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País do nunca. Nunca será!

País do nunca. Nunca será!

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Se é verdade que nenhuma vida vale mais do que outra, é igualmente necessário realçar que Marielle simbolizava a defesa de todas as outras vidas.

Antes que houvesse ativismo em defesa dos direitos humanos, indivíduos e coletivos já lutavam pelo direito. Espartacus, líder de rebeliões escravas na Roma antiga, conhecia muito bem a Luta Pelo Direito. Também o senador Cícero de algum modo fazia sua parte.

Alguns pensam os direitos humanos antes dos grandes períodos revolucionários do século XVIII, na Europa e nos EUA, como na Lei das 12 Tábuas ou na Carta Magna da Inglaterra de 1215.

Por outro lado, é justo pensar que sem uma forte densidade na ideia do que é Humanidade, ou seja, sem que os povos falassem e lutassem pela Humanidade (como se viu no combate ao nazismo), não é fácil encontrar direitos humanos. Mais apropriado para evitar digressões e confusões é tomar o marco da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.

Marielle era símbolo do que se iniciou em meados do século XX. Com a morte dela se assassina a luta pelo direito. E sem direito o homem é um animal psicopata. No Brasil não é só um lobo, é vampirismo social.

Quem não reconhece o direito pratica a violência. Neste quesito, somos os únicos da natureza. Assim eram O Conde Vlad e o soldado Rambo. A lógica é simples e começa com a receita do “homem lobo do homem”. Por isso, devemos rever o Renascimento de Thomas Hobbes.

Todavia, duas semanas após o assassinato premeditado de Marielle ainda se questiona sua integridade. Se é verdade que nenhuma vida vale mais do que outra, é igualmente necessário realçar que Marielle simbolizava a defesa de todas as outras vidas, inclusive ao socorrer a família dos policiais vitimados.

Para defender uma, não se pode desqualificar a outra. O luto pela bestial eliminação de Marielle ocorre porque, como ela, milhares de defensores de direitos humanos foram e são trucidados neste País do Nunca.

No País do Nunca, historicamente, a luta pelo direito sempre esbarrou no direito à propriedade. Se o Estado de Direito é capenga na República do século XXI, no capitalismo escravista atendia unicamente à ordem do Capitão do Mato – enquanto sinalizava o progresso inabalável do Senhor de Engenho. Marielle era senzala, e também por isso teve o rosto desfigurado e o caixão lacrado.

Mas não foi só aqui, pois o mesmo se viu na guerra civil nos EUA e no Apartheid da África do Sul. O que há em comum em relação a todos, incluindo Martin Luther King e Gandhi, é a luta ferrenha para que a vida humana valesse mais do que o dinheiro extraído em sangue humano.

Desse ponto de vista, denegrir ou minimizar as consequências e os valores incutidos na vida e na morte de Marielle equivale a bonificar a autofagia. É a tragédia repetida na Vida e Morte Severina.

Não é à toa que a imensa maioria dos defensores dos direitos humanos no país foi morta em rituais de sadismo. É o recado de pavor. "Você vai morrer, mas só depois de ser retalhado." - Assim ordenaram tanto Beira-Mar (punindo a ex-namorada) quanto o Estado Paralelo que gerencia o país. Esse é o País do Nunca: “Nunca serão!”.

E é óbvio que ocorrem muito mais crimes bestiais em áreas pobres, negras ou em áreas de fronteiras verdes. A exceção de quem defende a luta pelo direito nas bolsas de valores é tão ínfima que o seu antagonismo é infinito.

É mais fácil trombarmos com o cadáver de Zumbi do que encontrar o julgamento de um John Brown. Por isso quem luta pelo direito denuncia a miséria humana e os horrores do capital devastador.

Não é todo dia que veremos um Goethe atacar as diabólicas orquestrações do capitalismo. Porém, podemos ver uma Marielle por aí. Ou víamos, antes que fosse desfigurada pela munição oficial do Estado. De toda forma, o poder público participou do assassinato da vereadora negra, pobre, homossexual, socióloga e ativista dos direitos humanos.

Também não é por acaso que o País do Nunca desconhece as Letras, porque no reino do analfabetismo, disfuncional e político, é simples negar que já existiu Iluminismo. Afinal, sem as Luzes, é expansivo o obscurantismo. A morte secretada, tramada na escuridão dos valores humanos, por certo congrega o pior breu da condição humana.

Na contabilidade das perdas de vidas humanas, lançada no Livro Razão (o único que se lê com avidez), nesse quadro de obscuro fascismo, Marielle é uma a mais. Só que não é. Porque outros milhões pelo mundo afora levaram as alças do seu caixão. E milhões levarão sua Luta pelo Direito.

Sua morte implica no atentado direto à vida de todos nós. Marielle foi eliminada atrás de um vidro fumê porque acusou o capital exterminador que sempre associou o Poder Político ao crime organizado.

Marielle foi morta pelo obscurantismo e, exatamente por isso, gerou indignação no mundo civilizado e dentre pessoas "esclarecidas": adeptas dos ganhos iluministas do direito.

Também é óbvio que se trata de mais uma mulher morta por homens. Não há a menor dúvida do que isso significa. Mas, além disso, milhões foram aos seus incontáveis funerais públicos para denunciar o atual estágio do fascismo entre nós.

Infelizmente não será o último caso, sua morte não cessará a ocorrência de outras, na Luta pelo Direito contra o capital e o barbarismo societal. Agora mesmo é muito provável que estejam sendo executados negros, pobres, crianças do tráfico, trabalhadores rurais, seringueiros, indígenas, quilombolas, mulheres abusadas, policiais que disparam e encontram balas perdidas.

Enfim, com tudo isso, quem se julgar "iluminado" pela luta por direitos tem que se manter firme. Oxalá, um dia no País do Nunca, Ogum encontre a Iustitia.


Autor

  • Vinício Carrilho Martinez

    Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. País do nunca. Nunca será!. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5382, 27 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65004. Acesso em: 28 mar. 2024.