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Direito à vida e direito à liberdade de crença aplicado ao caso das testemunhas de Jeová: caso de colisão de direitos?

Direito à vida e direito à liberdade de crença aplicado ao caso das testemunhas de Jeová: caso de colisão de direitos?

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Examina-se o caso prático das testemunhas de Jeová, as quais rejeitam a prática médica de transfusões sanguíneas, com o fim de verificar se tal caso configura hipótese de colisão de direitos fundamentais.

Maria Helena Diniz, em sua obra “O Estado Atual do Biodireito”, pontua que o direito à vida, diante de sua essencialidade ao ser humano, condiciona os demais direitos da personalidade. Por ser objeto de direito personalíssimo e decorrente de norma de direito natural, deve ser salvaguardada contra tudo e todos, inclusive contra seu próprio titular, ainda que não houvesse proteção constitucional ao direito à vida. (2008, pág.20)

Ademais, defende o princípio do primado do direito à vida:

A vida tem prioridade sobre todas as coisas, uma vez que a dinâmica do mundo nela se contém e sem ela nada terá sentido. Consequentemente, o direito à vida prevalecerá sobre qualquer outro, seja ele de liberdade religiosa, de integridade física ou mental, etc. Havendo conflito ente dois direitos, incidirá o princípio do primado do mais relevante. Assim, por exemplo, se se precisar mutilar alguém para salvar sua vida, ofendendo sua integridade física, mesmo que não haja seu consenso, não haverá ilícito nem responsabilidade penal médica. (2008, p.24)

Desse modo, a autora pontua que a vida é superior à liberdade, pois esta só pode subsistir se houver observância daquela. Sobre isso:

A liberdade pessoal não pode ser tolerada quando implica retirada da própria vida, por não ser absoluta, visto que está juridicamente limitada por princípios de ordem pública, como os de não matar, não induzir ao suicídio, não omitir socorro e o ajudar a quem está preste s a falecer. (...) As normas constitucionais que resguardam os direitos à vida e à crença religiosa têm eficácia absoluta e geram uma antinomia real ou lacuna de conflito, que só pode ser solucionada pelo critério do justum, aplicando-se os arts. 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. Por meio de uma interpretação corretiva percebe-se que o direito à vida tem posição privilegiada, antecedendo a todos os demais direitos da personalidade, pois sem ele de nada valem os demais. Para que o ser humano possa exercer as liberdades que lhe são outorgadas constitucionalmente, a vida ser-lhe-á imprescindível. O Estado é o guardião da vida, pois o seu titular sobre ela não tem poder decisório. (2009, p. 273)

Entende, assim, que, embora o direito à liberdade de crença seja um direito humano fundamental, reconhecido constitucionalmente, não pode se sobrepor à vida, visto que esta é anterior àquela. Nesse caso, havendo uma situação que coloca ambos os direitos em colisão, de forma que apenas um deles possa ser atendido, deve incidir o princípio do primado do direito mais relevante, na hipótese, o direito à vida. (DINIZ, 2008, p.259)

Por essa razão, segundo a autora, a ofensa à liberdade religiosa, ainda que contrária à manifestação expressa de vontade do paciente ou de familiares, como é o caso de transfusão de sangue forçada em pacientes Testemunhas de Jeová, não pode ser considerada ato ilícito.

Nessa hipótese, Diniz salienta que se trata de um clássico caso de colisão de direitos fundamentais. Para sedimentar sua tese, pontua as colocações da Resolução do Conselho Federal de Medicina 1021/80 de 26 de setembro de 1980:

(...) em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo a seu Código de Ética Médica, deverá observar a seguinte conduta: 

1º- Se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade do paciente ou de seus representantes;

2º- Se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis.

Portanto, na concepção da autora, em ocorrendo iminente perigo de vida, tratar-se-á de um caso de colisão entre o direito à vida e à liberdade de crença, onde aquele se sobrepõe a este devido seu caráter superior.

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2006, p.214), ao discorrerem sobre o dever de prestar socorro dentro do tema responsabilidade civil do médico, argumentam que para entender a questão é necessário ter em mente três premissas básicas:

  1. O direito de disposição sobre o próprio corpo pertencente ao paciente, de modo que o médico não pode ministrar-lhe qualquer tratamento sem o seu consentimento, salvo em caso de iminente perigo de vida;
  2. O direito à liberdade religiosa tanto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos quanto pela Constituição ( art. 5º, VI), o que significa que ninguém pode ser compelido a realizar prática condenada por sua fé e consciência;
  3. O reconhecimento de um direito à vida, também assegurado constitucionalmente (art. 5º, caput), determina que todos têm direito à vida, mas não sobre a vida, o que implica a não-aceitação pelo nosso sistema jurídico de práticas como aborto e a eutanásia, pois a pessoa não teria direito sobre a própria vida. Entende-se, inclusive, que o Estado tem interesse em prolongar a vida das pessoas, pois cada uma representa um papel social relevante.

Os autores citados, assim como Diniz, entendem o assunto como um caso de colisão entre direitos fundamentais (direito à vida versus direito à liberdade religiosa) que, por sua vez, classificam-se como princípios jurídicos. Assim, entendem que o choque não implica a declaração de invalidade ou exclusão de um deles, mas a busca pela sua compatibilização em cada caso concreto.

Afirmam estarem convictos da sobreposição do direito à vida em face do direito à liberdade religiosa, uma vez que a vida é o pressuposto da aquisição de todos os demais direitos. Argumentam que a manutenção da vida é interesse da sociedade e não do indivíduo; portanto, mesmo que, por força de seu fervor, o transfundido sinta-se violado em sua dignidade, o interesse social na manutenção de sua vida justificaria a conduta cerceadora de sua opção religiosa. 

Ainda expõem que, no caso de pacientes maiores e capazes, estando ausente o risco de morte, e, somente nessa hipótese, o médico não deve ministrar sangue se não houver o consentimento do paciente, sob pena de estar constrangendo-o ilegalmente. Assim, caso não observe essa determinação, o médico corre o risco de ser responsabilizado. 

Arguem, por fim, que em uma situação de perigo de morte quando da realização do procedimento transfusional, ainda que sem êxito, com o eventual falecimento do enfermo, não deve ser imposta uma responsabilização civil do médico, pois este estaria cumprindo o seu dever por força da interpretação dos artigos 56 e 59 do Código de Ética Médica.

Em contraposição ao pensamento apresentado, Nelson Nery Junior assevera que em um Estado Constitucional Democrático de Direito, o direito à livre manifestação da fé não se exaure na liberdade de culto. Para ele, envolve também a impossibilidade de o Estado impor uma conduta que atente contra a dignidade e a convicção religiosa do cidadão. Tal limitação é resultado da dimensão da liberdade de religião enquanto direito subjetivo público, garantindo a todos o acesso às manifestações culturais e tradições, posto serem essenciais para a formação da identidade pessoal do indivíduo. (2009, p.15 e 16)

Nessa perspectiva, Nelson Nery Junior aponta como legítima a possibilidade de recusa de procedimentos médicos que envolvam transfusão sanguínea por pacientes Testemunhas de Jeová.

Ademais, ele assevera:

Não obstante, não raro, encontram-se decisões judiciais em que os praticantes da religião Testemunhas de Jeová são condenados a se submeter compulsoriamente ao tratamento médico que envolva transfusão de sangue. De ordinário, verifica-se na fundamentação dessas decisões a manifestação de um pensamento que se pretende fundado em uma ponderação de interesses entre dois direitos fundamentais: liberdade religiosa versus direito à vida, optando-se em dar prevalência a este último em detrimento da liberdade de religião. Todavia, conforme passaremos a demonstrar, esse suposto conflito entre dois direitos fundamentais (liberdade religiosa vs direito à vida) apresentando-se como um falso problema, não havendo na hipótese um autêntico conflito entre o bem jurídico vida e a liberdade religiosa.(2009, p.16)

Ao defender que a problemática do caso das Testemunhas de Jeová se trata de um falso conflito, Nery salienta que a colisão de direitos fundamentais em sentido estrito somente é verificada quando a realização de um direito fundamental, no caso a liberdade religiosa, causar dano ao direito fundamental de outrem. (2009, p.17)

Contudo, quando um praticante dessa religião se recusa a aceitar uma transfusão sanguínea, de forma alguma está pondo em risco direito fundamental de outro indivíduo. Ao contrário, apenas está exercendo seu direito público subjetivo de liberdade de religião.

A Portaria nº 1820/2009 do Ministério da Saúde estabelece que, desde que a saúde pública não seja posta em risco, será sempre justificada a recusa a tratamento. O inciso V do artigo 5º da referida portaria, in verbis:

Art. 5º Toda pessoa deve ter seus valores, cultura e direitos respeitados na relação com os serviços de saúde, garantindo-lhe:

V - o consentimento livre, voluntário e esclarecido, a quaisquer procedimentos diagnósticos, preventivos ou terapêuticos, salvo nos casos que acarretem risco à saúde pública, considerando que o consentimento anteriormente dado poderá ser revogado a qualquer instante, por decisão livre e esclarecida, sem que sejam imputadas à pessoa sanções morais, financeiras ou legais; 

Nesse sentido, de forma alguma a não aceitação de transfusões de sangue halogênico por membros da religião Testemunhas de Jeová acarretaria qualquer risco à saúde pública.

Também, não há que se alegar que, diante de tal negativa, haveria uma colisão de direitos fundamentais em sentido amplo, que, segundo Nery, seria o choque de direitos fundamentais com bens coletivos, no caso, o exercício da liberdade religiosa violando bens jurídicos coletivos da sociedade (saúde e vida).

Isso porque o praticante de tal grupo religioso rejeita tão somente a hemotransfusão, aceitando se submeter às demais alternativas de tratamento médico, as quais, inclusive, são cientificamente possíveis, seguras e mais eficazes. Assim, não cabe aqui a idéia de que seus membros abrem mão do direito à vida e à saúde garantidos constitucionalmente, haja vista que, por motivos lógicos, quem busca um médico espera o melhor tipo de tratamento e, portanto, não deseja sua morte.

Desse modo, Nelson Nery Junior assevera:

Destarte, não temos receio em afirmar ser ilegítima e inaplicável a invocação da teoria da ponderação de interesses para pretender respaldar decisões judiciais que obrigam praticantes de determinada religião a realizarem a transfusão de sangue. Nesse quadro, a suposta ponderação de interesses entre vida e a liberdade religiosa apresenta-se como um falso problema. (...) Decisões judiciais que imponham essas condutas carecem de fundamentação jurídica consistente, bem como de adequação social. Em geral, tais decisões se baseiam em uma suposta existência de colisão entre direitos fundamentais, a qual, todavia, conforme demonstramos, não existe, seja em sentido amplo ou estrito. (2009, p.19)

Nesse mesmo sentido, Álvaro Villaça de Azevedo, por entender que cada direito fundamental contém uma expressão de dignidade, por assim dizer, de autonomia e liberdade, defende que o direito à vida garantido no artigo 5º, caput, de nossa Constituição Federal, não se resume simplesmente ao direito de existir em termos biológicos. Com base em tal raciocínio, a vida garantida constitucionalmente é a vida digna, ou seja, a vida com autonomia e liberdade. E, resguardar a vida vai além de preservar seu aspecto físico, envolvendo, também, os valores de cunho moral, espiritual e psicológicos que lhes são inerentes. (2010, p.13)

Assim, no que se refere ao caso das Testemunhas de Jeová, quando um paciente de tal credo procura um médico, solicitando um tratamento de saúde e faz a opção de receber um tratamento alternativo à hemotransfusão, ocorre, na realidade, o exercício do direito à vida em seu sentido mais pleno, posto que está exercendo seu direito à vida com autonomia e liberdade.

Conforme Azevedo defende, não há que se falar em colisão entre direitos fundamentais, pois, de fato, o que ocorre é o exercício do direito à vida e da liberdade religiosa. Isso porque, ao procurar um médico e buscar um tratamento de saúde que evita todos os riscos envolvidos em um procedimento de transfusão de sangue, o paciente está salvaguardando sua vida biológica e, também, está exercendo sua autonomia e liberdade na escolha de tratamento médico conforme suas motivações religiosas.

Alexandre de Moraes, ao falar de liberdade religiosa, afirma que a abrangência de tal preceito é ampla:

A abrangência do preceito constitucional é ampla, pois, sendo a religião o complexo de princípios que dirigem os pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, acaba por compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto. O constrangimento à pessoa humana, de forma a constrangê-lo a renunciar sua fé, representa o desrespeito à diversidade democrática de ideias, filosofias e à própria diversidade espiritual. (2011, p.137)

Assim, a negativa de pacientes pertencentes ao referido grupo religioso não constitui mero capricho ou desejo arbitrário e infundado, mas se revela uma decisão responsável, embasada e convicta, a qual carrega consigo a força de um credo e cujo desrespeito exaure sua própria condição de ser humano.

Entretanto, embora o paciente tome tal decisão motivado por sua crença religiosa e consciência, ele está, antes de tudo, exercendo o seu direito de escolha, independentemente da motivação, com base na dignidade humana e autonomia da vontade.

Ademais, o artigo 15 do novo Código Civil Brasileiro reza: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.

Como é de conhecimento comum, o tratamento com transfusão sanguínea comporta uma série de riscos. Segundo o documentário Transfusion Alternatives – Documentary Series, no caso de sangue doado em um banco de sangue, seja em uma unidade alogênica ou doação autóloga pré-operatória, sempre há risco de erro administrativo, incompatibilidade ABO e reação hemolítica pós-transfusional fatal.

Além disso, a transfusão de sangue é forma de transmissão de doenças virais, como AIDS, Hepatite B e C, como também de outras ainda não conhecidas.

Contudo, atualmente, a maioria dos especialistas concorda que o risco de uma transfusão de sangue em si é maior que o risco de uma infecção adquirida durante o procedimento.

Nesse diapasão, as estimativas do impacto da imunomodulação transfusional sobre a saúde pública nos EUA, por exemplo, são de que, aproximadamente, 10 mil a 50 mil pacientes por ano morram em decorrência de causas associadas a ela. 

Inclusive, muitos trabalhos científicos recentes chegam à conclusão de que as transfusões de sangue possuem relação direta com o aumento da morbidade e mortalidade. Por exemplo, no artigo The impacto of storage on red cell function in blood transfusion, lê-se: Apesar do uso comum de transfusões de hemácias na prática clínica, os efeitos benéficos reais das hemácias nunca foram demonstrados. Ao contrário, vários estudos sugerem que as transfusões de hemácias estão associadas com maior risco de morbidade e mortalidade. (AZEVEDO, 2010, p.6)

Isso porque as transfusões sanguíneas, por sua própria natureza, trazem riscos de incompatibilidade e contaminação. Conforme reconhece Maria Helena Diniz, os testes disponíveis nacionalmente e internacionalmente não podem fornecer segurança absoluta de inexistência de riscos para o paciente, haja vista que sempre poderá a haver a janela imunológica, não detectando a presença de patologias ou produzindo resultados falsos negativos. (2008, p.235)

Diante de tantos riscos, atuais e futuros, é direito do paciente recusar tratamento médico que envolva transfusão de sangue alogênico. Ademais, conforme preceitua Álvaro Villaça de Azevedo, por força do disposto no artigo 15 do Código Civil de 2002, o desrespeito a esse preceito ocasionará a responsabilidade civil do profissional de saúde. (2010, p.23)

Ainda argumenta Azevedo (2010) que constranger o paciente a submeter-se à transfusão sanguínea, quando tal procedimento tenha sido recusado de forma expressa pelo mesmo, configura o crime de constrangimento ilegal, delineado no caput do artigo 146 do Código Penal:

Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda.

O corolário deste tipo penal está no artigo 5º, inciso II, CF/88, que assegura que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. 

Como não existe, em nosso ordenamento jurídico, conforme explica Villaça, uma lei que obrigue o enfermo a submeter-se a uma transfusão de sangue ou a determinado procedimento médico, a aplicação de tal terapia sem a anuência do paciente, tendo havido a recusa prévia expressa do mesmo, configura constrangimento ilegal.

No entanto, o inciso I do parágrafo 3º do artigo 146 do Código Penal determina que não configura tal crime a “intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou do seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida ou a coação exercida para impedir suicídio”.

Azevedo assevera que tal excludente faz referência às situações em que o consentimento é presumido, ou seja, estando o paciente em iminente perigo de vida, não podendo expressar sua vontade ou não tendo feito previamente de outra forma como em um documento com diretrizes antecipadas sobre tratamentos de saúde, o médico deve agir presumindo a anuência do paciente, isto é, “sem” o seu consentimento. (2010, p.41)

Entretanto, caso o paciente tenha manifestado sua vontade de forma expressa, a inobservância dela não significa agir sem seu consentimento, mas contra sua vontade.

Não se pode esquecer que desde que o delito de constrangimento ilegal foi inserido no Código Penal em 1940, fortes mudanças alteraram a relação médico-paciente, tendo em vista que a dignidade da pessoa humana passou a ser fundamento do Estado com o advento da Constituição de 1988, e o atual Código Civil, no seu artigo 15, passou a privilegiar a autonomia do paciente sem ressalvas quanto ao iminente perigo de vida.

Desse modo, ao interpretar a excludente do artigo 146 do Código Penal, deve-se levar em conta essa mudança de paradigma, por meio da qual passou-se a primar pela autodeterminação do paciente e dignidade da pessoa humana, em detrimento do paternalismo de outrora. Assim, com base nessa nova visão trazida pela Constituição Federal e pelo Código Civil, o respeito à vontade do enfermo não está condicionado ao seu estado clínico, haja vista que a gravidade do estado de saúde não lhe retira o status de ser humano.

Desse modo, obrigar alguém a se submeter à transfusão de sangue, além de configurar um desrespeito a sua dignidade e convicções, viola também o próprio Estado Democrático de Direito, tendo em vista que decisões judiciais nesse sentido não admitem o direito de ser diferente e de autodeterminação.

Isso porque, conforme o voto do relator Ministro Marco Aurélio, na ADIN 1351-3, j. 7/12/2006, o Estado Democrático de Direito constitui-se, principalmente, um instrumento de defesa das minorias. Assim, não há regime democrático sem a garantia de existência das minorias, com a preservação de seus direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal de 1988. O ministro afirma:

A Democracia não é ditadura da maioria! De tão óbvio, pode haver o risco de passar despercebido o fato de não subsistir o regime democrático sem a manutenção das minorias, sem a garantia da existência destas, preservados os direitos fundamentais assegurados constitucionalmente.

Portanto, pacientes Testemunhas de Jeová precisam ter seu direito constitucional de constituir minoria assegurado, por ter sua vontade, no que se refere à recusa de hemotransfusão, respeitada, sob pena de haver violação ao Estado Democrático de Direito enquanto instrumento de defesa das minorias.

Assim, sacrificar o direito do indivíduo de autodeterminar-se, sufocando suas convicções ideológicas enquanto minoria pela imposição da ideologia de uma maioria, além de não encontrar embasamento constitucional e democrático, revela um flagrante preconceito. 

Sobre isso, Nelson Nery Junior ilustra:

Ou seja, a liberdade de um cidadão não pode ser ignorada/vilipendiada sob a frágil alegação de que sua vida será salva; esse fundamento além de não consistência jurídica, camufla um preconceito em relação a uma minoria. Exemplos que ilustrem nosso ponto de vista são facilmente demonstráveis, e.g., não se cogita de submeter contra sua vontade um cidadão que se recuse a praticar uma quimioterapia para tratar câncer, ou que obrigue determinada pessoa a compulsoriamente se submeter a um transplante de órgão. Entretanto, quando se trata de respeitar a recusa de um praticante da religião Testemunhas de Jeová em realizar uma transfusão de sangue, de maneira estarrecedora, a maioria, incluindo parcela do Judiciário, não admite essa recusa como legítima, privando assim os praticantes dessa religião de seu direito fundamental de liberdade (2009, p.24)

Corroborando com tal pensamento, Luís Roberto Barroso argumenta:

O valor objetivo da vida humana deve ser conciliado com o conjunto de liberdades básicas decorrentes da dignidade como autonomia. Por exemplo: o Estado não pode proibir alguém de prestar ajuda humanitária em uma região de guerra, ou de praticar esportes radicais, ainda que o risco seja elevado ao extremo. Essas são escolhas existenciais legítimas. Os exemplos poderiam ser multiplicados. Uma pessoa que tenha histórico familiar de câncer não pode ser obrigada a se submeter a exames periódicos ou a evitar fatores de risco para a doença. Não se pode impedir uma mulher de engravidar pelo fato de ser portadora de alguma condição que esteja associada a elevado risco de morte na gestação. (...)Por tudo isso, é legítima a recusa de tratamento que envolva a transfusão de sangue por parte das testemunhas de Jeová. Tal decisão funda-se no exercício de liberdade religiosa, direito fundamental emanado da dignidade da pessoa humana, que assegura a todos o direito de fazer suas escolhas existenciais. Prevalece, assim, nesse caso, a dignidade como expressão da autonomia privada, não sendo permitido ao Estado impor procedimento médico recusado pelo paciente. Em nome do direito à saúde ou do direito à vida, o Poder Público não pode destituir o indivíduo de uma liberdade básica, por ele compreendida como expressão de sua dignidade. (2010, p.22 e 30)

Como se vê, embora o direito à vida tenha um peso indiscutível até por ser pré-requisito de todos os outros direitos, ele não é absoluto, nem hierarquicamente superior. Conforme explicou Barroso (2010), o valor da vida deve ser conciliado com as liberdades inerentes ao exercício da dignidade e da autonomia do homem, as quais também são indispensáveis. Nas palavras de Barroso:

Em outras palavras, admite-se o risco de morte quando seja indissociável do exercício autônomo da vida, que não pode se converter em mera subsistência, privada de sentido para o seu próprio titular. (2010, p.22)

Assim, sem grandes debates e controvérsias, conforme assevera Luís Roberto Barroso, admite-se que a vida seja posta em risco pelo próprio indivíduo para que ele possa realizar uma série de decisões pessoais e concretizar seu próprio projeto de vida, como é o caso de uma mulher que engravida mesmo sabendo que é portadora de uma condição que eleva o risco de morte durante a gravidez. Ninguém propõe qualquer ação judicial para impedi-la de realizar seu desejo maternal, sob a alegação de que sua vida estaria em risco. E nem mesmo pode o Estado proibi-la.

A ordem jurídica respeita inclusive decisões pessoais que envolvam riscos e que não estão relacionadas a escolhas existenciais, como é o caso da prática de esportes radicais como o alpinismo, montanhismo, bungee jumping e o paraquedismo, ou de realizar ajuda humanitária em zonas de guerra.

Se assim é, não há legitimidade alguma para afrontar o direito de um paciente Testemunha de Jeová de, fazendo uso de sua autonomia, tomar suas decisões quanto ao tipo de tratamento de saúde que deseja obter, ainda mais por se tratar de uma escolha existencial. Portanto, como salientou Nery, a afirmação de que a liberdade do indivíduo pode ser desrespeitada quando há risco para sua vida é, como demonstrado, frágil e preconceituosa. 

Obviamente, o Poder Público não pode e nem deve aceitar quaisquer escolhas e, por isso, estabelece limites, o que é facilmente observado em normas de segurança do trabalho e regras de trânsito. Entretanto, quando tais escolhas estão intrinsecamente relacionadas ao exercício de uma vida digna, ainda que haja risco para o indivíduo, o Estado deve respeitar sua intimidade.

Nesse sentido, a Suprema Corte do Estado do Mississippi, nos Estados Unidos, já decidiu que paciente Testemunha de Jeová não está obrigado a realizar transfusão de sangue não apenas em razão da liberdade de crença, mas envolve também o respeito a seu direito à intimidade. Conforme  entendimento da referida Suprema Corte, todo indivíduo desfruta do direito à privacidade, assim, cada ser humano tem o direito à sua integridade e à inviolabilidade, direito à liberdade de escolha; ou seja, direito à autodeterminação do próprio corpo. (Supreme Court of Mississipi, 478 So 2d 1033 In Re Brown, (Miss.1985)

Desse modo, após ter sido demonstrada a legitimidade da recusa de tal procedimento médico, faz-se necessária a análise de algumas normas que tratam especificamente sobre o tema, como é o caso Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1931/2009), bem como a Resolução 1021/80 do Conselho Federal de Medicina à luz da Constituição Federal, da Lei 8080/90, a portaria nº 1820/09 do Ministério da Saúde e, por fim, a Lei de Transplante de Órgãos e Tecidos (Lei nº 9434, de 4 fevereiro de 1997).

Não pairam dúvidas de que o Código de Ética Médica visa conferir mais autonomia ao paciente no que tange à escolha de seus tratamentos de saúde, haja vista que a própria Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1931/2009, que aprovou o novo CEM, expôs, como fundamento da atualização de tal diploma a busca de melhor relacionamento com o paciente e garantia de maior autonomia à sua vontade. (http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2009/1931_2009.pdf)

Desse modo, ao tratar dos princípios fundamentais da atuação ética do médico, o capítulo 1, XXI, Resolução 1931/09 do CFM, reza:

XXI – No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as precisões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.

Assim, conforme visto, a decisão do paciente no que se refere à escolha de seu tratamento de saúde deve ser respeitada pelo profissional de saúde.

Ademais, o artigo 22 do Código de Ética Médica veda expressamente ao médico “deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.”

Conforme o artigo acima, são condutas obrigatórias no atendimento do profissional ao paciente o esclarecimento acerca dos procedimentos a serem utilizados e, em seguida, a obtenção de seu consentimento. Entretanto, em situações emergenciais, não sendo possível obter o consentimento do paciente por este se encontrar inconsciente, por exemplo, e não possuir um representante ou documento em que, previamente, tenha feito sua escolha de forma expressa, surge o consentimento presumido.

Isso significa que, consoante o entendimento de Álvaro Villaça de Azevedo, na hipótese de risco iminente de morte, não sendo possível obter o consentimento do paciente por qualquer meio que seja, o médico terá o dever ético de agir, presumindo o consentimento do enfermo. 

Portanto, segundo Azevedo, agir sem o consentimento do paciente não pode ser interpretado, de modo algum, como agir contra o consentimento do paciente. (2010, p.31)

Assim, mesmo estando o paciente em iminente perigo de vida ou risco iminente de morte, se o mesmo possuir um documento em que tenha previamente expressado suas diretrizes quanto a tratamentos médicos ou já tenha exercido seu direito de escolha de forma verbal ou por intermédio de representante legal deve-se respeitar o posicionamento do paciente.

Não é outro o entendimento de Nelson Nery Junior:

O Código de Ética Médica tal como todos os diplomas normativos devem ser interpretados à luz da Constituição Federal. Tal como expusemos, o consentimento informado é direito fundamental do cidadão embasado em sua dignidade, no seu direito de liberdade e mais precisamente a liberdade religiosa, no caso sub examine. Nesse sentido, o médico está autorizado a proceder com tratamento que julgar mais adequado para tratar o enfermo, quando este não se opuser ou nada objetar ao que lhe for oferecido. Entretanto, se houver manifestação de vontade contrária do paciente, essa recusa não pode ser ignorada pelo médico, sob pena de ser violado o direito fundamental de liberdade do cidadão [além de incorrer no tipo penal do CP, 146]. Desse modo, o art. 22 do Código de Ética Médica deve ser interpretado conforme a CF, 5º, caput e VI. Por consequência, diante da concordância do paciente ou se não houver objeção, poderá o médico escolher o tratamento que julgar mais adequado ao paciente. Entretanto, se houver objeção do paciente, mesmo que fundada em premissas religiosas, o médico deverá respeitar a vontade dele, sob pena de configuração de ilícito penal e infringir o consentimento informado- direito constitucional do cidadão. Para os mencionados artigos do Código de Ética Médica, basta aplicar-se a técnica da interpretação conforme à Constituição, impedindo assim qualquer interpretação inconstitucional dos mesmos. Até porque a redação do art. 22 do Código de Ética Médica contém a expressão “deixar de obter” o consentimento _ o que por óbvio impede que se admita o procedimento médico contra o consentimento do paciente. Ou seja, o próprio texto do referido artigo impede sua aplicação de maneira contrária à vontade do paciente. (grifo do autor) (2009, p.35)

No mesmo sentido, o artigo 24 do Código de Ética Médica veda expressamente ao médico “deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo”. Interessante notar que o artigo não traz qualquer referência ao estado clínico do paciente, o que é razoável, haja vista que o direito do indivíduo à autodeterminação e o respeito à sua dignidade garantidos constitucionalmente não dependem de seu estado de saúde.

O artigo 31 do referido Código de Ética também veda ao médico “desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”. Sobre esse artigo, Villaça explica:

Ora, muito embora o art.31 do documento referido diga que o médico pode desrespeitar o direito de escolha do paciente nos casos de situação de iminente risco de morte, isso não significa dizer poder ir contra a vontade pré-determinada de escolha. Pior do que não ter um direito, é ser titular dele, mas não poder exercê-lo. (2010, p.31) (grifo do autor)

Assim, como já explicado, no caso de iminente risco de morte, pode ser que não existam condições para o paciente expressar sua vontade de forma consciente, caso não o tenha feito antes, mas nem por isso deve o médico deixar de agir. Nessa hipótese, em nome de seu dever legal e ético, o profissional deve desconsiderar que pertence ao paciente o direito de escolher a terapêutica que mais lhe convém, por não ter tido o enfermo meios de exercê-lo, tomando as medidas que julgar necessárias.

Entretanto, desrespeitar o direito do indivíduo de escolher livremente quando essa decisão ainda não existe e não é possível obtê-la não se confunde com o desrespeito à decisão prévia e expressa do mesmo. Se fosse este e não aquele o entendimento pretendido, o artigo 31 não estaria em harmonia com a atual legislação brasileira e nem com a acepção do Código de Ética Médica.

Já a resolução do Conselho Federal de medicina nº 1021/80, conclui: 

Em caso de haver recusa em permitir a transfusão de sangue, o médico, obedecendo a seu Código de Ética Médica, deverá observar a seguinte conduta:

1º se não houver iminente perigo de vida, o médico respeitará a vontade do paciente ou de seus responsáveis.

2º se houver iminente perigo de vida, o médico praticará a transfusão de sangue, independentemente de consentimento do paciente ou de seus responsáveis.

Ao abordar tal problemática, faz-se necessário frisar que a Resolução CFM1021/80 é anterior à Constituição Federal de 1988 e ao atual Código Civil de 2002. Além disso, não trata do tema com a razoabilidade necessária, já que ignora a existência de técnicas alternativas às transfusões sanguíneas, as quais são atualmente consideradas cientificamente possíveis, eficazes e mais seguras. Ademais, de forma simplista, focaliza não a escolha de um tratamento dentre vários possíveis, mas a recusa à transfusão de sangue.

Ao interpretá-la conforme a Constituição Federal, a resolução mencionada revela-se flagrantemente inconstitucional, já que submete o cidadão a tratamento médico contra sua própria vontade em grave desrespeito à sua dignidade (CF, 1º, III) e à sua liberdade (CF, 5º, caput).

Por conseguinte, Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1021/80 também contraria o que está disposto na Lei 8080/90, parágrafo 7º, III, V:

Art. 7º. As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o sistema único de saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:

(...)

III- preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral;

(...)

V- direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde.

Com o fim de fornecer as instruções necessárias para o exercício do direito constitucional (consentimento informado) na relação médico-paciente, o Ministério da Saúde editou a Portaria nº 1820 de 13 de agosto de 2009, a qual foi incisiva em garantir e estabelecer os parâmetros de exercício do consentimento informado. Dentre seus dispositivos, destacaremos os seguintes:

Art. 2º toda pessoa tem direito ao acesso a bens e serviços ordenados e organizados para garantia da promoção, prevenção, proteção, tratamento e recuperação da saúde.

(...)

II- informações sobre seu estado de saúde, de maneira clara, objetiva, respeitosa, compreensível quanto a:

1.Possíveis diagnósticos;

2.Diagnósticos confirmados;

3.Tipos, justificativas e riscos dos exames solicitados;

4.Resultados dos exames realizados;

5.Objetivos, riscos e benefícios de procedimentos diagnósticos, cirúrgicos, preventivos ou de tratamento;

(...)

Art. 5º toda pessoa deve ter seus valores, cultura e direitos respeitados na relação com os serviços de saúde, garantindo-lhe:

(...)

V- o consentimento livre, voluntário e esclarecido, a quaisquer procedimentos diagnósticos, preventivos ou terapêuticos, salvo nos casos que a acarretem risco à saúde pública, considerando que o consentimento anteriormente dado poderá ser revogado a qualquer instante, por decisão livre e esclarecida, sem que sejam imputados à pessoa sanções morais, financeiras ou legais.

Por regulamentar de maneira pormenorizada o direito ao consentimento informado, a publicação da Portaria 1820/09 implica na revogação da Resolução do CFM nº1021/80. Ademais, não se poderia cogitar de a mencionada Resolução restringir direitos fundamentais em face da superioridade normativa da Constituição Federal. Neste sentido, Nery (2009, p.37) citando Celso Antônio Bandeira de Mello (2007, p.356):

Se o regulamento não pode criar direitos ou restrições à liberdade, propriedade e atividades dos indivíduos que já não estejam estabelecidos e restringidos na lei, menos ainda poderão fazê-lo instruções, portarias ou resoluções. Se o regulamento não pode ser instrumento para regular matéria que, por ser legislativa, é insuscetível de delegação, menos ainda poderão fazê-lo atos de estirpe inferior, quais instruções, portarias ou resoluções. Se o Chefe do Poder Executivo não pode assenhorear-se de funções legislativas nem recebê-las para isso por complacência irregular do Poder Legislativo, menos ainda poderão outros órgãos ou entidades da Administração direta e indireta.(grifo do autor)

Portanto, a Resolução do CFM encontra-se revogada, o que impede que o Conselho aplique qualquer tipo de punição ao médico que se abstenha de praticar determinado procedimento em razão da manifestação de vontade do paciente. Em razão disso, qualquer punição ou instauração de inquérito pelo Conselho contra ato do médico que se absteve de praticar algum procedimento clínico para atender o consentimento informado de seu paciente será, sem dúvida alguma, ilegal.

Importante frisar que o próprio Conselho Federal de Medicina já modificou sua posição no que se refere ao direito de escolha de tratamentos médicos por pacientes Testemunhas de Jeová. Em uma decisão absolutória de uma médica que respeitou a autonomia de paciente Testemunha de Jeová em situação emergencial, o Conselho decidiu:

I – (...)

II – A médica deixou de fazer a transfusão de sangue à uma paciente em obediência à sua vontade expressa previamente. Como não se deve desrespeitar a autonomia do paciente, foi absolvida. (CFM – Processo nº 2374-020/94 julg.13/02/03)

Ademais, a Lei de Transplantes de Órgão e Tecidos, Lei 9434 de 4 de fevereiro de 1997, no caput  e parágrafo 1º de seu artigo 10 (com redação dada pela Lei 10211 de 23 de março de 2001) destaca:

Art. 10. O transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, assim inscrito em lista única de espera, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento. 

§ 1o Nos casos em que o receptor seja juridicamente incapaz ou cujas condições de saúde impeçam ou comprometam a manifestação válida da sua vontade, o consentimento de que trata este artigo será dado por um de seus pais ou responsáveis legais.

Como se pode perceber, o poder da vontade daquele que receberá o transplante é de tal dimensão que ele pode prontamente recusá-lo e, por força do disposto nesse artigo, tal procedimento não poderá ser realizado.

 Tecnicamente, a transfusão de sangue é também considerada uma forma de transplante, haja vista que o sangue se constitui em tecido líquido. Portanto, só poderá ser realizada com o consentimento expresso do receptor.

No caso de pessoas que estejam impedidas de se manifestar em decorrência de seu estado clínico e que não tenham externado seu desejo previamente, o parágrafo primeiro do aludido artigo retoma o princípio da representação. Assim, o consentimento ou dissentimento deve ser fornecido pelos pais ou responsáveis legais.

Mais uma vez, prestigia-se a dignidade do paciente, sua autonomia de realizar escolhas existenciais e o consentimento informado.

Após tal análise, não restam dúvidas de que o Código de Ética Médica, o Ministério da Saúde, a própria Lei de Transplantes de Órgãos e Tecidos e, atualmente, o Conselho Federal de Medicina têm buscado conferir mais autonomia ao paciente, procurando respeitar sua manifestação de vontade e seu direito de escolher o tratamento de saúde que melhor lhe convier dentre as opções disponíveis. 

Nesse sentido, manifestação de vontade do paciente se dá através de seu consentimento informado. Conforme Nery define, o consentimento informado é exercício de direito da personalidade, que se manifesta como verdadeiro desejo de autodeterminação, manifestação da vontade. Trata-se de uma alteridade abstrata erga omnes, ou seja, dirigida contra todos da sociedade. (2009, p.42)  

Segundo Luís Roberto Barroso, para que o consentimento se caracterize, é necessário verificar a presença de aspectos ligados ao sujeito do consentimento, à liberdade de escolha e à decisão informada. Sobre isso, ele explica:

O sujeito do consentimento é o titular do direito fundamental em questão, que deverá manifestar de maneira válida e inequívoca a sua vontade. Para que ela seja válida, deverá ele ser civilmente capaz e estar em condições adequadas de discernimento para expressá-la. Portanto, além da capacidade, o titular do direito deverá estar apto para manifestar sua vontade, o que exclui as pessoas em estados psíquicos alterados, seja por uma situação traumática, por adição a substâncias entorpecentes ou por estarem sob efeito de medicamentos que impeçam ou dificultem de forma significativa a cognição. Para que se repute o consentimento como inequívoco, ele deverá ser, ainda, personalíssimo, expresso e atual. (...) Para que seja considerado genuíno, o consentimento precisará também ser livre, fruto de uma escolha do titular, sem interferências indevidas. (...) Por derradeiro, o consentimento tem de ser informado, o que envolve o conhecimento e a compreensão daquele que vai consentir acerca de sua situação real e das consequências de sua decisão. (2010, p.31 e 32)

No que se refere à manifestação de vontade, entende-se ainda que, quando não há prescrição legal sobre a forma pela qual um determinado ato jurídico deva ser praticado, haverá liberdade de forma, conforme assegura o artigo 107 do Código Civil: “A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir”. 

Assim, em regra, impera a liberdade das formas, salvo se houver lei que expressamente lhe consigne forma, ou, em sede de negócio jurídico, for estipulada forma essencial pelas partes.

A lei não prescreve forma para o consentimento informado, vigorando assim a regra da liberdade das formas, ou seja, essa manifestação de vontade pode ser expressa, por exemplo, pela palavra falada ou escrita. O médico pode acautelar-se, obviamente, quanto à prova do ato em si, requerendo a assinatura de termo ou declaração ou atestando o ato na presença de testemunhas, seguindo a Portaria 1820/09, artigo 4º, inciso IX: 

a informação a respeito de diferentes possibilidades terapêuticas de acordo com sua condição clínica, baseado nas evidências científicas e a relação custo-benefício das alternativas de tratamento, com direito à recusa, atestando na presença de testemunhas.

Desse modo, Nery (2009) pontua que o paciente Testemunha de Jeová pode precaver-se de uma situação em que possa vir a encontrar-se impossibilitado de manifestar sua vontade, externando prévia e documentalmente seus desejos.

Isso porque a vontade do paciente ou de qualquer outro indivíduo não deixa de existir simplesmente porque seu titular não pode manifestá-la. Uma prova disso são os testamentos, por meio dos quais, estando em consonância com a lei, a vontade do de cujus deverá ser sempre respeitada.

Assim, uma forma de praticantes dessa religião manifestarem previamente sua vontade é por meio da elaboração dos denominados testamentos vitais ou nomeando procurador de cuidados de saúde, sendo ambos expressões de proteção da liberdade e da autonomia privada. Nesse sentido, diz Ronald Dworkin:

Cada vez mais, nos damos conta da importância de tomar uma decisão com antecedência: queremos ou não ser tratados desse modo? Hoje, todos os estados norte-americanos reconhecem alguma forma de diretriz antecipada: ou os ‘testamentos de vida (documentos nos quais se estipula que certos procedimentos médicos não devem ser utilizados para manter o signatário vivo em circunstâncias específicas), ou as ‘procurações para tomada de decisões médicas’(documentos que indicam uma outra pessoa para tomar decisões de vida e de morte em nome do signatário quando este já não tiver condições de tomá-las).(2003,p.252)

Segundo explica Nelson Nery, os testamentos vitais constituem documentos nos quais o declarante, sem constituir ou nomear procurador, preventivamente, informa quais procedimentos médicos lhe são desejados ou indesejados, caso ele não esteja, no momento da intervenção médica, em condições de manifestar-se. (2009, p.46)

Outro instituto de disposição de vontade do paciente é a procuração de cuidados de saúde. Essa consigna especificamente as instruções preventivas sobre os procedimentos médicos que se deseja refutar, evitando a chamada procuração em branco, somente sendo possível a procuração in rem propria, ou seja, a que é feita no interesse do representado, na qual o declarante também nomeia e constitui procurador ou procuradores para informar ao médico a sua vontade previamente expressa, no caso de o mesmo estar incapacitado de externá-la. (NERY, 2009)

A Carta dos Direitos e Deveres dos Usuários de Saúde, a Portaria 1820/09 do Ministério da Saúde, em seu artigo 5º, inciso VII, contempla a possibilidade de nomear procurador quando diz:

Art. 5º Toda pessoa deve ter seus valores, cultura e direitos respeitados na relação com os serviços de saúde, garantindo-lhe:

VII - a indicação de sua livre escolha, a quem confiará a tomada de decisões para a eventualidade de tornar-se incapaz de exercer sua autonomia; 

As procurações também possuem forma livre e, assim como o testamento vital, possuem efeito jurídico vinculante e eximidor. Vinculante porque os profissionais de saúde são obrigados a cumpri-las, sob pena de responderem civil, ética e criminalmente por seu desrespeito; e eximidor quanto à responsabilidade do médico. Isso porque, quando o paciente exerce sua liberdade individual e sua autonomia privada, recusando a submeter-se a determinados tipos de tratamento, assume as consequências decorrentes de seu ato, conforme determina a Portaria 1820/09, em seu artigo 6º, inciso V:

Art. 6º Toda pessoa tem responsabilidade para que seu tratamento e recuperação sejam adequados e sem interrupção. 

Parágrafo único. Para que seja cumprido o disposto no caput deste artigo, as pessoas deverão:

V - assumir a responsabilidade pela recusa a procedimentos, exames ou tratamentos recomendados e pelo descumprimento das orientações do profissional ou da equipe de saúde; 

Nesse diapasão, as Testemunhas de Jeová têm à sua disposição o documento Instruções e Procuração para Tratamento de Saúde intitulado: Diretrizes Antecipadas Relativas a Tratamentos de Saúde e Outorga de Procuração (DATOP), o qual delineia as decisões quanto a tratamentos de saúde tomadas previamente pelo paciente, nomeando também dois procuradores para decidirem em seu nome, caso não possa se manifestar. Tal documento tem tido sua validade reconhecida por autoridades e tribunais de todo o mundo. 

Nos EUA, por exemplo, há uma legislação específica para disciplinar tais documentos de antecipação de vontade com respeito a tratamentos de saúde, a qual também concede imunidade civil e criminal aos profissionais que os respeitem, assim como estabelece sanções em razão de sua inobservância.

Na Espanha, as instrucciones previas, como são chamadas, também possuem previsão legal, abrangendo qualquer hipótese de diretiva de tratamento e nomeação de procurador.

No Brasil, a Resolução nº 1995, de 09 de Agosto de 2012, do Conselho Federal de Medicina estabeleceu a validade do testamento vital. Assim, com a Resolução, em casos terminais, o médico deve respeitar a vontade do paciente previamente registrada, mesmo que ele não possa se expressar. Ademais, a revista Veja (12 de setembro de 2012) elaborou um guia de perguntas mais comuns acerca do testamento vital, as quais foram respondidas com a ajuda do procurador de Justiça Diaulas Ribeiro, da Câmara Técnica de Terminalidade da vida do Conselho Federal de Medicina, e da médica Maria Goretti Maciel, coordenadora do Departamento de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Estadual de São Paulo.

Diante da indagação de que o testamento só poderia ser feito por escrito, a resposta foi negativa. Segundo o exposto, não há modelo pré-determinado a ser seguido, podendo ser firmado, inclusive, mediante um acordo verbal entre o paciente e o médico, porém, por medida de segurança, ele deve ser escrito com pelo menos duas testemunhas. Os especialistas recomendam ainda a nomeação dos chamados procuradores de vida, que são pessoas de confiança que, em caso de necessidade, tomarão as decisões mais próximas aos desejos do enfermo. Recomenda-se que o número de procuradores seja ímpar (três ou cinco) para que, caso haja dúvida sobre uma conduta a ser adotada, ela possa ser decidida pela maioria. 

Indagou-se também se um parente próximo poderia se recusar a seguir as orientações descritas no testamento vital. Conforme o explicado no periódico descrito, o médico deve respeitar as vontades preestabelecidas do paciente, as quais devem prevalecer sobre qualquer outro parecer médico, inclusive sobre os desejos dos parentes, a não ser que o familiar tenha sido designado pelo próprio enfermo. 

Em face do questionamento se o médico poderia discordar do testamento vital, respondeu-se que o papel do médico, obviamente de confiança do paciente, é orientar o paciente e até participar da elaboração do testamento do testamento, informando-lhe das inovações terapêuticas. No entanto, se o doente já determinou suas vontades e estiver inconsciente, seu desejo deve ser seguido.

 É claro que o uso do testamento ou de procuração somente é cabível quando o paciente não tiver condições de expressar sua vontade. Assim, se não houver qualquer óbice para a manifestação do indivíduo, ainda que existam documentos escritos, o paciente deve ser consultado.

O que se extrai, de maneira pontual, é a mudança de paradigma na relação médico-paciente na medida em que o paciente exercita de maneira cada vez mais autônoma as suas vontades. O seu poder de autodeterminação está cada vez mais em evidência, em contraste com o modelo paternalista verificado anteriormente.

Importante salientar que quando o médico respeita a vontade do paciente, agindo segundo o seu consentimento, não há que se falar em configuração do delito de omissão de socorro.

O crime de omissão de socorro é definido pelo artigo 135 do Código Penal: 

Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública.

Ao tratar sobre esse delito, Azevedo (2010, p.39) citando Nelson Hungria (1955) salienta que entre os elementos do crime de omissão de socorro está o dolo específico, o elemento subjetivo, caracterizado pela vontade livre e consciente de não prestar possível socorro a quem o agente sabe nas condições previstas no dispositivo legal. Desse modo, tal crime só é punível a título de dolo, seja direto ou eventual.

Assim, o que o dispositivo legal pune é a ação de não querer, livremente, consciente e deliberadamente, prestar assistência, quando essa é plenamente possível ser executada.

Por esse motivo, o profissional de saúde que presta socorro ao paciente respeitando suas determinações e sua vontade, de modo algum age com o dolo de omitir assistência ao enfermo.

Ademais, conforme explica Álvaro Villaça, cuidar de um paciente utilizando alternativas que dispensam o uso de transfusões de sangue alogênico não configura o tipo penal de “deixar de prestar assistência”. (2010, p.40)

Nesse sentido, inexiste justa causa para ação penal contra profissional da saúde que respeite a autodeterminação do paciente, agindo em conformidade com sua decisão quanto ao tipo de tratamento de saúde ao qual deseja se submeter.

Insta salientar, por outro lado, que o médico deverá respeitar as decisões do paciente, mas não lhe é dada qualquer autorização para abandoná-lo. Em caso de recusa do tratamento proposto, os profissionais da saúde e os estabelecimentos hospitalares tem a obrigação de informar o paciente acerca dos tratamentos alternativos disponíveis e dos hospitais que melhor irão atender suas determinações.

Assim, não se admite a conduta de estabelecimento de saúde que se recusa a receber paciente que expressa seu dissentimento em relação a certo tipo de tratamento motivado por suas crenças. Isso porque tal conduta configura ato discriminatório passível de responsabilização nas esferas cível e criminal, haja vista que há grave violação aos preceitos constitucionais que asseguram a dignidade e a liberdade de crença.

Assim, preserva-se a dignidade do paciente quando suas determinações são respeitadas por lhe ser garantido o melhor tipo de tratamento disponível sem que, contudo, haja qualquer violação às suas convicções pessoais.

Portanto, após a análise do caso das Testemunhas de Jeová ora realizada, verificou-se que, nessa hipótese, não há que se falar em colisão e indisponibilidade de direitos fundamentais. Sem dúvida, os direitos fundamentais nas relações privadas são irrenunciáveis, pois ninguém pode dispor totalmente da própria vida, da liberdade, de sua saúde em resultado de caprichos. Porém, de forma alguma, as Testemunhas de Jeová renunciam seu direito à vida ou à saúde, apenas optam por outro tipo de tratamento, o que é razoavelmente possível. Além do que, é digno de nota, aceitar a transfusão sanguínea não lhes garante a vida, assim como a sua recusa não lhes determina a morte.

Como já foi exposto, não se trata aqui de uma escolha entre direitos, de forma que considerar válido um não implica na anulação do outro. Ao contrário, alia-se o direito à vida ao direito à religião, de forma que o paciente deseja viver, e assim, busca o melhor tipo de tratamento sem sangue.

Modernamente, tendo como base o respeito pela vontade do paciente, respeito pela dignidade humana e pela liberdade de escolhas conscientes, o novo Código de Ética Médica garante ao paciente o direito de decidir sobre sua pessoa e acredita-se, ainda, que quando o paciente está de acordo com os métodos utilizados em seu tratamento a recuperação se dá de forma mais eficaz; evoluindo do modelo paternalista para o da autonomia do indivíduo.

De fato, pode-se considerar legítima a decisão das Testemunhas de Jeová, fundamentando-se no artigo 22 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz, em parte, que a todo indivíduo se garantem os direitos “indipensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade”.

Importante registrar, na linha da conclusão que se acaba de enunciar, que a recusa de tratamento pelas Testemunhas de Jeová é aceita em diversos países, dentre os quais a Itália, a Espanha, os EUA e o Canadá. Além disso, tal possibilidade foi incorporada pelo Código de Ética da Sociedade Internacional de Transfusão de Sangue, adotado pela Organização Mundial de Saúde em 2000, que dispõe: “o paciente deveria ser informado do conhecimento dos riscos e benefícios da transfusão de sangue e/ou terapias alternativas e tem o direito de aceitar ou recusar o procedimento”.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Parecer Jurídico Autonomia do paciente e Direito de Escolha de Tratamento médico sem transfusão de sangue mediante o novo código de ética médica- resolução CFM 1931/09. São Paulo 8 de Fevereiro de 2010.

BARROSO, Luís Roberto. Parecer Jurídico Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por Testemunha de Jeová. Dignidade Humana, liberdade religiosa e escolhas existenciais. Rio de Janeiro, 5 de abril de 2010.

DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 5ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.

DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.252.

NERY JUNIOR, Nelson. Parecer Jurídico Escolha de Tratamento Médico por Paciente Testemunha de Jeová como exercício harmônico de direitos fundamentais atualizado conforme o novo Código de ética médica- resolução CFM 1931/09 São Paulo 22 de Setembro de 2009.

STOLZE, Pablo; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: responsabilidade civil - vol. 3. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOURA, Niderlee e Silva Souza de. Direito à vida e direito à liberdade de crença aplicado ao caso das testemunhas de Jeová: caso de colisão de direitos?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5883, 10 ago. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61419. Acesso em: 24 abr. 2024.