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Arrematação. Cancelamento indireto ou ressonância negativa na Penhora. Imissão na Posse.

Arrematação. Cancelamento indireto ou ressonância negativa na Penhora. Imissão na Posse.

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Estudam-se os efeitos da arrematação e sua repercussão nos tipos de penhora.

Resumo: O autor desenvolve estudo a respeito dos efeitos da arrematação, entre eles o cancelamento da penhora de forma direta e indireta, a transferência do vínculo da penhora para o preço, o caráter de  aquisição originária da propriedade pelo arrematante, o efeito meramente obrigacional de carta de adjudicação ou arrematação expedida em cumprimento de sentença, a inexistência de preferência na realização da praça, independência da jurisdição cível e trabalhista; a natureza a jurídica da arrematação.


1 A penhora é ato expropriatório de bens, que se efetiva no processo de execução, e por ela se opera a apreensão de bens visando à satisfação do crédito do exequente. Seu objeto são bens do devedor, sendo certo que ele responde com todos os seus bens, presente e futuros, para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições previstas em lei. (art. 789 do CPC) Um mesmo bem pode ser objeto de mais de uma penhora, perante juízos diferentes.

Ela assegura ao credor preferência no pagamento a que tem direito. O dispositivo do art. 908, caput do CPC reza que “havendo pluralidade de credores ou exequentes, o dinheiro lhes será distribuído e entregue consoante a ordem das respectivas preferências”. O § 2º do artigo citado estatui que não havendo título legal à preferência, procede-se à distribuição do dinheiro entre os concorrentes, atento à anterioridade de cada penhora.

Como já firmado pelo STJ, “no processo de execução, recaindo mais de uma penhora sobre o mesmo bem, terá preferência no recebimento do numerário com a sua arrematação, o credor que em primeiro lugar houver realizado a penhora, salvo se incidente outro título legal de preferência”. (REsp. 829.980/SP, 3ª. Turma do STJ, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe. 18/06/2010)

A Lei processual civil não assegura preferência na realização da praça. Esta pode se ocorrer independentemente da ordem em que se deram as penhoras, ou, em outras palavras: o direito de promover a praça não está vinculado à ordem em que se deram as penhoras.

Nada impede que um bem seja penhorado no juízo cível e no juízo trabalhista, e a praça se realize em um deles, com arrematação. Se isso ocorre, produzem-se todos os efeitos jurídicos dela decorrentes , restando aos demais credores participação no concurso que se estabelece sobre o produto obtido na praça, na forma já indicada, ressalvando-se título legal de preferência.

Sendo independente a jurisdição cível e a trabalhista, cada uma delas é competente para a revisão dos respectivos julgados, o que implica em dizer que, por exemplo, a Justiça comum não pode cancelar registro imobiliário de carta de arrematação expedida em execução trabalhista, sob pena de invasão de competência jurisdicional. (Apelação cível n. 1.0024.03.995761/002, 17ª. CC do TJMG, Rel. Des. Luciano Pinto, DJMG de 21/08/2012)

Sobre essa matéria posicionou-se o STJ, em termos claros, dizendo que “compete com exclusividade à Justiça do Trabalho a revisão de seus próprios julgados, não havendo possibilidade de cancelamento pela Justiça comum de registro imobiliário devido a carta de arrematação expedido em execução trabalhista, independente de qual seja a alegação de irregularidade”. (Conflito de Competência n. 45.308/MA, 2ª. Secção do STJ, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, j. 24/11/2004)

Fique bastante claro que a penhora assegura preferência no pagamento do crédito, não na realização da praça, e a independência da jurisdição cível e da trabalhista impede que se discuta em qualquer uma delas atos praticados na outra.

Como ensina ARNALDO MARMIT, “a arrematação faz cessar os efeitos da penhora para cujo produto ela transfere o vínculo da garantia. A garantia do crédito, que se integrava na penhora, passa a agasalhar-se no preço da arrematação, já que a constrição é provisória e não acompanha a coisa para o domínio do novo adquirente. A propósito, no ensina de PONTES DE MIRANDA, “a arrematação extingue o direito real ou o ônus real do bem arrematado, transferindo-se para o seu preço”. Também no ensinamento de LIEBMAN a arrematação transfere para o preço depositado o vínculo da penhora, fazendo passar livre o bem para o poder do arrematante”. (Processo de Execução – págs. 11.115)””. (Arnaldo Marmit, A Penhora, pág. 477)

HUMBERTO THEODORO JÚNIOR explica que o vínculo da penhora é transferido para preço depositado pelo arrematante. “O dinheiro succedit in loco rei. O dinheiro pago toma, com efeito, o lugar dos bens arrematados, entra provisoriamente para o patrimônio do executado, mas no mesmo momento fica sujeito ao vínculo da penhora, porque deverá ser distribuído entre os credores depois de pagas as custas; o que sobrar eventualmente será devolvido à livre disposição do devedor”. (Curso de Direito Processual Civil, v. II, pág. 966, n. 964)

Em síntese: a) a penhora assegura preferência no recebimento do crédito (art. 908, caput, e § 2º do CPC); b) a penhora não assegura preferência para pracear o bem; c) as jurisdições são independentes, e por essa razão os atos que envolvem a arrematação só podem ser atacados no juízo em que ela se efetivou. O juiz cível não conhece competência para anular arrematação ocorrida na esfera trabalhista, e vice-versa; d) uma vez efetuada a arrematação e cumpridas todas as formalidades legais que lhe são pertinentes, o dinheiro toma o lugar da coisa penhorada.


2 A arrematação “consiste no ato pelo qual o busca o Estado converter em dinheiro os bens penhorados”. (Elpídio Donizzetti Nunes, Curso Didático de Direito Processual Civil, pág. 419)

ERNANE FIDÉLIS DOS SANTOS ensina que “quando, na execução, apreende-se e deposita-se bem, para atendê-la, tem-se a penhora; quando se aliena o bem, na forma específica de venda pública, tem-se a arrematação”. (Manual de Direito Processual Civil, v. 3, pág. 176, n. 1.221)

O CPC estabelece as fases que envolvem o procedimento da arrematação. (art. 879 e seguintes)

Naquilo que interessa ao presente artigo, é importante precisar que a arrematação não é uma venda judicial dos bens penhorados, porque, como já foi dito, “não se pode conceber uma alienação contratual sem o consentimento do dono do bem negociado. – O que de fato ocorre, segundo o magistério de nosso clássico Paula Batista, é uma desapropriação forçada, efeito da lei, que representa a justiça social no exercício de seus direitos e no uso de suas forças para reduzir o condenado à obediência do julgado. – A conclusão, pois, a que chega a doutrina moderna é que a natureza contratual é incompatível com a arrematação, que só pode ser entendida como ato de desapropriação, ou seja, como ato processual de soberania do Estado que, pelo órgão judicial, expropria os bens do executado e transfere, a título oneroso, sua propriedade a terceiro. É típico ato executivo, portanto, ato de direito público, como é a desapropriação nos outros casos em que o Estado interfere no domínio privado por necessidade ou utilidade pública”. (Humberto Theodoro Júnior, Curso cit., pág. 949, n. 848)

Tem-se uma forma originária de aquisição, inexistindo qualquer relação entre o arrematante e o precedente titular do direito real, o que se coaduna com a segurança jurídica e a natureza jurídica da arrematação.

A carta de arrematação, expedida em favor do arrematante, uma vez registrada, reflete na eficácia da penhora em relação ao bem praceado, e se desloca, como dito, para o produto obtido com o leilão. O bem, que estava penhorado, passa livre de qualquer ônus para o arrematante.

Nenhuma relação existe entre o arrematante e o proprietário do bem, porque, como está na lição acima transcrita de HUMBERTO THEODORO JÚNIOR o Estado, pelo órgão judicial, e no exercício de ato processual de soberania estatal, expropria bens do executado e promove sua transferência a terceiro, a título oneroso.

Nesse passo orienta-se o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, na apelação cível n. 0034323-42.2011.8.0100, da Comarca da Capital, com relatoria do Des. José Renato Nalini, publicado no DJE 10/01/2003, estando no voto condutor que “ao destacar a inexistência de relação jurídica entre o adquirente e o procedente titular do direito real, a ausência de nexo causal entre o passado e a situação jurídica atual, a inocorrência de uma transmissão voluntaria do direito de propriedade, de sorte a alinhar-se com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e a prestigiar a segurança jurídica”.

E o relator afasta a aplicação dos princípios da disponibilidade, da continuidade e da especialidade, dizendo que “dentro desse contexto, a observação dos princípios da continuidade, da disponibilidade e da especialidade subjetiva é, no caso, prescindível, porque a propriedade adquirida com a arrematação, causa autônoma suficiente, liberta-se de seus vínculos anteriores, desatrela-se dos títulos dominiais pretéritos, dos quais não deriva e com os quais não mantém ligação”.

Respondendo a dúvida suscitada pelo registro imobiliário fica claro, no acórdão em estudo, que a inexistência de relação do passado com o presente afasta a exigência decorrente da continuidade, da disponibilidade e da especialidade, porque a arrematação é modo originário de aquisição.

Nesse mesmo sentido, entre outros, a apelação cível 0000005-21.2011.8.26.021 do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, Rel. Des. José Renato Lanini, DJE 04/02/2013.

O Superior Tribunal de Justiça como afirmado no voto condutor da lavra do Desembargador José Renato Lanini, tem essa orientação, ou seja, “tendo havido arrematação, a existência de penhora não prejudica a atuação do Estado, porque não se tem preferência senão quanto ao pagamento do credor, nada interferindo com a expropriação executiva. Se assim não fosse, e ferido ficaria o princípio da segurança jurídica. Não há vínculo algum entre o arrematante e o anterior proprietário, o executado”. (AgRg. no Ag. 1225813, 2ª. T. do STJ, Rel. Min. Eliana Calmon)


3 Vindo arrematação opera-se a transferência do vínculo da penhora para o preço depositado pelo arrematante: o dinheiro succedit in loco rei, como ensina HUMBERTO THEODORO JÚNIOR que foi citada. Não diverge a doutrina de ARNALDO MARMIT, transcrita anteriormente.

Se a penhora é transferida para o produto da praça, evidente que se há, por exemplo, mais de uma penhora sobre determinado imóvel, a penhora passa a agasalhar o preço pago pelo arrematante, liberando o imóvel. Este transfere-se, livre e desembaraçado, para o patrimônio do arrematante. Nenhuma relação há entre o proprietário anterior e o novo proprietário, porque quem determinou a transferência foi o Estado e não a vontade do proprietário devedor. Há um ato imperativo do Estado-juiz, sem qualquer ingerência da vontade do “dominus”, sendo mera sanção representada pela execução forçada, como ensina Liebman, citado na apelação cível 0000005-21.2011.8.26.021, CSMSP, com relatoria do Exmo. Sr. Des.José Renato Lanini, DJ 04/02/2013.

O STJ firmou de forma clara a inexistência de relação entre o arrematante e o anterior proprietário, executado. (Ag.Rg. 1115813, 2ª. Turma do STJ, Rel. Min. Eliana Camon)

Nessa linha de raciocínio a arrematação resolve as penhoras, ou seja, o registro da carta de arrematação implica em cancelamento indireto.

Transcrevo o entendimento da CGSP, no Proc. CGSP 116/2007, parecer aprovado pelo Corregedor Geral de Justiça, Des. Giberto Passos de Freitas, DOE de 08/11/2007, nos seguintes termos:

“Quanto ao modo, são duas as espécies de cancelamento das inscrições imobiliárias: uma direta, dependente de assento negativo; outra, consistente na ressonância de inscrições subsequentes sobre as anteriores. (cfr. AFRÂNIO CARVALHO, Registro de Imóveis, 1977, pág. 158

“Assim, o registro da arrematação (para o acaso, o de adjudicação) não reclama o cancelamento direto e autônomo do registro das constrições precedentes, porque ele se afeta negativamente pela inscrição mais nova. Isso se dá porque a arrematação (aqui, a adjudicação) tem força extintiva das onerações pessoais e até mesmo reais (cfr. art. 251, II, da Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (AFRÂNIO DE CARBALHO, op. cit., pág. 83) é a extinção do direito é que deriva a admissão de cancelamento do registro que lhe corresponda (RIFÁ SOLER, “La anotación preventiva de embargo”, l983, págs. 510 e s.). O vínculo da penhora translada-se para o preço da aquisição, sobre o qual concorrem os credores (LOPES DA COSTA, com apoio em DÍDIMO DA VEIGA e CARVALHO SANTOS, “Direito Processual Civil Brasileiro, 1947, IV, pág. 169)

“Observe-se, por fim que, no cancelamento indireto, é despicienda, em regra, a elaboração de assento negativo, salvo quanto à hipoteca, em vista da necessidade de qualificar-se pelo registro a ocorrência – que não é automática – da causa extintiva segundo prescreve o artigo 251, II da Lei n. 6.015, citada. (Ap. Civ. 13.838-0, j. 24/02/1992)”

A lição é elucidativa e afasta qualquer dúvida, e está na linha da melhor doutrina. Inexiste, efetivamente, pela natureza jurídica da arrematação, qualquer vínculo entre o proprietário do bem levado à praça e o arrematante. Quem transfere o bem é o Estado-Juiz, não o proprietário, cuja vontade não se considera. Com o registro da carta de arrematação ocorre a sua ressonância no registro da constrição que existiam anteriormente, entre elas a penhora ou penhoras, ou qualquer outro ônus dessa natureza. As penhoras perdem sua eficácia, ou seja, não produzem efeito em relação ao credor arrematante.

A penhora figura no registro imobiliário, após o registro da carta de arrematação – quando se trata de imóvel – sem produzir qualquer efeito decorrente do ato de constrição. A penhora, como dito no n. 1, supra, é ato expropriatório de bens, que se efetiva no processo de execução, e por ela se opera a apreensão de bens visando à satisfação do crédito do exequente. Seu objeto são bens do devedor, sendo certo que ele responde com todos os seus bens, presente e futuros, para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições previstas em lei. (art. 789 do CPC)

Com o registro da carta de arrematação a penhora passa a incidir sobre o preço obtido na praça, razão pela qual desnecessário até mesmo seu cancelamento. E o cancelamento ocorre em relação a todas as penhoras que existam e cujo objeto seja o imóvel arrematado.

Trago em apoio a esse entendimento o que ficou registrado no Proc. 133.552´2013, julgado em 06/12/2015, Dj de 17/12/203, com relatoria do Des. José Renato Nanili, que elucida que “é certo que tal cancelamento direto das penhoras antecedentes, embora despiciendo, como visto, pode efetivamente ser obtido, a fim de evitar dificuldade na leitura e no entendimento por parte de leigos, da informação gerada pela matrícula mencionada…”

O simples fato de o comprador de imóvel arrematado dar ciência de penhora registrada sobre determinado imóvel, e pedido que faça de garantia para que a penhora seja cancelada, sob a ótica do comprador, pessoa leiga, em regra, justifica-se, e não tem qualquer repercussão jurídica capaz de tornar a aquisição como fraude à execução, como entendeu o TJMG no agravo de instrumento n. 1.0024.13.411699-5/001, em 9ª. Câmara Cível, DJ de 16/06/2014.

No precedente do Tribunal Justiça de Minas Gerais foi afastada a incidência do art. 1.052 do CPC/73. Segundo o entendimento registrado naquele recurso, o comprador do imóvel, que o adquiriu de pessoa que o havia arrematado na Justiça do Trabalho e promovido o registro da carta de arrematação, não afasta a figura da fraude à execução, porque o novo “dominus” tivera ciência da penhora dos imóveis, fazendo constar do registro imobiliário o fato e pedira garantia da liberação da penhora.

Ora, não havia penhora pendente sobre o imóvel, porque, como demonstrado, o registro da carta de arrematação implica em ressonância indireta e sub-rogação da penhora no produto da praça. Sendo leigo, o pedido de garantia é compreensível, porque formalmente havia a penhora, mas apenas formalmente, pois não tinha mais eficácia em relação ao imóvel, porque o registro da carta de arrematação pelo arrematante, que lhe vendeu o imóvel, afasta a penhora. Nem se pode falar em fraude à execução, porque não foi o devedor quem vendeu, mas o Estado-Juiz que determinou a expropriação e a transferência para o arrematante.


4 Não é raro que nos autos do cumprimento de sentença, expedida carta de arrematação ou de adjudicação, seja deferido de mandado de imissão de posse em favor do arrematante ou do adjudicante.

Tal solução não encontra apoio na Lei processual civil, nem, tão pouco, no Código Civil.

O Código de Processo Civil de 1973 previa na execução ou cumprimento do provimento “que vise à entrega de coisa se realizará no processo de conhecimento (art. 475-A, caput c/c art. 461-A) valendo-se do meio executório do desapossamento”. (Araken de Assis, Cumprimento de Sentença, pág. 232)

A solução é dada pelo CPC/2015, art. 498.

Isso não significa que em ação por quantia certa, em que alguém arremata ou adjudica imóvel, seja possível em despacho determinar que se proceda à imissão de posse.O que se tem, na hipótese de cumprimento da execução das prestações de dar coisa certa, é vínculo obrigacional inserido na esfera patrimonial do obrigado, o que atrai a regra do art. 498 do CPC (art. 461-A do CPC/1973) Nesse passo o entendimento de Araken de Assis, In Cumprimento de Sentença, pág. 232.

Quando se cuida de execução de prestação pecuniária, aquele que arremata ou adjudica dispõe apenas de um titulo obrigacional, mas não é proprietário, porque para tanto indispensável prévio registro da carta (de arrematação ou adjudicação) no registro de imóveis. Não há previsão legal de expedição de mandado de imissão de posse.

Não há, no ordenamento jurídico pátrio, pretensão alguma que sustente entendimento contrário, porque a expedição de carta de adjudicação não gera pretensão à imissão na posse, pela ausência absoluta de texto legal nesse sentido. Pretensão é direito de exigir a prestação, ou, com mais propriedade, o poder de exigir a prestação, como ensina ANDRÉ FONTES, In A Pretensão como Situação Jurídica Subjetiva. pág. 41, 2002.

E o fundamento único da pretensão é a lei ou os costumes, como ensina o doutrinador na obra cit, pág. 135. E qual a norma jurídica que apoia o deferimento de imissão de posse contra terceiro, sem registro do título?

A carta de adjudicação não gera efeito algum senão de caráter obrigacional, não sendo oponível a terceiro, nem gerando pretensão alguma que autorize o desapossamento. A propósito o entendimento do Egrégio STJ:

“Conflito positivo de competência. Justiça do Trabalho e Justiça Estadual. Duas Arrematações sobre um único imóvel. Registro.

“1- Carta de arrematação é o título de domínio, mas este só se transfere com o registro daquela no Cartório de Registro de Imóveis.” (Conflito de competência n. 105.386, 2ª.Seção do STJ, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 08/09/2010)

No voto condutor está dito que:

“7- Portanto, a questão deve ser solucionada considerando-se a data de registro das Cartas de Arrematação expedidas. A carta é título de domínio, mas este, quando se trata de imóveis, só se opera com transcrição daquela no registro imobiliário.“

O Exmo. Sr. Min. Relator observa, ainda, apoiado nos argumentados apresentados pelo Juízo Cível:

“Não há óbices a que ocorram duas praças do mesmo bem imóvel em processos de execução distintos. Entretanto, deve prevalecer a carta de arrematação que primeiro foi registrada. É esta a lição de Araken de Assis: “Na arrematação, o acordo de transmissão se passa no plano processual, enquanto o direito de transmissão se passa no plano processual, enquanto o direito registral regula a aquisição do domínio, mediante o registro ou a tradição. Realmente o CPC disciplina a expedição de carta de arrematação, que é o título formal, mas a aquisição obedece em tudo a lei material: quanto às coisas móveis, ocorre mediante a tradição (art. 1.267, caput, do CC-02), consumada na entrega do bem ao arrematante pelo depositário, relativamente às coisas móveis, o domínio se adquire pela transcrição (rectius: registro) (art. 1245, caput, do CC-02)

“Assim também é a jurisprudência do 1º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo citada na obra de Nelson Nery Júnior: “Duas praças sobre o mesmo bem, em processos distintos de execução. Prevalência da carta de adjudicação registrada em primeiro lugar. Princípio da prioridade. Recurso provido, para julgar a ação anulatória procedente. (Ap. 472797-5 – Perdeneiras, Rel. Juiz Ademir Benedito, j. 24/03/1993, v.u., DJE-SP 14/04/1993, p. 57, BolAASP 1798/236)”.

Além disso, no embate de títulos regularmente registrados, prevalece o mais antigo. 

A imissão na posse decorre do ius possidendi, que é transmitido pelo constituto possessório; e o título deve estar registrado para que nasça a pretensão à imissão na posse, que é de natureza real, e não obrigacional. A transferência entre vivos da propriedade opera mediante registro do título translativo no Registro Imobiliário. (art. 1.245 do CC)

Comentado o dispositivo legal citado tive a oportunidade de dizer que “no direito pátrio o fato de se ter o título (escritura de compra e venda, por exemplo) não é o bastante para haver a titularidade do imóvel. Somente após o registro do título no registro imobiliário é que se dá a aquisição, transferindo-se o imóvel”. (Marco Aurelio S. Viana, Comentários ao Novo Código Civil, 4ª. ed., vol XVI, pág. 184)

Assim estava no Código de 1916, art. 530, I, bem como no art. 531.

ARNALDO RIZZARDO ensina que se cuida de ação dominial, e se reporta a precedente do Egrégio TJSC, em que ficou certo que a ação é petitória, a ser movida pelo detentor do domínio. (RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas, p. 155)

O jurista observa, ainda, que há “um campo comum para a reivindicatória e a imissão de posse, como no caso de derivar o direito à posse de um título dominial registrado, v.g., arrematação ou adjudicação.” (Ob. cit. p. 154)

Já me manifestei nesse sentido, dizendo que a ação de imissão de posse não é ação possessória, na sistemática do direito vigente, “porque os interditos possessórios visam a posse despida de título que a referende. Envolve o denominado ius possessionis, que é posse sem título de direito que a justifique, em que a posse funciona como condição de fato para a utilização econômica do bem (Adriano de Azevedo Andrade, Pesquisa em torno do conceito de posse cit., pág. 29), sendo a ase para as ações possessórias. (…) Já o proprietário é quem exerce o ius possidendi por ser titular de uma situação jurídica na qual se funda a posse (Marco Aurelio S. Viana, Curso – Direito das Coisas, pág. 15; Arnaldo Rizzardo, Direito das coisas cit. p. 51). Aqui a posse decorre do exercício do direito de propriedade”.( Marco Aurelio S. Viana, Comentários ao Novo Código Civil, 4ª. ed.,v. XVI, pág. 94)

O que merece destaque é a distinção clara entre a relação obrigacional, que se passa no plano processual, quando se opera o acordo de transmissão, e o registro, que permite se ocorra a aquisição da propriedade, nos termos do art. 1.245 do CC.

O Egrégio STJ, no REsp. 1.238.505/MG, 3ª. Turma, com relatoria da Exma. Sra. Min. Nancy Andrighi, j. em 28/05/2013, é firme nesse sentido, decidindo que a pretensão de quem objetiva a imissão na posse fundamenta-se no direito de propriedade. Visa à satisfação daquele que, sem nunca ter exercido a posse, espera obtê-la judicialmente. Logo, na medida em que a transferência da propriedade imobiliária ocorre com o registro do título aquisitivo – no particular, a carta de arrematação – perante o Registro de Imóveis, somente depois da prática desse ato é que o arrematante estará capacitado a exigir a sua imissão na posse do bem.

Nesse sentido precedente do TJRS, agravo de instrumento n. 70005303457, Rel. Des. Eugênio Facchini Neto, j. 23/04/2013.

No regime jurídico pátrio a aquisição da propriedade não opera pela só existência de título obrigacional. Muito ao contrário, como edita o art. 1.245 do Código Civil, a transferência entre vivos da propriedade se faz mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. Não é bastante o contrato, como se dá no sistema francês, que tem efeito translativo. No direito brasileiro não é suficiente o título para haver a propriedade, que se dá “somente após o registro do título no registro imobiliário...” (Marco Aurelio S. Viana, Comentários cit.,4ª. ed., v. XVI, pág. 184)

Na ação de imissão de posse a posse é pedida pelo proprietário, ou seja, aquele que tem título registrado na serventia imobiliária, no exercício de pretensão decorrente da negativa de lhe ser entregue o imóvel. A posse é direito real e por essa razão admite-se que seja transferida, como se dá com o constituto possessório. Se há recusa em entregar a posse, o “dominus” ajuíza ação de imissão de posse, que tem por fundamento o ius possidendi, que lhe foi transferido pelo constituto possessório. Ocorre que o arrematante ou adjudicante não recebem posse com a carta de arrematação ou a de adjudicação. O que o Estado-Juiz lhe assegura é o titulo obrigacional hábil a ser levado ao registro imobiliário, e somente após o registro é que pode pedir a posse.

No agravo de instrumento n. 1.0486.03.001423-8/0010014238-82.2003.8.13.0846, com relatoria do Senhor Desembargador Pedro Bernardes, está dito:

“Agravo de Instrumento – Carta de Arrematação – Ausência de Comprovação de Realização do Registro – Pedido Liminar de Imissão de Posse – Impossibilidade – Beneficiário da Gratuidade de Justiça – Carta de Arrematação – Registro no Ofício Imobiliário Respectivo – Emolumentos Cartorários – Isenção”.

 “Em nosso sistema jurídico, a transferência de domínio de bem imóvel se opera pelo registro no Cartório de Registro de Imóveis. Por isso, em se tratando de imóvel, além da carta de arrematação – título de domínio formal -, é necessário que se proceda à transcrição no registro imobiliário. Somente dessa forma se transfere o domínio” (j. 10/10/2006, DJ de 11/11/2006)

A meu ver não se pode expedir mandado de imissão de posse em favor de arrematante ou adjudicante nos autos de execução ou cumprimento de sentença, porque o que se obtém, nas duas situações citadas, é apenas um título obrigacional. Basta notar que se ocorrem duas praças do mesmo imóvel em processos de execução distintos, prevalece a carta que tiver sido registrada primeiro. É o entendimento do STJ em precedente já transcrito anteriormente.


Referências bibliográficas.

ASSIS, Araken de. Cumprimento de Sentença. Rio: Forense, 2006.

FONTES, André. A Pretensão Como Situação Jurídica Subjetiva. Belo Horizonte: Del Rey,2002.

JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. 2ª. ed., Rio: Forense, v. II

MARMIT, Arnaldo. A Penhora. 2ª. Ed., Rio: Aide.

NUNES, Elpídio Donizetti. Curso Didático de Direito Processual Civil. Belo Horizonte.: Del Rey, 1998.

RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Coisas. 2ª. ed., Rio, Forense.

SANTOS, Ernane Fidelis dos. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, v. 3, 1987.

VIANA, Marco Aurelio S. Comentários ao Novo Código Civil. 4ª. ed., Rio: Forense, v. XVI, coordenador Sálvio de Figueiredo Teixeira.


Autor

  • Marco Aurelio S. Viana

    Doutor em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Jurista com mais de 40 livros publicados sobre todos os temas do Direito Civil. Realiza palestras e conferências em todo o Brasil. Como advogado, atua no contencioso, bem como elaborando pareceres, consultas presenciais e virtuais, prestando assessoria e consultoria em todas as áreas do Direito Civil, com mais de quatro décadas de experiência.

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