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O cumprimento provisório da multa cominatória, no CPC/15, e a possibilidade de realização do anticipatory overruling pelos órgãos jurisdicionais.

A oportunidade perdida pelo Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas

O cumprimento provisório da multa cominatória, no CPC/15, e a possibilidade de realização do anticipatory overruling pelos órgãos jurisdicionais. A oportunidade perdida pelo Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas

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Analisa-se o cumprimento provisório da multa cominatória, sob a ótica do CPC/15, e a possibilidade de realização do anticipatory overruling, tendo em vista que a nova legislação processual alterou a jurisprudência do STJ.

1.Introdução.

Sem dúvida, o Código de Processo Civil de 2015 consolidou um sistema de precedentes judiciais vinculantes, na medida em que ampliou os padrões decisórios aos quais estão necessariamente submetidos os órgãos do Poder Judiciário. Tal mudança de paradigma teve por objetivo central guarnecer, preponderantemente, princípios caros como a isonomia e a segurança jurídica, pois a jurisprudência lotérica brasileira, diuturnamente, vergasta direitos e garantias fundamentais do jurisdicionado[1].

O movimento de valorização dos “precedentes” vinculantes já ganhava contornos claros antes mesmo da edição da legislação processual em vigor[2], pois institutos como a súmula vinculante, a repercussão geral no recurso extraordinário, a cognominada súmula impeditiva de recursos (art. 518,§1º, do CPC/73), o rito repetitivo do recurso especial (art. 543-C, do CPC/15), dentre outros, já davam sinais da necessidade inconteste de se buscar, no âmbito do Poder Judiciário, integridade, coerência e estabilidade (art. 926, do CPC/15). Afinal de contas, não basta que se garanta a igualdade perante a lei! A igualdade precisa se fazer presente na aplicação da lei.

Dessa forma, foram alçadas à categoria de manifestações judiciais vinculantes decisões proferidas em sede de incidente de resolução de demandas repetitivas e de incidente de assunção de competência, acórdãos oriundos de recursos especiais e extraordinários repetitivos, súmulas do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, além de outros casos previstos, em boa parte, nos artigos 332 e 927 do Código de Processo Civil em vigor.

Assim, cresce a preocupação com a necessidade de aprimoramento de uma teoria dos precedentes judiciais, considerando que a realidade jurídica dos Tribunais brasileiros em muito se distanciou do modelo decisório calcado no respeito a pronunciamentos judiciais anteriores (stare decisis), o qual clama por uma perspectiva alinhada ao método indutivo, cujos preceitos exigem que se extraia de um determinado caso concreto uma regra geral universalizável, que poderá ser aplicada em situações análogas, de acordo com as circunstâncias fáticas a envolver determinada demanda.

Nesse sentido, José Rogério Cruz e Tucci[3] propõe que o precedente judicial é composto de duas partes distintas, quais sejam, as circunstâncias fáticas que fundamentam a controvérsia e a tese ou princípio jurídico estabelecido na motivação decisória, também conhecida como ratio decidendi ou holding. Portanto, para se aplicar um precedente judicial é necessário verificar a similaridade substancial dos casos, com vistas a aferir a plausibilidade jurídica da replicação da ratio decidendi.  

Ponto de relevo, no que pertine à teoria dos precedentes judiciais, é a discussão em torno da sua superação, mormente quando se discute o possível engessamento do Direito diante da manutenção dos entendimentos judiciais. De fato, não se pode supor que os precedentes obrigatórios serão mantidos a qualquer custo, ainda que o contexto que lhe serviu de esteio seja radicalmente modificado.

Com efeito, em países tradicionalmente adstritos ao common law (a exemplo dos Estados Unidos e da Inglaterra), surgiram instrumentos como o overruling (superação total do precedente) e overtuning (superação parcial do precedente) para alijar incongruências sistêmicas que resultassem em afastamento de uma ordem jurídica justa[4]. Desse modo, evita-se que, sob justificativa da proteção à uniformidade, sejam mantidos posicionamentos avessos ao arcabouço fático, jurídico, econômico e social subjacente. 

Sob essa ótica, é imprescindível esmiuçar os modos de superação dos precedentes vinculantes, no direito brasileiro, tomando-se por base as diretrizes fixadas no CPC/15, mormente no que se refere à necessidade de um maior ônus argumentativo exigido para a mudança de entendimento (art. 927, §4º, do CPC/15), à ampliação do debate (art. 927, §2º, do CPC/15), em casos de revirement, e à modulação de efeitos (art. 927, §3º, do CPC/15).

Especificamente, no presente artigo, buscar-se-á analisar a possibilidade de realização do chamado anticipatory overruling, ou seja, da antecipação de revogação de precedente por Tribunais inferiores, nas hipóteses em que o caso paradigma não mais deve ser tomado por parâmetro decisório, tendo em vista a existência de razões concretas para o seu regular afastamento.

Nessa linha de intelecção, será discutido se o anticipatory overruling é a medida adequada para o afastamento do precedente judicial, quando ocorrer mudança de parâmetro legislativo, tal como ocorre na hipótese do art. 537, §3º, do CPC/15, que prevê a possibilidade de cumprimento provisório da multa cominatória, ainda que não exista decisão fundada em cognição exauriente, em contrariedade a entendimento anterior firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, por ducto do Recurso Especial repetitivo nº 1.200.856/RS.


2. O anticipatory overruling e o legislative override: Aplicabilidade no direito brasileiro.

Tal como registrado em linhas pretéritas, a ideia de manutenção do precedente judicial tem por intuito dar guarida, principalmente, à segurança jurídica, pois, segundo Humberto Ávila[5], esta pressupõe cognoscibilidade, previsibilidade, estabilidade e confiança, bem como à isonomia. Mas, como se disse, é inviável manter uma linha decisória a qualquer custo, na medida em que nem sempre serão sustentáveis os elementos justificadores de determinado posicionamento.

Assim o respeito ao precedente judicial não deverá ser justificativa para engessar o direito e chancelar decisões descompassadas com a realidade esquadrinhada em um novo contexto fático. O direito como integridade, conforme lições de Ronald Dworkin, impõe a necessidade da contínua interpretação do direito, mesmo que a atividade interpretativa anterior seja considerada bem-sucedida[6].

Desse modo, é que se prevê a possibilidade de realização do overruling ou superação total do precedente judicial, que exige, em face da proteção do histórico institucional decisório do Tribunal, razões sérias e fortes para a sua ocorrência, como já aduzia Neil Duxbury[7].

O Código de Processo Civil de 2015 fez menção expressa ao overruling, principalmente nos §§ 2º, 3º e 4º, do art. 927, quando previu a possibilidade de alteração de entendimento já consolidado em precedente obrigatório, desde que respeitado aspectos relacionados à profundidade argumentativa e ao amplo debate, bem como à modulação de efeitos, com o intuito de resguardar a legítima confiança do administrado. Em consonância com o disposto, manifesta-se Thomas da Rosa Bustamante[8]:

O que diferencia o overruling e o torna especialmente relevante é que ele não se refere a um simples problema de aplicação do precedente judicial – não se contenta com a não ocorrência de suas consequências no caso concreto -, mas vai bem além disso, já que representa uma ab-rogação da própria norma adscrita aceita como precedente. O overruling apresenta-se como o resultado de um discurso de justificação em que resulta infirmada a própria validade da regra antes visualizada como correta. Por isso, as razões que o justificam devem ser ainda mais fortes que as que seriam suficientes para o distinguishing (seja a interpretação restritiva ou a redução teleológica do precedente judicial).

Cumpre ressaltar, por oportuno, que o overruling deverá ser realizado, em regra, pelo órgão competente para a edição do precedente judicial obrigatório, na medida em que não se poderá subtrair do órgão jurisdicional uniformizador o juízo de apreciação alusivo à manutenção ou afastamento do entendimento outrora exposto[9]. O próprio sistema de precedentes obrigatórios pressupõe, nesse sentido, uma organização hierárquica do Poder Judiciário, através da qual devem ser respeitadas as distintas atribuições dos diversos órgãos jurisdicionais, mormente aquelas conferidas às Cortes de Vértice, no exercício da função nomofilácica.

A despeito do acima exposto, é necessário considerar a possibilidade de realização do chamado anticipatory overruling, no contexto da legislação processual brasileira.

Preliminarmente cumpre estabelecer o que se entende por anticipatory overruling, para os fins deste trabalho.

O anticipatory overruling ou antecipação da revogação é instituto que tem gerado controvérsias em países como Estados Unidos e Inglaterra[10] e pressupõe a possibilidade de a Corte inferior afastar um determinado precedente obrigatório, antes de sua revogação formal pela Corte que o editou. Veja-se que não se trata, ontologicamente, de revogação do precedente, mas de inaplicabilidade do padrão decisório vinculante, tendo em conta a existência de razões fortes o suficiente a apontar para uma possível superação de entendimento. Afinando-se no mesmo diapasão, pronuncia-se Luiz Guilherme Marinoni[11]:

Entenda-se por anticipatory overruling a atuação antecipatória das Cortes de Apelação estadunidenses em relação ao overruling dos precedentes da Suprema Corte. Trata-se, em outros termos, de fenômeno identificado como a antecipação a provável revogação de precedentes por parte da Suprema Corte.    

Existem algumas razões pelas quais se justifica o afastamento pela Corte inferior de um precedente editado por uma Corte superior[12], dentre elas o desgaste do precedente judicial, a edição de novos posicionamentos, em sentido diverso do precedente consolidado, a confirmação de que o órgão jurisdicional superior reverá o entendimento, além da mudança de paradigma legislativo que pode ir de encontro à ratio decidendi do pronunciamento vinculante.

Saliente-se, nesse caso, que o anticipatory overruling não é técnica a ser utilizada quando o órgão jurisdicional simplesmente discorda do conteúdo do pronunciamento vinculante, sob pena de tornar estéril o próprio sistema de decisões obrigatórias. Apenas se perfaz possível antecipar a superação, caso existam fundamentos contundentes, a maior parte deles expressados pela Corte superior, indicativos da futura revogação do padrão decisório vinculante.

Assim, estar-se-ia a prestigiar a segurança jurídica, pois o jurisdicionado não mais espera que incidam as razões determinantes do precedente que estejam desconectadas da realidade.

Fica claro, portanto, que o anticipatory overruling decorre do próprio dever que a Corte inferior tem de observar as manifestações das Cortes superiores, uma vez que a antecipação da revogação há de ser aplicada, quando já existir forte sinalização do órgão que editou o precedente de que não vai mais utilizá-lo ou na hipótese de transmudação do paradigma legislativo que serviu de preceito estruturante para a edição do padrão decisório vinculante.

Posto isso, não há razões para rechaçar a aplicação do anticipatoty overruling, no Brasil, na medida em que, ao contrário do que podem pensar alguns doutrinadores, tal técnica não vai de encontro à estabilidade, integridade e coerência, posto que é inviável prosseguir com a aplicação de precedente obrigatório cuja holding já foi, de algum modo, evidenciada como incompatível com o sistema jurídico.

Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior[13] não destoa dos argumentos acima referenciados, ao se manifestar nos seguintes termos:

Em verdade, tendo o STJ ou STF demonstrado claramente que estão na iminência de revogar determinado precedente vinculante, por que não se permitir que os tribunais locais, ou até mesmo os juízes de primeira instância deixem de aplicar tal precedente ao caso em julgamento? Por que submeter a parte vencida à interposição de inúmeros e sucessivos recursos para, enfim, ver seu direito reconhecido perante o STJ ou STF, quando estes já haviam demonstrado cabalmente o desgaste de seu precedente?  

Particularmente no que se refere à modificação do parâmetro legislativo a fundamentar o precedente judicial vinculante e a possibilidade de realização do anticipatory overruling, deve-se registrar que os órgãos jurisdicionais inferiores não podem se furtar à aplicação de novo enunciado normativo contrário à ratio decidendi do padrão decisório obrigatório. Nesse caso, não se está a violar a eficácia vinculante do precedente judicial, pois o órgão jurisdicional inferior apenas afasta a aplicação do precedente, em benefício da efetividade da disposição legislativa (Statute Law). Talvez essa seja a hipótese mais comum, no Brasil, de observância do anticipatory overruling.

Em consonância com o disposto, cumpre transcrever manifestação de Alexandre Freitas Câmara[14]:

Pense-se, por exemplo, no caso de se ter formado o padrão decisório vinculante a partir da interpretação de certo texto normativo que posteriormente venha a ser revogado. Seja permitido figurar uma hipótese: o STJ decidiu, pela técnica de julgamento dos recursos especiais repetitivos, que “[em] execução provisória, descabe o arbitramento de honorários advocatícios em benefício do exequente.” Ocorre que posteriormente à formação deste padrão decisório foi alterada a legislação processual, e o art. 520, §2º, do CPC/15 estabelece exatamente o contrário do que decidido naquele acórdão que o STJ proferiu. Parece óbvio que em casos assim não se pode negar ao órgão jurisdicional inferior a possibilidade de, antecipando-se ao tribunal que lhe é superior, afastar-se do padrão decisório e promover uma superação antecipada. Afinal, caso asism não se entenda, ter-se-á de considerar que a vinculatividade dos precedentes e dos enunciados de súmula é mais forte, mais densa do que a vinculatividade da lei (ou até mesmo da Constituição. (Grifos nossos)

Assim, é inadmissível pressupor que, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas viesse a afastar enunciado normativo constitucional superveniente, em prol da aplicabilidade de precedente judicial do Supremo Tribunal Federal que lhe fosse contrário.

Poder-se-ia, nesse ponto, vislumbrar a questão sob a ótica do legislative override[15], cujo teor pressupõe a possibilidade de o legislador superar entendimento consolidado, no âmbito jurisdicional. Se o legislador, portanto, não está adstrito a certo posicionamento emanado do Poder Judiciário, não podem os Tribunais negar vigência a dispositivo legal de teor diametralmente oposto a precedente vinculante[16].

Exsurge evidente, desse modo, que a técnica do anticipatory overruling é o esteio necessário para evitar que se perpetue situação em descompasso com os novos contornos da ordem jurídica e social, nos moldes do que propõe Lucas Buril de Macêdo[17]:

A superação antecipada é uma manifestação do conflito entre justiça e segurança jurídica. Certamente, a sua aplicação é pautada numa tentativa de garantir uma tutela mais juta para as situações de direito material, afastando um precedente que provavelmente será superado pelo tribunal superior, o que é feito com base na falta de congruência com proposições sociais ou inconsistências com o sistema jurídico como um todo. Assim, evita-se a prolação de uma decisão injusta ou inadequada (contrária a razões substanciais) por razões de segurança já não tão fortes.

Indubitável, desse modo, a necessidade da devida incorporação do anticipatory overruling ao sistema jurídico nacional.


3. O cumprimento provisório da multa cominatória e a possibilidade de realização do anticipatori overruling. A oportunidade perdida pelo Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas.

Sob a égide do Código de Processo Civil de 1973, muito se discutiu acerca dos contornos do termo a quo para a execução da multa cominatória. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, consolidaram-se três correntes: i) a multa incidiria desde o inadimplemento, porém a sua execução dependeria do trânsito em julgado da decisão (Resp 1.173.655); ii) a multa incidiria a partir do inadimplemento e poderia ser imediatamente executada (Resp. 1.299.849) e iii) a multa incidiria no instante do inadimplemento, mas sua execução dependeria da existência de uma decisão fundada em cognição exauriente, desde que inexistisse efeito suspensivo no recurso subsequente. (Resp. 1.347.726)[18].

  Com fulcro no Recurso Especial repetitivo 1.200.856/RS[19], o STJ consolidou a terceira corrente, ou seja, adotou a tese de que a multa cominatória incidiria desde o inadimplemento, mas a sua execução dependeria de decisão lastreada em cognição exauriente e, ao mesmo tempo, da inexistência de recurso com efeito suspensivo interposto contra a manifestação judicial proferida.  

Assim, por se tratar de recurso especial repetitivo, tem-se por vinculante a sua ratio decidendi, em conformidade com o art. 927, III, do CPC/15.

Ocorre que a legislação processual em vigor, expressamente, adotou posicionamento diverso do padrão decisório vinculante outrora aventado, tal como é possível verificar da redação do art. 537, §3º, do Código de Processo Civil de 2015:

Art. 537.  A multa independe de requerimento da parte e poderá ser aplicada na fase de conhecimento, em tutela provisória ou na sentença, ou na fase de execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para cumprimento do preceito.

(...)

§ 3º  A decisão que fixa a multa é passível de cumprimento provisório, devendo ser depositada em juízo, permitido o levantamento do valor após o trânsito em julgado da sentença favorável à parte.  (Grifos nossos)

Nota-se que o legislador adotou a segunda corrente apontada em linhas pretéritas, cujos termos indicam que a multa incide a partir do inadimplemento e pode ser cobrada com a constatação do não cumprimento obrigacional.

Nestes termos, perfaz-se plenamente possível o cumprimento provisório, de tal sorte que o entendimento firmado no recurso especial repetitivo será passível de revogação no futuro pelo Superior Tribunal de Justiça, na primeira oportunidade que tiver para tratar sobre o tema.

Ocorre que, desde logo, os órgãos jurisdicionais inferiores poderão se valer do anticipatory overruling, pois fora transmudado o paradigma legislativo e a aplicação do precedente obrigatório pressupõe o afastamento completo do novo enunciado normativo.

O Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, ao analisar pedido de execução provisória baseado no novel art. 537, § 3º, do CPC, na contramão do exposto, manteve[20] os termos do precedente do STJ, sem tecer considerações acerca do anticipatory overruling e das razões que justificavam sua aplicação ao caso concreto. Nesse sentido, vale a transcrição de excerto do acórdão:

Disso, infere-se que a superação do precedente firmado pelo STJ não pode ser feita por este ou qualquer Tribunal de Justiça, motivo pelo qual reitero meu entendimento no sentido de que o precedente em questão deve continuar a ser aplicado em casos como o presente, a fim de prestigiar a segurança jurídica, especialmente ao constatar-se que, a despeito da impossibilidade de levantamento anterior ao trânsito em julgado, a parte recorrida poderá ter seu patrimônio constrito em decorrência do elevado valor que se pretende executar, sem que a pretensão referente ao direito material tenha sido confirmada através de sentença meritória.

Da leitura do exposto, ao destacar a impossibilidade de os Tribunais de Justiça superarem precedentes obrigatórios firmados pelas Cortes superiores, fica clara a premente necessidade de que os julgadores das instâncias inferiores, bem como todos aqueles que atuam em juízo, se familiarizem com a técnica do anticipatory overruling. Veja-se que a antecipação da superação de entendimento não pressupõe a revogação formal do precedente do Superior Tribunal de Justiça, mas apenas a sua inaplicabilidade, mormente no caso em análise, no qual o legislador trouxe a lume enunciado normativo contrário ao precedente vinculante.

Com efeito, não se pode conceber que as instâncias inferiores neguem vigência ao enunciado normativo do Código de Processo Civil, sob a justificativa insustentável da existência de um precedente vinculante do STJ frontalmente contrária à novel legislação processual. Pergunta-se: O precedente, nesse caso, tem valor superior à disposição legal? Parece-nos que não, haja vista que, até mesmo em países como Estados Unidos, a legislação tem que ser tomada como referência primeira para a análise dos casos[21].

Lado outro, olvidou a Corte Alagoana que a finalidade do legislador ao prever a possibilidade de execução imediata da multa cominatória foi reforçar o meio indutivo de cumprimento da decisão judicial, na busca por uma tutela jurisdicional efetiva, consoante dispõe Fernando Fonseca Gajardoni[22]:

Com isso, preserva-se o caráter coercitivo da multa (já que o devedor acaba tendo que desembolsar o valor para pagamento da multa, sentindo-se pressionado a cumprir a obrigação), mas, ao mesmo tempo, preserva-se a segurança jurídica e a situação do executado (já que o valor desembolsado não será levantado pelo credor enquanto não confirmada a existência da obrigação.

Visto isso, observa-se duplo equívoco do TJAL, uma vez que fora desconsiderada, por completo, a técnica de antecipação da revogação, em caso que exigia, sem dúvida, a sua incidência e, ao mesmo tempo, ignorou-se a finalidade do legislador em viabilizar um reforço legal para o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, na hipótese em que aplicada multa cominatória.


4. Conclusão.

Frente ao exposto, percebe-se a necessidade de um profundo amadurecimento da teoria dos precedentes judiciais, no Poder Judiciário brasileiro, a fim de que as mudanças legislativas possam ser aplicadas e direcionadas à efetivação da tutela jurisdicional.

Não é possível ignorar técnicas como o anticipatory overruling, o qual serve como instrumento de proteção à isonomia e à segurança jurídica, na medida em que, como se disse, evita a aplicação de precedentes descompassados com o contexto jurídico e social subjacente. Especialmente em casos de mudança legislativa, a técnica tem o papel fundamental de evitar a profusão de decisões judiciais, pelas instâncias inferiores, em descompasso com a legítima opção do legislador.

Noutro giro, espera-se que o Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas reveja seu entendimento, com vistas a se adequar aos delineamentos escorreitos da teoria do stare decisis, sob pena de vergastar direitos fundamentais dos jurisdicionados, tais como a duração razoável do processo e a própria juridicidade.


5. Bibliografia.

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TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2004.


Notas

[1] CAHALI, Claudia Elisabete Schwerz. A excessiva instabilidade da jurisprudência como causa da ineficiência da jurisdição. MENDES, Aluísio Gonçalves de Castro; MARINONI, Luiz Guilherme; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. Vol. II. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2014, p. 238.

[2] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Súmula, jurisprudência, precedente: uma escalada e seus riscos. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual. Nona série. Saraiva. São Paulo, 2007, p. 300.

[3] TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2004, p. 12.

[4] MITIDIERO, Daniel. Precedente: da persuação à vinculação. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2016, p. 119.

[5] ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

[6] DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 273.

[7] Duxbury, Neil. The nature and authority of precedent. Cambridge. United Kingdom, 2008, p. 117.

[8] BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. Noeses. São Paulo, 2012, p. 388.

[9] PEIXOTO, Ravi. Aspectos materiais e processuais da superação de precedentes no direito brasileiro. DIDIER JR, Fredie et al (coord.). Precedentes. Juspodivm. Salvador, 2015, p. 546.

[10] SUMMERS, Robert S. Precedent in the United States (New York State). MACCORMICK, D. Neil; SUMMERS, Robert S. Interpreting precedents: a comparative study.  Dartmouth. England, 1997, p. 398.

[11] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 4ª Edição. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2016, p. 260.

[12] PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. Juspodivm. Salvador, 2015, p. 237.

[13] ATAÍDE JÚNIOR, Jaldemiro Rodrigues de. Precedentes vinculantes e irretroatividade do direito no sistema processual brasileiro: os precedentes dos Tribunais Superiores e sua eficácia temporal. Juruá. Curitiba, 2012, p.98.

[14] CÂMARA, Alexandre Freitas. Levando os padrões decisórios a sério: formação e aplicação de precedentes e enunciados de súmula. Atlas. São Paulo, 2018, p. 337.

[15] SILVA, Virgílio Afonso da. O STF e o controle de constitucionalidade: deliberação, diálogo e razão pública. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 250, p. 197-227, jan. 2009.

[16] Gonzales v. Carhart. 550 U. S. 124 (2007). Disponível em   https://www.supremecourt.gov/opinions/boundvolumes/550bv.pdf . Acesso em 30 de março de 2018.

[17] MACÊDO, Lucas Buril. Precedentes judiciais e o direito brasileiro. Juspodivm. Salvador, 2015, págs. 414-415.

[18] GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Processo de conhecimento e cumprimento de sentença: comentários ao cpc de 2015. Método. São Paulo, 2016, p. 847.

[19] DIREITO PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL SOB O RITO DO ART. 543-C DO CPC. EXECUÇÃO PROVISÓRIA DE MULTA COMINATÓRIA FIXADA POR DECISÃO INTERLOCUTÓRIA DE ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA. NECESSIDADE DE CONFIRMAÇÃO POR SENTENÇA. RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. ART.543-C DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. PROVIMENTO PARCIAL DO RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. TESE CONSOLIDADA.

1.- Para os efeitos do art. 543-C do Código de Processo Civil, fixa-se a seguinte tese: "A multa diária prevista no § 4º do art.461 do CPC, devida desde o dia em que configurado o descumprimento, quando fixada em antecipação de tutela, somente poderá ser objeto de execução provisória após a sua confirmação pela sentença de mérito e desde que o recurso eventualmente interposto não seja recebido com efeito suspensivo."

2.- O termo "sentença", assim como utilizado nos arts. 475-N, I, e 475-O do CPC, deve ser interpretado de forma estrita, não ampliativa, razão pela qual é inadmissível a execução provisória de multa fixada por decisão interlocutória em antecipação dos efeitos da tutela, ainda que ocorra a sua confirmação por Acórdão.

3.- Isso porque, na sentença, a ratificação do arbitramento da multa cominatória decorre do próprio reconhecimento da existência do direito material reclamado que lhe dá suporte, então apurado após ampla dilação probatória e exercício do contraditório, ao passo em que a sua confirmação por Tribunal, embora sob a chancela de decisão colegiada, continuará tendo em sua gênese apenas à análise dos requisitos de prova inequívoca e verossimilhança, próprios da cognição sumária, em que foi deferida a antecipação da tutela.

4.- Recurso Especial provido, em parte: a) consolidando-se a tese supra, no regime do art. 543-C do Código de Processo Civil e da Resolução 08/2008 do Superior Tribunal de Justiça; b) no caso concreto, dá-se parcial provimento ao Recurso Especial.

(REsp 1200856/RS, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, CORTE ESPECIAL, julgado em 01/07/2014, DJe 17/09/2014)

[20] PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO MONOCRÁTICA QUE INDEFERIU O PROCESSAMENTO DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA DAS ASTREINTES. DECISUM RECORRIDO QUE SE FUNDAMENTOU EM PRECEDENTE FIRMADO EM SEDE DE RECURSO ESPECIAL REPETITIVO PROLATADO AINDA NA VIGÊNCIA DO CPC/73.RATIO DECIDENDI DO PRECEDENTEQUE PODE SER APLICADA MESMO APÓS A ALTERAÇÃO LEGISLATIVA OCORRIDA COM A ENTRADA EM VIGOR DO CPC/2015. SUPERAÇÃO DO PRECEDENTE QUE DEPENDE DE PROCEDIMENTO PRÓPRIO, A SER REALIZADO PELO STJ. HOMENAGEM AO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. UNANIMIDADE.

(TJAL – Agravo Regimental nº 0000678-72.2009.8.02.0000. 1ª Câmara Cível. Rel. Fábio José Bittencourt Araújo. DJE. 09/03/2018).

[21] FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Martins Fontes. São Paulo, 2011, p. 50.

[22] GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Processo de conhecimento e cumprimento de sentença: comentários ao cpc de 2015. Método. São Paulo, 2016, p. 848.


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VALE, Luis Manoel Borges do; BARBOSA, Leonardo Máximo Barbosa . O cumprimento provisório da multa cominatória, no CPC/15, e a possibilidade de realização do anticipatory overruling pelos órgãos jurisdicionais. A oportunidade perdida pelo Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5423, 7 maio 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65431. Acesso em: 5 maio 2024.