos naturales requiere el firme compromiso de todos los Estados del mundo en la realización de una tarea concertada, que asegure a las generaciones futuras la subsistencia de las condiciones qua hacen posible la vida en nuestro planeta”.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KIITHI, Mauro Kiithi Arima Junior; CAVALCANTE, Afonso Andre de Paiva. Comércio internacional e meio ambiente: uma relação desequilibrada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4214, 14 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31916. Acesso em: 24 abr. 2024.