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Os riscos de se aplicar o art. 486 da CLT.

Análise a partir das excludentes de responsabilidade civil da administração pública

Os riscos de se aplicar o art. 486 da CLT. Análise a partir das excludentes de responsabilidade civil da administração pública

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Quem espera que o governo pague as indenizações trabalhistas nos casos de demissão durante a pandemia precisa estar ciente dos riscos que corre.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS 

A pandemia causada pelo covid-19 e a consequente quarentena, que vem sendo determinada pelos Governos Estaduais e Municipais, trazem uma série de dúvidas e preocupações. Dentre elas pode-se destacar a preocupação dos empregadores com o pagamento do salário dos seus empregados e a dúvida sobre a aplicação do art. 486, da CLT fazendo com que o Governo seja responsabilizado por arcar com verbas trabalhistas.

Esse debate foi fomentado ainda mais após entrevista concedida pelo Presidente da República. Veja-se, por exemplo, notícia veiculada pelo jornal O Globo[1] cuja manchete era: “Bolsonaro defende que governadores e prefeitos paguem encargos trabalhistas por dias parados”.  A partir daí o alvoroço foi imediato, sendo que diversos empregadores Brasil afora passaram a nutrir esperanças de que poderiam simplesmente esperar que o Governo arcasse com os encargos trabalhistas dos empregados pelos dias parados. O dispositivo celetista ao qual se fez referência assim dispõe:

Art. 486 - No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.

Entretanto, é preciso ter cuidado.

Logo de início, é preciso estabelecer uma premissa: a pandemia e a consequente quarentena são situações atípicas e bastante novas; logo, não se tem respostas concretas sobre o que vai acontecer daqui pra frente. Isso quer dizer que inclusive as decisões judiciais, no futuro, deverão divergir: deveremos observar o Judiciário dando interpretações diversas para questões semelhantes. Se isso já ocorre atualmente, imagine a proporção que tomará agora, em decorrência desse momento sem precedentes na história do país.

O que se quer dizer é que alguns empregadores irão, de fato, rescindir o contrato de trabalho dos empregados seguindo o entendimento proposto pelo art. 486, CLT, esperando que a Administração Publica seja responsabilizada pelo pagamento da indenização, ao trabalhador, nele prevista; certamente alguns julgados, Brasil afora, considerarão a medida correta e determinarão que o Governo arque com verbas trabalhistas.

Todavia, é preciso ter ciência, desde já, de que aplicar tal artigo também traz riscos uma vez que o pagamento das verbas trabalhistas pelo Governo não é automático e podem existir situações que venham a excluir essa responsabilidade constante no dispositivo celetista. Ou, ainda, pode-se estabelecer sólida fundamentação teórica que culminaria na impossibilidade de a Administração Pública ser condenada ao pagamento da indenização constante no art. 486, CLT, porquanto agiu dentro de suas prerrogativas. Enfim, diversas hipóteses podem ser aventadas, todas elas resultando no mesmo alerta: o risco de se aplicar o dispositivo celetista.

 O objetivo deste artigo não é o de concluir pela aplicação ou não do art. 486, CLT, em meio à pandemia; longe disso, o intuito é tão somente demonstrar que na doutrina e na jurisprudência há exemplos que comprovam a existência dos riscos já mencionados, trazendo um alerta aos que pretender fazer uso de tal medida.

É preciso entender, portanto, que assim como existe a possibilidade de o Governo ser responsabilizado pelo pagamento de algumas verbas trabalhistas, existe também uma grande chance de o Governo não ser responsabilizado e, assim, o empregador ter de arcar com todos os (ou ainda com parte dos) valores.

Desta feita, vamos ao exame do art. 486, da CLT e da responsabilidade da Administração Pública.


2. PAGAMENTO PELOS DIAS PARADOS OU NECESSIDADE DE RESCISÃO CONTRATUAL? 

Antes de se debruçar sobre o exame da possibilidade de responsabilização da Administração Pública pelo pagamento da indenização prevista no art. 486, da CLT, é preciso fazer um esclarecimento no que diz respeito à manchete do veículo de comunicação transcrita no tópico anterior.

Na notícia veiculada pelo jornal já mencionado consta que o Presidente da República teria defendido que Governadores e Prefeitos deveriam pagar os encargos trabalhistas pelos dias parados justamente fazendo referência a tal artigo celetista.

Todavia, deve-se ressaltar que o art. 486, da CLT, está inserido em um capítulo chamado DA RESCISÃO, sendo que tal capítulo traz todos os dispositivos aplicáveis nas hipóteses de rescisão do contrato de trabalho.

Ou seja, em uma primeira análise, percebe-se que a Administração Pública não seria responsabilizada pelo pagamento dos encargos trabalhistas pelos dias parados no caso de os empregados continuarem trabalhando - assim, não adiantaria tentar fazer com que Governadores e Prefeitos pagassem os salários dos trabalhadores quando eles retornassem ao trabalho.

A princípio, seria necessário que o contrato de trabalho fosse extinto e deveria haver a comprovação de que tal extinção decorreu diretamente do ato praticado pela Administração Pública. É certo que há quem pense o contrário; no entanto o objetivo deste artigo é apenas demonstrar os riscos de se aplicar tal artigo, alertando para a existência de diferentes interpretações sobre o mesmo - não tendo, portanto, o objetivo de comprovar que um ou outro posicionamento seja o correto.  

Por fim, vale ainda destacar que até mesmo o valor da indenização referida no artigo traz discussões[2]. Isso porque há quem entenda que o Estado deveria pagar todas as parcelas da rescisão; outros entendem que a indenização corresponderia apenas à multa de 40% do FGTS e outros, ainda, entendem que seria devido apenas metade disso (20% do FGTS) e a outra metade deveria ser arcada pelo empregador.

Ou seja, há insegurança inclusive no que diz respeito ao valor indenizatório, outra questão a ser considerada uma vez que o empregador pode, mesmo que o ente público seja responsabilizado pelo pagamento de parte da indenização, não se desobrigar de todo o pagamento, mais ainda ter de arcar com boa parte das verbas. 


3. DA RESPONSABILIDADE CIVIL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PELOS DANOS LÍCITOS INDENIZÁVEIS 

Logo de início, deve-se trazer à baila o que preceitua o art. 37 da Constituição Federal de 1988:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

[...]

§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Verifica-se, da leitura do dispositivo transcrito acima, que a Carta Magna brasileira consolidou que a responsabilidade civil da Administração Pública é objetiva, ou seja, prescinde da análise de culpa, bastando apenas a existência do ato praticado por agente público, no exercício da função, e do dano por ele causado.

Além disso, a maior parte da doutrina entende que tal responsabilidade objetiva deve ser encarada sob o prisma da Teoria do Risco Administrativo. Segundo Cavalieri Filho[3], para que o Estado responda pelos danos causados pelos seus agentes é preciso que eles tenham atuado nessa qualidade, ou seja, tenham praticado o dano em decorrência de sua atividade administrativa.

Importa dizer, ainda, que como Teoria do Risco que é, a licitude ou ilicitude do ato é irrelevante[4]. Desta feita, na Teoria do Risco Administrativo, inclusive atos lícitos podem ensejar o dever de indenizar por parte da Administração Pública. E é neste ponto que se centra o debate.

Isso porque diversos Estados e Municípios publicaram Decretos que determinaram que a população ficasse de quarentena, determinando ainda que diversas atividades empresariais não pudessem ser executadas com vistas a reduzir aglomerações e conter a disseminação do coronavírus.

Destaque-se que a Constituição Federal de 1988 (CF/88) preceitua, em seu art. 196, que a “saúde é direito de todos e DEVER DO ESTADO, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença [...]”. Ademais, deve-se ressaltar ainda que a Organização Mundial de Saúde (OMS), onde atuam alguns dos maiores especialistas em saúde pública de todo o mundo, recomendou o isolamento e a quarentena para o combate ao coronavírus.

Ou seja, se os empregadores sofreram danos ao ter a sua atividade restrita, não parece que tais danos tenham sido provocados de forma ilícita pela Administração Pública, uma vez que publicou Decreto que era de sua competência para cumprir um dever imposto pela Carta Primaveril. O fechamento das portas (ainda que temporariamente) de diversos empregadores, impossibilitando a obtenção de renda, fez com que tais empregadores sofressem o que pode ser caracterizado como dano jurídico lícito ou de dano lícito indenizável.  

Daí se extrai o primeiro ponto de debate: é possível que a Administração Pública seja responsabilizada pela indenização constante no art. 486, da CLT, por conta da prática do chamado dano lícito indenizável?

Em sua obra, Carvalho Filho[5] reconhece que moderna doutrina tem reconhecido que, em situações excepcionais, a Administração Pública pode ser responsabilizada civilmente pela ocorrência de danos lícitos decorrentes de seus atos. Argumenta, ainda, que os doutrinadores que assim pensam estabelecem que o dano, para ser indenizável, deveria ser (a) economicamente mensurável, (b) especial e (c) anormal.

Ainda sob esse mesmo enfoque, Gilmar Mendes[6] destaca que o dever de reparar o dano não se define pela licitude ou ilicitude do ato, mas sim pela qualificação da lesão sofrida. Nestes casos, o problema da responsabilidade civil não se analisa no lado ativo, mas sim no lado passivo: para ele, o que importa é que o dano seja ilegítimo, e não que a conduta causadora o seja. Desta feita, não bastaria a mera deterioração patrimonial sofrida por alguém, mas deveriam estar presentes quatro características: “1) o dano deve incidir sobre um direito; 2) o dano tem de ser certo, real; 3) tem de ser um dano especial; e, por último, 4) há de ocorrer um dano anormal”.

Que o dano é certo e real, além de economicamente mensurável, não se tem dúvidas. Que é anormal, também, tendo em vista a situação sem precedentes que o país enfrenta. Agora, quanto aos demais requisitos, há de se fazer uma análise mais profunda.

Sobre o dano dever incidir sobre um direito, Mendes[7] cita Celso Antônio Bandeira de Mello para destacar que tal dano deve ser mais do que simplesmente econômico.

Quanto ao fato de ter de ser um dano especial, leciona Mendes[8] que “é aquele que onera, de modo particular, o direito do indivíduo, pois um prejuízo genérico, disseminado pela sociedade, não pode ser acobertado pela responsabilidade objetiva do Estado”. Ademais, Carvalho Filho[9] afirma que pode ser que uma lei nova contrarie os interesses de um grupo de indivíduos, mas esse fato, por si só, não enseja a responsabilização do Estado.

Pois bem, diante de tal fundamentação teórica, tem-se que o dano deve ser mais do que simplesmente econômico, bem como que não interessa que o dano venha a atingir apenas um certo grupo de indivíduos; assim, se o ato causa um prejuízo genérico, disseminado pela sociedade, não haverá o dever de indenizar.

Embora possa haver controvérsias, os danos sofridos pelos empregadores são eminentemente econômicos, uma vez que os Decretos não os impediram, de forma definitiva, de desempenhar suas atividades, mas tão somente determinaram a proibição de sua execução durante um período de tempo, o que provavelmente ensejará prejuízos eminentemente financeiros a eles.

Além disso, não restam dúvidas de que, muito embora os Decretos tenham atingido diretamente um determinado grupo da sociedade (no caso, os empregadores), os prejuízos daí advindos foram disseminados e atingiram a sociedade como um todo, causando um inquestionável prejuízo genérico de forma que todos - e não apenas um grupo restrito de empregadores - sofrerão com tais danos.

Fica claro, portanto, que o prejuízo, como dito, é compartilhado: o que dizer dos trabalhadores autônomos que ficaram impossibilitados de obter fonte de renda? Aqueles que vendem bala no trem, pipoca na rua, água no semáforo (...), todos ficaram igualmente prejudicados após a publicação de tais Decretos uma vez que, com a restrição para circulação de pessoas e da prática de atividades, também ficaram sem fonte de renda.

E o que dizer dos trabalhadores intermitentes que passaram a não ser mais convocados para o trabalho e, por conseguinte, também não puderam mais obter renda? E dos prestadores de serviços que perderam contratos? E daqueles trabalhadores que precisavam comprar insumos para produzir seus próprios produtos para vender mas não o puderam fazer porquanto as lojas estavam fechadas? Enfim, a lista daqueles que sofreram os danos seria interminável.

Ainda no que diz respeito ao critério da especialidade, veja-se que não foi um ou outro empregador que acabou por ser prejudicado pela medida; longe disso, os Decretos atingiram todos os empregadores que desempenhavam atividades não essenciais de forma genérica e impessoal. Todos compartilharam do prejuízo. Não restam, portanto, preenchidos os requisitos para que haja a responsabilização estatal.

Novamente citando Mendes[10], é preciso haver uma singularidade para que possa ser reconhecido o dever de o Poder Público indenizar em virtude de danos ou prejuízos sob pena de, se isso não ocorrer, os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos tornarem-se instrumentos protetores de privilégios e interesses corporativos. O que demanda atenção é que quando se fala em responsabilidade civil do Estado, se está falando da responsabilidade civil de toda a sociedade pelo ato praticado por um agente público. Prossegue o doutrinador afirmando que:

“Não se revela condizente com o Estado constitucional garantidor de direitos fundamentais impor à sociedade como um todo o ônus de arcar com vultosas indenizações decorrentes de danos causados pelo Estado, sem que isso seja objeto de uma investigação mais precisa e adequada às circunstâncias em que ocorreu o suposto fato danoso.

[...]

Direito a formação do interesse público calcado em interesses universalizáveis e publicamente justificáveis. As razões e os interesses forjados em um discurso e uma prática corporativos, sempre no sentido de impor à União ônus a que não deu causa, parecem forjar interesses unilaterais, sectários, e, frequentemente, obscurantistas, o que obviamente não se pode tolerar”.

 Destarte, percebe-se que aplicar o art. 486, da CLT, e esperar que a Administração Pública seja responsabilizada pelo pagamento da indenização ali prevista traz consigo um risco bastante grande de o Estado não vir a ser responsabilizado e, por conseguinte, de o empregador restar em mora para com o empregado que teve seu contrato rescindido, tendo em vista o não pagamento das verbas rescisórias.

Nesse caso em específico, faz-se absolutamente necessário analisar os fatos que deram origem à necessidade de a Administração Pública proceder da forma como procedeu. Conforme já visto, vive-se em meio a uma pandemia causada por um inimigo invisível - inimigo esse que é comum a todos, empregados e empregadores. Os atos praticados pela Administração Pública se deram no intuito de cumprir seu dever constitucional de prover saúde à população e evitar a proliferação de doenças; assim, optou-se por resguardar o interesse público em detrimento do particular, consolidando um princípio basilar do Direito. 


4. A POSSIBILIDADE DA EXISTÊNCIA DE EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE - ANÁLISE, EM ESPECÍFICO, DO ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL 

Ultrapassado o ponto anterior, é possível agora analisar os riscos de se aplicar o art. 486, da CLT, a partir da possibilidade de existência de excludentes da responsabilidade civil. Mais detidamente, se abordará a possibilidade (já consolidada pela jurisprudência) do reconhecimento do estrito cumprimento do dever legal e será feito um paralelo entre os deveres do Estado de garantir segurança pública (art. 144, CF/88) e de garantir saúde e reduzir o risco de doenças (art. 196, CF/88).

Assim, assume-se, agora, que o empregador teve de paralisar suas atividades por conta de um Decreto (municipal ou estadual) e, em decorrência direta disso, precisou rescindir os contratos de trabalho de seus empregados.

Nessa hipótese, Governadores e Prefeitos serão responsabilizados pelo pagamento das indenizações?

Depende!

Mesmo que o artigo 486 da CLT preceitue que a Administração Pública seria responsável pelo pagamento da indenização, o Estado estaria isento de arcar com a indenização caso comprovasse ter ocorrido alguma das excludentes de responsabilidade civil.

Novamente, deve-se relembrar que a Constituição Federal de 1988 (CF/88) preceitua, em seu art. 196, que a “saúde é direito de todos e DEVER DO ESTADO, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença [...]”. Relembre-se, também, que a Organização Mundial de Saúde (OMS), onde trabalham alguns dos maiores especialistas em saúde pública de todo o mundo, recomendou o isolamento e a quarentena para o combate ao Coronavírus.

Pois bem.

Os Governadores e Prefeitos são agentes públicos (classificados como agentes políticos). Esses agentes públicos têm, como visto, de acordo com o art. 196, da CF/88, o DEVER LEGAL de garantir saúde à população promovendo a redução ao risco de contaminação por doenças.

Aventa-se, assim, a possibilidade de se entender configurada a excludente de responsabilidade pelo estrito cumprimento do dever legal - o que se faz simplesmente por constatar que o tema é abundante na jurisprudência -, uma vez que os Governadores e Prefeitos tiveram de tomar medidas, tais como a quarentena e a proibição da prática de atividades empresariais não essenciais, para fazer com que houvesse redução do risco de a população contrair a doença e para poder prestar o auxílio adequado aos que, porventura, ainda assim contraírem a moléstia (o que se diz diante do iminente colapso do sistema de saúde). Além disso, o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular seria mais um ingrediente para corroborar com a medida tomada pelos governantes.

Outra vez é preciso destacar que existiriam inúmeros posicionamentos contrários, entendendo que a Administração Pública possui responsabilidade objetiva e que se aplica a Teoria do Risco, segundo a qual mesmo atos lícitos (como a publicação dos Decretos pelos Governadores e Prefeitos) poderiam ensejar o dever de indenizar. Esta corrente de pensamento poderia entender, portanto, que a excludente de responsabilidade civil mencionada (estrito cumprimento do dever legal) não se aplicaria ao presente caso. Afirmariam, assim, que tal excludente de responsabilidade recai sobre a licitude ou ilicitude do ato (art. 188, I, Código Civil), o que não seria levado em consideração na Teoria do Risco.

Nada obstante, é preciso destacar mais uma vez que o objetivo deste artigo é demonstrar que há riscos na aplicação do art. 486, da CLT, uma vez que existem fundamentos para embasar todos os diferentes posicionamentos. A teoria do estrito cumprimento do dever legal vai ser abraçada pelo Judiciário? Não se sabe! Mas é uma hipótese plausível uma vez que já consolidada na jurisprudência e, por conta disso, traz riscos aos que pretendem se valer do dispositivo celetista mencionado.

E veja-se que se diz que a hipótese é plausível porquanto diversos julgadores, Brasil afora, quando analisam a atuação de policiais (ou seja, agentes públicos) no desempenho de suas atribuições, entendem que se aplica à Administração Pública a ideia de que se o agente público age em decorrência do estrito cumprimento do seu dever legal, sem praticar abusos ou excessos, restaria configurada uma excludente de responsabilidade civil do Estado.

Muito embora a maior parte dos julgados traga rasa fundamentação sobre o assunto, sem se aprofundar no fato de ser uma excludente de ilicitude e no fato de a ilicitude não ser parâmetro para análise da Teoria do Risco (tanto Integral quanto Administrativo), estabeleceu-se, na jurisprudência, que apenas os atos praticados, pelos policiais agentes públicos, com excesso e abuso de direito é que seriam indenizáveis.

A justificativa para tal seria a de que caso fossem punidos quaisquer atos lícitos praticados por agentes públicos (no caso, policiais) que resultassem em dano (e não apenas aqueles praticados com abusos e excessos), se criaria obstáculos à garantia de segurança pública.

Veja-se exemplo extraído do Acórdão proferido na Apelação Cível 2010062334-2, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em cuja Ementa constou que somente se pode aventar a responsabilização civil da Administração Pública pela prática de ato ilícito ou ato praticado com excesso e abuso de poder, sob pena de ser o Estado obrigado a indenizar quando age no exercício de sua função de prestar segurança pública.

Fazendo um paralelo, assim como a garantir segurança pública é um dever do Estado (art. 144, CF/88), prover saúde para a população e evitar a disseminação de doenças (art. 196, CF/88) também é; todos os agentes públicos (policiais, Governadores e Prefeitos) possuem, portanto, o dever legal de cumprir o disposto na Constituição Federal. Não seria nenhum absurdo entender que se o Estado somente pode ser responsabilizado pelos atos praticados pelos policiais, no exercício de garantir segurança pública, com abuso ou excesso, da mesma forma o Estado somente poderia ser responsabilizado pelos atos praticados pelos Prefeitos e Governadores, no exercício de prover saúde e evitar a disseminação de doenças - em meio à pandemia causada pelo COVID-19 -, também eivados de excessos ou abusos.

Veja-se outro exemplo: abaixo consta um trecho de uma decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

“Entretanto, não haverá responsabilização do Estado naquelas hipóteses em que for demonstrada alguma das excludentes do dever de indenizar, quais sejam, culpa exclusiva da vítima, caso fortuito, força maior, fato exclusivo de terceiro ou se o ato for praticado no estrito cumprimento de um dever legal, sem a ocorrência de abusos, tendo em vista a adoção pelo nosso sistema jurídico da Teoria do Risco Administrativo e não da Teoria do Risco Integral”. (TJRS, Apelação Cível 70080621345, Sexta Câmara Cível, Relator Des. Niwton Carpes da Silva, Julgado em 23 de maio de 2019)

Ou, ainda, a ementa de Acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina em processo no qual o Estado era réu:

AÇÃO CONDENATÓRIA AO PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. DENÚNCIA DE QUE INDIVÍDUO PORTAVA ARMA DE FOGO EM LOCAL PÚBLICO. ABORDAGEM POLICIAL NECESSÁRIA. AUTOR QUE SE IDENTIFICOU COMO POLICIAL CIVIL MAS NÃO PORTAVA O DOCUMENTO FUNCIONAL. CONDUÇÃO PELOS AGENTES PARA ESCLARECIMENTOS. USO DE ALGEMAS PROPORCIONAL À ATRIBUIÇÃO DE PROTEÇÃO E SEGURANÇA. ATUAÇÃO NO ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL. CONJUNTO PROBATÓRIO QUE NÃO EVIDENCIA ABUSO OU EXCESSO. CAUSA EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE OBJETIVA VERIFICADA. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJSC, Apelação Cível 0007879-20.2011.8.24.0005, Primeira Câmara de Direito Público, Relator: Des. Jorge Luiz de Borba, Julgado em 30/07/2019)

Ambas as decisões apenas preceituam que se o agente público age no estrito cumprimento do seu dever legal, sem praticar abusos e excessos, a Administração Pública não poderia ser responsabilizada civilmente pelo pagamento de indenização. É certo que as decisões tratam de ações policiais, todavia os policiais são agentes públicos assim como os Governadores e Prefeitos, de tal modo que o entendimento aplicável a um pode, ressalvados casos específicos, se estender a todos.

E relembre-se, novamente, ensinamento de Gilmar Mendes[11] afirmando que em um Estado constitucional garantidor de direitos fundamentais, deve haver uma precisa e adequada investigação das circunstâncias nas quais ocorreu o suposto fato danoso antes de se impor o dever de indenizar - ora, se está diante de uma pandemia sem precedentes; nada mais justificável, portanto, do que as medidas tomadas por Prefeitos e Governadores para o cumprimento da Constituição Federal, seguindo ainda o que especialistas em saúde pública da OMS estabeleciam como indicado para o combate ao vírus.

Vê-se, portanto, que existem bons argumentos para considerar que existiria uma excludente de responsabilidade e, caso isso venha a ocorrer, a Administração Pública não poderá ser responsabilizada pelo pagamento da indenização mencionada no art. 486, CLT. Além do estrito cumprimento do dever fundamental, trazido aqui à guisa de exemplo, existem diversas outras excludentes de responsabilidade que podem ser aplicadas ao caso, havendo por conseguinte uma gama de riscos àqueles que desejam aplicar o dispositivo celetista.


5. DA POSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL POR LEIS CONSTITUCIONAIS

Por fim, ainda se pode abordar posicionamento existente na doutrina segundo o qual a Administração Pública somente poderia ser responsabilizada no caso da prática de atos legislativos inconstitucionais.

Veja-se ensinamento de Carvalho Filho[12] sobre o tema:

“Apesar da divergência existente entre os autores nacionais, entendemos que o ato legislativo não pode mesmo causar a responsabilidade civil do Estado, se a lei é produzida em estrita conformidade com os mandamentos constitucionais. Com a devida vênia dos que pensam em contrário, não vemos como uma lei, regularmente disciplinadora de certa matéria, cause prejuízo ao indivíduo, sabido que os direitos adquiridos já incorporados a seu patrimônio jurídico são insuscetíveis de serem molestados pela lei nova, ex vi do art. 5º, XXXVI, da CF. Acresce, ainda, que a lei veicula regras gerais, abstratas e impessoais, não atingindo, como é óbvio, direitos individuais”.

Ou seja, segundo tal entendimento, caso o ato legislativo esteja estritamente de acordo com os mandamentos constitucionais, sendo regularmente disciplinador de determinada matéria, não haveria a possibilidade de a Administração Pública vir a ser responsabilizada por indenizar os eventuais danos daí advindos.

No mesmo sentido, veja-se ensinamento de Mendes[13]:“Assinale de tenha sido declarada pelo Poder Judiciário.” (RDA, 135/26.) Assim, parece forçoso concluir, por conseguinte, que o reconhecimento do dever de indenizar dano oriundo de ato legislativo ou de atos administrativos decorrentes de seu estrito cumprimento depende da declaração prévia e judicial da inconstitucionalidade da lei correlata. E isso pela simples razão de que, até ser declarada inconstitucional, e se o for, nenhuma lei pode considerar-se contrária à ordem jurídica.”.

Desta feita, seria possível, ainda, aventar a hipótese de que seria imprescindível, para a condenação da Administração Pública ao pagamento da indenização prevista no art. 486, CLT, que os Decretos municipais e Estaduais fossem declarados inconstitucionais, sendo que atualmente não há qualquer movimento nesse sentido dentre os operadores do direito. Novamente, um risco apresentado aos que querem fazer uso do dispositivo celetista para rescindir os contratos de trabalho de seus empregados.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se, portanto, que o art. 486 da CLT - que apareceu como uma esperança a empregadores desesperados pela crise causada pela pandemia do Coronavírus e pela quarentena imposta em diversos Estados e Municípios - traz, consigo, uma série de dúvidas e inseguranças.

Conforme visto, há a possibilidade de que sejam aventadas teses considerando a excludente de responsabilidade da Administração Pública - não apenas o estrito cumprimento de dever legal, como aqui abordado, mas certamente diversas outras teses surgirão.

O Judiciário irá abraçá-las? Só o tempo dirá. Todavia, chance existe, e é inegável que quem aplica o art. 486, da CLT, precisa estar ciente dos riscos que corre.

Vale ainda ressaltar que se está diante de um quadro de rescisão do contrato de trabalho e de um possível pagamento de verbas trabalhistas pelo Estado - é sabido que demandas contra o Estado, que ensejam o seu dever de pagar, por vezes são muito demoradas. Isso[14], somado ao princípio da proteção do trabalhador, pode influenciar no posicionamento do Judiciário, ao adotar uma ou outra tese, responsabilizando o próprio empregador (e não a Administração Pública) pelo pagamento das verbas.

Por fim, mas não menos importante, vale destacar que é posicionamento já consolidado nos Tribunais brasileiros o de que a crise financeira faz parte do risco empresarial. Assim, ainda aventa-se a possibilidade de mais esse ingrediente ser considerado na análise.

As possibilidades, portanto, são muitas e aquele que adota o art. 486, da CLT, como a medida a ser tomada deve estar plenamente ciente de que, no futuro, poderá (ou não) ser responsabilizado pelo pagamento das verbas decorrentes da extinção contratual.


Notas

[1] Disponível em < https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-defende-que-governadores-prefeitos-paguem-encargos-trabalhistas-por-dias-parados-24332785>. Acesso em 27/03/2020.

[2] CASSAR, Voilá Bonfim. Direito do Trabalho. São Paulo: Método, 2014.

[3] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Malheiros, 2004.

[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

[5] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2015.

[6] MENDES, Gilmar. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012.

[7] MENDES, Gilmar. Op cit.

[8] MENDES, Gilmar. Op cit.

[9] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit.

[10] MENDES, Gilmar. Op cit.

[11] MENDES, Gilmar. Op cit.

[12] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit.

[13] MENDES, Gilmar. Op cit.

[14] CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2008.


Autor


Informações sobre o texto

Este artigo é uma atualização e um aprofundamento no estudo do artigo "Os riscos de se aplicar o art. 486 da CLT: rescindir o contrato de trabalho e esperar que o Governo pague a indenização? Não é bem assim!".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CALEGARI, Luiz Fernando. Os riscos de se aplicar o art. 486 da CLT. Análise a partir das excludentes de responsabilidade civil da administração pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6149, 2 maio 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80836. Acesso em: 23 abr. 2024.