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O reconhecimento da multiparentalidade para tutela jurídica aplicada a uma sociedade líquida e naturalmente mutável

O reconhecimento da multiparentalidade para tutela jurídica aplicada a uma sociedade líquida e naturalmente mutável

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A família moderna se ‘liquefez’, contrapondo-se à antiga e tradicional família dos séculos passados. Essa família plural teceu nova roupagem que merece reconhecimento jurídico para amoldar-se à nova sociedade.

1 INTRODUÇÃO

O sistema normativo tem sentido os reflexos do multiculturalismo mundial, o que, na prática, influenciou a criação e a aplicação das normas para que fossem eficazes no mundo dos fatos. Neste sentido, em breve comentário sobre a evolução histórica da família, vê-se que os laços consanguíneos nem sempre serviram de base para o conceito de parentesco, que na cidade antiga era dado pelo culto aos deuses domésticos, das famílias que partilhavam o mesmo túmulo, alimentavam os mesmos ancestrais, cultuando seus mortos.

A estrutura familiar, no que tange à parentalidade socioafetiva, tem seu primeiro núcleo familiar conhecido com a família de Nazaré, pois José reconheceu Jesus como seu filho por laços de afeto. A afetividade desponta, neste contexto, como fundamento das relações familiares, remodelando os grupos tradicionais de parentesco, tornando-se necessária a adequação das normas aos novos valores sociais gerados no mundo dos fatos.

Como toda sociedade líquida e recheada de mutações, inúmeros paradigmas foram quebrados no Direito de Família, sendo no intuito de acompanhar as novas nuances da família moderna. As novas estruturas familiares romperam com o vínculo meramente biológico, o que deu espaço e valor ao emocional, ao afeto, um dos pilares da multiparentalidade.

A família passou a ser a busca de realização pessoal, o que tornou possível a liberdade para desconstruí-la, caso essa realização seja frustrada, possibilitando os novos arranjos ou rearranjos familiares e, consequentemente, admitindo-se outros modelos familiares que não fossem os tradicionais, formados pela mãe e pai, casados e com filhos comuns. Neste sentido vê-se que a verdade socioafetiva e biológica devem ser observadas sob o mesmo prisma, possibilitando a dupla ascendência e conferindo igualdade aos genitores, para que invoquem os princípios da dignidade humana e afetividade, preservando os direitos fundamentais de todos.

 Assim, pretende-se, com o presente trabalho, abordar a possibilidade do reconhecimento da multiparentalidade, valorando a globalidade e suas perspectivas históricas, culturais e sociológicas, que condicionam o surgimento das normas jurídicas.

Este estudo foi elaborado pela pesquisa de artigos e livros científicos, pela via de revisão literária, cuja metodologia aplicada foi a teórica. Para a conclusão, foi-se empregado o método hipotético-dedutivo.

2 A FAMÍLIA COMO PILAR DA CONSTRUÇÃO SOCIAL

Há uma gama de definições para o conceito de família nas diversas áreas do conhecimento. No concernente a sua etimologia, depreende-se que advêm da expressão latina famulus, que significa escravo doméstico, o que traduzia a condição dos escravos agrícolas que trabalhavam legalmente em tribos latinas, em determinadas regiões da Europa. O conceito de Família deve ser compreendido como construção cultural, como criação humana.

Ela é concebida como unidade social mais vetusta do ser humano, denominada clã pelos antigos e formada por grupos associados por ancestrais em comum ou casamento.

Para Maria Berenice Dias (2015, p. 29):

A família é um agrupamento informal, de formação espontânea no meio social, cuja estruturação se dá através do direito. Para Giselda Hironaka, não importa a posição que o indivíduo ocupa na família, ou qual a espécie de grupamento familiar a que pertence – o que importa é pertencer a seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças, valores e se sentir, por isso, a caminho da realização de seu projeto de felicidade.

[...] A família é uma construção cultural. Dispõe de estruturação psíquica, na qual todos ocupam um lugar, possuem uma função – lugar do pai, lugar da mãe, lugar dos filhos – sem entretanto, estarem necessariamente ligados biologicamente.

A organização social teve como base a estrutura da família, mas, para compreender o surgimento do afeto em meio a esta estruturação, faz-se necessário traçar seu histórico.

Em épocas não muito remotas, o conservadorismo exigia o matrimônio para que o vínculo afetivo fosse reconhecidamente válido social e juridicamente.

Todos os parentes integravam a família, já que esta tinha caráter extensivo, ou seja, era considerada verdadeira comunidade rural, unidade de produção, cujos membros significavam mão de obra, ensejando melhoria de vida a todos, seguindo perfil hierarquizado e patriarcal.

Com o advento da Revolução Industrial, o quadro mudou de figura, havendo-se a necessidade de mão de obra em massa. A mulher adentrou o mercado de trabalho; o homem deixou de ser a única fonte de renda da família, tornando-a nuclear, isto é, restringiu-se ao casal e sua prole, pondo fim ao caráter reprodutivo. Houve acirrado crescimento da população urbana, fazendo-se com que as famílias passassem a viver em lugares menores, o que aproximou seus membros, fortalecendo os laços de afeto e fazendo surgir a concepção de família formada por laços afetivos de amor e carinho. Tal afeto não se limitou mais ao momento de celebração matrimonial, mas por toda relação, o que ensejou a dissolução do vínculo caso não houvesse mais afeto no casamento, a fim de garantir a dignidade da pessoa.

Assim, estabelece a Declaração Universal dos Direitos do Homem (XVI): “A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.”

Com a globalização, fica cada vez mais difícil para o legislador acompanhar as vastas transformações que a realidade social impõe, com o intuito de legislar sobre elas e garantir efetiva proteção. Lembrando-se que algumas mudanças são complexas, pois parte da sociedade permanece legalista e tradicionalista, contrapondo-se à que exige mudanças. Deste modo, por receio dos reflexos comportamentais gerados, o regramento jurídico da família por vezes insiste em ignorar transformações profundas, permanecendo imóvel, em um mundo idealizado, que não condiz com a realidade dos fatos.

Como se sabe, a família é considerada a base da sociedade, recebendo atenção especial do Estado, como disciplinado no artigo 226 da CF/88 (BRASIL, 1998).

A Constituição Federal de 1988, tratou o tema da família em capítulo próprio, o qual vem se modificando por questão de adequação. Contrariando o modelo patriarcal e impositivo do antigo Código Civil, foram inseridos como fundamentos da Carta Magna os conceitos de igualdade, solidariedade e dignidade humana. 

Concomitantemente, a Lei maior atestou as regras já previstas no ordenamento jurídico brasileiro, tais como o casamento civil gratuito e a validação dos efeitos civis ao casamento religioso, bem como inovou com o reconhecimento da união estável entre homens e mulheres, igualando-se homens e mulheres e, além disso, proibindo-se a distinção de direitos dos filhos oriundos ou não do casamento.

No momento em que houve o reconhecimento da igualdade entre os filhos havidos ou não do casamento, é que se deu reconhecimento ao afeto como critério para formação familiar.

As normas da Constituição de 1988, que tratam sobre família, foram regulamentadas pelo Código Civil vigente. Uma das principais inserções está na expressa igualdade dos cônjuges na família, dando fim ao poder patriarcal, assim como a possibilidade de dissolver o vínculo por meio da separação ou divórcio. Há, igualmente, novidades no instituto da adoção, que iguala filhos adotados e biológicos, e o reconhecimento da união estável entre homem e mulher.

3 A AFETIVIDADE COMO PRESSUPOSTO DE VALIDADE NAS RELAÇÕES PARENTAIS SOCIOAFETIVAS

É de grande valia traçar o conceito de afetividade para se chegar ao que se convencionou chamar de parentalidade socioafetiva.

A própria instituição da família, historicamente, teve origens diversas, comuns e paralelas, sanguíneas e matrimoniais. Embora a consideração do afeto seja pressuposto para o casamento no Direito de Roma, seus laços nunca emitiram tamanha expressividade como na atualidade. O casamento foi, por muitos anos, aceito como única forma de construção familiar, sendo indissociável, independentemente de vontade.

Contudo, o critério de imutabilidade, gerado com a ideia de indissociabilidade do vínculo, deixou de espelhar uma sociedade cada vez mais mutante, com a introdução, por meio da Carta Maior de 1988, da realidade, que reconheceu a entidade familiar fora dos limites matrimoniais, as famílias monoparentais e as uniões estáveis.

Para Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf (2012), a afetividade é a relação de carinho ou cuidado que se tem com alguém íntimo ou querido, como um estado psicológico no qual o ser humano demonstra suas emoções a outrem Um laço criado entre os homens, mesmo sem características sexuais, os faz permanecer em profunda amizade. Complementando o conceito, nas palavras da autora (MALUF, 2012, p. 19):

No campo da psicologia, o termo afetividade é utilizado para designar a suscetibilidade que o ser humano experimenta perante determinadas alterações que acontecem no mundo exterior ou em si próprio. Tem por constituinte fundamental um processo cambiante no âmbito das vivências do sujeito, em sua qualidade de experiências agradáveis ou desagradáveis. A afeição ligada à vinda de afeto é representada por um apego a alguém ou a alguma coisa, gerando carinho, saudade, confiança ou intimidade. Representa o termo perfeito para representar a ligação especial que existe entre duas pessoas. É, por conseguinte, um dos sentimentos que mais gera autoestima entre pessoas, principalmente as jovens e as idosas, pois induz à produção de oxitocina, hormônio que garante no organismo a sensação perene de bem-estar. Pode, ainda, ser definido como o conjunto de fenômenos psíquicos que se manifestam sob a forma de emoções, sentimentos e paixões acompanhados sempre da impressão de dor ou prazer, de satisfação ou insatisfação, de agrado ou desagrado, de alegria ou de tristeza. Do ponto de vista da psicologia e da psicanálise, o afeto terá diversos entendimentos, tendo em vista a existência de diversas teorias e os enfoques na compreensão da natureza psíquica do ser humano. De um modo geral, o afeto pode ser compreendido como um aspecto subjetivo e intrínseco do ser humano que atribui significado e sentido à sua existência, que constrói o seu psiquismo a partir das relações com outros indivíduos.

Para João Batista Villela (1997, p. 85): “a verdadeira paternidade não é um fato da biologia, mas um fato da cultura. Está antes no devotamento e no serviço do que na procedência do sêmen.”

No condizente à etimologia da palavra afeto, observa-se sua origem latina afficere, afectum, que significa produzir impressão e affectus, que significa tocar, comover o espírito, unir, fixar, ou mesmo adoecer. Mas o melhor significado está intimamente ligado à afetividade, afecção, que deriva de afficere ad actio, onde o sujeito se fixa, onde o sujeito se liga. (MALUF, 2012).

Na escalada dos relacionamentos humanos e familiares, o afeto está presente, caminhando à frente no projeto da família contemporânea, que aproxima tanto física, quanto espiritualmente seus membros.

O afeto tem, ainda, origem constitucional, conforme preleciona Paulo Luiz Lôbo (2003, p. 42):

O princípio da afetividade tem fundamento constitucional; não é repetição de princípio, nem fato exclusivamente sociológico ou psicológico. No que respeita aos filhos, a evolução dos valores da civilização ocidental levou à progressiva superação dos fatores de discriminação entre eles. Projetou-se, no campo jurídico-constitucional, a afirmação da família como grupo social fundado essencialmente nos laços da afetividade. Encontram-se na CF quatro fundamentos essenciais do princípio da afetividade, constitutivos dessa aguda evolução social da família, máxime durante as últimas décadas do século XXI: a) todos os filhos são iguais independentemente de sua origem (art. 227, §6º); b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, §§ 5º e 6º); c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade de família, constitucionalmente protegida (art. 226, §4º) d) o direito à convivência familiar, e não a origem genética, constitui prioridade absoluta da criança e  do adolescente (art. 227, caput).

Ao afeto nada se pode igualar, pois ele está cravado na alma, foi forjado pelo amor e dele se alimenta; decorre da valorização da dignidade da pessoa humana e traduz o universo familiar contemporâneo e suas construções. A verdade do coração vale mais que a jurídico-biológica.

Para finalizar, o referido tópico cabível à lição poética de Virgílio de Sá Pereira (1923, p. 59), para quem “a família é um fato natural, criada pela natureza e não pelo homem, motivo pelo qual excede a moldura que o legislador a enquadra, pois ele não cria a família como o jardineiro, não cria a primavera.”

4 O PLURALISMO DAS ENTIDADES FAMILIARES

A realidade está transformada, os conceitos sobre família mudaram, distanciando-se do perfil tradicional de homem e mulher unidos pelo casamento, com dever de gerar filhos. Convive-se, diariamente, com famílias recompostas e plurais. Conforme afirma Michele Perrot (1993, p. 77-78), “novos modelos de família têm despontado, que estão menos sujeitos a regras e mais sujeitos ao desejo, são relações mais igualitárias no que diz respeito ao sexo e à idade”.

A partir da Constituição Federal de 1988, novos contornos foram dados à estrutura tradicional da família, possibilitando a construção de novos arranjos familiares.

Neste sentido, torna-se necessário ter uma visão pluralista da família, abrigando os vários arranjos familiares que tem o afeto como elo de ligação, já que o que funde as almas é de fato o amor, que gerará o comprometimento mútuo, a responsabilidade.

Na concepção de Maria Berenice Dias (2015, p. 133): “a família é um grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade após o desaparecimento da família patriarcal, que desempenhava funções procriativas, econômicas, religiosas e políticas.”

O modelo contemporâneo de família foi forjado no indivíduo e não em seus bens, deixando de ser patrimonial para ser mais humano, tecendo nova roupagem axiológica ao direito das famílias.

Conforme julgamento do Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2011):

Inaugura-se com a Constituição Federal de 1988 uma nova fase do direito de família e, consequentemente, do casamento, baseada na adoção de um explícito poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse núcleo doméstico chamado “família”, recebendo todos eles a “especial proteção do estado”. Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constiruição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do casamento, diferentemente do que ocorria com os diplomas superados -, deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade.” (STJ, REsp 1.183.378/RS, 4° T. Rel. Min. Luiz Felipe Salomão, j. 25/10/2011).

É curioso perceber que a família permanece unida na busca por felicidade, o que mudou foi que essa busca se tornou um desafio que só sobrevive se valer a pena, não obrigando os indivíduos a perpetuarem a relação na qual não exista mais o afeto.

É na família que os fatos da vida se manifestam, do nascer ao morrer, sendo ela o terreno propício para a manifestação da cultura, das preferências, das decisões da vida em sociedade, discernindo o homem dos outros animais.

Dupla ascendência costuma ocorrer em uniões homoafetivas, pois nesta hipótese um será o pai/mãe biológico(a) e o outro pai/mãe afetivo(a).

5 A PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA

O conceito de parentesco vem do latim parentatus, parens, que juridicamente exprime a relação existente entre pessoas, unidas por fato natural – nascimento – ou jurídico – casamento, adoção. Para J. M. Othon Sidou (2006, p. 623), “parente é o indivíduo que, para com outro, tem relação de consanguinidade próxima ou remota”. O art. 1.593 do Código Civil (BRASIL, 2002) define o parentesco como natural ou civil, esclarecendo que ele pode ser resultado ou não da consanguinidade: “art. 1.593 do Código Civil. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou de outra origem.”

No caso do citado dispositivo, é possível a ampla interpretação no sentido de reconhecer a parentalidade socioafetiva como forma de parentesco, conforme observado nos enunciados 103 e 256 do Conselho da Justiça Federal (BRASIL, 2006):

Enunciado 103 do CJF – Art. 1.593: O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho.

Enunciado 256 do CJF – Art. 1.593: A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.

Desta forma, é fácil verificar que o parentesco biológico deixou de ser a única forma admitida pelo ordenamento brasileiro, assim como à época de Fustel de Coulanges era considerado o parentesco pelo culto, sendo da família aquele que cultuasse os mesmos deuses domésticos, já que a paternidade biológica não vinculava inexoravelmente a filiação.

Na concepção de José Miguel Garcia Medina e Fábio Caldas (2014, p. 974):

A filiação socioafetiva, por seu turno, ainda que despida de ascendência genética, constitui uma relação de fato que deve ser  reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a parentalidade que nasce de uma decisão espontânea, frise-se, arrimada em boa-fé, deve ter guarida no direito de família. Nas relações familiares, o princípio da boa-fé objetiva deve ser observado e visto sob suas funções integrativas e limitadoras, traduzidas pela figura do venire contra factum proprium (proibição de comportamento contraditório), que exige coerência comportamental daqueles que buscam a tutela jurisdicional para a solução de conflitos no âmbito do direito de família

Neste sentido, é coerente compreender a verdade dos fatos, tutelando a relação familiar que se construiu pautada na boa-fé objetiva, de modo a inibir o comportamento que não reflete a realidade. A filiação socioafetiva deve ser aceita como relação de fato, independentemente de vínculo de sangue, pois aquela está em paridade com esta última e não há que se falar que um vínculo é maior que o outro. Para Belmiro Pedro Welter (2002, p. 133):

Filiação afetiva pode também ocorrer naqueles casos em que, mesmo não havendo nenhum vínculo biológico ou jurídico (adoção), os pais criam uma criança por mera opção, denominado filho de criação, (des) velando-lhe todo o cuidado, amor, ternura, enfim, uma família, “cuja mola mestra é o amor entre seus integrantes; uma família, cujo único vínculo probatório é o afeto.

No caso, fica evidente que o afeto traduz o vínculo necessário para que se reconheça a filiação, pois é ele o propulsor da ligação parental mais expressiva, que se evidencia no dia a dia dos fatos, por meio da forte ligação de cuidado mútuo, amor e carinho. Integrar a família é fazer parte do cotidiano desta, dos sentimentos partilhados entre seus membros, do conforto do lar, de se saber pertencer a um lugar de acolhimento e tranquilidade, com troca mútua de amor e divisão dos conflitos cotidianos, o que torna a vida mais leve.

  Para Luiz Edson Fachin (1996, p. 59):

A verdade socioafetiva pode até nascer de indícios, mas toma expressão na prova; nem sempre se apresenta desde o nascimento. Revela o pai que ao filho empresta o nome, e que mais do que isso o trata publicamente nessa qualidade, sendo reconhecido como tal no ambiente social; o pai que ao dar ao filho empresta o nome, e que mais do que isso o trata publicamente nessa qualidade, sendo reconhecido como tal no ambiente social; o pai que ao dar de comer expõe o foro íntimo de paternidade, proclamada visceralmente em todos os momentos, inclusive naqueles em que toma conta no boletim e da lição de casa. É o pai de emoções e sentimentos, e é o filho do olhar embevecido que reflete aqueles sentimentos. Outro pai, nova família.

É possível verificar o comportamento daqueles que estabelecem o vínculo familiar, vez que o aspecto socioafetivo é evidenciado nas ações de cada um de seus integrantes, sendo considerado um dos fatores promotores da autoestima das crianças, o que favorece seu desenvolvimento psicomotor. Para Kate Standley (2010, p. 14), “o direito à vida familiar não é absoluto, mas qualificado, devendo o ordenamento jurídico dar efetiva garantia de direitos às pessoas ligadas pelo elo afetivo”.

Assim, com base no melhor interesse da criança, tem prevalecido o critério socioafetivo para assegurar primazia da tutela à pessoa dos filhos, resguardando seus direitos fundamentais. Para Christiano Cassettari (2015, p. 16), “a parentalidade socioafetiva pode ser definida como o vínculo de parentesco civil entre pessoas que não possuem entre si um vínculo biológico, mas que vivem como se parentes fossem, em decorrência do forte vínculo afetivo existente entre elas.”

6 FAMÍLIA RECOMPOSTA, RECONSTRUÍDA, BINUCLEAR, PLURIPARENTAL, MOSAICO, OU, AINDA, ENSAMBLADA (TERMO ORIUNDO DA VIZINHA ARGENTINA)

Existem diversas nomenclaturas a fim de definir as famílias que se constituem a partir das ruínas de antigos relacionamentos desfeitos. A carência de um só nome demonstra a difícil concordância com as novas estruturas. Os múltiplos vínculos e a interdependência da nova estrutura da família carecem de previsão legal que resguardem seus direitos.

Nesta nova construção, o vínculo do genitor com seu filho é ainda considerado monoparental, mesmo porque o novo casamento não importará em restrições aos direitos e deveres dos filhos. O que se admite, no entanto, é a adoção unilateral pelo companheiro do cônjuge do genitor ECA, 41, § 1º (BRASIL, 1990):

A adoção atribui condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.

§1º Se um dos cônjuges ou concubinos adota o filho do outro, mantêm-se os vínculos de filiação entre o adotado e o cônjuge ou concubino do adotante e os respectivos parentes.

Pelo que diz a lei, seria indispensável a concordância do pai registral, o que, praticamente, inviabilizaria tal possibilidade.

Assim, a jurisprudência passou a conferir encargos para o padrasto. A paternidade alimentar reconhece direito a alimentos ao filho do cônjuge, em caso de comprovação do vínculo afetivo entre eles e com a confirmação que este vivia sob suas expensas à época da convivência.

A Lei n. 11.924/09 acolheu a possibilidade de o enteado agregar o nome do padrasto, embora isso não o exclua do poder familiar do genitor:

Art. 1º. Esta Lei modifica a Lei 6.015/73 LRP, para autorizar o enteado ou a enteada a adotar o nome de família do padrasto ou da madrasta, em todo o território nacional.

Art. 2º, § 8º. O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2º e 7º deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família. (BRASIL, 2009).

A aplicação da lei evidencia com clareza a necessidade de proteção da realidade, posto que no âmbito familiar, no dia a dia, o convívio das famílias, independe da origem de sua construção, não importando se o filho ou filha são naturais de união anteriormente diversa, mas o tempo presente é levado em consideração, visto ser ele o retrato da verdade.

Portanto, é possível que na nova relação parental, a afetividade gerada pelo pai ou mãe não biológicos possua vínculos bem mais robustos de que numa suposta relação parental biológica do passado, justificando a adoção do nome, muito embora isso não o exclua do poder familiar do genitor.

7 A APLICAÇÃO DO INSTITUTO DA MULTIPARENTALIDADE COMO CRITÉRIO DE DIGNIDADE E JUSTIÇA

Os conceitos, anteriormente citados, são a entrada para o prato principal que chega com frescor inigualável, saído do forno, vaporizando seu aroma e aguçando os paladares jurisprudenciais.

Bem, sabe-se que filiação e parentalidade devem ser entendidas conjuntamente, já que se interligam com o invisível cordão umbilical do afeto, que teve peso com as transformações sociais advindas das relações pessoais.

Na busca pela integralidade de direitos, sobretudo direitos humanos, preza-se pela norma mais favorável à pessoa por meio do princípio pro hominis, assumindo a individualidade de cada ser em si, que é digno, único e complexo, vinculando caráter espiritual, psicológico, cultural, ideológico, religioso e político.

A multiparentalidade seria a soma do processo parental biológico e afetivo, possibilitando a múltipla filiação como a solução mais sensata e justa. A coexistência de mais de um pai, mais de uma mãe, preservando acima de tudo, direitos fundamentais, como o da dignidade e afetividade da pessoa humana. Seu reconhecimento se embasa nos direitos da personalidade, essencial à própria condição humana.

Considerando o princípio da proteção integral da criança e do adolescente, sob a ótica da dignidade da pessoa humana, a multiparentalidade expurga os tons de cinza e dá novo colorido ao caminho social que se busca atingir.

Em situações concretas seria possível evitar traumas irreparáveis nos envolvidos na relação, pois não seria necessário optar por um tipo de vínculo em especial, excluindo um e aceitando o outro, sendo que ambos podem coexistir.

A multiparentalidade atende ao melhor interesse da criança, tendo em vista que esta poderá ser cuidada por diversas pessoas, mesmo porque não há como mensurar quem é mais ou menos pai, mais ou menos mãe, advindo a multiparentalidade como a solução garantidora do direito de todos, resguardando direitos dos pais e dos filhos.

Cada ser humano trilha seu caminho em busca de ser pessoa. É o que o documento não diz que torna a pessoa o que realmente é, ou seja, a pessoa é o que pensa, o que faz, o que sente, o que constrói, os valores que possui. Sobre essa individualização, é necessário verificar não ser possível prevalecer uma paternidade sobre a outra, a afetiva sobre a biológica, porque a condição humana é tridimensional, leva em consideração a condição genética, biológica e ontológica.

É imprescindível acolher a realidade de cada pessoa, porque a vida se apresenta diferentemente para cada um, é irrepetível, lembrando-se que é imprescindível a figura do afeto na própria formação do caráter, como bem aborda a fenomenologia. A falta da figura paterna ou materna, neste teatro que é a vida, deixa marcas difíceis de serem apagadas, vez que elas são profundas e atingem a alma.

A legitimação do instituto multiparental quer significar o respeito e a aplicabilidade de conceitos e princípios do Direito, no intuito de melhor atender aos anseios de uma sociedade que se modifica com grande fluidez. Tais alterações são cruciais para que se efetive o critério de justiça e igualdade, de modo a respeitar o ordenamento jurídico como um todo e os ideais que os alimentam.

O Direito tem como função adequar-se à esta sociedade que se transforma rapidamente, pois ele é criado a partir da realidade social, decorrendo das necessidades e anseios de dada sociedade, com os costumes e a cultura de determinada época.

Muitos tribunais têm decidido a questão relativa à multiparentalidade.

Recentemente o Instituto Brasileiro do Direito de Família – IBDFAM, veiculou matéria a esse respeito, visto como a Primeira Vara Especializada de Famílias e Sucessões no Mato Grosso do Sul, autorizou a dupla paternidade de um adolescente em Cuiabá, e ele agora possui dois pais em seu registro de nascimento, o padrasto e o pai biológico, bem como foram também inseridos os nomes dos avós. O jovem havia sido registrado, a princípio, pela mãe biológica e pelo padrasto, mas, anos depois, o pai natural retornou, criando laços afetivos com o filho e manifestando seu desejo em registrá-lo. Curioso constatar que só há ganhos com relação ao reconhecimento jurídico da dupla ascendência, já que menos onerosa ao Estado, considerando o direito a alimentos e a obrigação de prestar alimentos por parte de pais e filhos, respectivamente. Ainda, este adolescente passa a ter o direito a ter seu nome inserido no plano de saúde de ambos os pais, atendendo o melhor interesse do menor e de toda sociedade.

Da mesma forma, ocorreu na 5ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, que permitiu que uma mulher de 21 anos fosse adotada por seu padrasto, mesmo com a negativa do pai consanguíneo. Dessa forma, constarão em seu documento o nome do pai socioafetivo e do pai biológico. De acordo com ela, o pai natural era ausente desde sua infância, ficando cristalino que o pai afetivo foi quem desempenhou a função paternal e permitiu criar laços estreitos. Aquela Corte entendeu que o pai biológico ainda assim merecia permanecer nos registros, mas deveria ser reconhecido o nome do pai socioafetivo.

A Corte rio-grandense já reconheceu a paternidade biológica mantendo no registro de nascimento o nome do pai afetivo, assim decidindo:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PRESENÇA DA RELAÇÃO DE SOCIOAFETIVIDADE. DETERMINAÇÃO DO PAI BIOLÓGICO AGRAVÉS DO EXAME DE DNA. MANUTENÇÃO DO REGISTRO COM A DECLARAÇÃO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA. POSSIBILIDADE. TEORIA TRIDIMENSIONAL.

Mesmo havendo pai registral, o filho tem o direito constitucional de buscar sua filiação biológica (CF, § 6º do art. 227), pelo princípio da dignidade da pessoa humana. O estado de filiação é a qualificação jurídica da relação de parentesco entre pai e filho que estabelece um complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados. Constitui-se em decorrência da lei (artigos 1.593, 1.596 e 1.597 do Código Civil e 227 da Constituição Federal), ou em razão da posse do estado de filho advinda da convivência familiar. Nem a paternidade socioafetiva e nem a paternidade biológica podem se sobrepor uma à outra. Ambas as paternidades são iguais, não havendo prevalência de nenhuma delas. [...].

APELO PROVIDO. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70029363918, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Claudir Fidelis Faccenda, Julgado em 07/05/2009)

Como se observa, aquela Corte tratou com paridade as duas espécies de paternidade, não fazendo prevalecer nem uma, nem outra. Também se observa o caráter personalíssimo do direito do filho, podendo este ter a liberdade de conhecer suas origens, se assim o desejar. Não havendo prejuízo algum no caso de reconhecimento da paternidade afetiva ou biológica ou ambas, prezando pelo princípio do melhor interesse do menor.

A esse respeito, sustentou o jurista Belmiro Pedro Welter (2002, p. 134) que:

Não reconhecer as paternidades genética e socioafetiva, ao mesmo tempo, com a concessão de ‘todos’ os efeitos jurídicos, é negar a existência tridimensional do ser humano, que é reflexo da condição e da dignidade humana, na medida em que a filiação socioafetiva é tão irrevogável quanto a biológica, pelo que se deve manter incólumes as duas paternidades, com o acréscimo de todos os direitos, já que ambas fazem parte da trajetória da vida humana

[...]

Por isso, penso não ser correto afirmar, como o faz a atual doutrina e jurisprudência do mundo ocidental, que a ‘paternidade socioafetiva se sobrepõe à biológica’, ou que a ‘paternidade biológica se sobrepõe à paternidade socioafetiva’, isso porque ambas as paternidades são iguais, não havendo prevalência de nenhuma delas.

Não há que se falar, portanto, em disparidade de valoração de ambos os institutos, mas, ao contrário, na paridade dos mesmos, tornando-se possível um critério de igualdade de direitos, princípio basilar do ordenamento jurídico e que merece ser respeitado.

Outro caso, no processo de adoção na 3ª Vara da Infância e Juventude de Fortaleza, que acolheu o pedido incidental da Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará – DPGE reconhecendo o direito de uma adolescente ser registrada em nome de um pai e duas mães. Depois da morte da mãe natural, a adolescente passou a ser cuidada por um casal, mas após quatro anos optaram por regularizar a situação, e afilha manteve a vontade de permanecer com o nome da mãe biológica em seus documentos. A DPGE pleiteou a constância dos nomes dos pais adotivos na certidão de nascimento da adolescente com a permanência do nome de sua mãe natural.

Para Maria Christina de Almeida (2001, p. 159-160):

O novo posicionamento acerca da verdadeira paternidade não despreza o liame biológico da relação paterno-filial, mas dá notícia do incremento da paternidade socioafetiva, da qual surge um novo personagem a desempenhar o importante papel de pai: o pai social, que é o pai de afeto, aquele que constrói uma relação com o filho, seja biológico ou não, moldada pelo amor, dedicação e carinho constantes.

Destarte, fala-se em incremento no sentido de complementar positivamente os direitos do filho, visto que o adotante passa a ter obrigação para com o adotado, o que o faz assumir incontestavelmente a paternidade socioafetiva. É imprescindível que ele cumpra sua obrigação caso o filho necessite, para prestar-lhe alimentos.

O Tribunal de Justiça de Goiás julgou procedente o pedido de uma adolescente que queria incluir o nome do padrasto no documento de identidade. Seu padrasto era casado com sua mãe há dez anos, e ela teve o pedido deferido, mantendo-se o nome do pai biológico no documento. A magistrada, Sirlei Martins da Costa, após análise de depoimentos, ponderou a afeição como critério de efetiva valoração jurídica, respeitando a realidade.

Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues (2010, p. 202) trazem o termo “multiparentalidade” de forma direta, segundo elas:

Uma vez desvinculada a função parental da ascendência biológica, sendo a paternidade e a maternidade atividades realizadas em prol do desenvolvimento de seus filhos menores, a realidade social brasileira tem mostrado que essas funções podem ser exercidas por ‘mais de um pai’ ou ‘mais de uma mãe’ simultaneamente, sobretudo, no que toca à dinâmica e ao funcionamento das relações interpessoais travadas em núcleos familiares recompostos, pois é inevitável a participação do pai/mãe nas tarefas inerentes ao poder parental, pois ele convive diariamente com a criança; participa dos conflitos familiares, dos momentos de alegria e de comemoração. Também simboliza a autoridade que, geralmente, é compartilhada com o genitor biológico. Por ser integrante da família, sua opinião é relevante, pois a família é funcionalizada à promoção da dignidade de seus membros.

Defendemos a multiparentalidade como alternativa da tutela jurídica para um fenômeno já existente em nossa sociedade, que é fruto, precipuamente, da liberdade de (des)constituição familiar e da consequente formação de famílias reconstituídas. A nosso sentir, a multiparentalidade garante aos filhos menores que, na prática, convivem com múltiplas figuras parentais, a tutela jurídica de todos os efeitos que emanam tanto da vinculação biológica como da socioafetiva, que, como demonstrado, em alguns casos, são excludentes, e nem haveria razão para ser, se tal restrição exclui a tutela dos menores, presumidamente vulneráveis.

O que subsidia as questões que se voltam à multiparentalidade é justamente a busca pelos princípios do melhor interesse da criança e do adolescente, da igualdade entre os filhos, da afetividade e da realidade, já que o que o direito deve se atentar justamente em acompanhar as transformações da sociedade. Neste sentido, considerar que há impossibilidade jurídica do pedido, argumentando-se, pobremente, que uma pessoa pode ter somente um pai e uma mãe, não condiz com a realidade dos fatos.

 Lembra-se que o Direito nasce da vida e a aplicação de suas regras oscila em variações e mutabilidade, e justamente o papel do jurisconsulto é vestir a regra cabível e mais adequada ao corpo de determinada sociedade; sem a vestimenta certa, o corpo social estará desnudo, afrontando a dignidade social.

A solidariedade é categoricamente um dos princípios que se insere como fundamentais no direito de família, valendo-se da ética e da moral, sentimentos que devem nortear a sociedade, gerando o dever de responsabilidade de seus membros.

8 CONCLUSÃO

Nesta esteira evolutiva é que se atribuiu valor jurídico ao afeto, já que o mundo do Direito é o das relações entre os homens, que se encontram em estado de evolução permanente. A multiparentalidade é fenômeno atual nesta sociedade e merece reconhecimento jurídico por ser um direito de pais e filhos, que prima pelos direitos fundamentais de ambos, respeitando-se a igualdade. Tem-se como requisito os laços de afeto e a convivência harmônica de seus membros, tornando-se irrevogável, irretratável e indisponível.

Necessita-se do consenso das partes para ser reconhecida, não podendo obrigar as pessoas a manterem vínculos afetivos, sendo possível seu reconhecimento perante o oficial de registro civil. A parentalidade socioafetiva tem sido bem aceita perante os tribunais estaduais, anunciando novos liames para próximas decisões sobre o tema.

Fundamenta-se a multiparentalidade na igualdade parental, seja afetiva ou biológica, podendo ambas coexistirem sem que haja sobreposição.

As questões relativas à família são extremamente subjetivas, vez que são eivadas de forte carga emocional, o que instigaria o julgador à utilização do critério tradicional da paternidade/maternidade biológicas, eximindo-o de avaliar de acordo com os critérios da realidade dos fatos, um atentado ao princípio constitucional fundamental da dignidade da pessoa humana, previstos na Magna Carta, uma vez que situações distintas merecem tratamentos diferenciados.

Dessa forma, reconhecer a multiparentalidade se mostra como solução mais adequada e menos danosa para pais e filhos, e as suas consequências são facilmente solucionadas com amparo na própria legislação em vigor.

Com relação aos genitores, as relações estabelecidas seriam as já previstas nos artigos 1.591 e 1.595, do Código Civil. Concernente ao nome dos filhos, facilmente poderiam ser compostos pelo sobrenome de alguns ou todos os genitores. A respeito da obrigação alimentar, considerar-se-ia a mesma que já é aplicada no caso da biparentalidade, conforme artigo 1.696, do Código Civil. A despeito dos direitos sucessórios, seriam reconhecidos entre pais e filhos, observada a ordem do artigo 1.829 a 1.847, do Código Civil.

Assim, conclui-se que reconhecer a multiparentalidade traduz, na prática, o reconhecimento aos princípios dela decorrentes de afetividade, de dignidade da pessoa humana, de igualdade e de realidade.

9 REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Maria Cristina de. Investigação de Paternidade e DNA: Aspectos Polêmicos, 2001.

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