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Ação penal condicionada no delito de furto simples

Ação penal condicionada no delito de furto simples

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Artigo sobre a inovação legislativa a ser implantada no novo Código Penal, que prevê a possibilidade de processamento do crime de furto simples apenas após a representação da vítima.

Resumo: Recorrente, constante e vivo é o Direito Penal. A sociedade evoluiu, devendo o ordenamento jurídico acompanhá-la. O crime de furto é uma constante na humanidade, acompanha sua história desde os primórdios. Sempre houve o furto e sempre haverá. Juntamente com o homicídio, é um dos crimes mais comuns em todo planeta. Todavia, a processualização do mencionado tipo penal, mediante ação pública incondicionada, traz implicações e acumulo laboral às polícias, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, bem como uma repressão excessiva ao infrator. É ideal do legislador, exposto no ante projeto do novo Código Penal, respeitar a vontade da vítima a facultar à mesma, mediante a representação, manifestar sua vontade de mover, ou não, o aparato punitivo estatal.

Palavras-chaves: ação penal – condicionada – furto – infração – patrimônio – violência.

Sumário: INTRODUÇÃO..JUSTIFICATIVA..OBJETIVOS. 1. Objetivo Geral. 2. Objetivos Específicos. METODOLOGIA.  Capítulo 1 – Aspectos da Ação Penal. Capítulo 2 – O crime de furto, simples e qualificado. Capítulo 3 – A ação penal no crime de furto - hoje e no novo Código Penal. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.. 


INTRODUÇÃO

A problemática referente aos delitos contra o patrimônio, em especial o furto, sempre foi um obstáculo ao esperado convívio social pacífico, assim como ao desenvolvimento humano. É o sétimo mandamento do decálogo exposto por Moisés durante o Sermão da Montanha.

O Estado, por sua vez, visando coibir a autotutela, cria e promulga leis que buscam reger o comportamento dos indivíduos, limitando liberdades e penalizando aqueles que descumprem o que fora democrática, e legalmente, determinado.

Especificamente no caso do furto, qualificadoras, atenuantes a agravantes são tipificadas. Leis especiais tratam do assunto de forma específica e voltada para casos pontuais. A lei processual penal, hoje, entende como incondicionada a intervenção estatal no processamento dos delitos de furto, ainda que simples.

No caso do presente trabalho acadêmico, foi feito um levantamento doutrinário, comparado e estatístico a respeito do delito de furto simples e a sua possível processualização somente após a manifestação formal da vítima.

Mas algumas questões precisam ser levantadas. Seria prudente facultar à vítima o direito de representar contra o autor dos delitos de furto simples? Tal prerrogativa não seria prejudicial e alavancaria a criminalidade?

Não é o que entende o ante projeto do novo Código Penal.

Foi feito mão de dados reais obtidos durante o desenrolar de minha vida profissional, como delegado de polícia civil, pelas Comarcas de Rio Vermelho, Sabinópolis, São João Evangelista, Manhumirim e Guanhães, cidades do interior do Estado de Minas Gerais.

Destarte, o ponto de vista que se objetivou quando se digitou a primeira letra desta pesquisa, foi proporcionar aos interessados nas mais diversas áreas do conhecimento, um relato sucinto, porém, com toda dedicação e esforço disponível sobre esse tão controverso instituto do Direito Penal e Processual Penal. Desde maio de 2006, quando ingressei na Polícia Civil de Minas Gerais, centenas de milhares de ocorrências de furto me foram apresentadas. A imensidade de crimes, sem violência contra o patrimônio, foi um dos tópicos que me prendeu a atenção e acarretou uma dedicação especial, haja vista que, trabalhando em cidades do interior do Estado, nas delegacias regionais de Guanhães e Manhuaçu, mantive contato estreito com uma parte extremamente humilde e desassistida da população mineira, oportunidade em que pude constatar que a indiscutível maioria dos Inquéritos Policiais instaurados envolvia pessoas hipossuficientes e que acabavam sendo privadas de seus parcos bens devido à ação reprovável de terceiros, igualmente hipossuficientes.

O presente trabalho acadêmico se justifica pela necessidade da comunidade policial e acadêmica entender a problemática que envolve os conflitos sociais, em especial os delitos de furto, simples e qualificado, destacando o comportamento dos autores e das vítimas, os fatores que geram e agravam as ocorrências, bem como as possíveis soluções, em âmbito policial, social e administrativo, a serem adotadas para a resolução dos conflitos.

Com a elaboração do presente trabalho acadêmico, será possível, aos interessados da esfera policial, vislumbrar detalhes sobre o projeto do novo Código Penal, em especial a mudança do entendimento sobre a ação penal para processar os delitos de furto simples, isto é, de incondicionada para condicionada a representação.

Buscou-se durante a elaboração do texto demonstrar a atual banalização de se instaurar centenas de Inquéritos Policiais, infrutíferos, de furto simples sem autoria, quando, por vezes, sequer a vítima tem interesse no fato, simplesmente porque o crime se processa, hoje, mediante ação penal incondicionada.

No entanto, foi feita uma descrição detalhada onde se busca mostrar que a força policial hoje é escassa e limitada. Há necessidade de maior investimento estatal e um direcionamento de esforços, especialmente sociais, para que o avanço da criminalidade seja obstado.

Um dos principais espeques para a confecção desse texto foi o Código Penal e o ante projeto do novo Código Penal (PL 236/2012). Bem como a leitura de obras voltadas ao direito comparado que tratam do processamento do furto simples via ação penal condicionada à representação.

Igualmente foram feitos levantamentos em doutrinas da área do direito que tratam do tema, onde foi possível angariar preciosas informações sobre a aplicação do texto legal e os remédios jurídicos disponíveis para a repreensão do delito. Trabalhos e estudos de cunho social e cientifico, oriundos de Organizações Não Governamentais (ONGs) e congêneres internacionais também foram amplamente explorados, assim como publicações na rede mundial de computadores, que trouxeram elementos estatísticos e sociais para o enriquecimento do estudo.

Contudo, foram precipuamente as pesquisas empíricas, pessoais e profissionais que regeram a redação do trabalho, quando se buscou, sempre, adequar a realidade da população envolta em delitos contra o patrimônio com o trabalho da polícia judiciária, a atuação do Ministério Público e do Judiciário.


Capítulo 1 – Aspectos da Ação Penal

O direito e a leis surgiram como meio de garantir à sociedade a segurança de seus bens e uma convivência pacífica entre todas as pessoas, penalizando aqueles que não se adequarem às regras jurídicas. Nesse sentido, explica Tauã Lima Verdan Rangel:

“Onde está a sociedade, está o Direito, tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém.” (RANGEL, 2012)

O mencionado “Direito”, exercido pelo Estado, visando evitar a autotutela, se faz mediante a ação penal, que corresponde a um direito do cidadão de pedir ao Estado que aplique a lei penal a determinado caso concreto, garantindo a tutela dos direitos protegidos pela legislação penal.

A ação penal pode ser classificada mediante o elemento subjetivo, podendo ser pública ou privada, sendo aquela promovida pelo Ministério Público e esta pela vítima. Tal classificação está prevista no artigo 100 do Código Penal:

Art. 100. A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido.

§ 1º - A ação pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido ou de requisição do Ministro da Justiça.

§ 2º - A ação de iniciativa privada é promovida mediante queixa do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo.

Júlio Fabbrini Mirabete (2009)  assim define a Ação Penal:

Ação Penal é, conceitualmente, o jus persequendi, ou jus accusationis, a investidura do Estado no direito de ação,que significa a atuação correspondente ao exercício de um direito abstrato, qual seja, o direito à jurisdição.(MIRABETE; FABRINI, 2009:104)

O Estado tem a obrigação de exercitar o jus puniendi e assim restabelecer a ordem jurídica quando lhe é comunicada a ocorrência de um crime. Compete ao do Estado a propositura da ação, que nas palavras de Luis Regis Prado refere-se

[...]tanto no campo penal como no civil, pode ser conceituada como o direito público, subjetivo, determinado, autônomo, especifico e abstrato de invocar o Estado-Juiz a aplicação do direito objetivo a um caso concreto, vale dizer, a prestação jurisdicional. (PRADO, 2010:686)

A tutela estatal é, portanto, um direito assegurado na Constituição Federal, sendo um instituto fracionado em outras espécies cujo intuito é atender o jus persequendi. Assim, a ação penal divide-se em ação penal pública, que pode ser condicionada ou incondicionada, e em ação penal privada.

A ação penal pública incondicionada tem como titular o Ministério Público, como prevê o artigo 129 da Constituição Federal:

 “Art.129. São funções institucionais do Ministério Público:

I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”. (BRASIL, 2015)

E ainda há esta previsão no Código de Processo Penal:

Art. 257. Ao Ministério Público cabe:

I- promover, privativamente, a ação penal pública, na forma estabelecida neste Código [...]” (BRASIL,2015).

Diante disso, nota-se que cabe ao Ministério Público então determinar se vai oferecer denúncia, se serão necessárias diligências ou se ação deverá ser arquivada.

A regra do direito penal é que a ação penal seja pública incondicionada. As possibilidades variantes, condicionada ou privada, devem ser explicitadas.

Na ação penal incondicionada, uma vez comunicado ao Ministério Público, por regra via Inquérito Policial, a ocorrência de um crime processado mediante ação penal pública incondicionada, deverá o parquet oferecer a denúncia, se existente a materialidade e indícios suficientes de autoria.

Na ação penal pública condicionada à representação do ofendido, que é a base e objeto do presente estudo, o agente criminoso será processado se a vítima fizer representação perante a autoridade policial. Porém, após a representação do indivíduo lesado, a titularidade de ação recai sobre o Ministério Público.

Para haver a ação penal pública condicionada à representação do ofendido, é necessária a manifestação da vontade do mesmo para autorizar o Ministério Público a oferecer denúncia e assim instaurar a ação penal. Se não houver manifestação da vontade do ofendido em querer processar o ofensor não é possível iniciar qualquer processo. Desta forma a representação é necessária na ação penal pública condicionada para que se inicie o inquérito e o processo.

João de Mesquita Laux e Jorge Roberto Krieger esclarecem que

A importância da representação do ofendido como causa de procedibilidade vem de que, em certos casos, o crime afeta tão profundamente a esfera intima do individuo que a lei, a despeito de sua gravidade, respeita a vontade do ofendido, evitando assim a intimidade ferida pelo crime se torne ainda maior. É o chamado strepitusjudicii. (LAUX; KRIEGER, 2014)

A previsão legal da representação do ofendido se origina no fato de que o crime praticado afetou mais o interesse privado que o público, sendo mais salutar que a ação penal seja pública condicionada à representação.

Portanto, a representação se faz como condicionante à instauração de investigação. O ofendido pode requerer mediante sua representação que se faça uma investigação sobre o crime que sofreu, mas poderá também não fazer tal representação acarretando na impunidade do criminoso.

Fernando da Costa Tourinho Filho assim disserta acerca do tema:

O ofendido pode ter razões em não levar o fato ao conhecimento da justiça, preferindo não divulgar sua própria desgraça. O perigo do escândalo é mais temível que a própria impunidade do criminoso. O Estado, então, respeita a vontade do ofendido, deixando a propositura da ação penal ao seu critério, condicionando, desse modo, o seu poder repressivo: se o ofendido manifestar a vontade de punir o seu ofensor, estará satisfeita a condição, o órgão do Ministério Público iniciará a ação penal. Em uma palavra: nesses casos, o ofendido julga sobre a conveniência e oportunidade de provocar a instauração do processo. (TOURINHO FILHO, 2009)

A não representação do ofendido impede a colheita de provas e, consequentemente, a responsabilização do infrator. A lei atual exige a representação, por exemplo, para os crimes de furto de coisa comum assim como em casos de lesão corporal leve e culposa, perigo de contágio venéreo ameaça, violação de correspondência, divulgação de segredo, violação de segredo profissional.

A representação pode ser feita diretamente ao juiz, ao Ministério Público ou à polícia. Ela é facultativa, estando vinculada a critérios de conveniência e oportunidade do ofendido, é um ato de livre manifestação de vontade que pode ser prestada oralmente ou por escrito.

A manifestação da vontade da vítima ou de seu representante enseja a intenção de ver o infrator processado criminalmente e, é o essencial para que se dê prosseguimento à investigação do ato delituoso. Portanto, a simples manifestação oral do ofendido frente à autoridade policial já é o suficiente para que se instaure o inquérito policial e, se tal representação for feita frente à autoridade judicial, inicia-se o processo crime. Qualquer que seja a representação, para a autoridade policial ou judicial é suficiente e válida para que se busque a punição do ofensor.

É por meio da representação que o parquet assume o dominus litis e prossegue com a investigação criminal para processar o infrator.

A representação é irretratável depois que a ação penal se inicia, ou seja, uma vez que o ofendido autoriza o Ministério Público a instaurar processo criminal, cabe obediência ao princípio da indisponibilidade, assim caso deseje, o Ministério Público somente poderá pedir o arquivamento do caso, submetendo ao juiz as razões para tal fato, para que este julgue a possibilidade de arquivamento.

Passando a ação penal condicionada a ter como titular o Ministério Público. Este deve atuar de maneira igual aos casos de ação penal pública incondicionada. Assim a ação penal mediante representação do ofendido, ou ação penal pública condicionada à representação é regida pelos princípios da oficialidade, da obrigatoriedade, da indisponibilidade, da indivisibilidade e da intranscedência.

Segundo o princípio da oficialidade, o Ministério Público ingressa em juízo de ofício e deve promover a ação penal pública na forma da lei. O princípio da obrigatoriedade ou da legalidade trata da obrigação do Ministério Público a propor ação penal pública em prazo legal toda vez que houver elementos razoáveis que detectam a existência do crime e os indícios de autoria.

Há ainda o princípio da indisponibilidade, que se refere ao fato de que o Ministério Público não pode desistir da ação penal iniciada.

O princípio da indivisibilidade que trata da propositura da ação penal contra todos que cometeram a infração, não sendo permitido ao promotor escolher dentre os infratores quais serão denunciados.

E, por último, existe o princípio da intranscedência, que significa que somente aqueles que têm responsabilidade criminal é que devem figurar na ação penal. Em outras palavras, o processo-crime não poderá ser proposto contra quem tem somente obrigação civil originária do fato.

A ação penal privada, por sua vez, também conhecida como personalíssima, exclusiva ou subsidiária da pública, é movida pela vítima ou seu representante legal, e não pelo Ministério Público. Não se afasta o direito de punir do Estado, caberá ao particular tão somente escolher se aciona ou não o poder público.

Na ação penal privada subsidiária da pública, o particular, em um caso típico de ação penal pública, oferece a queixa em decorrência da inércia do Ministério Público, iniciando, então, a ação penal. O Ministério Público, diante de tal fato, pode aditar a denúncia subsidiária ou retomar a titularidade no caso de inércia do querelante.

A queixa-crime, da ação privada, assim como a representação na ação penal pública condicionada, é facultativa. Prevalece a vontade da vítima. Uma vez iniciada ação penal privada, ela pode ser disposta pela vítima livremente, seja pelo perdão ou pela perempção.

Todavia, os princípios da indivisibilidade e da intranscendência são comum aos da ação pública. O querelante não pode escolher qual ofensor quer processar. Deve redigir sua queixa-crime em face de todos os autores. O perdão a um, aproveita os outros.


Capítulo 2 – O crime de furto, simples e qualificado

Certamente o crime de furto é um dos mais corriqueiros e comuns delitos tipificados em nosso ordenamento jurídico. Existe desde o princípio dos tempos e já figurava como mandamento cristão na tabula trazida por Moises durante o Sermão da Montanha.

Leis podem ser criadas, alteradas ou melhoradas, mas nunca deixará de existir a tipificação para o crime de furto. Código Penal algum, de qualquer parte do globo, deixa ou deixará de tipificar a subtração de coisa alheia móvel como crime.

O presente estudo irá se enveredar pela possibilidade de ação penal condicionada nos casos de furtos simples, conforme prevê o ante projeto do novo Código Penal. Todavia, antes de ingressar no cerne do presente trabalho, há necessidade de se fazer alguns apontamentos sobre o crime de furto, suas qualificadoras, detalhes e variantes.

Segundo o artigo 155 do Código Penal, o delito de furto corresponde à subtração patrimonial não violenta de coisa alheia móvel, para si ou para outrem. Resumidamente, o furto é a tomada de algo que não lhe pertence.

Tauã Lima Verdan Rangel define o furto como o

[...] assenhoramento da coisa com o escopo de dela se apoderar de modo definitivo. O núcleo do tipo é o verbo subtrair, que tem seu sentido atrelado ao ideário de tirar, tomar, sacar do poder de alguém coisa alheia móvel, compreendendo, inclusive, o apossamento à vista do possuidor ou proprietário. Ora, requer o núcleo do tipo uma conduta comissiva, sendo possível também a modalidade omissiva, quando o agente delituoso garantidos gozar da condição de garantidor. (RANGEL, 2012)

O artigo 155 do Código Penal vigente está descrito dessa forma:

Art. 155. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

§ 1º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é praticado durante o repouso noturno.

§ 2º - Se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa.

§ 3º - Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico.

Furto qualificado

§ 4º - A pena é de reclusão de dois a oito anos, e multa, se o crime é cometido:

  • com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa;
  • com abuso de confiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza;
  • com emprego de chave falsa;
  • mediante concurso de duas ou mais pessoas.

§ 5º - A pena é de reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos, se a subtração for de veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior. (BRASIL, 2015)

No furto o objeto material é uma coisa alheia móvel, o que se entende por tudo que é passível de remoção do lugar original. É de pleno entendimento doutrinário que o furto é praticado em face de coisas que tenham valor econômico, isto é, a res furtiva deve ter valor comercial ou de troca. Em outras palavras, é necessário que o bem tomado tenha alguma utilidade para seu detentor.

Rogério Greco explica o que seriam as coisas alheias, passíveis de subtração, e, consequentemente poderiam, ou não, tipificar o artigo em comento:

“[...] não se configurará no delito de furto substração:

a) res nullius (coisa de ninguém, que jamais teve dono);

b) res derelicta (coisa abandona);e

c) res communeomnium (coisa de uso de todos)” (GRECO, 2011).

Por outro lado, o apoderamento de coisa perdida, res desperdicta, constitui crime de apropriação de coisa achada, previsto no artigo 169, parágrafo único do Código Penal. Isto é, o famoso ditado popular “achado não é roubado”, não é de todo real. Pode não ser roubado, na acepção jurídica da palavra, mas é fruto de crime penalmente tipificado.

Ainda na vertente popular, e buscando mostrar diferenciações típicas, muito se confunde o furto e o roubo. A principal diferença reside no emprego ou não da violência para a prática do caso. No roubo, há sempre o emprego da violência ou grave ameaça. É diante da identificação do emprego ou não da violência que se caracteriza a prática do roubo ou do furto.

O roubo, de acordo com Marcus Cláudio Acquaviva é

“[...]a subtração clandestina de coisa alheia móvel, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou reduzindo-a a impotência para reagir [...]” (ACQUAVIVA,2009).

Outra distinção importante a ser apontada é entre o furto e a apropriação indébita. Nessa a vítima entrega uma posse desvigiada, voluntariamente, ao agente e esse resolve não mais devolver o bem ao possuidor. Exemplo basilar seria do autor que está lendo um livro na biblioteca e o coloca na bolsa, cometendo, dessa forma, o crime de furto, mas, se o retira normalmente do local, com autorização, e dolosamente não o devolve, comete apropriação indébita.

Há na doutrina a caracterização de diversos tipos de furto. Um exemplo disso é o furto famélico, ou por necessidade, que pelas palavras de Marcelo Domingues Roman é conceituado

[...] em tese, decorrência última da desesperadora expropriação do homem em relação aos meios de sua sobrevivência: em um sistema social que se configura como um universo de mercadorias em expansão, condicionado pela acumulação ilimitada, o furto por estado irredutível de necessidade parece não somente ser esperado como tolerado. (ROMAN, 2007:23)

Nessa modalidade de furto, o agente o pratica em estado de extrema penúria e, impelido pela fome, subtrai alimentos ou animais para nutrir-se. Não há crime pela excludente de estado de necessidade. Não se confunde com o furto de bagatela, que ocorre quando o bem subtraído é de valor sem importância. 

Há também o furto de uso, que é configurado pela apropriação de objeto para uso do indivíduo. Se o agente devolver à vítima o objeto furtado em iguais condições ao momento da subtração sem que a vítima tenha conhecimento não há a caracterização do furto. Todavia, caso a subtração venha a se consumar e o autor vier a se arrepende, devolvendo a res à vitima, responderá pelo crime de furto com pena reduzida de 1/3 a 2/3 em face do arrependimento posterior. Não há que se falar também em furto de uso quando o objeto é abandonado em lugar distante ou quando se danifica o bem ou quando o período de uso é muito longo.

Há também, no parágrafo primeiro do mencionado artigo, o furto noturno que acontece durante a noite, e, por isso, deve ser agravado em um terço. Esse fator de aumento de pena se aplica somente ao furto simples. Não se aplica também ao crime praticado na rua, em bares, ônibus, estabelecimentos comerciais, etc, somente em residências, desde que habitadas.

O chamado furto privilegiado, previsto no parágrafo segundo, ocorre quando o criminoso, primário, furta coisa de pequeno valor. Nesses casos o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuindo-a de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa. Vale ressaltar que a condenação anterior em contravenção não retira a primariedade. Para alguns deve também ter bons antecedentes. Considera-se de pequeno valor a coisa que não exceda a um salário mínimo.

No caso do furto privilegiado, apesar da lei dizer que o juiz "pode", é importante apontar que, uma vez presentes os requisitos, a aplicação do privilégio é obrigatória. Existem divergências acerca da possibilidade da aplicação do privilégio ao furto qualificado.

O terceiro parágrafo do artigo 155 do Código Penal prevê o furto de energia elétrica, quando o agente faz ligação clandestina na rede pública ou de terceiros para obter energia. A jurisprudência tem considerado o sêmen como forma de energia, energia genética.

Apesar do exemplo do sêmen, é de destaque que o ser humano não é coisa e, por isso, não pode ser objeto de furto. Entretanto, pernas postiças, dentaduras, perucas, etc, por serem objetos, podem ser furtados.

Todavia, a subtração de um cadáver ou parte dele tipifica o furto, desde que o corpo pertença a alguém e tenha destinação específica, como corpos pertencentes a faculdades ou laboratórios. Fora desses casos o crime será o de subtração de cadáver, previsto no artigo 211 do Código Penal.

Por sua vez, a subtração de órgão de pessoa viva ou cadáver, para fins de transplante, constitui crime previsto no art. 14 da Lei 9.434/97.

Pode ser sujeito ativo no crime de furto qualquer pessoa exceto o dono da coisa. Se uma pessoa, por exemplo, empenha um objeto, invade o local em que ele está empenhado e o subtrai, não comete crime de furto, mas, sim, o delito do artigo 346 do Código Penal.

O credor que subtrai bem do devedor para saldar a dívida já vencida e não paga comete o crime de exercício arbitrário das próprias razões, previsto no artigo 345 do Código Penal.

O funcionário público que subtrai bem público ou particular em se encontra sob a guarda ou sob custódia da Administração Pública, valendo-se de alguma facilidade proporcionada por seu cargo, comete crime de peculato-furto.

O furto de coisa comum acontece quando o agente subtrai coisa comum que foi removida furtivamente em prejuízo do condômino, co-herdeiro ou ainda do sócio.

Com bastante objetividade serão descritas as modalidades do furto qualificado, previstas no quarto parágrafo do tipo.

São qualificadoras a destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa. Consiste no arrombamento de trincos, portas, fechaduras, cofres, janelas, alarmes, que devem ser destruídos, não desarmados. Eventual desarme de alarmes pode ser enquadrado como destreza.

Cães de guarda não são considerados obstáculos. A morte do animal caracteriza crime de dano e não qualificadora. Da mesma forma a simples remoção de parafusos de janelas ou retirada de telhas não qualifica o crime.

É de nota que, se depois de consumado o crime de furto o agente destrói uma janela para sair, responderá pelo furto simples e pelo crime de dano em concurso material.

Para a caracterização da qualificadora exige-se a elaboração de perícia, pois, é crime que deixa vestígios. Se estes estiverem desaparecidos, a prova testemunhal poderá suprir a perícia.

O abuso de confiança é a amizade, parentesco, relação profissional. A mera relação empregatícia, por si só, não configura confiança. É necessário, para se qualificar, que o agente aproveite-se dessa confiança.

A fraude é o artifício, o meio enganoso, capaz de reduzir a vigilância da vítima, como o uso de disfarces ou falsificações. Visa diminuir a vigilância da vítima, retirando o bem desta sem que ela perceba. Diverge do estelionato, visto que, nesse, o objetivo é fazer a vitima incidir em erro para entregar espontaneamente a coisa.

A escalada, segundo a jurisprudência vem exigido, impinge, para caracterização da qualificadora, no uso de instrumentos, como cordas, escadas, ou, ao menos, a utilização de grande esforço, como saltar um muro alto, por exemplo. Até mesmo escavação de um túnel tipifica o delito qualificado.

A destreza é a habilidade física ou manual que permite ao agente executar a subtração sem que a vítima perceba. Aplica-se somente a qualificadora quando a vítima traz os objetos junto a si. Se a vítima percebe a conduta do agente, não tem lugar a qualificadora, há tentativa de furto simples, mas, se a conduta é vista por terceiro que impede a subtração, há tentativa de furto qualificado. Se a subtração é feita em pessoa que está dormindo ou embriagada, há furto simples.

A qualificadora do emprego de chave falsa tem alguns detalhes. Considera-se chave falsa a imitação da verdadeira, desde que feita sem autorização, ou qualquer instrumento, com ou sem forma de chave, como chaves de fenda ou tesouras. Prevalece a opinião de que não se aplica a qualificadora de chave falsa na "ligação direta", uma vez que, em regra, não há emprego de qualquer objeto, tão somente a conexão de fios de contato.

É aplicável a qualificadora do concurso de duas ou mais pessoas ainda que um dos envolvidos seja menor ou apenas um deles tenha sido identificado. Existe divergência se para a tipificação da qualificadora se ambas deveriam estar executando diretamente o delito.

Por fim, a qualificadora prevista no quinto parágrafo é a subtração de veículo que venha a ser transportado para outro Estado ou exterior. Se consuma quando o veículo transpõe a divisa de outro Estado. Se consumar o furto, mas não sair do Estado e for apanhado, responderá por furto simples. A tentativa somente é possível se o agente está próximo à divisa e é perseguido até que transponha o marco divisório, mas é preso sem ter conseguido a posse tranquila do bem. O reconhecimento da presente qualificadora afasta a incidência das demais por incompatibilidade.


Capítulo 3 – A ação penal no crime de furto - hoje e no novo Código Penal

Passadas as explanações feitas nos capítulos anteriores, quando se descreveu sobre a ação penal e suas modalidades, bem como sobre o delito de furto e suas peculiaridades, passa-se a abordar o cerne do presente estudo, que é a possibilidade de mudança da ação penal, nos crimes de furto simples, de incondicionada, para condicionada à representação do ofendido.

É de conhecimento de qualquer jurista que o Direito está em constante adequação às demandas da sociedade sendo necessário que se mantenha vivo, dinâmico, observando as transformações sociais.

O problema deste artigo, portanto, é analisar sobre a real necessidade da ação penal incondicionada para o crime de furto, tipificado no artigo 155 do atual Código Penal Brasileiro. Para chegar à solução deste problema foi feita uma pesquisa de cunho bibliográfico observando o Código Penal, doutrinas, direito comparado e jurisprudências que tratam do assunto específico.

Dada a facilidade de acesso à justiça e a melhor interação social, com afastamento paulatino da autotutela, o Judiciário pátrio sofre com o intenso volume processual e a carência de material humano, fatores que atrasam as decisões e sentenças. Mesmo com o alavancar tecnológico propiciado pelos computadores e sistemas de movimentação processual, o volume de procedimentos é enorme. Um dos motivos que agrava essa situação é o grande número de pequenos furtos, apurados via inquérito policial, dada a obrigatoriedade de instauração dos Autos devido a ação penal incondicionada. Essa realidade acaba por comprometer o julgamento, e apuração, de crimes mais graves, acarretando, não raro, a prescrição, e consequente, impunidade em tais casos.

O delito de furto, hoje, processado via ação penal incondicionada, obriga o delegado a instaurar o Inquérito Policial, obriga o Ministério Público a elaborar sua denúncia, havendo materialidade e autoria, e obriga o Juiz a decidir o caso apresentado, seja ou não essa a vontade da vítima.

Acerca do sobrecarregamento da justiça com lesões patrimôniais menos graves, como os pequenos furtos, a doutrinadora Livia Scoucuglia relata que:

Os pequenos furtos — com valor inferior a um salário mínimo — são os responsáveis por mais de 60% das prisões do país. Esse número é consequência do sistema penal brasileiro que adota a obrigatoriedade da ação penal e também a ação penal incondicionada para pequenos furtos. (SCOUCUGLIA, 2014)

No Brasil a discussão sobre a ação penal mais adequada aos delitos de furto, remonta ao tempo do Império, especificamente no famoso “Furto das Jóias da Coroa”, passagem descrita no livro de Raul Pompéia. O autor cita o episódio em que um funcionário de confiança e especial amizade do Imperador Dom Pedro II furtou joias da coroa brasileira.

Na época, com a descoberta da autoria pelas Autoridades Policiais, o Imperador resolveu abrir mão do patrimônio, dando seu consentimento à subtração, sendo o caso encerrado sem punição. Isso gerou grande burburinho e fomentou a discussão sobre a relevância ou não do consentimento do ofendido para a subtração no crime de furto. A Lei penal, bem como a doutrina e jurisprudência no Brasil afirmam, em sua maioria, que prevalece o princípio da obrigatoriedade da Ação Penal, sendo isso é reforçado nos concursos e escolas de Direito, sem muita reflexão.

A alteração da ação penal de pública incondicionada, para pública condicionada à representação do ofendido nos crimes de furto é um passo relevante de racionalização do Direito Penal Brasileiro.

Exemplos legislativos no direito comparado existem, e serviram de base para o ante projeto do Código Penal brasileiro.

Dois exemplos, de países desenvolvidos, podem ser mencionados. O Código Penal Português e o afamado Código Penal Italiano, que abaixo serão transcritos.

O Código Penal Português, em seu artigo 203, assim descreve o delito de furto:

Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

A tentativa é punível.

O procedimento criminal depende de queixa

(Grifo nosso)

Assim como se pretende com o novo Código Penal, também no direito português, o delito somente será condicionado à representação se não houver qualquer violência ou qualificadora.

O Código Penal Italiano prevê que o delito de furto simples seja julgado pelos juizados especiais, por juízes leigos, e, igualmente, exige a representação da vítima para seu processamento

Articoli 624 - Furto

Chiunque s'impossessa della cosa mobile altrui, sottraendola a chi la detiene, al fine di trarne profitto per sé o per altri, è punito con la reclusione da sei mesi a tre anni e con la multa da euro 154 a euro 516.

Agli effetti della legge penale, si considera cosa mobile anche l'energia elettrica e ogni altra energia che abbia un valore economico.

Il delitto è punibile a querela della persona offesa, salvo che ricorra una o più delle circostanze di cui agli articoli 61, numero 7 e 625

(Grifo nosso)

“Il delitto è punibile a querela della persona offesa”. Em português, “O delito será punido mediante a queixa da pessoa ofendida”.

Ambos diplomas legais são antigos. Não tratam de inovação legislativa. O Código Italiano é de 1930. O Português foi condensado em 1852, quando o Brasil sequer era república.

A sanção do projeto de lei que altera o Código Penal brasileiro não irá inovar. Não irá modernizar o direito. A ideia do crime de furto ser processado mediante ação penal pública condicionada é antiga, e, salvo entendimentos em contrário, pode, sim, trazer benefícios à aplicação da lei penal e processamento dos demais crimes, conforme será explanado.

É claro que nos crimes patrimoniais praticados mediante violência ou grave ameaça não se pode abrir mão da ação penal pública incondicionada, considerando que se tratam de crimes complexos, onde não somente o patrimônio é tutelado, mas também bens jurídicos tais como a liberdade individual, a integridade física e até a vida das pessoas.

O PL 1244/2011 prevê a alteração do Artigo 155 no novo Código Penal e menciona que a ação penal nos crimes de furto simples e de pequena monta, passe a ser de pública condicionada a representação. A comissão de elaboração do projeto de novo Código Penal definiu ainda que a reparação do dano, desde que a coisa furtada não seja pública ou de domínio público, extingue a punibilidade, desde que feita até a sentença de primeiro grau e aceita pelo réu.

Pela atual legislação brasileira, o rito processual para se apurar um furto de bicicleta ou o furto de milhões de reais, é o mesmo, o que tende a aumentar as prescrições por falta de vagas para audiências em tempo hábil. Em razão disso, acaba-se condenando o ladrão de bicicleta, pois é um processo mais simples de se definir a autoria, enquanto no delito de maior monta há várias dificuldades técnicas que podem gerar a prescrição do crime.

No direito brasileiro autores de pequenos furtos são presos provisoriamente em flagrante delito para, somente após algum tempo de reclusão, ser determinada a sua pena. Se a ação penal fosse condicionada à representação da vítima, certamente reduzir-se-iam as demandas judiciais e, consequentemente, o número de encarceramentos desnecessários.

Como dito, o projeto do Novo Código Penal condiciona a propositura da ação penal nos crimes de furto simples à representação da vítima, modificando-se, portanto, o tipo de ação penal.

Ao considerar-se que o direito penal deve agir somente em ultima ratio, ele somente atuará quando os outros ramos do direito forem insuficientes para solucionar o conflito existente. Logo, questiona-se sobre a real necessidade da intervenção estatal e do esforço da justiça para solucionar casos simples.

As futuras modificações no Código Penal, imporão que o Ministério Público só poderá propor ação penal nos crimes de furto simples mediante a representação do ofendido à uma autoridade policial ou judicial. O Delegado, igualmente, somente instaurará o Inquérito Policial após o pedido formal da vítima.

Logo seguir a tendência mundial de abandonar a obrigatoriedade da ação penal no furto simples ou transformá-la em ação penal condicionada à representação da vítima, é essencial para desafogar a justiça brasileira. Condicionar a ação penal nos casos de furto simples à representação da vítima se traduz em um esforço para respeitar a opinião e a privacidade do ofendido, quanto à sua disposição patrimonial. Isto porque muitas vezes os danos causados ao ofendido na propositura da ação penal podem ser maiores que os danos causados pelo infrator. É natural que caiba ao ofendido decidir se quer ver processado o autor do ato ou não.

Estas modificações possuem grande relevância, sobretudo, nos casos de furtos de pequena monta, que além de insignificantes possuem, geralmente, repressão estatal superior ao interesse particular. O instituto da ação penal condicionada à representação do indivíduo evita dispensar um sistema complexo para penalizar um infrator, caso a vítima não tenha interesse neste processo.

Além disso, tal instituto assegura a reparação do dano sem que seja necessária a privação de liberdade do infrator, que pode acarretar mais malefícios que benefícios ao infrator podendo ser fator de reincidência e impõe gastos ao Estado para manter tal indivíduo encarcerado. Fica claro que as modificações introduzidas na lei retiram a punição exagerada frente à pouca gravidade da lesão, relativizando a supervalorização e superproteção do bem jurídico do patrimônio. Contudo, vale ressaltar que não se pretende a impunidade do infrator, mas tão somente a possibilidade de redução do uso do judiciário em casos de menor gravidade desafogando-o, permitindo maior celeridade na justiça, uma vez que esta se preocupará apenas com as ações propostas mediante a representação do ofendido, que deve ter sua vontade respeitada, já que a proteção se dá em razão da propriedade privada.

Logicamente existem posicionamentos contrários à proposta. Há quem entenda que essa possibilidade de somente se instaurar um Inquérito Policial ou uma Ação Penal após a representação do ofendido possa agravar a impunidade, visto que a vítima poderia ser coagida, ou se sentir intimidada, e não querer representar contra o autor. Há também a ideia de que nossa sociedade não estaria madura o suficiente para se relegar à vítima a decisão de querer ver, ou não, o autor do furto simples processado criminalmente.

Ora, realmente vivenciamos um crescimento assustador da criminalidade. Realmente a vítima acaba por se sentir acuada quando se vê prestes a ingressar numa delegacia, mais ainda quando é posta frente a frente com o autor do furto. Realmente uma passividade do ofendido pode propiciar que pequenos larápios fiquem impunes.

Mas a capacidade de escolha deve ser respeitada. É facultado à vítima dispor, por exemplo, sobre sua integralidade física quando agredida levemente. Pode simplesmente dizer ao Delegado que não quer ver seu agressor punido e nada poderá ser feito. Ora, se o furtador, por exemplo, leva o relógio da vítima, sem violência, e é preso posteriormente, propiciando a devolução do bem, que mal teria a vítima simplesmente se contentar com a devolução de seu relógio? O larapio vir a ser preso em flagrante, provisoriamente, para dias depois, ou horas, ser solto, de pouco adiantará para reprimir a criminalidade.

O pequeno furto tem uma questão mais social do que criminal. Quase sempre o furto simples ocorre por necessidade do autor. Ademais, na grande maioria dos casos os furtos ocorrem em relação intima com o tráfico de drogas. Em outras palavras, as pequenas subtrações não violentas ocorrem para subsistência do infrator ou para o sustento de seu vicio em entorpecentes.

Se existisse uma política social mais eficiente e inclusiva, ninguém precisaria furtar para se alimentar. Se a polícia puder se focar em combater o tráfico ilícito de entorpecentes, não haverá o furto para sustento do vício.

Mas, infelizmente, o que se vê é a polícia, civil e militar, gastando seu parco tempo e recursos prendendo o pequeno furtador, formalizando prisões em flagrante delito, ao invés de buscar prender o traficante ou o real criminoso.

A gama de crimes graves é enorme. A força policial é limitada.

Se aquele autor do furto do relógio do exemplo acima não se sensibilizar com a “chance” que lhe foi dada pela vítima que optou por não representar, certamente irá voltar a delinquir, quiçá, com maior gravidade, acabando por vir a ser detido. Mesmo que volte a praticar furtos simples, esse comportamento recorrente pode, naturalmente, ser repassado à vítima, que poderá pesar, e pensar, se deve ou não abrir mão de seu direito de representar.

O ideal da ação penal condicionada no crime de furto é tão somente permitir que a polícia volte suas forças ao combate mais qualificado à criminalidade, bem como reduzir o acervo de procedimentos nos fóruns do país, e, por consequência, facultar à vítima a possibilidade de escolher se quer, ou não, perder seus dias em cartórios de delegacias e fóruns.

Não cabe ao direito penal, mediante a ação publica incondicionada do crime de furto, socorrer a sociedade combalida por políticos corruptos, falta de empregos ou por uma educação ineficiente. Uma sociedade devidamente preparada reduzirá a ocorrência dos pequenos furtos muito mais do que o encarceramento banalizado.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aquele que se envereda em iniciar uma graduação em direito tem a obrigação de saber que estará fadado a estudar o restante de seus dias, sob pena de se tornar um profissional obsoleto ou, quiçá, medíocre e desempregado.

Faculdades de Direito afloram e se espalham pelo país num ritmo intenso. Isso é plenamente saudável e louvável. Todos merecem ter acesso ao conhecimento, se especializarem e conhecerem seus direitos e obrigações.

É interessante para a sociedade a melhor educação de seu povo. A melhor preparação, e, consequentemente, uma nação mais instruída.

Agora, aquele que igualmente se envereda a iniciar um curso de pós-graduação em Direito, tem uma obrigação ainda maior. Deve saber que encontrará tópicos mais elaborados do que os ensinados na graduação e, consequentemente, deverá produzir estudos igualmente profundos.

Um trabalho de conclusão de curso trivial é plenamente cabível em um curso de graduação. Mas, em uma pós graduação, a profundidade do tema é esperada, e, justamente com esse mote em foco, escolheu-se dissertar sobre um tema pouco abordado pelos legisladores pátrios, que é a possibilidade de se condicionar à representação da vítima o processamento do delito de furto.

Tal hipótese é, ainda, inexistente em nosso ordenamento jurídico. Está inclusa no anteprojeto do novo Código Penal.

Inicialmente, para apresentação do tema, foi explanado sobre as ações penais existentes no direito penal, isto é, a ação penal pública incondicionada, a ação penal condicionada à representação, a ação penal privada subsidiária da pública e a ação penal privada.

Uma vez que o assunto abordava a possibilidade de mudança da ação penal no delito de furto simples, as variantes desse tipo penal foram mencionadas, bem como as qualificadoras e delitos similares.

A abordagem do tema ocorreu no terceiro capítulo, quando se trouxeram informações estatísticas sobre os delitos de furto simples, legislações comparadas, em especial o Código Penal Português e o Código Penal Italiano, que reconhecem como condicionada à representação a processualização do crime de furto simples, e, por fim, uma abordagem social sobre o crime de furto foi levantada, ou seja, vivêssemos em uma sociedade mais igual e insertiva, com acesso pleno à educação e emprego, certamente teríamos uma queda vertiginosa na quantidade de delitos contra o patrimônio.

Outra vertente apontada foi o sobrecarregamento das delegacias e fóruns com o processamento dos delitos de furto simples, em decorrência da obrigatoriedade que a ação pública incondicionada impinge.

A experiência profissional, como delegado de polícia civil há quatorze anos, me obrigou a presenciar um sem número de indivíduos, pobres, sem pai conhecido no registro civil, com pouquíssimo estudo, subempregados, e, não raro, usuários de entorpecentes, visitando, como conduzidos e/ou autuados, os cartórios das unidades policiais por onde trabalhei.

Também presenciei o desconforto das vítimas em passar horas na Unidade Policial aguardando a conclusão do flagrante para terem seus bens restituídos. Delegacias não são o lugar mais agradável a se visitar. Eventualmente criminosos mais perigosos são conduzidos em conjunto e permanecem, no mesmo ambiente que as vítimas que aguarda a mencionada conclusão do flagrante.

A visão de pessoas algemadas, policiais armados, familiares revoltados com prisões, não é agradável.

A vítima, tão somente, quer seus bens de volta. O desejo de “vingança”, quase sempre, é exclusivamente estatal.

Vale ressaltar ainda que, passada a fase policial, provavelmente essa mesma vítima voltará a encontrar o autor da subtração pelos corredores do Fórum onde se julgará o ilícito. Se menciona corredores porque o autuado em flagrante por um furto simples será posto em liberdade pouquíssimos dias após o fato. Aguardar a audiência judicial, frente a frente com o autor do ilícito, provavelmente ocorrerá.

Como dito no decorrer do trabalho, o pequeno larápio é criminoso sim, o fato é penalmente tipificado sim. Mas a escolha da vítima em querer acompanhar todo esse imbróglio deve ser respeitada.

Houvesse a possibilidade de escolha, nos casos de furto simples, a vítima já ofereceria a representação sabendo que teria todo um processo a frente para acompanhar.

Noutro giro, explanou-se que, com a ação penal condicionada no delito de furto, uma possibilidade de especialização das forças policiais em reprimir os crimes mais graves é esperada. Consequentemente, menos processos serão encaminhados à apreciação do Ministério Público e Judiciário, propiciando mais eficiência e celeridade.

Com uma policia judiciária mais voltada a reprimir crimes graves, contando com um Ministério Público e Judiciário desassoberbados, se poderia enviar aos ergástulos do país os reais delinquentes, em especial os traficantes de drogas e os dilapidadores do erário público, não o somente preto e o pobre

Buscou-se, por fim, trazer o tema à sociedade jurídica, tentando afastar a crença de que prisão é o melhor, ou único, remédio para se punir o infrator. Plantar, dessa forma, o ideal de um direito penal minimalista, onde possa existir uma sociedade decente em que o crime real poderá ser melhor combatido e o pequeno infrator possa ser efetivamente resocializado.


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___________.___________: Normas para apresentação de trabalhos ABNT, Vitória, 2000.


Autor

  • Endgel Rebouças

    Delegado Regional de Polícia Civil de Minas Gerais desde 2006. Formado em Direito pelo Centro Universitário do Espírito Santo em 2003, onde também se pós graduou em Direito Civil no ano de 2005. Pós graduado ainda pela Unyleya em Direito Penal e Processual Penal no ano de 2018 e em Gestão em Segurança Pública em 2017.

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Informações sobre o texto

Artigo elaborado como exigência para conclusão do curso de pós graduação em Direito Penal e processual Penal pela Faculdade Unyleya

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REBOUÇAS, Endgel. Ação penal condicionada no delito de furto simples. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5556, 17 set. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68604. Acesso em: 25 abr. 2024.