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Do direito de ser família: a homoafetividade em foco

Do direito de ser família: a homoafetividade em foco

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Apresentação a família homoafetiva sob uma ótica jurídica, narrando uma breve trajetória histórica das famílias, demonstrando através da comparação com os diversos modos de instituição familiar e da análise principiológica.

RESUMO: Este trabalho tem por objetivo apresentar a família homoafetiva sob uma ótica jurídica, narrando uma breve trajetória histórica das famílias, demonstrando através da comparação com os diversos modos de instituição familiar e da análise principiológica do Direito das Famílias que esta também é digna de tutela estatal, posto que em sua essência possui a afetividade, requisito indispensável para ser família. Desta forma, a presente produção científica pretende romper paradigmas do Direito das Famílias, altamente conservadores, propondo o estudo de uma realidade existente há muito em nossa sociedade, fortalecendo a ideia de que toda a manifestação de amor com caráter familiar carece de respeito e proteção, em respeito à dignidade da pessoa humana.

Palavras Chave: Família Homoafetiva; Direito das Famílias; Afetividade; Dignidade da Pessoa Humana.


1. Introdução

A Família é o ponto comum de ligação entre a humanidade. Seus laços permeiam a história desde a criação do homem até a atualidade.

Sociologicamente, a família é, com razão, considerada como a base do Estado, fonte primária dos ensinamentos e experiências para se conviver em conjunto, carente de proteção estatal por ser instituição necessária, posto que o homem, assim como os demais seres vivos, tem a tendência de viver em grupo, para perpetuação da espécie ou mesmo como forma de fugir da solidão.

Para a religião a família é tida com sagrada, merecendo destaque em todos os credos como alvo da benção divina, principalmente, referindo-se ao Cristianismo, aquela formada entre um homem e uma mulher decorrente do casamento.

Para o Direito, talvez seja o instituto mais humano de todos abrangidos pela ciência jurídica, posto que sua existência decorre da própria vida e que todo o indivíduo provém dela e habita em seu seio, seja qual for o seu modo de constituição ou organização.

O estudo do Direito das Famílias surgiu com o propósito de disciplinar as relações entre pessoas unidas pelo matrimônio, união estável ou parentesco, bem como os institutos da tutela e curatela, pois estes têm intima relação com esse ramo de estudo do Direito.

Os princípios, no Direito das Famílias, assim como nos outros ramos da ciência jurídica, são os responsáveis pelas mudanças mais significativas, nos últimos tempos, dos institutos inerentes às formas de família existentes em nossa sociedade.

A dignidade da pessoa humana e a afetividade são os princípios de maior destaque no que tange a essas mudanças, pois são esses que justificam o maior sentido das famílias na atualidade: felicidade e amor familiar.

Em linhas gerais, como fruto do reconhecimento dessa necessidade primordial da família, o lar matrimonializado deu lugar a maneiras mais informais e, em sentido mais simples, práticas de se constituir família, baseadas exclusivamente nos laços de afeto. Seja matrimonial, informal, monoparental, anaparental, eudemonista, extensa ou homoafetiva, a família hoje é tida como entidade que merece proteção e respeito estatal e social.

Este trabalho versará sobre a família homoafetiva, quem vem vivendo um momento de discussão muito ampla, embora já bastante pacificada, quanto ao seu reconhecimento e os direitos decorrentes de sua formação. É fato que a mesma existe há muito, não só no Brasil, como em todo mundo. Todavia, ainda é tratada de maneira imprópria pelo ordenamento jurídico, que estabelece, assim como para a união estável entre homem e mulher, uma série de dificuldades quando da obtenção de direitos.

Pretende-se demonstrar, com o presente trabalho, que não há fundamento para esse tratamento diferenciado à entidade homoafetiva, posto que seus laços derivam do afeto, respeito e cuidado familiar, o que por si só já lhe confere autenticidade e direito à tutela estatal.


2. Evolução histórica das famílias

O termo “família”, se assim pode ser chamado, foi se moldando ao longo da linha do tempo. Não há, em qualquer das fases da História Antiga, Idade Média, Moderna ou Contemporânea, uma sociedade organizada sem que a família seja uma espécie de alicerce. Sua origem se deu há aproximadamente 4.600 anos atrás e até hoje muitas mudanças permeiam sua base.

A família brasileira deriva do modelo romano, que, por sua vez, buscou inspiração nas entidades familiares gregas.

Roma foi a responsável pela formação de um padrão sólido de união familiar, super valorizadora da figura masculina, fazendo-a uma sociedade extremamente patriarcal. O pátrio poder era exercido de maneira unitária, sujeitando todos os demais membros da família à figura de seu chefe, o pai. Esse personagem social, numa Roma altamente classista e machista, onde o rol de poderes patriarcais eram extensos, tinha direitos inclusive sobre a vida e morte de seus familiares.

Carlos Roberto Gonçalves entende que esse momento histórico de poder machista: “Podia, desse modo, vendê-los, impor-lhes castigos e penas corporais e até mesmo tirar-lhes a vida. A mulher era totalmente subordinada à autoridade marital e podia ser repudiada por ato unilateral do marido”. (GONÇALVES, 2014, p. 23).

Fato é que a família romana foi quem influenciou o Direito Brasileiro em elementos básicos com relação à família, em sua estrutura como unidade jurídica, econômica e religiosa, centrada na figura de um chefe, modelo tal que perdura até hoje.

O Direito Canônico, por volta do Século V, ao avistar uma crescente onda de descrença no casamento religioso, que causou o desaparecimento de uma ordem social estável durante séculos, transferiu o poder de Roma para as mãos do Chefe da Igreja Católica Romana.

Expressa Carlos Roberto Gonçalves que “com o Imperador Constantino, a partir do século IV, instala-se no direito romano a concepção cristã da família, na qual predominam as preocupações de ordem moral”. (GONÇALVES, 2014, p. 24).

No Brasil, entre os Códigos Civis de 1916 e 2002, além da evolução de costumes que possibilitou o fim da indissolubilidade matrimonial e extensão do poder familiar à mulher, houve o surgimento da magnífica carta de 1988, constituída sob uma efervescência de direitos humanos, elevando os Direitos das Famílias a um novo patamar de estudo no Direito Brasileiro.

O competente legislador constitucional tentou, claramente, superar as diferenças, preconceitos e desigualdades que a família brasileira possuía (ou ainda possui), bem como firmar as conquistas alavancadas, admitindo a união estável no corpo da Constituição, reduzindo de cinco para dois anos o tempo necessário para o divórcio direto, impedindo também qualquer discriminação que verse sobre a origem dos filhos, além de outros temas que antes só eram tratados pelas leis ordinárias, ganhando agora atenção de direito público, por meio da norma constitucional, conforme pode se observar em seu artigo 226, in verbis:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.

§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.

§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm> Acesso em 29 de Fevereiro de 2016.).

O Código Civil de 2002, vigente na atualidade, todavia, ainda prevê maneira limitada de convivência, que chega a ser alheia à realidade do mundo contemporâneo, talvez pelo projeto que lhe deu origem, datado de 1975, anterior à Constituição Federal de 1988, ou mesmo pela relutância dos diversos segmentos da sociedade em admitir uma nova realidade familiar na atualidade.

Os núcleos monoparentais, porém, chegam a ser aceitos como existentes por esse Código, o que manifesta uma mínima evolução.

Atualmente, o Direito das Famílias no Brasil vive um momento de transformações consideráveis.

A Família passa agora a ser encarada como um lugar que possibilite o exercício da personalidade humana com dignidade e respeito das diferenças existentes entre seus membros, e não mais a instituição engessada pelo matrimônio, como visto anteriormente. Hoje, a felicidade e os laços de afeto entre as pessoas substituíram os rito clássicos, que muitas vezes eram meros fundamentalismos, sem qualquer efeito prático em relação ao amor, elemento puro, que não tem forma e deve ser vivido pela família da nova era.


3. Princípios constitucionais inerentes ao reconhecimento de uma entidade familiar

Quando se fala em princípios logo se tem a ideia de seu conteúdo, que versa sobre início, origem, ponto de partida de algo. Pois este, realmente é o sentido de princípios no Direito, em seus diversos ramos de atuação. Eles são tidos na ciência jurídica como fonte de estudo e regra de caráter fundamental na tomada de decisões em conflitos de interesses.

Na realidade, nem sempre esses princípios estão descritos na lei de maneira expressa, mas sempre são base na elaboração dessas e suprem suas deficiências em casos concretos. Estes tem sempre alto grau de generalidade e devem ter conteúdo de validade universal. Por isso, em muitos casos prevalecem sobre as regras do Direito Positivado. “Um princípio, para ser reconhecido como tal, deve ser subordinante, e não subordinado a regras”. (DIAS, 2015, p. 37), assim expressa Maria Berenice Dias sobre esse assunto.

O texto Constitucional prevê uma gama de princípios a serem observados por toda a ordem jurídica nacional, seja a penal, civil, tributária ou qualquer outra especialidade na qual possa se subdividir o Direito. Essa grande expressão de princípios constitucionais se deu pela evolução do Legislador constituinte no tratamento de temas voltados para os indivíduos, tratados de maneira individual e coletiva no contexto social.

Maria Berenice Dias expressa essa mudança no tratamento dos princípios proposto com a edição da Constituição Federal de 1988, que a mesma denomina “Carta de Princípios”, nos seguintes dizeres:

Tornaram-se imprescindíveis para a aproximação do ideal de justiça, não dispondo exclusivamente de força supletiva. Adquiriram eficácia imediata e aderiram ao sistema positivo, compondo nova base axiológica e abandonando o estado ele virtualidade a que sempre foram relegados. (DIAS, 2015, p.36).

O Direito Civil foi constitucionalizado e a dignidade da pessoa humana supervalorizada em nosso ordenamento jurídico, por esse motivo a lei positivada tornou-se insuficiente para tratar de assuntos tão particulares como o Direito das Famílias, que exigem uma análise pormenorizada de cada situação em particular. Assim, a Constituição Federal passou a informar todo o sistema normativo nacional, garantindo a observância dessa dignidade humana e de outras necessidades especificas dos indivíduos, que não estão previstas muitas vezes na lei.

Feita essa análise introdutória do tema que será estudado no presente tópico, passemos a verificar os princípios constitucionais específicos do Direito das Famílias que versem sobre a Família Homoafetiva, tema central desse estudo científico, em especial a Dignidade da Pessoa Humana e a Afetividade, que elevam um grupo de pessoas reunidas a serem consideradas como entidade familiar.

3.1. Dignidade da Pessoa Humana

A Constituição Federal de 1988 o traz como comissão de frente em seu artigo primeiro[1] e por isso é considerado como princípio maior. É o núcleo da ordem da ordem social voltada para a promoção dos direitos humanos e da justiça social, fundante do estado democrático de direitos.

Torna-se um tanto quanto difícil exprimir em termos seu sentido, mas este se aplica a uma gama infinita de situações. Maria Berenice Dias diz que “talvez possa ser identificado como sendo o princípio de manifestação primeira dos valores constitucionais, carregado de sentimentos e emoções”. (DIAS, 2015, p. 41).

A dignidade da pessoa humana é um macroprincípio, do qual surgem todos os outros. É deste princípio que se tem uma ideia de cooperação, direito, uma perspectiva de melhora em meio a tantas dificuldades.

Com a elevação da dignidade da pessoa humana na ordem constitucional houve uma preocupação com a realização das pessoas em todos os institutos, provocando assim uma despatrimonialização, colocando o ser humano no centro das atenções do direito. Tal princípio funciona como norte na atuação do Estado, impondo muito mais do que limitações, mas provocando uma conduta ativa no sentido de proteger o indivíduo.

Para o Direito das Famílias, essa dignidade é fundamental, pois confere igualdade a todas as formas de instituição familiar, sendo indigno conferir tratamento diferenciado a esta ou àquela pela maneira como foi formada.

O afeto, solidariedade, respeito, amor e comunhão de vida são valorizados sob um olhar digno e humano, garantindo reconhecimento social para as entidades que prezam pelo crescimento de seus indivíduos, que exercem seus direitos de maneira individual e coletiva.

Dada essa análise da dignidade da pessoa humana como princípio da família, nota-se que sua doutrina é totalmente comum à família homoafetiva, que, portanto, merece proteção e reconhecimento sob essa visão humanitária.

Analisemos a afetividade, outro princípio que embasa a instituição familiar homoafetiva.

3.2. Afetividade

A Afetividade tem sido encarada nas atuais composições familiares como precedente fundamental para caracterização de um grupo como Família. Ela precede laços patrimoniais e biológicos e têm justificado uma série de mudanças quando de decisões acerca de famílias não tradicionais, como a homoafetiva, tratada nessa produção científica como tema central.

Esse afeto também tem influenciado na formação de uma globalização familiar, onde se observa uma maior interação entre as famílias de todo mundo causando assim um processo de humanização social.

O Estado tem posto como obrigação na Constituição Federal o dever de afeto por todos os cidadãos, o que deriva do direito de todos à felicidade. Essa obrigação do Estado reside muito mais do que em uma conduta negativa, de não interferência na vida das pessoas, mas na criação de projetos que promovam a realização dos indivíduos dentro e fora do seio familiar, formando uma comunidade consciente e feliz.

A maior manifestação de consideração do afeto no texto constitucional, mesmo que essa palavra não esteja expressa propriamente na Carta Magna, é o reconhecimento da união estável como entidade familiar, originada sem o selo do matrimônio e digna da tutela estatal, um avanço para a inúmera quantidade de famílias nessa situação jurídica.

Com isso, verifica-se uma nova ordem no direito de família, onde os sentimentos e emoções de seus membros são considerados, valorizando a função afetiva das entidades familiares.


4. Família Homoafetiva

4.1. Reconhecimento Social X Reconhecimento Jurídico

Costumeiramente tem-se a ideia de que família é o grupo que envolve afeto e respeito mútuo formado por homem e mulher, selado pelo matrimônio. O texto constitucional e legal não faz distinção do sexo do par quando do casamento, o que possibilitou uma série de mudanças, fazendo com que não haja impedimentos ao casamento homoafetivo.

A homossexualidade é algo que sempre esteve presente em todas as civilizações ao redor do mundo. Erro é a tratarmos como pecado, como faz a religião, muito menos como vício ou doença. Não se sabe onde surgiu o primeiro homossexual, e tampouco importa, como expressa Pablo Stolze citando Jurandir Freire Costa em entrevista ao Jornal do Comércio, nas seguintes linhas:

Não há um tipo de processo pelo qual as pessoas tornam-se homossexuais, assim como não existe um único tipo de processo psíquico pelos quais as pessoas tornam-se heterossexuais. É equivalente ao processo que torna alguém jogador de futebol ou músico. Querer encontrar a ‘homossexualidade comum’ a todos os homossexuais é uma tarefa tão vã quanto querer procurar a ‘politicidade' comum a todos os políticos. (STOLZE, 2014. p. 538).

Fato notório é que se trata, a homossexualidade, de uma realidade histórica e seu reconhecimento jurídico se deu, de início, a nível mundial não como “casamento”, mas como uma união civil digna de produzir todos os efeitos legais.

A pioneira nesse reconhecimento de direitos de casais do mesmo sexo foi a Dinamarca, que em 1989, possibilitou inclusive a troca de sobrenomes.

A Noruega, em março de 1993 regulamentou, através de lei, as relações homossexuais, sendo seguida pela Suécia, que o fez em 1995.

A previsão legal de relações homossexuais provocou a permissão do instituto casamento à essas uniões em 2001, na Holanda, primeiro País da era moderna a admiti-lo nessas circunstâncias. Dessa época até hoje, muitos países têm seguido o exemplo e concedido o direito de se casar aos casais homoafetivos, inclusive o Brasil, como será discutido mais adiante.

Vejamos uma lista dos países que aprovam o casamento homoafetivo:

País

Ano em que foi aprovado

Holanda

2001

Bélgica

2003

Espanha

2005

Canadá

2005

África do Sul

2006

Noruega

2009

Suécia

2009

Portugal

2010

Argentina

2010

Islândia

2010

Dinamarca

2012

Brasil

2013

Uruguai

2013

Nova Zelândia

2013

França

2013

Inglaterra

2014

País de Gales

2014

Escócia

2014

Luxemburgo

2014

Finlândia

2015

Irlanda

2015

Estados Unidos

2015

Tabela formada em 28/01/2016

(Fonte: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/06/veja-lista-de-paises-que-ja-legalizaram-o-casamento-gay.html).

A religião alimentou grande repúdio contra as uniões de pessoas do mesmo sexo, que na linha do tempo foram tratadas com desprezo e discriminação. A violência existente contra homossexuais que se testemunha atualmente nas ruas é fruto de anos de intolerância com a diferença, o que levou muitas pessoas a fingirem possuir uma heterossexualidade que não tinham, por medo de retaliações sociais que poderiam lhe causar, inclusive, a morte.

Os legisladores, que dependem de seus fiéis eleitores, por muito tempo resistiram em aprovar leis que concedessem direitos às minorias que sofriam preconceito. Por esse motivo, sempre houve marginalização legal das uniões homoafetivas, o que, todavia, não implicou em ausência de direitos.

O Poder Judiciário, fugindo dessa omissão legislativa, utilizando de analogias, princípios gerais de direito e costumes, dentre outras ferramentas, conforme expressa o artigo 4º da LINDB[2] e o artigo 126 do Código de Processo Civil Brasileiro[3], começou então a reconhecer as uniões homoafetivas brasileiras como dignas de tutela.

A Constituição Federal de 1988, lastreada sob uma visão humanista dos fatos da vida, prestou especial atenção às diversas espécies de uniões que foram surgindo ao longo do tempo, prevendo direitos às famílias monoparentais e às uniões estáveis, que passaram a ser tidas como família mesmo sem o selo do casamento. (Artigo 226).[4]

Porém, esse reconhecimento não engloba todos os arranjos familiares existentes em nossa sociedade. Não se podem excluir de ser família, desde que presentes os requisitos de afetividade, comunhão de vida e respeito recíproco, uniões em que não haja diversidade de sexos, pelo caráter inclusivo que a Carta Magna trouxe em seu texto, não fazendo referência a determinado tipo de família como sendo o ideal ou correto, devendo, portanto, ser feita uma interpretação extensiva a todos os arranjos que atenderem aos requisitos anteriormente descritos.

Nessa linha de pensamento, os tribunais começaram a decidir em favor de uniões homoafetivas dando-lhes reconhecimento como entidade familiar, o que esbarrou nas Cortes Superiores. Em 05/05/2011 o Supremo Tribunal Federal acolheu a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132[5] conferindo os mesmos direitos e deveres das uniões estáveis às famílias homoafetivas. Vejamos a Ementa da ADI 4.277, ponto a ponto, fazendo as devidas considerações acerca dessa primeira decisão histórica para o Direito das Famílias, proferida de maneira unânime e com efeito vinculante e eficácia perante todos.

Ementa: 1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir “interpretação conforme à Constituição” ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação. (STF - ADI: 4277 DF, Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 05/05/2011, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03<span id="jusCitacao"> PP-00341</span>).

Logo de início, percebemos a concretização de uma ideia da qual se pretende fugir quando dessa discussão acerca do direito das famílias, que são a questões de gênero, seja homem ou mulher. A afirmação da sexualidade de cada indivíduo no plano individual é elevada a cláusula pétrea, sendo vedada qualquer espécie de discriminação. Segue o ponto com a grafia literal da decisão:

2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos”. Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana “norma geral negativa”, segundo a qual “o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”. Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana”: direito a autoestima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea. (STF - ADI: 4277 DF, Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 05/05/2011, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03<span id="jusCitacao"> PP-00341</span>).

Esse ponto em específico exprime a questão central que a presente produção científica pretende trabalhar, pois é aqui que se estabelece que o grupo familiar deve ser enxergado como lugar de convivência a que todos têm direito, pouco importando como se dá sua formação, pelo caráter não-reducionista da expressão família, à luz da Constituição Federal de 1988, conforme se observa a seguir:

3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas. (STF - ADI: 4277 DF, Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 05/05/2011, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03<span id="jusCitacao"> PP-00341</span>).

No trecho a seguir foi esclarecida a escolha em utilizar o termo “entidade familiar” para se referir à união estável, o que não resulta em qualquer diferença entre a “família”, e ainda foi constado no texto a seguir a extensão de todos os direitos aos casais homoafetivos:

4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”. A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no § 3º do seu art. 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta de 1967/1969. Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia “entidade familiar”, não pretendeu diferenciá-la da “família”. Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado “entidade familiar” como sinônimo perfeito de família. A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua não-equiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do § 2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem “do regime e dos princípios por ela adotados”, verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. (STF - ADI: 4277 DF, Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 05/05/2011, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03<span id="jusCitacao"> PP-00341</span>).

Em seguida o particular entendimento dos Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso quanto à fundamentação do acórdão:

5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO. Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição. (STF - ADI: 4277 DF, Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 05/05/2011, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03<span id="jusCitacao"> PP-00341</span>).

Por fim, a conclusão da Ação Direta de Inconstitucionalidade, reconhecendo a união homoafetiva como família, sendo ordenada a interpretação do artigo 1723 do Código Civil conforme a Constituição Federal:

6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme a Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.

(STF - ADI: 4277 DF, Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 05/05/2011, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03<span id="jusCitacao"> PP-00341</span>).

A partir de então, a jurisprudência passou a admitir a conversão da união homoafetiva em casamento. O Superior Tribunal de Justiça, visando mais avanços, admitiu a habilitação direta para o casamento[6]. O Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução n.º 175/13, proibiu que as autoridades competentes negassem a celebração de casamento ou conversão de união estável em casamento de pessoas do mesmo sexo.

Na atual conjuntura social do direito, onde princípios têm sido postos acima de regras, não se pode, com base na dignidade da pessoa humana, da liberdade e afetividade, se deixar de prestar tutela às uniões homoafetivas, visto que essas possuem as mesmas características de um casal heteroafetivo, com comunhão de vida, publicidade e continuidade, repousando a única diferença na impossibilidade da geração de filhos pelo método natural, o que não obsta o reconhecimento de um grupo como família. Vale salientar que também há possibilidade de casais homoafetivos terem família com filhos, pois podem ter acesso às técnicas de reprodução assistida, conforme consta da Resolução n.º 2013/2013 do Conselho Federal de Medicina.

Com isso, passaremos a verificar os efeitos do reconhecimento das uniões homoafetivas.

4.2. Adoção

Tendo-se o raciocínio de que uma união homoafetiva merece reconhecimento como instituição familiar, surgem como consequência todos os direitos decorrentes no âmbito do Direito das Famílias.

Além dos direitos e deveres pessoais, que são recíprocos (lealdade, respeito, assistência, guarda, sustento e educação dos filhos), também surgem direitos patrimoniais (alimentos, regime de bens e efeitos sucessórios).

Todavia, ainda existe grande discussão acerca da adoção realizada por casais do mesmo sexo. O raciocínio errôneo de alguns é que a criança acolhida por esses casais viria, necessariamente, a se tornar também homossexual em decorrência da observação do comportamento e convivência com seus pais. Partindo da premissa de que não existe causa comprovada cientificamente para a homoafetividade, entendemos que essa teoria é totalmente descabida, tendo como contraste as inúmeras famílias formadas por casais heterossexuais que não têm filhos obrigatoriamente nessa mesma condição.

Sendo assim, os critérios para a adoção de crianças se pauta no bem estar do adotando dentro do convívio familiar e em reais vantagens para este, como está escrito no artigo 43 do Estatuto da Criança e do Adolescente[7], obedecendo ao rito comum para tal instituto, como feito para casais do sexo oposto, conforme explica Pablo Stolze nas linhas a seguir:

Assim como se dá no procedimento comum de adoção por casais heterossexuais, o juiz deverá avaliar as condições sociais, morais e psicológicas dos adotantes — valendo-se de laudo psicológico, se necessário for — decidindo se a medida garante o bem-estar do adotado ou não.

Vale dizer, é a cuidadosa análise do caso concreto que dirá se a adoção é medida aconselhável, e não a ideia preconcebida de que o núcleo homoafetivo, por si só, traduziria algum risco ao menor. (STOLZE, 2014, p. 563).

Portanto, não há que se falar em critérios exclusivos para este ou aquele tipo de casal, pois os critérios estão estabelecidos, em sua maioria, com base no bem estar do adotando, posto que se este for alcançado, pode ser realizada, inclusive, a adoção unilateral.

4.3. Alimentos e Regime de Bens

Seguindo o mesmo caminho, temos que tais institutos presentes nas uniões estáveis de casais de sexos diversos também são plenamente aplicáveis às uniões homoafetivas.

Sobre o tema alimentos, vale destacar, pode haver negativa do direito do requerente, não levando em consideração o sexo do casal, posto que houve uma relação comum em afeto, somente caso não seja observado pelo julgador o binômio necessidade do alimentando X capacidade econômica do alimentante, como demonstra a seguinte decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no Agravo de Instrumento a seguir:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL CUMULADA COM PARTILHA E ALIMENTOS. UNIÃO HOMOAFETIVA. ALIMENTOS PROVISÓRIOS. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. Mantida a decisão agora recorrida, porquanto necessária, no caso, dilação probatória acerca das alegações do recorrente. NEGADO SEGUIMENTO.

(Agravo de Instrumento Nº 70057864191, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro, Julgado em 09/12/2013).

O regime de bens comum às uniões estáveis, seja homo ou heteroafetiva, é o parcial de bens, seguindo a regra do artigo 1.725 do Código Civil Brasileiro[8]. Vejamos como é a realidade dos Tribunais:

APELAÇÃO. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. UNIÃO HOMOAFETIVA. PARTILHA. SENTENÇA MANTIDA. Aplica-se, no caso, o regime de comunhão parcial de bens, devendo ser partilhados, na proporção de 50%, os bens adquiridos durante a união, porquanto se presume tenham sido adquiridos com o esforço comum, nos termos do art. 1.725 do Código Civil. RECURSO DESPROVIDO.

(Apelação Cível Nº 70059100727, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro, Julgado em 16/04/2014).

O julgado acima, do Tribunal Gaúcho, concedeu o direito à partilha em igual proporção para o casal em decorrência do regime de comunhão parcial de bens.

4.3. Reconhecimento Previdenciário

Dois são os requisitos para que seja deferida a pensão por morte, de acordo com a Lei n. 8213/1991, quais sejam: a qualidade de segurado do instituidor e a dependência dos beneficiários.

Dessa forma, havendo união estável entre o beneficiário e o ex-segurado até a data do óbito, surge o direito ao benefício retro citado, sendo então estendido o raciocínio aos casais homoafetivos. O Tribunal Regional Federal usou desse entendimento no seguinte julgado:

SERVIDOR. PENSÃO. UNIÃO HOMOAFETIVA. COMPROVAÇÃO. I - O STF firmou precedente reconhecendo a união estável entre pessoas do mesmo sexo ao julgar a ADI nº 4277/DF e a ADPF nº 132/RJ, em pronunciamento com eficácia erga omnes e efeito vinculante que apresentou interpretação conforme à Constituição do art. 1.723 do CC, à luz do art. 226, § 6º, da CF. 3. Comprovada a união estável e duradoura com a falecida servidora e sendo presumida a dependência econômica entre companheiros, é devida a pensão em favor da autora, nos termos do art. 217, I, c, da Lei nº 8.112/90. II - No que pertine, por sua vez, à data para início do pagamento da verba pleiteada, considerando que inexiste nos autos comprovação de que a Parte Autora teria ingressado com pedido administrativo para a concessão da pensão em testilha, deve-se considerar o dies a quo para pagamento do benefício em liça a data da citação da União Federal. III - Remessa Necessária parcialmente provida.

(TRF-2 - REO: 200951010237149, Relator: Desembargador Federal REIS FRIEDE, Data de Julgamento: 18/12/2013,  SÉTIMA TURMA ESPECIALIZADA).

A decisão acima demonstra a concessão de pensão à autora pela morte de sua companheira, posto que dependia financeiramente desta.

4.4. Efeitos Sucessórios

Analisando todos os efeitos do reconhecimento das uniões homoafetivas como família expostos nesse trabalho até o presente momento, seria um contrassenso a negativa de direito sucessório ao parceiro sobrevivente. Se assim o fosse, haveria o desprezo de todo o afeto cultivado durante a vida conjugal, fazendo com que este perecesse após a morte!

Já que se utiliza de analogia para que concedam todos os outros direitos, não há dúvida que essa mesma tese impera no direito sucessório homoafetivo, que utilizará o mesmo regramento da união estável heteroafetiva, consubstanciada no artigo 1790 do Código Civil Brasileiro, in verbis:

Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:

I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;

II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;

III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança. (BRASIL. Código Civil. Lei 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm> Acesso em 29 de Fevereiro de 2016.).

Embora exista tenra discussão acerca do processamento das sucessões com base no artigo acima, posto que alguns doutrinadores creem haver certo prejuízo pra o companheiro em detrimento do cônjuge, o que se pretende demonstrar nesse tópico é que o mesmo procedimento aplicado aos casais com diversidade sexual se aplica às uniões homoafetivas.


5. Conclusão

Este artigo tratou, durante toda a sua extensão, sobre os aspectos intrínsecos de um núcleo familiar saudável para seus membros, que é de suma importância para a formação de sua personalidade enquanto indivíduo e ser social. Em razão disso, foram expostos princípios básicos que o legislador e o magistrado devem utilizar quando da criação e aplicação das leis, quais sejam a dignidade da pessoa humana e a afetividade, sendo este derradeiro o que mais se destaca quando se fala em família.

A família, núcleo central da sociedade, ultrapassou os meros laços consanguíneos e hoje pode surgir através de laços de afeto, amor, respeito e cuidado recíproco entre os que nela convivem. Apesar de toda a violência social presenciada atualmente, a afetividade tem sido erigida como nutriente fundamental para a subsistência de um organismo familiar, que não possui mais quaisquer padrões.

A legislação brasileira reconhece apenas três tipos de família, como visto em tópico específico, sendo esta a advinda do casamento, a união estável e a monoparental. As demais, estando dentre elas a família homoafetiva, tema desse estudo, são reconhecidas pela doutrina e pela jurisprudência, estando marginalizadas pela lei, sendo suas lides solucionadas por meio de analogia, costumes e princípios gerais do Direito.

Como se pode notar até aqui, há um avanço imenso em relação ao reconhecimento de uniões homoafetivas como sendo família por todo o Brasil, talvez seguindo a tendência que vem ocorrendo em todo o mundo. Um questionamento, porém resta diante de toda essa abordagem, que se funda na relutância do legislador pátrio em criar ordenamento que seja próprio para esses casos, conferindo status legal de família às uniões de pessoas do mesmo sexo. Talvez a explicação que seja mais aparente é o enfrentamento dessa questão perante grupos políticos e religiosos, que se funda em preconceito inaceitável contra esses núcleos familiares.

É público e notório que existem inúmeras pessoas que convivem há, por exemplo, três décadas, dividindo despesas e esforços, de maneira contínua e com intuito de ser família. Seria uma afronta continuar a renegar essas situações. Portanto, num Estado Democrático de Direito não se pode mais tolerar discriminação tão profunda com base em crenças individuais, sejam políticas ou religiosas, contra pessoas que desejam apenas realizar o sonho de ter uma vida de Paz, baseada no afeto comum e na dignidade de ser humano, sendo Família!


Referências

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BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento Nº 70057864191, Sétima Câmara Cível, Agravante: André M., Agravado: Luiz Gustavo P., Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro. Rio Grande do Sul, 09 de Dezembro de 2013. JusBrasil. Disponível em: <http://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/113554270/agravo-de-instrumento-ai-70057864191-rs> Acesso em 21 de Fevereiro de 2016.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70059100727, Sétima Câmara Cível, Apelante: Rosangela. R. D. N., Apelada: Ionara M. Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro. Rio Grande do Sul, 16 de Abril de 2014. JusBrasil. Disponível em: <http://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/117159614/apelacao-civel-ac-70059100727-rs> Acesso em 21 de Fevereiro de 2016.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 132. Relator: Min. Ayres Britto. Rio de Janeiro, 05 de Maio de 2011. JusBrasil. Disponível em: <http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/20627227/arguicao-de-descumprimento-de-preceito-fundamental-adpf-132-rj-stf> Acesso em 21 de Fevereiro de 2016.

BRASIL. Código Civil. Lei 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm> Acesso em 29 de Fevereiro de 2016.

BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 5.869, de 11 de Janeiro de 1973. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm> Acesso em 29 de Fevereiro de 2016.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm> Acesso em 29 de Fevereiro de 2016.

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_______________. Veja lista de países que já legalizaram o casamento gay. Disponível em: <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/06/veja-lista-de-paises-que-ja-legalizaram-o-casamento-gay.html> Acesso em: 28/01/2016.


Notas

[1] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III - a dignidade da pessoa humana;

[2] Art. 4o  Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. (Decreto 4.657 de 4 de Setembro de 1942).

[3] Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito. (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973)

[4] Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

[5] STF - ADPF: 132 RJ, Relator: Min. AYRES BRITTO, Data de Julgamento: 05/05/2011,  Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-01<span id="jusCitacao"> PP-00001</span>)

[6] STJ, REsp 1.183.378-RS, 4.ª T., Rei. Min. Luis Felipe Salomão, j. 25/10/2011.

[7] Art. 43. A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos. (Lei 8.069/1990).

[8] Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens. (Lei 10.406/2002).


Autores

  • Erick da Silva Matias

    Bacharel em Direito pela FACESF e Especialista em Direito do Trabalho pela UCAMPROMINAS

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  • Leonardo Barreto Ferraz Gominho

    Graduado em Direito pela Faculdade de Alagoas (2007); Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2010); Especialista e Mestre em Psicanálise Aplicada à Educação e a Saúde pela UNIDERC/Anchieta (2013); Mestre em Ciências da Educação pela Universidad de Desarrollo Sustentable (2017); Foi Assessor de Juiz da Vara Cível / Sucessões da Comarca de Maceió/AL - Tribunal de Justiça de Alagoas, por sete anos, de 2009 até janeiro de 2015; Foi Assessor do Juiz da Vara Agrária de Alagoas - Tribunal de Justiça de Alagoas, por sete anos, de 2009 até janeiro de 2015; Conciliador do Tribunal de Justiça de Alagoas. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito das Obrigações, das Famílias, das Sucessões, além de dominar Conciliações e Mediações. Advogado. Professor da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF -, desde agosto de 2014. Professor e Orientador do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF -, desde agosto de 2014. Responsável pelo quadro de estagiários vinculados ao Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF - CCMA/FACESF, em Floresta/PE, nos anos de 2015 e 2016. Responsável pelo Projeto de Extensão Cine Jurídico da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF, desde 2015. Chefe da Assessoria Jurídica do Município de Floresta/PE. Coautor do livro "Direito das Sucessões e Conciliação: teoria e prática da sucessão hereditária a partir do princípio da pluralidade das famílias". Maceió: EDUFAL, 2010. Coordenador e Coautor do livro “Cine Jurídico I: discutindo o direito por meio do cinema”. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821832; Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito civil e direito processual civil”. Volume 01. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821749; Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito das famílias e direito das sucessões”. Volume 01. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821856. Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito das famílias e direito das sucessões”. Volume 02. Belém do São Francisco: Editora FACESF, 2018. ISBN: 9788545558019. Coordenador e Coautor do livro “Cine Jurídico II: discutindo o direito por meio do cinema”. Belém do São Francisco: Editora FACESF, 2018. ISBN: 9788545558002.

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