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Do discurso policial na sociedade de risco

Do discurso policial na sociedade de risco

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Observam-se as ações policiais à luz da teoria discursiva do direito, de Jonh Rawls, e do agir comunicativo, de Habermas, tendo como pano de fundo a chamada sociedade de risco, de Ulrich Beck.

Resumo: O atual estágio de desenvolvimento social, chamado de sociedade de risco pelo sociólogo alemão Ulrich Beck, tem exigido ações das instituições que possam "tornar previsíveis as consequências imprevisíveis de uma decisão" [1]. Muito se tem discutido sobre o implemento dessas ações na gestão de riscos econômicos, porém pouco se tem analisado a atuação da polícia na gestão de riscos pessoais. Nessa esteira, deve-se reconhecer que as ações policiais devem integrar um discurso racional, que seja compreendido e aceito pelos atingidos, nos termos da Teoria Discursiva do Direito, de Robert Alexy, e da que lhe fundamenta, a Teoria do Agir Comunicativo, de Habermas.

Palavras-chave: Agir Comunicativo, Discurso Racional, Sociedade de Risco, Ação Policial.


1 INTRODUÇÃO

Após a leitura da obra Controle de Legitimidade da Atividade Normativa das Agências Reguladoras, do professor e promotor de justiça sergipano, Henrique Ribeiro Cardoso, passamos a perceber a necessidade de enfocar os atos policiais sob a perspectiva das teorias de Habermas e de Robert Alexy, com o objetivo de construir um roteiro de atuação e, consequentemente, de aferição da legitimidade das ações policiais.

Nessa perspectiva, apontamos que toda e qualquer ação policial, para ser legítima, precisa ser legal, isonômica e proporcional como demonstraremos a seguir.

Evidentemente, a tríade de aferição não é peremptória, mas se constitui de requisitos mínimos, e a falta de qualquer deles torna o ato comunicativo policial numa ruidosa ofensa aos direitos dos atingidos.


2 DA SOCIEDADE DE RISCO, DO AGIR COMUNICATIVO E DO DISCURSO RACIONAL

Ulrick Beck destaca: “Nosso mundo é a sociedade de risco. É preciso compreendê-lo como uma realidade que atingiu um nível de ameaça muitíssimo superior à nossa imaginação. Esse mundo civilizatoriamente construído praticamente aboliu a indecisão. E é permanente a necessidade de tomar decisões que tocam a substância da sobrevivência.” [2]

Sobre essa sociedade de risco, o professor Henrique Ribeiro Cardoso, na obra Controle de Legitimidade da Atividade Normativa das Agências Reguladoras, adverte que “em relação a determinados valores, há continuidade, como na defesa dos direitos humanos e na democracia; relativamente a outros, ocorre uma ruptura, como por exemplo, o abandono do nacionalismo metodológico e do etnocentrismo.

Direcionando-se para seu objeto de estudo, segue o professor sergipano dizendo que “o liberalismo político – e tampouco o Estado social surgido em seu seio – atendem ao ideal de participação nas escolhas do Estado, num conclame para a promoção de um modelo de liberdades positivas, em complementação ao modelo de liberdades negativas”.

E esclarece que existem “atos de fala que realizam uma ação social – os atos regulativos, em que falar é fazer”, acrescentando que “a Teoria do Agir Comunicativo, proposta por Habermas e adotada por Alexy, preocupa-se em identificar e propor modelos de fala que produzam resultados mais justos”. Vê-se, ademais, que “o discurso jurídico é um caso especial de discurso prático” (pág. 137).

Esse apanhado, longe de esgotar o estudo das teorias enfocadas, é o que basta ao presente trabalho. Procuraremos analisar os atos policiais, em especial os atos de investigação das polícias judiciárias, nesse cenário de risco, sugerindo um roteiro de conformação desses atos com as esperadas ações sociais legítimas,

Nessa esteira, segue que a instituição policial, seja no campo preventivo, seja no campo repressivo, necessita estar pronta para tomar decisões que preservem os direitos humanos e a democracia, e, exatamente por isso, precisam ser isonômicas, não podendo descurar da proporcionalidade e da razoabilidade.

Quando a Polícia ingressa na casa de alguém, ela pratica um ato comunicativo que permite questionar: esse ingresso se deu nas hipóteses legalmente previstas? O tratamento dado aos moradores e presentes levou em conta suas diferenças pessoais – idade, condição física e eventuais atos de violência contrapostos? O agir comunicativo da policial atendeu à proporcionalidade, ou foi mais invasivo do que necessário, apreendeu mais objetos do que poderia, constrangeu mais do que o necessário?

As respostas a estas questões permitirão outros atos comunicativos das demais instituições, como, por exemplo, o Ministério Público, que poderá se utilizar do material arrecadado como prova em ação penal, ou o próprio Poder Judiciário, que poderá dizer se o fato colocado a seu conhecimento se encontra suficientemente evidenciado pelos elementos eventualmente encontrados no domicílio do atingido.


3 da legalidade

Diz o art. 5º, II, da Constituição Federal que “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei”. Já no inciso XXXIV, alínea a, do mesmo rol de direitos fundamentais, assegura-se ao particular o direito de petição contra ilegalidade ou abuso de poder.

Vale ressaltar ainda que os chamados remédios constitucionais – habeas corpus, habeas data e o mandado de segurança – foram postos à disposição do particular exatamente para sanar eventuais ilegalidades de autoridades.

A própria administração pública, conforme art. 37 da CF, deve se orientar pelo princípio da legalidade, e o Código Penal estabelecer, no dispositivo inaugural, que não há crime sem lei que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

Pois bem.

É indiscutível que o parâmetro de atuação de qualquer autoridade pública deve ser a lei. Não apenas a lei, no seu sentido estrito, mas a legislação, no seu conjunto.

Com mais razão, a atuação policial deve se revestir de legalidade, porque quase sempre redunda em limitação de direitos dos particulares.

Contudo, cabe pontuar que o legislador não tem como prever todos os fatos, razão porque não se pode afastar do processo de aplicação da lei uma certa dose interpretação. As expressões “logo após”(art. 302, III, do CPP) e “logo depois”(art. 302, IV, do CPP), por exemplo, exigem essa interpretação. Mal comparando com a Medicina, ninguém imagina que um remédio, receitado para “logo depois” do almoço, deva ser ingerido após o jantar ou após o café da manhã do dia seguinte.

No entanto, não são raras as vezes em que policiais, após várias horas da ocorrência do crime, às vezes até por acaso, recebem uma informação que aponta para a autoria do delito, e então limitam a liberdade num evidente ato ilegal, que termina por reforçar o discurso falaciosos de que “a Polícia prende, a Justiça solta”.

Por outro lado, também não é raro vermos o outro lado da moeda: situações estritamente legais sendo rechaçadas sob a pecha da ilegalidade, num apego equivocado ao garantismo penal.

É que a doutrina de Ferrajoli tem uma dupla intenção: ao mesmo tempo em que visa à garantia dos direitos dos acusados em geral, também busca assegurar proteção efetiva aos bens jurídicos tutelados penalmente.

Exacerbar as garantias, para além do que elas realmente são, é, em essência, afastar o próprio garantismo, pois redunda em desestímulo policial, já que os agentes recebem um ato comunicativo estatal, no sentido de que a proteção do bem jurídico é irrelevante, e que a garantia processual do atingido é absoluta, quando em verdade a única violação de direito inaceitável deve ser a tortura.

Os riscos da proteção do bem jurídico passam do Estado para o policial, trazendo a este um comportamento hipertrofiado, enquanto o Estado segue sem investimentos no aperfeiçoamento estrutural e pessoa de seus braços armados.

Se a discussão aqui apontada transcendesse para a análise do direito natural, reconheceríamos que o jusnaturalismo racionalista acertou em estabelecer o ser humano como referencial de direitos. A perspectiva neokantiana, de que homem é o que não tem preço, mas valor, impõe aceitar que o fato legal não passa de um fato eleito pela sociedade para receber determinada disciplina do direito.

A legalidade, portanto, é o troféu que a classe dominante ganha por ter conseguido subjugar a classe dominada. A sociedade brasileira, por exemplo, tipicamente capitalista, abraçou o utilitarismo de Bentham, e termina por construir leis que não são a melhor expressão do pensamento kantiano, e o preço das coisas supera o valor das pessoas.

Basta apontar que, mesmo a lesão corporal grave, rende pena mais branda – 1 a 5 anos de reclusão – do que o furto de algumas galinhas de granja – art. 155, § 6º, do Código Penal, que rende pena de reclusão de 2 a 5 anos.

Outro exemplo é o casamento. A instituição é inegavelmente um ponto de atenção do brasileiro, tanto que discussões sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo efervesce na sociedade até hoje. Ainda assim, o legislador aceita que um juiz estrangeiro desfaça um casamento de nacionais brasileiros, mas não aceita que o mesmo juiz lhes partilhe os bens (art. 23, III, NCPC).

Outro aspecto a ser considerado é que o que chamamos de legalidade da ilegalidade. A ordem constitucional reconhece uma legalidade diferenciada nos Estados de Defesa e de Sítio, arts. 136 e 137 da Constituição Federal. Naquelas hipóteses, o constituinte permite a prática de ações que jamais seriam aceitas num quadro de normalidade institucional. O discurso racional passa a ter outro alinhamento e os atos comunicativos ilegais passam a ser legalizados.

Como se percebe, a legalidade não determina os fatos, os fatos é que a determinam.

Ocorre que hoje o Brasil passa por um quadro de insegurança caótico, tendo como ponto nevrálgico o município do Rio de Janeiro – RJ, onde parte do território do país não é mais dominado pela soberania estatal. A polícia não entra, a menos que implemente uma operação de guerra, e os confrontos experimentados fizeram o Governador do Estado, Wilson Witzel, a autorizar atiradores de elite – os chamados snipers – a disparar contra portadores ostensivos de fuzil.

O art. 25 do Código Penal foi usado para justificar o ato comunicativo governamental, e, a nosso ver, com muita razão. Embora, não tenham sido poucos os gritos contrários, no sentido de que a expressão “moderadamente”, entabulada como requisito da legítima defesa, afastaria a legitimidade do tiro certeiro, entendemos o contrário.

A moderação exigida pela lei não pode ser confundida com inércia letal, nem tampouco com a exigência de características sobre-humanas dos policiais, que lhes permita a condição de se esquivar dos tiros de fuzis que destroçam um alvo a quilômetros, como nas metáforas cinematográficas.

É preciso pontuar que os policiais poderão se utilizar de ferramentas tecnológicas que permitam o registro da ação, já que muito dificilmente o local do evento será preservado, e o fuzil do agressor potencial poderá ser facilmente substituído por algum objeto que descredite o ato comunicativo do atirador policial, muito embora tenha agido na legítima defesa de terceiros, e dele próprio, pois de outro modo não poderá policiar a área dominada pelo tráfico ilícito de entorpecentes.

Como se percebe, a legalidade traz em si a possibilidade de um discurso socialmente incoerente, em que o policial seja instado a praticar o ato comunicativo de defender a população, mas tenha que assistir inerte a traficantes transitando com armas de fogo, de alto poder de destruição, implementando mais riscos ao corpo social.

Embora a minimização dos riscos impostos por pessoas antissociais deve ser combatida, sob pena de se chancelar um quadro legalidade incoerente, em que a soberania do Estado é aviltada, ainda assim, a legalidade é o vetor que permite certa previsibilidade dos atos comunicativos.

Ademais, a legalidade reduz a incidência de posicionamentos pessoais, por inspirar a adoção de protocolos de ação, protocolos esse que legitimarão o agir da Polícia e darão a segurança necessária a que o Policial possa atuar sem o temor de ter que aferir, em átimos de segundo, a (i)legalidade do seu ato, análise essa que as outras instituições arrastam por anos, num tormentoso processo kafkaniano, mas de fim certo: a punição do policial.

Cabe ainda pontuar que nosso sistema penal é calcado no princípio da intervenção mínima do direito penal, e não poderia ser diferente. No entanto, esse princípio, não raras vezes, é invocado de forma não isonômica, já que a busca pela diminuição dos riscos sociais é preterida, e a política criminal acaba sendo invocada apenas para tolerar produtores dos riscos, na mesma esteira em que as punições pelos atos comunicativos dos policiais(contedores desses produtores de riscos) são hiperbolizadas.


4 DA ISONOMIA

Na atual quadra do pensamento jurídico, parece-nos assente que o tratamento dado às pessoas deve levar em conta critérios objetivos, capazes de permitir que os iguais sejam tratados igualmente e os desiguais, desigualmente, na medida de suas desigualdades.

Nessa senda, é muito comum se ouvir questionamentos sobre a forma como a Polícia aborda o particular, a depender do ambiente geográfico em que se dá a ação.

As insinuações são sempre de que a Polícia obtempera seus atos apenas pelo aspecto econômico que impera no ambiente geográfico. Aos mais ricos, um tratamento mais cordial; aos mais pobres, atos comunicativos que desrespeitam direitos fundamentais.

No entanto, o que não se aponta é que há pessoas que usam flores, soltam pombos ou abraçam lagoas para protestar, enquanto outras empunham fuzis e metralhadoras de alto poder de destruição para hegemonizar o seu poder paralelo. Definitivamente, umas não podem ter o mesmo tratamento das outras, não se pode deixar de considerar a diferença de suas ações, para aceitar que devem ser diferentes as reações.

O que se deve reconhecer é que realmente há ambientes hostis à atividade policial, e essa hostilidade não pode receber outro ato comunicativo que não seja o do uso progressivo da força. É claro que a força policial deve se cercar de todos os cuidados a evitar que terceiros não sejam atingidos, mas também é necessário aceitar que a intervenção pontual é a única capaz de minimizar os riscos a longo prazo.

Uma crítica comum à Polícia também é o que se chama de genocídio da população negra do Brasil. Alegam que há rotina de execuções humanas, cujos alvos são jovens do sexo masculino, de raça preta e que vivam em favelas. O curioso é que a maioria das forças policiais é formada exatamente por pretos, pardos e originários das favelas. O baixo salário, as péssimas condições de trabalho, a antipatia social, têm afastado os brancos da elite brasileira, que preferem profissões que mantenham um mínimo de dignidade.

Tomando-se ainda o Rio de Janeiro como exemplo, fica nítido que há dois “exércitos” em confronto há décadas: de um lado, os armados pelo tráfico; do outro, os armados pelo Estado. Porém, em ambos os lados, são exatamente os mesmos homens pretos e favelados.

Enquanto esses “exércitos” guerreiam, o Estado seguia inerte, não praticava atos comunicativos de inclusão social, não gerenciava a gestão de riscos, nem planejava e executava uma política séria de diminuição desses riscos. Simplesmente, limitava-se a punir o sobrevivente fardado e abrandava a punição do sobrevivente descamisado.

Embora não se possa negar que haja uma “eleição” de pessoas para a mira das armas policiais, a própria polícia não “vota” nessa “eleição”. Ou seja, os fatores de exclusão social e de potencialização dos riscos sociais são anteriores a qualquer intervenção policial.

Inúmeros atos comunicativos anteriores são praticados pelo próprio Estado: atos de exclusão do sistema educacional; atos de subvalorização da moral e da justiça equitativa; atos que redundam em concentração de renda, ocasionando miseráveis à margem do espectro mínimo existencial que deve circundar a dignidade da pessoa humana. Evidentemente, muitos desses atos comunicativos são produtos da corrupção que paira no sistema do alto escalão político.

Enquanto se propaga a falácia de que a Polícia tem ingerência nessa profusão de excluídos, eles seguem submetidos ao ápice todos os riscos: a submissão a um poder paralelo, não estatal, completamente arbitrário e incrivelmente violento.

Por outro lado, a polícia ainda precisa reconhecer que pratica muitos atos comunicativos não isonômicos, vez que ainda não tem preparo suficiente para lidar com uma parcela da sociedade que, a despeito de também serem excluídos, não produzem risco nenhum. São os vulnerabilizados.

Não são poucos os tratamentos revitimizadores na órbita policial, em que seres humanos vilipendiados nos seus direitos fundamentais batem às portas de delegacias madrugada a dentro, e, em vez de receberem atos protetivos, acolhedores, recebem um tratamento degradante, questionador da orientação sexual, diferenciador em razão da cor da pele ou da origem, ou da situação econômica.

Verifica-se, pois, que os atos comunicativos policiais realmente devem atentar à isonomia, relegando o uso progressivo da força a quem se pauta pela violência, porém, sem descuidar dos atos protetivos que se deve dar aos vulnerabilizados não produtores de riscos sociais.


5 DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE

Como dito acima, o uso progressivo da força não pode ser depurado da ação comunicativa policial, nas hipóteses em que o atingido se porta violentamente.

Aqui vamos chamar de uso progressivo da força horizontal aquele que vai se intensificando conforme o desenrolar do atendimento: a ordem verbal reiterada e não atendida deve ser seguida da contenção física, com uso de algemas, inclusive, se necessário.

Já ao uso da força de forma vertical, assim entendemos, é o que deve sempre ocorrer de forma pontual, incisiva, com superioridade razoável de força. Não é aceitável que uma equipe policial munida de revólveres obsoletos receba a missão de prender uma violenta quadrilha de assaltantes de banco. No caso do uso progressivo vertical, a Polícia deve guardar uma razoabilidade ante o perigo iminente, preservando sua condição de superioridade, sempre.

Por outro lado, o bem jurídico maior sempre deve ser a vida humana, sendo injusto subvalorizar da vida do policial, como o fazem os defensores do horrendo discurso de que o policial sempre deve esperar o primeiro ataque, e que não possa adotar todas as providências necessárias a preservar sua vida, com antecipação, inclusive.

O histórico de violência do atingido pelo ato policial não pode ser desconsiderado e, naquela oportunidade, autoriza presumir que a produção violenta do risco social será reiterada. Afinal, estivesse o atingido dissuadido dessa ideia, teria ele próprio, com antecipação, ofertado sua rendição e se submetido às leis que imperam no país.

É fato que o tratamento dispensado a criminosos não violentos não pode encobrir atos comunicativos abusivos, mas é questionável que a falta de um protocolo de ações, como, por exemplo, no caso de uso de algemas, acaba criando situações que terminam desaguando em punições injustas aos policiais, que se veem obrigados a uma exposição irrazoável ao risco de reação violenta do atingido.

Inegavelmente, há uma ocorrência mais intensa de crimes não violentos entre os integrantes dos estratos mais abastados da sociedade. No entanto, aceitar que o homem que subtrai a merenda escolar de milhares de crianças não receba o mesmo tratamento de quem empunha uma arma para roubar um celular é apenas eufemizar a gritante desproporcionalidade entre os atos comunicativos e o risco criado.


6 DO CONTROLE DO DISCURSO POLICIAL

O professor Rafael de Carvalho Missiunas [3] leciona que “a Constituição Federal instituiu o Controle Externo da Atividade Policial, no inciso VII, do seu artigo 129, remetendo à legislação complementar da União e dos Estados, de iniciativa facultada aos Procuradores-Gerais de cada Ministério Público, isto é, as leis orgânicas dos Ministérios Públicos da União e dos Estados da Federação, regulamentar a forma de efetivação e realização do referido controle externo.” E acrescenta que “a legislação brasileira não definiu exatamente o conceito do controle externo da atividade policial, então, recorreremos à doutrina para tentar conceituá-lo.” Aduz, em seguida, ensinamento do professor Hugo Nigro Mazzilli (2003, p. 64) para quem esse controle externo “é um sistema de vigilância e verificação administrativa, teleologicamente dirigido à melhor coleta de elementos de convicção que se destinam a formar a opinio delicti do Promotor de Justiça, fim último do próprio inquérito policial”.

Já Herick Santos Santana [4], expõe que “pode-se definir controle na administração pública como sendo a faculdade que um determinado ente estatal tem de fiscalizar os seus próprios atos de gestão ou de outro ente, podendo se apresentar com sentido negativo ou positivo. Por sentido negativo entende-se o controle como sendo sinônimo de fiscalização, ou seja, quando a ação incide sobre pessoas. Por sentido positivo entende-se o controle capaz de realizar as atividades de gestão conforme o prévio planejamento, com vistas ao alcance dos objetivos.”

Não se busca aqui traçar uma crítica ao instituto do controle externo, mas apenas obtemperar que o sentido negativo desse controle hoje tem sido tão privilegiado que termina por se confundir com uma ação meramente correicional.

Dos atos comunicativos de investigação possíveis hoje, de um total de seis – oitiva de pessoas, diligências de campo, perícias, busca e apreensão, interceptação telefônica e prisão temporária – as três principais já são integralmente judicializadas, e são exatamente as medidas mais objetivamente eficazes para apontar a autoria de um delito.

Em outras palavras, não há mais investigação puramente policial no Brasil. Toda investigação tem o protagonismo direto do Ministério Público e do próprio Poder Judiciário. Mesmo assim, os baixos índices de resolução são atribuídos tão somente às Polícias.

Ocorrendo um excesso policial, rapidamente se pune o praticante, e não poderia ser diferente, mas não se tratam com a mesma rapidez as deficiências das instituições policiais, que, na grande maioria, ainda se materializam em “delegacias esquizofrênicas” [5].

O modelo policial – ciclo completo ou inquérito policial – é discutido com habitualidade pelos sociólogos, mas medidas efetivas, como investimentos em tecnologia, aprimoramento científico, gestão austera de recursos são deixadas a segundo plano.

A solução de um homicídio jamais estará condicionada ao modelo policial adotado, e será esclarecido tanto no ciclo completo quanto pelo inquérito policial, desde que implementadas ações efetivamente voltadas à pesquisa científica que é a investigação policial.

É necessário aceitar que a escolha do modelo de investigação no país hoje perpassa mais por brigas internas do que por uma real preocupação com a verdadeira eficiência dos atos comunicativos da Polícia. Enquanto isso, as instituições seguem descontroladas, e as eventuais punições dos que abusam desse descontrole são apresentados como símbolos equivocados de um aparente controle, quando em verdade são a própria prova do descontrole.


7. DA CONCLUSÃO

O estudo ora apresentado, evidentemente, não é exaustivo, nem pretende sê-lo. Pretende apenas ser uma pequena contribuição à escassa produção de argumentos no seio das polícias.

Quase sempre as ações policiais são questionadas apenas sob os aspectos jurídicos, diante de premissas que fundamentam o processo, não a inquisição. Aspectos filosóficos e sociológicos dos atos policiais são preteridos, o que termina pro esvaziar discursos jurídicos que legitimem o agir policial.

Dessa forma, reconhece-se que é necessário uma revisão do agir policial, e se começa a buscar critérios jurídicos de aferição, alicerçados em doutrinas sociológicas, como legitimação dos atos comunicativos das polícias.

A legalidade, a isonomia e a proporcionalidade dos atos devem estar nas lentes dos que controlam as instituições policiais, devendo-se exigir desses próprios controladores atos que permitam às polícias agir sem as amarras da falta de estrutura e preparo humano, sob pena de a própria existência da instituição ser ilegal, não isonômica e redundar em atos não proporcionais aos fatos.


BIBLIOGRAFIA

1. CARDOSO, Henrique Ribeiro - Controle da Legitimidade da Atividade Normativa Das Agências Reguladoras, Lumen Juris, 2017.

2. ARAGÃO, L. M. C. Razão comunicativa e teoria social crítica em Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.

3. ARAÚJO, I. L. "Habermas: o conceito de agir comunicativo". In: PAZ, F. (Org.). Utopia e modernidade. Curitiba: Editora da UFPR, 1994. p. 201-217.

4. CORREIA, Carlos Pinto. Uma Teoria da Justiça. Tradução. Lisboa: Editora Presença, 1993.

5. PISETTA, Almiro e ESTEVES, Lenita M.R. Uma Teoria da Justiça. Tradução. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000 (4ª ed.)


Notas

1 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrick Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed Unesp, 2003, p. 115.

2 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrick Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed Unesp, 2003, p. 206.

3 http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5964, acesso em 01/04/2019, às 19h37min.

4 https://jus.com.br/artigos/26798/o-controle-externo-da-administracao-publica-no-brasil, acesso em 01/04/2019, às 19h45min.

5 Típicos ambientes propulsores de delírios sociais, em que pessoas são levadas a acreditar que para garantir direitos é preciso ofender direitos.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Francisco Gerlanio Gomes dos. Do discurso policial na sociedade de risco. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5826, 14 jun. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73050. Acesso em: 18 abr. 2024.