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Lei 2.615 de 2000 (anti-homofobia) e liberdade de expressão

Lei 2.615 de 2000 (anti-homofobia) e liberdade de expressão

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Religiosos, principalmente no Congresso Nacional, afirmam que o movimento LGBT quer impedir a liberdade de pensamento, expressão e de crença. Lei nº 2.615 de 2000 (anti-homofobia), de autoria do Governador do DF Rodrigo Rollemberg, parece ter representado um avanço quando aos direitos humanos no Brasil.


A Lei nº 2.615 de 2000, cujo autor é o governador do DF Rodrigo Rollemberg, para os LGBTs, representa um avanço quanto aos direitos humanos no Brasil. Inúmeras queixas e relatos de violação contra os LGBTs são noticiados nas mídias sociais.

A Lei:

Art. 2° Para os efeitos desta Lei são atos de discriminação impor às pessoas, de qualquer orientação sexual, e em face desta, entre outras, as seguintes situações:

I - constrangimento ou exposição ao ridículo;

II - proibição de ingresso ou permanência;

III - atendimento diferenciado ou selecionado;

IV - preterimento quando da ocupação de instalações em hotéis ou similares, ou a imposição de pagamento de mais de uma unidade;

V - preterimento em aluguel ou aquisição de imóveis para fins residenciais, comerciais ou de lazer;

VI - preterimento em exame, seleção ou entrevista para ingresso em emprego;

VII - preterimento em relação a outros consumidores que se encontrem em idêntica situação;

VIII - adoção de atos de coação, ameaça ou violência.

I - constrangimento ou exposição ao ridículo. Se algum heterossexual, por exemplo, chamasse algum homem gay de 'bicha', poder-se-ia considerar injúria? Acho difícil que algum gay se sentiria desonrado pela sua opção sexual, assim como o heterossexual homem que fosse chamado de 'garanhão'. Porém, se 'bicha' vai além da opção sexual, mas com aglutinação de palavras do tipo "bicha burra", "bicha caolha", "bicha que não teve boa educação dos pais", a situação muda. A esfera da sexualidade nada tem a ver com inteligência, patologia oftalmológica e a forma da educação dos pais. Sexualidade é inerente a cada ser humano. Dizer que um homem que brinca de boneca vai virar gay, poder-se-ia dizer que toda criança do sexo masculino que brincou com Boneco Falcon, possivelmente, seria um gay, futuramente. Da mesma forma, toda criança da do sexo feminino que brincou com a boneca Barbie torna-se-ia, futuramente, uma mulher gay.

Fatalmente dirão, contra a lei, que a liberdade de expressão e de pensamento nos cultos religiosos fora violada pela lei. Para se chegar aí, fundamento de que a liberdade de pensamento e de expressão fora violada, é necessário ponderar. Durante séculos, as mulheres foram consideradas meras 'costela de Adão'. Sexualidade, inteligência. Quem ditava a forma de vida da mulher eram os homens, e as religiões garantirão o controle dos homens sobre as mulheres. Apesar do devido respeito à mulher, no final o homem detinha poderes aquém da mulher.

A CRFB de 1988 rompeu, literalmente, o domínio do homem sobre a mulher, o Código Civil de 1916, verdadeiro santuário para os machistas, não foi recepcionado, e jamais poderia, pela Carta Cidadão. O Código Penal de 1940 teve várias modificações, desde revogações até inserções de novas normas. Diante do exposto, antes da CRFB de 1988, o débito da mulher ao homem garantia a este o estupro marital, os tapas corretivos, o controle sobre o direito de ir, vir e ficar da mulher.

As mulheres, meras criaturas, quando se invocava o representante de Deus na Terra, o homem (sexo masculino e, principalmente, heterossexual), aprendiam cozinhas, costurar e dar 'boa educação' aos filhos, que eram mais do marido do que dela — se as religiões garantiram isso, a ciência humana, pela teoria de Leeuwenhoek e Luiz Hamm, de que o espermatozoide seria a “semente”, o poder da vida, e o óvulo o “terreno de plantação”, mero local para a vida humana existir, por séculos a mulher era apenas um útero sem vida; a não ser quando recebia 'o poder da vida' (semente).

Contemporaneamente, a mulher possui os mesmos direitos (art. 5º, I da CRFB de 1988). Isso permite a autonomia da vontade da mulher sobre seu corpo, seus pensamentos e convicções, escolha de ser ateia ou não, qual tipo de atividade laboral quer atuar, se quer casar ou não, ter filhos ou não, ou ter relacionamento sem a formalidade do casamento religioso. Nessa esteira, a mulher escolhe se quer ou não engravidar, a quantidade de filhos que quer ter, e não o querer do homem; o direito de abortar é outro direito da mulher.

Autopossessão, resumindo tudo. No entanto, a realidade da autopossessão da mulher, seja heterossexual ou LGBTs, ainda está longe de ser uma realidade no início do século XXI, não só no Brasil. Se a liberdade de expressão e de pensamento é um dos direitos humanos, de forma que cada ser humano, independentemente de sexualidade, gênero, morfologia, etnia, criança, posição econômica, possa ser expressão para reivindicar seus direitos, as mulheres têm o direito de exigirem a autopossessão e o devido respeito em todos os setores da vida humana.

Se há a existência da Convenção sobre a eliminação de toda as formas de Discriminação contra a Mulher, para garantir a autopossessão, entende-se que não é permitido qualquer forma de denegrir, coisificar o sexo feminino, por qualquer meio simbólico (palavras, gestos, imagens, etc.). Depreende-se existência de limites para a liberdade de expressão; quanto ao pensamento, esfera íntima formada por modelos mentais, a começar pela família, comunidade, regionalismo, pais.


CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS

Artigo 13. Liberdade de pensamento e de expressão

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.

(...)

5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência. (grifo)

Apologia ao ódio nacional. E qual o ódio nacional brasileiro? O ódio às feministas que pedem aborto, por exemplo. Logo, a autopossessão da mulher não existe — e há mulheres que colocam limites na autopossessão do ser humano mulher. E o que seria o ódio às feministas? Atacá-las por qualquer tipo de símbolo (gestos, palavras etc.). Movimentos que incitam à violência física e mental às feministas. Claro que não são todas as feministas que possuem o mesmo tipo de ideologia. O ser humano é complexo.

Liberdade de expressão é a possibilidade de amplo debate numa democracia; não uma democracia utilitarista (modelo mental único). Civilização pressupõe o verniz civilizatório, a capacidade de dialogar — como o método socrático — para tentar obter alguma resposta, e não uma resposta 'ponta de baioneta ou aceitação das normas'. Quanto há ataques verbais, gestuais e faniquitos, o verniz civilizatório dilui-se de tal forma que o troglodita milenar ressurge do âmago humano.

Da mesma maneira que as mulheres heterossexuais têm dispositivos protetivos contra qualquer ação de coisificá-las, as mulheres LGBTs também possuem os mesmo direitos de não serem coisificadas. Assim, a liberdade de expressão das mulheres heterossexuais, em relação aos comportamentos das mulheres LGBTs, em questão de beijos e carícias em praça pública, por exemplo, não pode fundamentar-se em ataques denegrindo, coisificando o grupo feminino LGBTs. Partindo dessa ideia, os homens heterossexuais não podem usar a liberdade de expressão com intuito de denegrir, coisificar os homens LGBTs.

E como ficariam os documentos religiosos sobre o tema? Seria possível que as Igrejas, os Santuários e os Templos, propriedades privadas, proferissem palavras de ordem moral de que os LGBTs são seres perversos e destruidores da 'família de Deus'? Ora, que tipo de modelo mental estará se formando entre os frequentadores e, principalmente, entre os jovens? Ódio? Perdão? Missão de 'salvar' os LGBTs das fornalhas de Satã?

O ódio gera perseguições, ataques. O perdão gera certa tolerância, mesmo que não se aceite o beijo LGBTs nas vias públicas. E quanto ao 'salvar' os LGBTs das garras de Satã? Poder-se-ia, pela liberdade de expressão, argumentar que tal comportamento é contra os documentos sagrados. Nada demais, a não ser quando a liberdade de expressão seja revestida de imputação (o mundo está mal pela sua opção de ser LGBT), coação (não deixarei que sua opção venha a causar danos aos meus filhos; farei de tudo para proibi-los de se manifestar).

Da mesma maneira, nenhum LGBT pode usar a liberdade de expressão para coagir, denegrir, coisificar os religiosos. Divergir é natural ao ser humano, porém quando a divergência dilui o verniz civilizatório, a divergência torna-se fanatismo — seja de qualquer movimento social. Numa democracia com liberdade de expressão, todos podem opinar. Porém, quando as estruturas da democracia são usadas para controle e imputação de modelos mentais? Eis o perigo de se criar modelos mentais determinando comportamentos humanos. Se, por séculos, houve o modelo mental religioso, no mundo líquido, trazido pelos direitos humanos, o modelo mental de que 'o mundo é gay' é pernicioso. Da mesma forma o modelo mental libertário em relação a sociedade de mercado.

O ser humano não pode ser coisificado, muito menos cerceado em sua escolha. Como a sociedade brasileira, e até outras sociedades, comportaram-se com a pluralidade de comportamentos, sem que haja ataques físicos e verbais — discordar faz parte da liberdade de expressão, não o ato de fazer apologias aos ódio, que gera fanatismo — é, sem dúvida, um dos grandes desafios para a humanidade deste século e dos séculos vindouros. No mal-estar da Civilização, o pacto social permite certa tranquilidade, no sentido de tolerância entre seres humanos com suas características natas: medo; zona de conforto; busca de mitos e regras para sobreviver.

E quando é possível a tolerância entre as diferenças humanas (modelos mentais). Quando a destruição há destruição iminente. Exemplo do conflito dos Mísseis Cubanos, na década de 1962. Será necessário um perigo iminente, onde não há qualquer possibilidade de salvação para os heterossexuais e os LGBTs, para que se tenha paz?

Não são as leis que fornecerão respostas (mito), e sim, todavia, a compreensão íntima de cada qual. Para isso, modelos mentais devem ser martelados (filosofia do martelo, de Nietzsche), ou usar a dialética socrática, para através do véu da ignorância (John Rawls) se possa conceber alguma forma de convívio, pacífico e tolerante, entre as diferenças humanas.

FIAT LUX!


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