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Sigilo profissional médico.

O que o caso Marisa Letícia pode ensinar?

Sigilo profissional médico. O que o caso Marisa Letícia pode ensinar?

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O polêmico vazamento de dados sobre a saúde da ex-primeira dama Marisa Letícia chama atenção para a importância do sigilo profissional.

Ganhou grande repercussão na imprensa a acusação de que informações relativas ao estado de saúde, procedimentos e exames da mulher do ex-presidente Lula, Marisa Letícia, teriam sido vazados por funcionários do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, e compartilhadas com terceiros em redes sociais, inclusive entre médicos em grupos do aplicativo de mensagens WhatsApp. O teor de alguns comentários atribuídos ao grupo também causaram indignação em virtude do que foi encarado como falta de respeito.

O Hospital informou que demitiu a médica responsável pela suposta divulgação das informações sobre a paciente[1] e o Conselho Regional de Medicina, por sua vez, emitiu nota esclarecendo que abriu sindicância para apurar a conduta dos profissionais médicos envolvidos[2].

Evidentemente as devidas apurações terão o seu trâmite adequado, respeitado o direito de defesa de todos os envolvidos.

O ocorrido, no entanto, torna conveniente abordar um tema tão importante, e cuja inobservância pode acarretar sérias consequências para o profissional de saúde: o sigilo profissional.


POR QUE SIGILO PROFISSIONAL?

O Juramento de Hipócrates, que data do século V a.C., é recitado solenemente por todos os novos médicos por ocasião de sua diplomação e já previa o preceito ao sigilo: “Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto”.

Em verdade, quando um paciente se submete aos cuidados de um médico, odontólogo – ou profissionais da saúde, em geral – , ele está mais exposto do que nunca.  A doença, em todos os seus aspectos, ressalta nossas mais profundas fragilidades.

Assim, a base da relação médico-paciente deve ser a absoluta confiança.

Com efeito, sem confiança mútua, o paciente se sentirá inibido em se submeter ao profissional e este, por sua vez, não terá acesso a informações necessárias para oferecer o tratamento correto ao paciente.

Impõe-se, portanto, a legítima expectativa do paciente de que possa se abrir inteiramente com o médico e que este, por sua vez, respeitará a confidencialidade do que vem a tomar conhecimento, atuando no melhor interesse do paciente sem julgamentos ou preconceitos.

O sigilo profissional, nesse contexto, é tanto um instrumento para viabilizar a transparência na relação médico-paciente, como uma exigência de ordem moral, posto que o profissional de saúde deve estar constantemente ciente da responsabilidade sobre as informações a que tem acesso sobre o paciente em decorrência de sua posição privilegiada.


REGULAMENTAÇÃO DO SIGILO PROFISSIONAL

A Constituição Federal do Brasil, tem como um de seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana.

Ainda, em seu artigo 5º, inciso X, o texto constitucional prevê que: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação“.

Observa-se, portanto, uma enorme preocupação do legislador em destacar a importância do respeito ao indivíduo em todas as suas esferas.

Por força do ofício, os médicos, dentistas e os profissionais de saúde em geral, tem corriqueiramente acesso a informações sensíveis sobre seus pacientes, de modo que a legislação se preocupa em assegurar a confidencialidade e segurança de tais informações.

O artigo 154 do Código Penal dispõe:

Art. 154 – Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:

Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa.

Parágrafo único – Somente se procede mediante representação”.

O Código de Ética médica estabelece como princípio fundamental que “O médico guardará sigilo a respeito das informações de que detenha conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos em lei“.

Ainda, o Capítulo IX do Código de Ética Médica é inteiramente dedicado à questão do sigilo profissional, estabelecendo que:

É vedado ao médico:

Art. 73 – Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente”.

O Código de Ética Odontológica, a seu turno, prevê igualmente que:

Art. 9º. Constituem deveres fundamentais dos inscritos e sua violação caracteriza infração ética:

(…)

VIII – resguardar o sigilo profissional”

E ainda:

Art. 14. Constitui infração ética:

I – revelar, sem justa causa, fato sigiloso de que tenha conhecimento em razão do exercício de sua profissão;

II – negligenciar na orientação de seus colaboradores quanto ao sigilo profissional; e,

III – fazer referência a casos clínicos identificáveis, exibir paciente, sua imagem ou qualquer outro elemento que o identifique, em qualquer meio de comunicação ou sob qualquer pretexto, salvo se o cirurgião-dentista estiver no exercício da docência ou em publicações científicas, nos quais, a autorização do paciente ou seu responsável legal, lhe permite a exibição da imagem ou prontuários com finalidade didático-acadêmicas”.


E SE O MÉDICO FOR INTIMADO A DEPOR EM JUÍZO SOBRE FATO SIGILOSO?

A importância do sigilo médico é tão grande, que a própria lei prevê que o médico não estará obstruindo a Justiça ou cometendo qualquer ilicitude quando se recusar a depor em Juízo sobre fato sigiloso.

O Código de Processo Penal prevê:

Art. 207.  São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho“.

Também o Código de Processo Civil dispõe:

Art. 448.  A testemunha não é obrigada a depor sobre fatos:

II – a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo”.

Assim, caso intimado a depor em Juízo como testemunha, o profissional de saúde deverá comparecer e poderá declarar a sua impossibilidade de revelar segredo profissional.


O SIGILO PODE SER QUEBRADO?

Não obstante a importância do sigilo como base da relação médico-paciente, existem situações em que se justifica a quebra da confidencialidade.

Note-se que os dispositivos legais e éticos acima mencionados referem à existência de dever legal e  justa causa como critérios a nortear hipóteses em que o sigilo pode (e deve) ser relativizado.

Assim, casos há em que a própria legislação impõe a revelação de informações sensíveis, como a notificação compulsória de certas doenças transmissíveis, ou ainda casos que envolvam agressão e suspeita de abuso infantil.

As hipóteses de justa causa que podem justificar a quebra do sigilo, por sua vez, abrangem situações em que a manutenção do sigilo possa representar um prejuízo maior do que sua quebra.

Obviamente, tais situações devem ser avaliadas pontualmente, mas de forma geral, o profissional deve considerar os potenciais danos envolvidos decorrentes da quebra ou não do sigilo, bem como buscar esgotar todas as abordagens possíveis para contornar a situação, sendo a quebra de sigilo o último recurso para se evitar um mal maior. Se necessário, o profissional deve ainda consultar o órgão de classe (CRM, CRO, etc) sobre a melhor conduta a ser adotada e, eventualmente, buscar orientação jurídica.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme procuramos demonstrar acima nestas breves linhas, o sigilo profissional é um dos fundamentos mais importantes da relação médico-paciente (estendendo-se, naturalmente, a outros profissionais de saúde), de modo que deve ser protegido e jamais negligenciado.

Nos tempos atuais, o acesso à informação e as ferramentas para compartilhá-las estão mais disponíveis do que nunca. O que exige cuidado redobrado daqueles que, por força de seu ofício, devem discrição, mesmo entre seus pares.

Compreender a importância deste princípio torna a conduta de médicos, dentistas e demais profissionais de saúde não apenas mais ética no dia a dia, como evita problemas de ordem legal que podem comprometer a credibilidade e a própria carreira do profissional.


Notas

[1] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2017/02/03/sirio-libanes-demite-medica-suspeita-de-vazar-exame-de-marisa-leticia.htm

[2] http://cremesp.org.br/?siteAcao=NoticiasC&id=4390


Autor

  • Luciano Correia Bueno Brandão

    Advogado com atuação exclusiva na área de Saúde. Especialista em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra/Portugal (UC). Especialista em Direito Médico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito (EPD). Extensão em “Responsabilidade Civil na Área de Saúde” pela Fundação Getúlio Vargas (GVlaw) . Membro da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP). Membro efetivo da ”Comissão de Estudos sobre Planos de Saúde e Assistência Médica” da OAB/SP. Membro efetivo da "Comissão Especial de Direito Médico" da OAB/SP. Membro da World Association for Medical Law (WAML).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRANDÃO, Luciano Correia Bueno. Sigilo profissional médico. O que o caso Marisa Letícia pode ensinar?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4989, 27 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55669. Acesso em: 19 abr. 2024.