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Superação legislativa da jurisprudência constitucional

Superação legislativa da jurisprudência constitucional

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Nosso sistema de tutela à Constituição é baseado no diálogo institucional e na reavaliação constante de matérias, sendo possível que o Legislativo revise a jurisprudência do STF, desde que obedecida a separação dos poderes.

RESUMO: Embora não se discuta o papel do STF na guarda da Constituição Federal, o ordenamento pátrio não admite um sistema fechado de interpretação constitucional, no qual caberia a um único órgão a palavra final sobre determinada controvérsia. Do contrário, nosso sistema de tutela à Magna Carta é baseado no mútuo diálogo e na reavaliação constante, sendo possível que o Legislativo, mediante a sua função típica de legislar, revise a jurisprudência do STF, obedecidos apenas os limites decorrentes do princípio da separação dos poderes.

PALAVRAS-CHAVE: Hierarquia das normas. Controle de constitucionalidade. STF. Efeito vinculante. Poder legislativo. Revisão legislativa. Reversão jurisprudencial.


01. INTRODUÇÃO

As normas que governam nossa sociedade não ostentam a mesma normatividade quando comparadas entre si, uma vez que é esperado o surgimento de conflitos naturais entre os seus preceitos, razão pela qual o próprio Direito, capaz de auto regulação, estabelece critérios para fazer prevalecer certa norma em detrimento de outra. Assim, sendo possível que uma regra jurídica deixe de existir por colidir com outra considerada superior, afigura-se possível escalonar todo o ordenamento em graus hierárquicos, nos quais as normas de menor grau buscarão seu fundamento de validade naquelas de maior grau, que lhes determinarão limites de conteúdo e seu processo de elaboração.

Quando o conflito envolver regra prescrita na Constituição Federal, incidirá o mecanismo do controle de constitucionalidade, que privilegia a unidade e a supremacia da Carta Constitucional. Qualquer juiz ou Tribunal, nos litígios sub judice, poderá reconhecer a inconstitucionalidade de uma norma, nos limites do caso concreto. Já em âmbito nacional, com eficácia contra todos e efeito vinculante, somente o Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário, é competente para efetivar o controle abstrato-concentrado. Suas decisões, no entanto, não vinculam o próprio plenário da Corte, que promove constante reavaliação de seus julgados, desde que provocado, com vistas a evitar o engessamento da Constituição. Por outro lado, também o Poder Legislativo não é definitivamente vinculado pelos julgamentos, podendo, através da sua função típica de legislar, reagir às decisões da Corte com a edição de atos normativos em sentido contrário à coisa julgada constitucional. Essa prerrogativa, in primis, é legítima e faz parte do saudável diálogo que mantém a harmonia entre os Poderes, inexistindo, em nosso ordenamento jurídico, um único órgão capaz de dar a palavra final em termos de interpretação constitucional. Do contrário, tem-se um sistema aberto de constante releitura das regras da Constituição, adaptando-a à mudança das condições fáticas e sociais decorrentes do transcurso do tempo. Registre-se, enfim, que o Legislativo não é completamente livre, havendo limites que resguardam a própria autoridade e papel institucional do STF.                       


02. A HIERARQUIA DAS NORMAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO

Antes de falar em controle de normas, é preciso fixar como premissa os critérios de hierarquia entre os diferentes comandos legais em nosso sistema jurídico, afinal não há controle sem a delimitação do parâmetro controlador e do objeto controlado. De fato, o Direito tem essa peculiaridade de regular a si próprio, podendo uma norma determinar não apenas o processo pelo qual outra norma é produzida, mas também o conteúdo da norma a produzir. Nessa linha, conforme o esquema de supra-infra-ordenação, traçado por Hans Kelsen, a norma superior regula a forma de produção da norma inferior, atribuindo-lhe validade, desde que obedecida a forma prescrita por aquela, que consubstancia seu fundamento imediato de validade. Certa norma será superior a outra, portanto, quando determinar-lhe seu processo de criação. Ainda assim, indagar-se-ia os casos de normas cuja criação é autorizada por parâmetros distintos, ou ainda de normas diferentes que obedecem ao mesmo regramento de formação. Nesse casos, a superioridade estará caracterizada quando, havendo conflito entre duas normas, considera-se válida a primeira e não a segunda. Nas palavras de Marcelo Novelino:

“Na classificação proposta haverá hierarquia toda vez que a forma de elaboração ou o conteúdo de uma norma forem determinados por outra. Para ser considerada válida, a norma deverá ser elaborada em conformidade com o seu fundamento de validade. A subordinação jurídica implica a prevalência da norma superior sobre a inferior sempre que houver um conflito entre elas”.[1]

A hierarquia entre as normas pode ser estudada sob os diferentes níveis federativos. No âmbito federal, a Constituição Federal ocupa o ápice do sistema, sendo pacífico que não existe qualquer hierarquia jurídica entre normas constitucionais, sejam essas originárias ou derivadas. Equiparados às emendas constitucionais, tem-se os tratados e convenções internacionais de direitos humanos aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos de votação por três quintos dos respectivos membros, a teor do § 3º do art. 5º da CF/88. Em nível abaixo, localizam-se os atos que encontram supedâneo direto na Constituição, chamados de atos normativos primários, quais sejam, leis ordinárias, leis complementares, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções da Câmara, do Senado e do Congresso Nacional. Nesse mesmo nível também estão os tratados e convenções internacionais que não versem sobre direitos humanos (status de lei ordinária)[2]. No nível inferior, localizam-se os decretos regulamentares emitidos pelo Poder Executivo para facilitar o cumprimento e execução das leis, sendo conhecidos como atos normativos secundários, por obter seu fundamento de validade direto das próprias leis que buscam regulamentar, às quais estão materialmente subordinados, sendo ainda indiretamente fundamentados pela Constituição Federal.

Já no âmbito estadual, tem-se que as Constituições Estaduais estão localizadas abaixo da Constituição da República, por se submeterem aos princípios e normas de observância obrigatória nela consignados, mas acima das leis estaduais e municipais do respectivo Estado. Já no comparativo entre a Constituição Estadual e a lei orgânica municipal, há quem defenda, em homenagem à autonomia dos entes federativos, igual posição hierárquica. A doutrina majoritária, contudo, orienta-se no sentido de que a lei orgânica deve obediência aos princípios da Constituição do respectivo Estado, havendo, portanto, subordinação material que justifica a hierarquia entre os dois diplomas normativos. Por fim, no âmbito municipal, verifica-se, abaixo da Constituição da República e abaixo da Constituição Estadual, a lei orgânica do Município, que prevalece hierarquicamente sobre as leis municipais ordinárias e complementares, por lhes determinar o conteúdo e forma de elaboração. Frise-se que, havendo conflito entre a lei orgânica e outra lei municipal, não se falará em controle de constitucionalidade, mas sim mero controle de legalidade.

Por ser a própria Constituição Federal o fundamento imediato da validade das leis federais, estaduais, distritais e municipais, não se verifica hierarquia entre as normas dos três níveis federativos. A Carta Maior estabeleceu um sistema de repartição horizontal de competências, sendo que qualquer usurpação de competência legislativa de um entre por outro ensejará transgressão constitucional, não importando que o ente usurpador seja maior que o ente usurpado. Como bem explica Rafael Arrieiro Continentino:

“Todos os Entes Políticos brasileiros são servos do texto constitucional, devendo, assim, atuar em conformidade à rígida distribuição de competências. Um não pode se aventurar em searas normativa e administrativa reservadas constitucionalmente ao outro Ente. Um não pode usurpar do outro sua competência constitucional. Daí, a conclusão é simples e de clareza solar: não é pelo fato de uma lei emanar do Órgão legislativo da União Federal (Congresso Nacional) que gozará de supremacia sobre uma lei confeccionada pelo Órgão legislativo municipal (Câmara de Vereadores). Se o legislador federal invadir o campo de competência legislativa reservado constitucionalmente à atuação do legislador municipal, a lei federal será inconstitucional (inconstitucionalidade formal orgânica), ou seja, inválida em nosso ordenamento jurídico”.[3]

Verificado conflito normativo, é de se notar que apenas a determinados órgãos compete anular normas editadas sem obediência ao prescrito por outras de nível superior, ou com o conteúdo em desacato ao delas. Em se tratando de conflito com a Constituição, qualquer juiz ou tribunal poderá reconhecer a inconstitucionalidade por intermédio do controle difuso, caso em que o tal reconhecimento será válido, apenas, para o caso concreto objeto da decisão. Já a competência para declarar a inconstitucionalidade em abstrato da norma, excluindo-a do ordenamento, é restrita ao Supremo Tribunal Federal e aos Tribunais de Justiça, no exercício do controle concentrado de constitucionalidade, federal e estadual, respectivamente.


03. CONCEITO E FORMAS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

O conceito de controle de constitucionalidade está ligado à supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico e, também, à rigidez constitucional e à proteção dos direitos fundamentais. Em primeiro, é pressuposto necessário à supremacia constitucional o escalonamento das normas jurídicas do ordenamento, afinal, ocupando a Constituição o ápice do sistema, é nela que o legislador ordinário buscará a forma de elaboração legislativa e os limites de conteúdo das normas. Além disso, a rigidez constitucional, ao estabelecer procedimento mais solene e dificultoso para as alterações constitucionais, confere superioridade à norma magna em relação àquelas produzidas pelo Poder Legislativo no exercício da função legiferante ordinária. A interseção entre o controle de constitucionalidade e a rigidez constitucional é tal que no Estado onde inexistir esse controle, a Constituição será flexível, mesmo que se autodenomine rígida, porquanto o poder constituinte derivado estará livre nas mãos do legislador ordinário. Ressaltando as características de rigidez e supremacia da Constituição, o preclaro Alexandre de Moraes relaciona-as à supremacia dos próprios direitos e garantias fundamentais, ensinando:

“O controle de constitucionalidade configura-se, portanto, como garantia de supremacia dos direitos e garantias fundamentais previstos na constituição que, além de configurarem limites ao poder do Estado, são também uma parte da legitimação do próprio Estado, determinando seus deveres e tornando possível o processo democrático em um Estado de Direito”.[4] 

Em sede de conceito, controlar a constitucionalidade significa aferir a compatibilidade de certo ato normativo (objeto) com a Constituição (parâmetro), verificando a regularidade de seus requisitos formais e materiais, tarefa própria de órgãos específicos, consoante já antevisto alhures. Assim, esse controle das leis e atos normativos opera-se de variadas formas, por atores diversos e em momentos distintos, cabendo breve exposição sobre as formas de controle.

Quanto ao momento, o controle poderá ser preventivo ou repressivo. Quando preventivo, ocorrerá antes da promulgação do ato normativo, com o fito de evitar lesão à Lei Maior. Será exercido pelo Poder Legislativo, no âmbito das Comissões de Constituição e Justiça; pelo Poder Executivo, através do veto jurídico oposto pelo Presidente da República a projeto de lei considerado inconstitucional; pelo Poder Judiciário, no caso de impetração de mandado de segurança por parlamentar que denuncie a inobservância do processo legislativo constitucional. Nesse último caso, vale aprofundar a análise com o magistério de Pedro Lenza:

“Explicando, a única hipótese de controle preventivo a ser realizado pelo Judiciário sobre projeto de lei em trâmite na Casa Legislativa é para garantir ao parlamentar o devido processo legislativo, vedando a sua participação em procedimento desconforme com as regras da Constituição. Trata-se, como visto, de controle exercido, no caso concreto, pela via de exceção ou defesa, ou seja, de modo incidental.

Portanto, o direito público subjetivo de participar de um processo legislativo hígido (devido processo legislativo) pertence somente aos membros do Poder Legislativo. A jurisprudência do STF consolidou-se no sentido de negar a legitimidade ativa ad causam a terceiros, que não ostentem a condição de parlamentar, ainda que invocando a sua potencial condição de destinatários da futura lei ou emenda à Constituição, sob pena de indevida transformação em controle preventivo de constitucionalidade em abstrato, inexistente em nosso sistema constitucional”.[5]

Já o controle repressivo opera-se depois de concluído definitivamente o processo legislativo, quando já constatada a efetiva lesão aos ditames constitucionais. Será efetivado pelo Poder Legislativo, no exercício da competência do Congresso Nacional de sustar os atos do Poder Executivo que exorbitem os limites da delegação legislativa ou do poder regulamentar, podendo o Parlamento, ainda, rejeitar medida provisória inconstitucional; pelo Poder Executivo, a quem compete negar cumprimento à lei que considere inconstitucional, justificando o motivo da recusa por escrito e promovendo a publicidade do ato; pelo Poder Judiciário, protagonista do controle repressivo, no qual qualquer juiz ou tribunal, no exercício do controle difuso, pode afirmar a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo, enquanto que o controle concentrado, de âmbito nacional, fica reservado ao Supremo Tribunal Federal. Distingue-se, portanto, dentro do controle repressivo, os aspectos de controle concreto e de controle abstrato.

Quando, em sede de processo constitucional subjetivo, analisa-se a constitucionalidade para atender interesse particulares envolvendo direitos subjetivos, denomina-se esta espécie de controle concreto, incidental, por via de defesa ou por via de exceção. Nesse caso, antes de decidir a questão de fato objeto de litígio, precípuo aferir, incidenter tantum, como prejudicial de mérito, a questão de direito envolvendo a compatibilidade entre a lei e o parâmetro constitucional. Logo, a questão constitucional consubstanciará antecedente lógico, temporal e incidental para a formação do juízo de convicção derredor da matéria principal; daí a expressão controle incidental. Por outro lado, o controle abstrato (principal, por via de ação ou por via direta) será exercido em tese, dispensando a existência de um caso concreto a ser levado ao Poder Judiciário, atendo-se ao conflito direto existente entre a norma impugnada e o parâmetro constitucional, consoante critérios não apenas jurídicos, mas também considerados os elementos fáticos da questão. Resguardadas essas diferenças, fato é que ambas as modalidades de controle repressivo apresentam, entre si, muito mais semelhanças, como bem é apontado por Marcelo Novelino:

“No controle dito ‘concreto’ o processo mental de verificação da constitucionalidade é semelhante ao desenvolvido no controle abstrato, com a diferença de que a aferição da constitucionalidade do ato (antecedente) precede a decisão de um caso concreto (consequente). Apesar de se influenciarem reciprocamente, as duas análises, a rigor, são feitas em separado. A primeira envolve uma ‘questão de direito’ consistente na verificação, a partir do problema suscitado, da compatibilidade entre a lei (objeto) e a Constituição (parâmetro). A segunda está relacionada a uma ‘questão de fato’ na qual é analisada especificamente a situação concreta do autor, ou seja, todo e qualquer fato relevante para a aplicação da norma. A análise da questão de direito (constitucionalidade da lei) será um pressuposto para decidir a questão de fato (procedência do pedido)”.[6]

Esclarecido o conceito de controle de constitucionalidade e as formas pelas quais poderá ser exercido, de forma panorâmica, passa-se à análise, em apartado, da eficácia desse controle e de seus efeitos perante os órgãos do Poder Judiciário e da administração pública.


04. EFEITOS E EFICÁCIA DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

Quanto aos efeitos, diferem as modalidades concreta e abstrata do controle repressivo de constitucionalidade. No caso do controle concreto-difuso, que tem lugar no âmago de processo judicial subjetivo, que interessa apenas às partes, o órgão jurisdicional não declarará a inconstitucionalidade da norma impugnada no dispositivo da decisão, mas, tão somente, reconhecerá o vício e afastará sua aplicação no caso concreto sub judice. No universo dos Tribunais, todavia, para que o órgão fracionário possa inaplicar a norma por havê-la por inconstitucional, mister se faz a existência anterior de declaração expressa de invalidade desse norma, seja pelo próprio tribunal – por intermédio de seu Pleno ou órgão especial – seja pelo STF. Em ambos os casos, o reconhecimento da inconstitucionalidade produz efeito apenas entre as partes envolvidas na lide, não alcançando terceiros estranhos à relação processual, com eficácia retroativa, isto é, ex tunc.

Passando-se ao controle abstrato-concentrado, o art. 102, § 2º, da CF/88 é claro ao atribuir máxima abrangência à decisão do STF, produzindo eficácia erga omnes e efeito vinculante em relação ao Poder Judiciário e aos órgãos da administração pública direta e indireta de todos os entes federativos. Transcreva-se a redação do dispositivo legal:

Art. 102, § 2º, CF/88 – “As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”.[7]

A eficácia erga omnes, corolário do processo objetivo, no qual inexistem partes formais, alcança indistintamente a todos, tanto particulares quanto poderes públicos, que serão atingidos pelo dispositivo do julgado. Já o efeito vinculante é mais restrito, alcançando apenas os órgãos do Poder Judiciário e da administração pública direta e indireta nacional, nunca atingindo particulares senão apenas reflexamente, nas suas interações com aqueles órgãos. Trata-se de instituto semelhante ao stare decisis do direito norte-americano, característico do sistema do common law, onde os órgãos judiciais devem hirta obediência a seus precedentes. Trata, o stare decisis, de uma decisão judicial paradigmática que produzirá o binding effect, o qual consiste no efeito vinculante aos órgãos e membros do Executivo e do Judiciário. Sobre esse instituto, assim dispõe Marcelo Novelino:

“Em sentido horizontal, este sistema impõe o respeito aos precedentes produzidos internamente pelo próprio tribunal. Em sentido vertical, determina a vinculação dos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública. No direito norte-americano, as decisões proferidas pela Suprema Corte em matéria constitucional vinculam, além dos próprios membros, todos os demais órgãos do Poder Judiciário (binding effect)”. [8]

Por óbvio, apesar de servir como leading case a ser observado pelos relatores e turmas do Supremo Tribunal Federal, essas decisões não vinculam o plenário da própria Corte, que tem ampla liberdade para revisitar e rever os seus julgados, desde que provocado. Também não é vinculado o Poder Legislativo, em sua função típica de legislar, razão pela qual, em tese, o legislador poderá elaborar uma nova lei contrariando a tese jurídica considerada inconstitucional pelo Tribunal, em função da relação de equilíbrio existente entre os poderes. Diz-se em tese porque, embora correto o raciocínio acima, toda vez que o Parlamento edita uma norma colidente com entendimento sedimentado do STF, verifica-se verdadeiro atrito entre os dois poderes envolvidos, fato que, em caso de abuso, pode engendrar transgressões aos papéis constitucionais de ambos.


05. A REVERSÃO JURISPRUDENCIAL POR REAÇÃO LEGISLATIVA

Como dito acima, conquanto as decisões do Pretório Excelso, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, sejam dotadas de eficácia erga omnes e efeito vinculante, não está o Poder Legislativo proibido de editar leis ou emendas constitucionais em sentido contrário ao que a Corte já decidiu, inexistindo vedação prévia a tais atos normativos, que promoverão a superação da jurisprudência. Trata-se de uma reação legislativa à decisão da Corte Constitucional com o objetivo de reversão jurisprudencial. Analisando o tema, Pedro Lenza entende que eventual proibição ao Poder Legislativo de contrariar a jurisprudência do STF significaria inconcebível fenômeno de fossilização da Constituição. Em sua dicção:

“O Legislativo, assim, poderá, inclusive, legislar em sentido diverso da decisão dada pelo STF, ou mesmo contrário a ela, sob pena, em sendo vedada essa atividade, de significar inegável petrificação da evolução social. Isso porque o valor segurança jurídica, materializado com a ampliação dos efeitos erga omnes e vinculante, sacrificaria o valor justiça da decisão, já que impediria a constante atualização das constituições e dos textos normativos por obra do Poder Legislativo”.

Por outro lado, essa reação do Parlamento com o desiderato de suplantar a autoridade das decisões da Corte Suprema pode-se revelar abusiva quando transbordar os limites da função constitucional do Poder Legislativo para desconstituir atuação legítima do Poder Judiciário, a fim de atender interesse escusos, com evidente violação ao princípio da separação dos poderes. Verifica-se, nesses casos, que, diante da insatisfação do parlamento com certa declaração de inconstitucionalidade da Suprema Corte – sendo esta declaração legítima – em vez de se curvar ao Guardião da Constituição, procura o Parlamento via oblíqua para fazer prevalecer a sua vontade, qual seja, a edição de ato normativo que atropele a decisão judicial, fazendo sucumbir a autoridade do Judiciário. Essa situação, por óbvio, merece ser rechaçada com veemência, razão pela qual traçou-se certos limites à prerrogativa de reação legislativa, com vistas a preservar a harmonia entre os poderes.

Em decisão plenária na ADI n. 5.105/DF, de relatoria do Min. Luiz Fux, julgada em 01 de outubro de 2015, com divulgação no informativo de jurisprudência n. 801, o Supremo Tribunal Federal apreciou a matéria e fixou limites à atuação congressual. Tratando-se de revisão legislativa proposta por meio de emenda constitucional, a invalidação somente ocorrerá nas estritas hipóteses de violação ao art. 60 e §§ da CF/88. Logo, caso o Congresso Nacional edite emenda destinada a alterar a interpretação dada pelo STF para determinado tema, essa emenda somente poderá ser declarada inconstitucional se ofender cláusula pétrea ou o processo legislativo para edição de emendas. Isso porque, nessa hipótese, opera-se verdadeira mudança no paradigma de controle que subsidiou o entendimento da corte julgadora, sendo impossível a subsistência do julgado, já que a premissa em que este se fundava – norma constitucional objeto de alteração – deixou de existiu no ordenamento pátrio.

Diferente é a situação da reversão jurisprudencial proposta por lei ordinária, a qual colidirá frontalmente com a jurisprudência do STF, nascendo, portanto, com presunção relativa de inconstitucionalidade. Nesse caso, caberá ao legislador o ônus de demonstrar, argumentativamente, que a correção do precedente se afigura legítima; para ser considerada válida, o Congresso Nacional deverá comprovar que as premissas fáticas e jurídicas sobre as quais se fundou a decisão do STF no passado não mais subsistem. Estará o Poder Legislativo, portanto, promovendo verdadeira hipótese de mutação constitucional pela via legislativa, a qual não exclui a inafastável prerrogativa do STF de reapreciar a matéria em contenda sob a ótica do novel diploma legal, considerados, ainda, os argumentos congressuais que justifiquem a mudança do entendimento pretérito da Corte pela via da legislação ordinária. Trata-se de um diálogo permanentemente aberto, em que as mudanças no contexto social justificam as mutações constitucionais, ora por iniciativa do Judiciário, ora pelo Legislativo, mantendo ambos os poderes o mútuo controle que confere equilíbrio e harmonia a todo o sistema, fomentando também uma dinâmica jurídica que busca acompanhar a dinâmica social. Sobre o tema, lapidar a lição de Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto:

“(...) não é salutar atribuir a um único órgão qualquer a prerrogativa de dar a última palavra sobre o sentido da Constituição. (...). É preferível adotar-se um modelo que não atribua a nenhuma instituição – nem do Judiciário, nem do Legislativo – o “direito de errar por último”, abrindo-se a permanente possibilidade de correções recíprocas no campo da hermenêutica constitucional, com base na ideia de diálogo, em lugar da visão tradicional, que concede a última palavra nessa área ao STF. (...)

As decisões do STF em matéria constitucional são insuscetíveis de invalidação pelas instâncias políticas. Isso, porém, não impede que seja editada uma nova lei, com conteúdo similar àquela que foi declarada inconstitucional. Essa posição pode ser derivada do próprio texto constitucional, que não estendeu ao Poder Legislativo os efeitos vinculantes das decisões proferidas pelo STF no controle de constitucionalidade (art. 102, § 2º, e art. 103-A, da Constituição). Se o fato ocorrer, é muito provável que a nova lei seja também declarada inconstitucional. Mas o resultado pode ser diferente. O STF pode e deve refletir sobre os argumentos adicionais fornecidos pelo Parlamento ou debatidos pela opinião pública para dar suporte ao novo ato normativo, e não ignorá-los, tomando a nova medida legislativa como afronta à sua autoridade. Nesse ínterim, além da possibilidade de alteração de posicionamento de alguns ministros, pode haver também a mudança na composição da Corte, com reflexões no resultado do julgamento.”[9]


06. ANÁLISE DO CASO CONCRETO – ADIs 4430, 4795 e 5051.

Para melhor ilustrar o tema, interessante detalhar as minúcias do caso concreto que deu azo à consolidação do entendimento sob debate. Em junho de 2012, o Plenário do STF, ao julgar as ADIs 4430 e 4795, declarou inconstitucionais determinados dispositivos da Lei nº 9.504/97, a Lei das Eleições. Inconformado com tal declaração, o Congresso Nacional, em outubro de 2013, editou a Lei nº 12.875/2013, que alterou novamente a Lei nº 9.504/97 para reestabelecer algumas regras bem semelhantes àquelas que já haviam sido declaradas inconstitucionais pelo STF no julgamento das ADIs 4430 e 4795. Destarte, a Lei nº 12.875/2013 foi uma reação legislativa à decisão do STF, uma forma de o Parlamento superar a interpretação legislativa dada pela Corte Suprema ao tema. Contudo, não tardou a ser proposta ADI contra a novel Lei nº 12.875/2013, tombada sob o n. 5.105, abrindo espaço, então, para a regulação da temática pelo STF. O eminente relator, Min. Luiz Fux, antes de adentrar ao mérito da demanda, procedeu à revisão dos precedentes e julgados da corte derredor da matéria, sintetizando:

“Da análise dos retromencionados arestos, e da postura institucional adotada pelo Supremo Tribunal Federal em cada um deles, pode-se concluir, sem incorrer em equívocos, que (i) o Tribunal não subtrai ex ante a faculdade de correção legislativa pelo constituinte reformador ou legislador ordinário, (ii) no caso de reversão jurisprudencial via emenda constitucional, a invalidação somente ocorrerá, nas hipóteses estritas, de ultraje aos limites preconizados pelo art. 60, e seus §§, da Constituição, e (iii) no caso de reversão jurisprudencial por lei ordinária, excetuadas as situações de ofensa chapada ao texto magno, a Corte tem adotado um comportamento de autorrestrição e de maior deferência às opções políticas do legislador. Destarte, inexiste, descritivamente, qualquer supremacia judicial nesta acepção mais forte.”[10]                 

Trazendo o raciocínio para o caso dos autos, o relator verificou não ser legítima a hipótese de revisão legislativa, uma vez que os argumentos justificadores da nova Lei, constantes de seu respectivo projeto, não passavam de temos genéricos, distantes de ser capazes de elidir as premissas fixadas pelo STF na seara do controle concentrado de constitucionalidade, motivo pelo qual restou evidente o desrespeito legislativo à decisão da Corte. Faltou, ao Parlamento, demonstrar o desacerto do entendimento judicial, pautado em mudanças fáticas ou axiológicas, ou mesmo em error in judicando. Nos termos do julgado:

“Consoante afirmado, não se afigura legítima a edição de leis ordinárias que colidam frontalmente com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal Federal (leis in your face), sem que o legislador se desincumba do ônus de trazer aos autos novos argumentos, bem como de demonstrar o desacerto do posicionamento da Corte em razão de mudanças fáticas ou axiológicas, tomando como parâmetro, por óbvio, a mesma norma constitucional.

(...)

In casu, a situação de inconstitucionalidade se agrava porquanto a decisão se ancorou em sólida construção argumentativa calcada em cláusulas pétreas (e.g., pluralismo político, liberdade de criação de partidos políticos, tutela das minorias partidárias etc.). Ora, se o exame de validade da lei superadora se submete, prima facie, a escrutínio severo e estrito de constitucionalidade, de forma a exigir do legislador a demonstração de inadequação do precedente à luz das circunstâncias fáticas e jurídicas, este ônus é imposto, a fortiori, nas hipóteses em que o Supremo Tribunal Federal assenta a inconstitucionalidade com espeque em cláusulas pétreas”.[11]

Diante da robustez das conclusões apresentadas, não restou senão o deferimento integral dos pedidos da ADI 5.105/DF para declarar a inconstitucionalidade dos artigos 1º e 2º da Lei nº 12.875/2013, representando essa procedência, além de importantíssimo leading case para a matéria, verdadeira resposta do Judiciário aos abusos cometidos pelo Poder Legislativo no sagrado ofício da edição de atos normativos, com fomento à harmonia entre os poderes e a garantia, à sociedade civil, da higidez na observância dos preceitos constitucionais, que, em ultima ratio, não deixam de representar direitos subjetivos da coletividade. Para arrematar, vale transcrever a conclusão do julgado na ADI 5.105/DF:

“Por esses motivos, entendo que a reação jurisprudencial, materializada na Lei nº 12.875/2013, ao subtrair dos partidos novos, criados no curso da legislatura, o direito de antena e os recursos do fundo partidário, remanesce eivada do vício de inconstitucionalidade, na medida em que, além de o legislador não ter logrado trazer novos e consistentes argumentos para infirmar o pronunciamento da Corte, referido diploma inviabiliza, no curto prazo, o funcionamento e o desenvolvimento de minorias político-partidárias, em flagrante ofensa aos postulados fundamentais do pluralismo político, e da liberdade partidária, insculpidos no art. 17, caput, e § 3º, da Constituição de 1988. Ex positis, voto pela procedência total dos pedidos deduzidos, a fim de declarar a inconstitucionalidade dos artigos 1º e 2º, da Lei nº 12.875/2013”.[12]


07. CONCLUSÃO

Esclarecido que as normas no ordenamento jurídico se escalonam em diferentes níveis de hierarquia e validade, é certo que, em caso de conflito entre normas, aquela considerada inferior sucumbirá perante o parâmetro superior, o que pode se dar quando uma norma determinar o modo de produção da outra ou restringir-lhe o conteúdo. Quando o conflito envolve a Constituição Federal, o mecanismo adequado é o controle de constitucionalidade, que poderá ser exercido incidentalmente por qualquer juiz ou Tribunal, diante do caso concreto, ou ainda de forma abstrata-concentrada pelo Supremo Tribunal Federal, cuja decisão produzirá efeito contra todos e será dotada de eficácia vinculante. Nesse caso, a decisão não vincula o próprio plenário da Corte, que tem ampla liberdade para revisitar e reavaliar os seus julgados, desde que provocado.

Por outro lado, também não sofre os efeitos de vinculação ao entendimento da Corte Suprema o Poder Legislativo, no exercício da sua função típica de legislar, que, em homenagem à harmonia entre os três poderes estatais, poderá intervir na coisa julgada pelo STF através da edição de atos normativos supervenientes, os quais ensejarão a reversão da jurisprudência constitucional. Claro que essa prerrogativa do Legislativo não é livre, pois se o fosse, estaria ameaçada a própria autoridade do STF e o seu papel institucional, havendo casos em que o próprio STF poderá invalidar o ato legislativo para preservar as suas competências.

Editada emenda constitucional para efeito de reação legislativa, esta somente poderá ser declarada inconstitucional se ofender cláusula pétrea ou o processo legislativo para edição de emendas, uma vez que, nessa hipótese, opera-se a mudança do paradigma de controle que fundamentou o entendimento da Corte, sendo impossível a subsistência do julgado, já que a premissa em que este se apoiava – norma constitucional objeto de alteração – deixou de existir com a nova emenda.

Por fim, proposta lei ordinária para revisar jurisprudência, haverá presunção relativa de inconstitucionalidade dessa, diante da tese já fixada pelo STF. Caberá ao legislador, então, o ônus hermenêutico de demonstrar que a correção do precedente revela-se legítima, comprovando que as premissas fáticas e jurídicas sobre as quais se fundou essa decisão não mais subsistem no presente. É esse o fenômeno da superação legislativa da jurisprudência constitucional, mediante o qual o Poder Legislativo promove mutação constitucional pela via da edição de atos normativos.


08. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CONTINENTINO, Rafael Arrieiro. Existe hierarquia entre lei federal, estadual ou municipal? Disponível em: http://voxadvocatus.blogspot.com.br/2012/03/existe-hierarquia-entre-lei-federal.html. Acessado em: 30/01/2016.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 25ª Ed. São Paulo: Atlas, 2010.

NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional. 8ª Ed. São Paulo: Método, 2013.

SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional. Teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012.


09. NOTAS DE REFERÊNCIA

[1] NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional. 8ª Ed. São Paulo: Método, 2013, pág. 218.

[2] Caso o tratado ou convenção internacional verse sobre direitos humanos, mas não tenha sido aprovado com o quórum qualificado da EC 45/2004, conforme entendimento do STF, ostentará status supralegal, isto é, acima da legislação ordinária, mas abaixo da Constituição Federal

[3] CONTINENTINO, Rafael Arrieiro. Existe hierarquia entre lei federal, estadual ou municipal? Disponível em: http://voxadvocatus.blogspot.com.br/2012/03/existe-hierarquia-entre-lei-federal.html. Acessado em: 30/01/2016.

[4] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 25ª Ed. São Paulo: Atlas, 2010, pág. 711.

[5] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pág. 238.

[6] NOVELINO, Marcelo. Manual de direito constitucional. 8ª Ed. São Paulo: Método, 2013, pág. 240.

[7] LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pág. 238.

[8] Ibidem, pág. 288.

[9] SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Direito Constitucional. Teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 402-405.

[10] STF. ADI nº 5.150/DF. Rel. Min. Luiz Fux. Órgão julgador: plenário. Julgamento: 01/10/2015.

[11] Idem.

[12] Idem.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREIRE, André Vieira. Superação legislativa da jurisprudência constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4635, 10 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46783. Acesso em: 7 maio 2024.