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Da razoável duração do processo penal.

Do relaxamento/revogação das prisões cautelares por excesso de prazo

Da razoável duração do processo penal. Do relaxamento/revogação das prisões cautelares por excesso de prazo

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Talvez por nossa própria cultura e estado social, impossível, neste momento, a aplicação da pena do Código de Processo Penal Paraguaio, que prevê a extinção do processo se decorridos três anos. Todavia, impossível ficarmos silentes diante de tantas ilegalidades causadas pela inércia do Judiciário.

INTRODUÇÃO

Como afirmava o saudoso mestre Rui Barbosa, uma justiça tardia não passa de uma injustiça qualificada.

Percebe-se que, há muito, preocupa-se em que haja uma resposta jurisdicional em tempo razoável. Sobretudo no Direito Penal que, inegavelmente, busca, ao mesmo tempo, a repressão estatal ao delito praticado, e o direito de o réu ter um julgamento digno e com respeito aos limites legais, a celeridade processual mostra-se de suma importância.

Assim, sobre este tema, de tão fácil definição, mas que apresenta difícil resolução prática, é que se apresenta este artigo, fruto de monografia em bacharelado de Direito.


1. DOS PRINCÍPIOS QUE TUTELAM A RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO

Em primeiro, importante salientar o significado de princípios. Utilizando as palavras de Nucci:

No sentido utilizado em Direito não se poderia fugir de tais noções, de modo que o conceito de princípio jurídico indica uma ordenação que se irradia e imanta os sistemas de normas (José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, p. 85) servindo de base para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo. Todos os seus ramos possuem princípios próprios, que informa todo o sistema, podendo estar expressamente previstos em lei ou ser implícitos, vale dizer, resultar da conjugação de vários dispositivos legais, conforme a cultura jurídica formada pelo passar dos anos de estudo de determinada matéria. [1]

Não há dúvidas que os princípios orientam e dão base ao Direito, podendo até mesmo, por sua importância, se contraporem as próprias leis, fontes materiais do direito, derrogando-as por sua inobservância, já que estas buscam validade nos próprios princípios.

Exemplo nítido e recente de tal efeito pode ser vislumbrado na edição da Resolução nº 05 do Senado Federal que, por força da decisão definitiva em Habeas Corpus do Supremo Tribunal Federal, no HC nº 97.256/RS, considerou inconstitucionais os dispositivos da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06) que vedam a conversão de pena privativa de liberdade em restritiva de direitos, que desrespeitavam o princípio da individualização da pena, insculpido no artigo 5º, inciso XLVI da Constituição Federal.

Ademais, insta salientar que os princípios, em excelente explicação de Luiz Flávio Gomes[2], classificam-se em constitucionais, quando expressos na própria Constituição Federal; infraconstitucionais, expressos em leis esparsas e diversas da CRFB/88, como o princípio recursal do tantum devolutum quantum apellatum, explicitado no artigo 599 do Código de Processo Penal; e, ainda, os internacionais, expressos em tratados e pactos internacionais, que como exemplo temos o próprio princípio da razoável duração do processo, estudo deste trabalho, expresso no artigo 14 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966.

Assim, antes mesmo da edição da Emenda Constitucional nº 45, que incluiu o princípio da razoável duração do processo entre os direitos fundamentais do artigo 5º da CRFB/88, alguns princípios constitucionais já, ainda que de forma implícita, garantiam a celeridade processual, como veremos a seguir.

1.1. Do Princípio do Devido Processo Legal

Previsto como direito fundamental em nossa Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LIV, com a seguinte redação “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.”, o princípio em comento garante a todos que o Estado não irá priva-los de direitos sem que haja o devido processo legal.

Como explica Tourinho Filho[3], a fonte original deste princípio estava no Capítulo 39 da Magna ChartaLibertatum, de João Sem Terra, promulgada em Windsor, em junho de 1215, prescrevendo que ninguém será privado de seus bens, vida e liberdade senão bythelawoftheland. 

E como bem conceitua o mestre Mougenot:

Mais tecnicamente, em sede penal, chamado de devido processo penal. “Devido processo penal” é expressão que deriva do inglês due processo oflaw, constituindo, basicamente, a garantia de que o conteúdo da jurisdicionalidade é a legalidade (nullusactumsine lege), ou seja, o rigor de obediência ao previamente estabelecido na lei.[4]

O devido processo legal divide-se em material, que é aquele que tutela o direito material, que “protege o particular contra qualquer atividade estatal que arbitrária, desproporcional ou não razoável constitua violação a qualquer direito fundamental”[5]; e o formal, que tutela o direito processual em si, que visa garantir o regular andamento do trâmite processual.

Novamente recorrendo às palavras de Mougenot:

Ao lado dessa dimensão fundamentalmente procedimental – que constitui o sentido original do princípio do devido processo legal, paulativamente alargado com o tempo –, o devido processo legal formal consubstancia-se também na disponibilização, aos cidadãos, de mecanismos eficazes de atuação perante o poder estatal. A implementação de um devido processo legal processual, portanto, implica garantir às partes uma atuação efetiva durante o desenrolar do processo (deduzindo pretensões, produzindo provas, fazendo alegações), na busca do convencimento do juiz, obrigando este à plena obediência ao princípio. Nesse sentido, já se reconheceu o cabimento de recurso extraordinário por ofensa direta à Constituição Federal, quando o órgão julgador deixou de analisar pressupostos de recorribilidade, e, portanto, fez com que o silêncio configurasse vício (de procedimento) infrator da garantia do devido processo legal. O devido processo legal, assim, constitui um conjunto de garantias suficientes para possibilitar às partes o exercício pleno de seus direitos, poderes e faculdades processuais.[6]

O princípio da razoável duração do processo está diretamente ligado ao princípio do devido processo legal.

Ora, um processo que não possua razoável duração certamente não estará atendendo o devido processo legal.

De outra banda, um processo que siga o devido procedimento previsto em lei provavelmente atingirá uma razoável duração.

Assim, ao garantir que os procedimentos legais do processo serão observados a ambos os litigantes, o princípio em comento acaba por ser indissociável ao próprio princípio da razoável duração do processo, buscando e dando-lhe validade.

1.2. Do Princípio da Proporcionalidade

Já que nosso estudo refere-se à razoável duração do processo, importante mencionarsobre o princípio da proporcionalidade.

Tal princípio, como bem explica Lenza:

O princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade, em essência, consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das ideias de justiça, equidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins; precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive de âmbito constitucional; e, ainda, enquanto princípio geral do direito,serve de regra de interpretação para todo o ordenamento jurídico.[7]

Tal princípio é fundamental para possíveis conflitos entre princípios. O supracitado professor ensina que, como parâmetro, temos três importantes elementos: a necessidade, da qual a adoção de medida que possa restringir direitos só se legitima se indispensável para o caso concreto, e não podendo se substituir por outra menos gravosa; a adequação, da qual o meio empregado deve atingir o objetivo perquirido; e a proporcionalidade em sentido estrito, onde deverá ser valorado se, sendo a medida necessária e adequada, esta supera a restrição a outros valores constitucionais.[8]

Assim, em conflitos de normas constitucionais, a proporcionalidade deve ser utilizada para a sua resolução.

Tal princípio deve ser utilizado para a real aplicação de uma razoável duração do processo, como será visto adiante.

1.3. Do Princípio da Efetividade do Processo

Corolário lógico do princípio do devido processo legal, o princípio da efetividade do processo garanteque um processo, seguindo ao mesmo tempo uma razoável duração, seguirá o disposto no rito processual.

Segundo José Roberto dos Santos Bedaque, o “processo efetivo é aquele que, observado o equilíbrio entre os valores de segurança e celeridade, proporciona às partes o resultado desejado pelo direito material”.[9]

Como explicado pelo referido autor, tal princípio visa garantir as partes que tenham, através do processo, o bem da vida perseguido. No processo penal, espera-se que o feito resguarde, ao mesmo tempo, todas as garantias fundamentais inerentes ao acusado, bem como tenha assegurada a devida resposta estatal para o delito cometido pelo agente.

Segundo entendimento de Luiz Guilherme da Costa Wagner Júnior, “para o efetivo exercício da jurisdição, não basta o acerto da decisão, impondo-se, igualmente, que seja ela proferida em tempo útil de ser fruída pelo beneficiário.”[10]

Assim, impossível pensar em um processo penal efetivo sem que este respeite uma razoável duração para seu termino.

1.4. Do Princípio da Presunção de Inocência

Previsto no artigo 5º, inciso LVII, da CRFB/88, o princípio da presunção de inocência garante a todos que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Como explica Nucci, tal princípio tem por objetivo “garantir, primordialmente, que o ônus da prova cabe à acusação e não à defesa.”[11]

O renomado doutrinador afirma ainda, ao relacionar o princípio em análise com a as prisões cautelares:

Por outro lado, confirma a excepcionalidade e a necessidade das medidas cautelares da prisão, já que indivíduos inocentes somente podem ser levados ao cárcere quando realmente for útil à instrução e à ordem pública”[12]

Eugênio Pacelli também se manifesta sobre o princípio em comento:

O princípio da inocência, ou da não culpabilidade, cuja origem mais significativa pode ser referida à Revolução Francesa e à queda do Absolutismo, sob a rubrica da presunção de inocência, recebeu tratamento distinto por parte de nosso constituinte de 1988. A nossa Constituição, com efeito, não fala em nenhuma presunção de inocência, mas da afirmação dela, como valor normativo a ser considerado em todas as fases do processo penal ou da persecução penal, abrangendo, assim tanto a fase investigatória (fase pré-processual) quanto a fase processual propriamente dita (ação penal).[13]

Assim, em nosso Estado Democrático de Direito, em que se privilegia o estado de inocência, impossível pensar em prisões cautelares sem fundamentação idônea, e tampouco que estas perdurem por tempo indeterminado, em total desrespeito ao princípio da razoável duração do processo.  

1.5. Do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

Por fim, cumpre estudar o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Este, muito mais de um direito fundamental, foi pela nossa Carta Magna elevado como Fundamento da própria República Federativa do Brasil.

ConformeLenza, a dignidade da pessoa humana pode ser definida como o “núcleo essencial do constitucionalismo moderno. Assim, diante de colisões, a dignidade servirá para orientar as necessárias soluções de conflitos.”[14]

O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, tratando sobre o tema, afirma que:

“A duração indefinida ou ilimitada do processo judicial afeta não apenas e de forma direta a idéia de proteção judicial efetiva, como compromete de modo decisivo a proteção da dignidade da pessoa humana, na medida em que permite a transformação do ser humano em objeto dos processo estatais.

Dessarte, a Constituição conferiu significado especial ao princípio da dignidade humana como postulado essencial da ordem constitucional (art.1º, III, da CF/88). Na sua acepção originária, esse princípio proíbe a utilização ou transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações.

A propósito, em comentário ao art.1º da Constituição alemã, afirma GüntherDürig que a submissão do homem a um processo judicial indefinido e sua degradação como objeto do processo estatal atenta contra o princípio da proteção judicial efetiva (rechtichesGehör) e fere o princípio da dignidade humana.”[15]

O processo, ainda mais o penal, que poderá privar desde direitos, até mesmo a liberdade de um indivíduo, está intimamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, já que é inconcebível pensar nesta quando se vê um encarcerado preso além de um tempo razoável pela demora jurisdicional.

Como se vê, todos os princípios elencados, de alguma forma, estão interligados com o princípio da razoável duração do processo, nele se apoiando e encontrando-o como fundamento.


2. DO PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO

2.1. Conceito e Histórico

Ainda que previsto expressamente no artigo 5º, inciso LXXVIII, é de difícil conceituação, até mesmo pela doutrina, do que seria razoável duração do processo.

Têm-se que razoável duração do processo, acolhendo-se a conceituação de Orlando Luiz Zanon Júnior, como “o lapso temporal suficiente para adequada resolução da controvérsia, sem prejuízo do próprio direito objeto do litígio e evitando a perda superveniente da utilidade do provimento final para os envolvidos.”[16]

Por óbvio, é complicada a definição do lapso temporal suficiente para a resolução da lide, que depende da interpretação de cada uma das partes. Por exemplo, em uma ação de execução civil, a demora judicial interessa ao executado, mas pode trazer à ruína o exequente.

De igual modo, no processo penal, uma ação criminal que demore, por exemplo, seis meses para sua conclusão, certamente será considerado como um tempo exarcebado para o encarcerado, mas não para a Acusação, Juízo e mesmo a Defesa, já que, ante as inúmeras demandas no Poder Judiciário, tal prazo mostra-se razoável.

Assim, é das tarefas mais difíceis, tanto para a doutrina quanto aos legisladores, a definição de razoável duração do processo.

Mas a preocupação de se atingir tal status é antiga. CesareBeccaria, no longínquo ano de 1764, em sua clássica obra Dos delitos e das penas, já prestava atenção à problemática da razoável duração do processo, como pode se perceber no excerto abaixo:

Só posso indicar aqui princípios gerais. Para fazer sua explicação precisa, é mister considerar a legislação existente, os usos do país, as circunstâncias. Limito-me a acrescentar que, para um povo que reconhecesse as vantagens das penas moderadas, se as leis abreviassem ou prolongassem a duração dos processos e o tempo da prescrição segundo a gravidade do delito, se a prisão provisória e o exílio voluntário fossem contados como uma parte da pena merecida pelo culpado, chegar-se-ia a estabelecer assim uma justa progressão de castigos suaves para um grande número de delitos.[17]

A preocupação com um processo com razoável duração também esteve, a longa data, presente no Brasil. Rui Barbosa, em discurso na Faculdade de Direito de São Paulo em 1920, convertida na obra Oração aos moços, no ano de 1921, afirma que:

Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes, e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade. Os juízes tardinheiros são culpados, que lassidão comum vai tolerando. Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante de que o lesado não tem meio de reagir contra o delinquente poderoso, em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente.[18]

Na Europa, na Convenção de Salvaguarda dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 1950, já se previa, no artigo 6º de tal documento internacional, que “toda pessoa tem direito a que sua causa seja examinada equitativa e publicamente em prazo razoável (...)”.

De igual modo, na América Latina, através do Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, prevê, em seu artigo 8º.1, que “toda pessoa tem o direito de ser ouvida com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável por um juiz ou tribunal competente(...)”

Ainda mais, como anota Luis Flávio Gomes:

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, por seu turno, enfatiza que “toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável...” (art. 8º, 1). No que diz respeito ao preso: “Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade...” (art.7º, 5);”Toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que decida, sem demora...” (art. 7º,6)[19]

Tal pacto foi ratificado pelo Brasil pelo Decreto Legislativo nº27/92 e pelo Decreto nº 678/92. Assim, a partir de 1992 o princípio da razoável duração do processo já era garantido em nosso ordenamento jurídico.

Contudo, com a Emenda Constitucional n° 45 que, dentre outras modificações, acrescentou no artigo 5º o inciso LXXVIII, a razoável duração do processo foi elevado à direito fundamental.

Estudemos melhor tal artigo:

2.2. Da Emenda Constitucional nº 45 – Status do princípio da razoável duração do processo como Direito Fundamental

É sabido que, como os demais artigos presentes na própria Constituição Federal, o caput e incisos do artigo 5º são considerados direitos fundamentais. Estes, nas palavras de Vicente Paulo Marcelo Alexandrino, surgiram “como normas que visavam a restringir a atuação do Estado, exigindo deste um comportamento omissivo (abstenção) em favor da liberdade do indivíduo, ampliando o domínio da autonomia individual frente à ação estatal.”[20]

Em igual linha de raciocínio, José Afonso da Silva define como direitos fundamentais como:

Expressão que designa, em nível de Direito Constitucional positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas, sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem sobrevive; fundamentais do homem, no sentido de que todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados”[21]

Assim, com a Emenda Constitucional nº 45, de 30 de Dezembro de 2004, foi adicionado ao art. 5º da Constituição Federal o inciso LXXVIII, que garante “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

Conforme bem explicitado por Manoel Antônio Teixeira Filho,

O inciso LXXVIII, do art. 5º, da Constituição, acrescentado pela EC n.45/2004, preocupou-se com o problema da falta de celeridade na prestação jurisdicional. Essa norma contém, portanto, uma solene declaração de princípios que, todavia, no plano da realidade prática, corre sério risco de converter-se em retórica inconseqüente. A mera afirmação de que se asseguram, no âmbito judicial(e, também, no daadministração pública), a razoável duração do processo e os meios garantidores da rápida tramitação processual, não é o bastante, por si só, para fazer com que, na prática, as coisas se disponham desse modo”[22]

Como Manoel afirma, não é apenas um inciso, ainda que Constitucional, que garantirá a celeridade dos processos, mas sim “juízes em números suficientes (e que estes cumpram seus prazos legais); estruturas administrativas adequadas; aparatos tecnológicos; dotações orçamentárias e o mais, ou seja, meios materiais e recursos humanos.”[23]

  De igual modo, entendemos ser aplicável o princípio da razoável duração do processo nas prisões cautelares. Como explica Nucci:

Observa-se, como fruto natural dos princípios constitucionais explícitos da presunção de inocência, da economia processual e da estrita legalidade da prisão cautelar, ser época de se consagrar, com status constitucional, a meta de que ninguém poderá ficar preso, provisoriamente, por prazo mais extenso do que for absolutamente imprescindível para o escorreito desfecho do processo. Essa tem sido a tendência dos tribunais pátrios, em especial do Supremo Tribunal Federal. De fato, não se torna crível que, buscando-se respeitar o estado de inocência, conjugado com o direito ao processo célere, associando-se a todas as especificações para se realizar, legitimamente, uma prisão cautelar, possa o indiciado ou o réu permanecer semanas, meses, quiçá anos, em regime de restrição de liberdade, sem culpa formada.[24]

Sobre a razoável duração do processo nas prisões cautelares, importante citar o posicionamento dado pelo Ministro do STF, Gilmar Mendes, em sua obra Curso de Direito Constitucional:

O direito à razoável duração de processo, a despeito de sua complexa implementação, pode ter efeitos imediatos sobre situações individuais, impondo o relaxamento da prisão cautelar que tenha ultrapassado determinado prazo, legitimando a adoção de medidas antecipatórias, ou até o reconhecimento da consolidação de uma dada situação com fundamento na segurança jurídica.

Nesse sentido, são expressivos os precedentes do Supremo Tribunal Federal que concedem habeas corpus em razão do excesso de prazo de prisão cautelar. O Tribunal tem entendido que o excesso de prazo, quando não atribuível à defesa, mesmo tratando-se de delito hediondo, afronta princípios constitucionais, especialmente o da dignidade da pessoa humana (art.1º, III, da CF/88); devido processo legal (art.5º, LIV, da CF/88); presunção de inocência (art.5º, LVII, da CF/88); e razoável duração do processo (art.5º, LXXVIII, da CF/88), impondo-se, nesse caso, ao Poder Judiciário, o imediato relaxamento da prisão cautelar do indiciado ou réu. (HC 85.237/DF, Rel.Celso de Mello, DJ de 29-4-2005; HC 87.164/RJ, Rel.Gilmar Mendes, DJ de 29-9-2006)”[25]

Assim, conceituado o princípio da razoável duração do processo, e entendendo pela aplicação deste nas prisões cautelares, cumpre-nos agora conceituar tal procedimento penal.


3. DAS PRISÕES CAUTELARES

3.1. Conceito e Finalidade das Prisões Cautelares

A prisão, como bem conceitua Nucci[26], é a privação de liberdade, onde tolhe-se o direito de uma pessoa de ir e vir, através de seu recolhimento ao cárcere.

Com tal conceituação, não poderíamos diferenciar a prisão cautelar, objeto deste artigo, da prisão pena.

Cumpre esclarecer, desde logo, que a prisão pena é aquela decorrente do Código Penal, já que advém de condenação criminal, transitada em julgado, sendo regulada pelo mesmo Codex, bem como pela Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84), as suas espécies, formas de cumprimento e os regimes de abrigo.

Já as prisões cautelares estão previstas no Código de Processo Penal, e em legislações esparsas (como é o caso da prisão temporária, prevista na Lei nº 7.960/89), que se destinam unicamente a vigorar, quando necessário, até o trânsito em julgado da decisão condenatória.

As prisões cautelares estão explicitadas em nossa Constituição Federal, no artigo 5º, inciso LXI, que prevê que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou propriamente militar, definidos em lei”.

Da leitura do referido artigo, já podemos vislumbrar a base das prisões no Estado Democrático de Direito do Brasil: a Liberdade é a Regra, sendo a Prisão a Exceção.

Esta somente será aceita quando em casos de flagrantes delitos, ou em ordem fundamentadas das autoridades judiciárias.

Não se pode perder de vista, conforme exposto no tópico 1.4, do princípio da presunção de inocência, corroborando ainda mais o entendimento que as prisões cautelares, ante a ausência de sentença condenatória penal transitada em julgado, somente serão aceitas em casos excepcionais.

As prisões cautelares devem cumprir a certa finalidade. A título exemplificativo, a prisão preventiva deve ter a finalidade precípua de garantir à ordem social e econômica, por conveniência da instrução criminal e/ou para assegurar a aplicação da lei penal, consoante o artigo 312 do CPP.

Importante lembrar, ainda, que a Lei nº 12.403, de 04 de maio de 2011, trouxe importantes alterações no Código de Processo Penal, e especificamente no tema sobre prisões cautelares.

O doutrinador Eugenio Pacelli, em comentários à nova lei, apontou dez sínteses sobre a matéria. Destas, merece destaque neste trabalho a seguinte:

9. Nenhuma medida cautelar (prisão ou outra qualquer) poderá ser imposta quando não for cominada à infração, objeto de investigação ou de processo, pena privativa de liberdade, cumulativa ou isoladamente (art. 283, §1º, CPP); do mesmo modo, não se admitirá a imposição de cautelares e, menos ainda, da prisão preventiva, aos crimes para os quais seja cabível a transação penal, bem como nos casos em que seja proposta e acita a suspensão condicional do processo, conforme previsto na Lei nº 9.099/95, que cuida dos Juizados Especiais Criminais e das infrações de menor potencial ofensivo. Em se tratando de crimes culposos, a imposição de medida cautelar, em princípio, não será admitida, em face do postulado da proporcionalidade; contudo, quando – e somente quando- se puder antever a possibilidade concreta de imposição de pena privativa da liberdade ao final do processo, diante das condições pessoais do agente, serão cabíveis, excepcionalmente para os crimes culposos, as cautelares dos arts.319 e 320, segundo a respectiva necessidade e fundamentação[27]

E continua o grande doutrinador:

De se atentar, então, para o fato de que as novas regras das cautelares pessoais, que surgem precisamente para evitar o excesso de encarcerização provisória, não podem ser banalizadas, somente justificando a sua imposição, sobretudo quando não for o caso de anterior prisão em flagrante, se forem atendidos os requisitos gerais previstos no art.282, I e II, CPP, fundada, portanto, em razões justificadas de receio quando ao risco à efetividade do processo.[28]

Por fim, considerando as prisões, antes do transito em julgado de sentença condenatória, como medidas cautelares, importante lembrar que o Juízo, ao decidir pela decretação do cárcere, deverá demonstrar o fumus boni iuris (fumaça do bom direito) ou fumus comissi delicti (aparência do fato delituoso), bem como do periculum in mora (perigo da demora) ou periculum in libertatis(perigo da liberdade).

Ao decidir pela prisão, liberdade provisória ou demais medidas cautelares, o Magistrado deverá também observar o binômio necessidade e adequação, conforme o artigo 282 do CPP.E ambos, no fim, referem-se ao princípio da proporcionalidade.

Importante transcrever o referido artigo:

Art. 282.  As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a:

I - necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; 

II - adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.

Assim, além de verificada a finalidade de cada prisão cautelar, o juiz deverá fundamentar a decisão na necessidade e adequação da medida excepcional.

Antes das alterações do Código de Processo Penal, pelas Leis nº 11.689 e 11.719, ambas de 2008, poderíamos falar em seis tipos de prisões cautelares: a prisão em flagrante, a prisão preventiva, a prisão temporária, a prisão decorrente de sentença condenatória recorrível, prisão decorrente da pronúncia, prisão decorrente de acórdão recorrível. Agora, podemos falar apenas em três prisões cautelares: a prisão preventiva, a prisão temporária e a prisão em flagrante, sendo esta última, em decorrência das alterações da Lei nº 12.403/11, discutida na doutrina se seria ou não prisão cautelar. [29]

Assim, demonstrada os requisitos gerais, bem como da finalidade da prisão cautelar, passemos agora a estuda-las em suas espécies, quais sejam, a prisão em flagrante, prisão temporária e prisão preventiva.

3.2. Da Prisão em Flagrante

A prisão em flagrante está prevista no Código de Processo Penal, do artigo 301 ao 310.

Flagrante vem da palavra flagrare, que significa ardência, em chamas. Assim, caracterizaria aquela situação em que o crime está acontecendo, ou acabara de ocorrer.

Em primeiro, como afirma o artigo 301, importantesalientar que esta poderá ser efetuada por qualquer pessoa, sendo faculdade dos civis e dever das autoridades policiais e seus agentes.

A função da prisão em flagrante, respeitando sua etimologia, é de evitar o cometimento do crime. Como bem explica Pacelli:

Como intuitivo, a primeira e mais relevante função que se atribui à prisão em flagrante é a de procurar evitar, quando possível, que a ação criminosa possa gerar todos os seus efeitos.

Pretende-se, com a prisão em flagrante, impedir a consumação do delito, no caso em que a infração está sendo praticada (art. 302, I, CPP), ou de seu exaurimento, nas demais situações, isto é, quando a infração acabou de ser praticada (art.302, II, CP), ou, logo após a sua prática, tenha se seguido a perseguição (art.302, III, CPP), ou o encontro do presumido autor (art. 302, IV, CP).

Não é por outra razão que o Código de Processo Penal autoriza qualquer pessoa do povo a realizar a prisão em flagrante. E não é só: também não é por outra razão que a Constituição Federal autoriza a violação do domicílio, sem mandado judicial e mesmo à noite, quando presente situação de flagrante delito (art. 5º, XI, CF).[30]

Como explicado pelo festejado doutrinador, o artigo 302 e 303 trazem as hipóteses possíveis de situação flagrancial. Pelo princípio da legalidade e da interpretação restritiva no Direito Penal, o rol é taxativo.

Ainda mais, a prisão em flagrante visa também preservar a materialidade delitiva e trazer os indícios de autoria. Novamente recorrendo aos ensinamentos de Pacelli:

De outro lado, já mais conectada aos interesses da persecução penal, a prisão em flagrante revela-se extremamente útil e proveitosa no que se refere à qualidade e à idoneidade da prova colhida imediatamente após a prática do delito.

De fato, quando a prova é colhida por ocasião do flagrante, a visibilidade dos fatos (dizemos fato porque se pode concluir, ao final, pela inexistência de crime) é muito maior, sobretudo no que respeita à produção de prova testemunhal. Esta prova, embora decisiva na maioria das ações penais, deve ser sempre analisada com cautela, não pela eventual mendacidade de testemunha, mas pelo fato de que todo testemunho é, ao fim e ao cabo, uma visão pessoal da realidade, que pode variar de pessoa a pessoa. (...)

A prisão em flagrante, portanto, cumpre importantíssima missão, cuidando da diminuição dos efeitos da ação criminosa, quando não do seu completo afastamento (dos efeitos), bem como da coleta imediata da prova, para o cabal esclarecimento dos fatos.[31]

Explicando a natureza jurídica da prisão em flagrante, Luiz Flávio Gomes explica que:

Natureza jurídica: o ato de captura do agente (no momento do flagrante) é de natureza administrativa (pré-cautelar), mesmo que praticado por um particular. Deve-se verificar a ocorrência do ‘fumus commissi delicti’ (prova de um crime e fortes indícios de autoria) para que haja prisão em flagrante. Concretizada a captura o ato seguinte (condução do preso à presença da autoridade policial) também é ato administrativo.

A lavratura do auto de prisão em flagrante também constitui um ato da mesma natureza. Até aqui estamos diante de uma medida pré-cautelar. A prisão em flagrante torna-se prisão processual (cautelar) somente a partir do momento em que o juiz a converte em prisão preventiva (novo art. 310 do CPP). A partir desse momento a autoridade coatora, caso a prisão seja ilegal, passa a ser o juiz. O ato do recolhimento do preso ao cárcere é também um ato administrativo.[32]

Tal prisão, para ser legal, deve seguir os procedimentos previstos no artigo 304 à310 do Código de Processo Penal.

Sobre estes, tendo em vista a temática deste estudo, importante apontar o artigo 306, in verbis:

Art. 306.  A prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada. 

§ 1o  Em até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.

§ 2o  No mesmo prazo, será entregue ao preso, mediante recibo, a nota de culpa, assinada pela autoridade, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os das testemunhas.

Neste artigo, há um prazo específico para a validação da prisão em flagrante, qual seja, 24 horas, onde deverá ser informado da detenção o juiz competente, o Ministério Público e a família do preso ou pessoa por ele indicada. Inobservado tal prazo, o relaxamento do flagrante se impõe.

Este também é o entendimento jurisprudencial:

HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. PRISÃO EM FLAGRANTE. INOBSERVÂNCIA DOS ARTS. 306 E 310, DO CPP. ILEGALIDADE DA PRISÃO. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO PROCEDIMENTO. EXCESSO DE PRAZO. PACIENTE PRESO HÁ QUASE UM ANO SEM QUE A INSTRUÇAO TENHA SIDO INICIADA. INCIDÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DA RAZOÁVEL DURAÇAO DO PROCESSO E PROPORCIONALIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. ORDEM CONCEDIDA. 1. Paciente preso em flagrante desde 13/07/11, ou seja, há quase um ano e, pelo menos até o dia 23/01/12, não houve a conversão da prisão em preventiva. 2. Com a reforma do Código de Processo Penal, a prisão em flagrante passou a ser medida transitória, cuja conversão em prisão preventiva, por decisão fundamentada de autoridade competente, é indispensável à manutenção da custódia cautelar do acusado. Dessa forma, a prisão do acusado tornou-se ilegal, pois o excesso de prazo na adoção de qualquer das medidas elencadas nos arts. 306 310, viola o direito subjetivo do acusado ao procedimento, assentado no dueprocessoflaw (art. 5º, LIV, da CF). 3. Depreende-se das informações da autoridade apontada como coatora, que também há excesso de prazo no encerramento da instrução, que consoante art. 400 do CPP, deverá ocorrer em 60 (sessenta) dias. Na espécie, apesar da defesa ter contribuído para a demora, tendo em vista que o paciente foi citado para oferecer a defesa inicial em 08/10/12 e somente a fez em 09/03/12, a maior parte do atraso deve ser atribuída ao Estado-Juiz, vez que a denúncia foi oferecida em 22/07/11 e somente recebida em 22/08/11, tendo a citação sido efetivada apenas em 08/10/11, e, ainda, a audiência de instrução aprazada primeiramente para 19/06/12 e redesignada para 09/07/12, quando a prisão já perdurará por quase um ano.4. O atraso é completamente desmedido, violando os princípios da razoabilidade dos prazos processuais e proporcionalidade.5. Ordem concedida.[33]

Na jurisprudência colacionada, percebe-se a total ilegalidade da prisão em flagrante, que não respeitou o prazo estabelecido no artigo 306 do CPP. O paciente ficou quase um ano sem que houvesse nem sequer o início da instrução processual, e tampouco a prisão em flagrante foi convertida em preventiva.

Concordando com a visão apresentada por Luiz Flávio Gomes, entendemos que a prisão em flagrante, pela nova redação dada pela Lei 12.403/11, têm caráter pré-cautelar, somente se tornando válida e mantida com a conversão em prisão preventiva, consoante o artigo 310 do CPP. In verbis:

Art. 310.  Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: 

I - relaxar a prisão ilegal; ou 

II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou

III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. 

Parágrafo único.  Se o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, que o agente praticou o fato nas condições constantes dos incisos I a III do caput do art. 23 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, poderá, fundamentadamente, conceder ao acusado liberdade provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação.”

Assim, ao tomar conhecimento da prisão em flagrante, o juiz poderá relaxa-la, por ser ilegal; convertê-la em prisão preventiva; conceder liberdade provisória mediante uma ou várias medidas cautelares alternativas; conceder liberdade provisória sem fiança, ou seja, sem condições.

Passemos agora ao estudo da prisão preventiva.

3.3.Da Prisão Preventiva

 A prisão preventiva está prevista no Código de Processo Penal, entre os artigos 311 ao 316.

Esta, como todas as prisões, somente ocorrerá nos casos especificados em lei, com a decisão fundamentada do juízo. Como explica Pacelli:

Se a prisão em flagrante busca sua justificativa e fundamentação, primeiro, na proteção do ofendido, e, depois, na garantia da qualidade probatória, a prisão preventiva revela a sua cautelaridade na tutela da persecução penal, objetivando impedir que eventuais condutas praticadas pelo alegado autor e/ou por terceiros possam colocar em risco a efetividade da fase de investigação e do processo.

Referida modalidade de prisão, por trazer como consequência a privação da liberdade antes do trânsito em julgado, somente se justifica enquanto e na medida em que puder realizar a proteção da persecução penal, em todo o seu iter procedimental, e, mais, quando se mostrar a única maneira de satisfazer tal necessidade.[34]

O festejado autor lembra que, desde a edição da Lei nº 12.403/11, a prisão preventiva, como ocorre no Direito português e italiano, será a última medida, quando incabível as demais medidas cautelares[35].

O artigo 311 do Código de Processo Penal prevê que a prisão preventiva será cabível em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, podendo ser decretada pelo juiz, de ofício, no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.

Sobre o momento da prisão em flagrante, novamente recorremos ao ensinamento de Pacelli:

A prisão preventiva, então, passa a apresentar duas características bem definidas, a saber: (a) ele será autônoma, podendo ser decretada independentemente de qualquer outra providência cautelar anterior; e (b) ela será subsidiária, a ser decretada em razão do descumprimento de medida cautelar anteriormente imposta. E mais.

Há três situações claras em que poderá ser imposta a prisão preventiva:

a) a qualquer momento da fase de investigação do processo, de modo autônomo e independente (arts.311, 312e 313, CPP);

b) como conversão da prisão em flagrante, quando insuficientes ou inadequadas outras medidas cautelares (art. 310, II, CPP); e

c) em substituição à medida cautelar eventualmente descumprida (art. 282, §4º, CPP).

Nas primeiras hipóteses, a e b, a prisão preventiva dependerá da presença das circunstâncias fáticas e normativas do art. 312, CPP, bem como daquelas do art.313, CPP; na última, apontada na alínea c, retro, não se exigirá a presença das hipóteses do art. 313, sobretudo aquela do inciso I, CPP.[36]

Tomando a definição exposta por Pacelli, para aplicação da prisão preventiva na conversão do flagrante em preventiva, ou de modo autônomo, deverá ser observado o disposto no artigo 312 e 313 do CPP:

Art. 312.  A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. 

Parágrafo único.  A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4o). 

Art. 313.  Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: 

I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos;

II - se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal; 

III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência; 

Parágrafo único.  Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida.

Sobre os artigos em comento, Pacelli chama a atenção:

Deve-se ter em conta, então, que em princípio, não se recorrerá à prisão preventiva, salvo quando constatadas imediatamente as hipóteses legais dispostas nos arts. 312 e 313, CPP. A primazia deverá ser da imposição de medida cautelar diversa da prisão. Daí se não queria concluir, repetimos, que se deva, sempre, antecipar outras providências acautelatória diversa da prisão. Não. Sabemos que há casos em que, a gravidade do fato, as circunstâncias de sua execução, aliadas a natureza da ação, a revelar fundado receio de novas investidas, seja no âmbito da própria vítima e seus familiares, seja em relação a terceiros, autorizam a decretação da preventiva desde logo (art. 311, CPP). Aliás, a circunstâncias de uma anterior prisão em flagrante poderá se juntar aos demais requisitos, justificando a aplicação, por conversão (art. 310, II, CPP), da preventiva.[37]

E novamente recorrendo aos ensinamentos de Pacelli, afirmamos que os requisitos, não cumulativos, do artigo 312 do CPP tratam-se de requisitos fáticos, e os do artigo 313, de requisitos normativos. Assim, para a decretação da prisão preventiva, deverão estar presentes ambos os requisitos.

Sobre o requisitos fáticos, estes dividem-se em garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. Mas, em todos os casos, deverá haver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.

E é por esse motivo que o artigo 314 do mesmo Codexafirma ser incabível a prisão preventiva quando se verificar, pelas provas carreadas nos autos, as causas excludentes de ilicitude, como a legítima defesa ou estado de necessidade, previstas no artigo 23 do Código Penal.Pacelli afirma ainda que também seria incabível a prisão preventiva na falta de prisão em flagrante, já que “nessa situação, a ausência do flagrante funcionaria como reforço de dúvida quanto à autoria e à materialidade do fato, tal como definido como crime”.[38]

Quanto à ordem pública, Rogério Sanches Cunha conceitua como:

Ordem pública é um dos fundamentos da prisão preventiva, consistente na tranquilidade no meio social. Traduz-se na tutela dos superiores bens jurídicos da incolumidade das pessoas e do patrimônio, constituindo-se explícito dever do Estado, direito e responsabilidade de todos (art. 144 da CF/88). Quando tal tranquilidade se vê ameaçada, é possível a decretação da prisão preventiva, a fim de evitar que o agente, solto, continue a delinquir. Assim, é possível a decretação da medida quando o agente, solto, continue a delinquir. Assim, é possível a decretação da medida quando se constata que o agente, dada à periculosidade que ostenta, sente-se incentivado a prosseguir em suas práticas delituosas. O STF entende que a necessidade de se prevenir a reprodução de novos crimes é motivação bastante para se prender o acusado ou indiciado, em sede de prisão preventiva pautada na garantia da ordem pública (HC 95.118/SP, 94.999/SP, 94.828/SP e 93.913/SC).[39]

Contudo, o supracitado autor traz ressalvas ao fato de que maus antecedentes e reincidência, por si só, são motivos ensejadores aofensa a ordem pública:

Apesar do entendimento no sentido de que maus antecedentes e reincidência, por revelarem a probabilidade de que outros crimes sejam praticados, autorizam a decretação de sua prisão preventiva (STF – HC 88.114-PB, STJ – RHC 8.383-SP), pensamos diferentes. Prender alguém, provisoriamente, apenas por conta de seus antecedentes, revela um Direito Penal do autor, incompatível com um Direito Constitucional do fato.[40]

Ainda mais, o termo ordem pública não é pacífico na doutrina. Como assinala Pacelli:

A expressão garantia da ordem pública, todavia, é de dificílima definição. Pode prestar-se a justificar um perigoso controle da vida social, no ponto em que se arrima na noção de ordem, e pública, sem qualquer referência ao que seja efetivamente desordem[41]

Assim, a questão é controvertida, devendo ser analisada em cada caso concreto, e devidamente fundamentada.

Quanto à garantia da ordem econômica, esta, na definição de Rogério Sanches Cunha, tem por objetivo “coibir a ganância do agente que comete ações atentatórias à livre concorrência, à função social da propriedade, às relações de consumo e com abuso de do poder econômico.”[42]

Já quanto à conveniência da instrução criminal, novamente recorremos aos ensinamentos de Rogério Sanches:

O terceiro fundamento que pode ensejar a decretação da prisão preventiva é a conveniência da instrução criminal, com o objetivo de preservar a prova processual, garantindo sua regular aquisição, conservação e veracidade, imune a qualquer ingerência nefasta do agente. Justifica-se a prisão quando o agente ameaça personagens atuantes no processo, alicia testemunhas falsas, desaparece com vestígios do crime, destrói documentos, enfim, dificulta ou desfigura a prova. Em todos os casos, é cabível a aplicação da medida cautelar.

Em caso algum a prisão preventiva pode ser decretada com o fim de coagir ou estimular o investigado ou acusado a colaborar na investigação ou na instrução do processo criminal, nomeadamente facultando provas incriminadoras. Não recai sobre o agente o dever de colaborar com as autoridades na descoberta da verdade real.[43]

Por fim, sobre a garantia da aplicação da lei penal, Rogério Sanches ensina que:

Quando não há nenhum elemento que indique que o provável autor do crime, uma vez condenado, será efetivamente compelido a cumprir a pena, é possível a decretação da prisão preventiva. É uma forma, portanto, de se assegurar a futura aplicação da pena, que será fatalmente frustrada caso, desde logo, não se prenda o agente. Tem cabimento, assim, quando o agente não possui residência fixa ou ocupação lícita ou em que foge ou prepara sua fuga no curso do processo.[44]

Sobre esta modalidade de prisão preventiva, Pacelli atenta que:

É bem de ver, porém, que semelhante modalidade de prisão há de se fundar em dados concretos da realidade, não podendo revelar-se fruto de mera especulação teórica dos agentes públicos, como ocorre com a simples alegação fundada na riqueza do réu. É claro que em tal situação, e a realidade tem nos mostrado isso, o risco é sempre maior, mas, ainda assim, não é o suficiente, por si só, para a decretação da prisão. É nesse sentido a jurisprudência da Suprema Corte (RHC nº 83.179/PE – Pleno – Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 22.08.2003).[45]

Sobre os requisitos normativos do artigo 313 do CPP, reitera-se que a prisão preventiva somente será admitida quando presente ao menos um dos requisitos fáticos (do artigo 312), e a prisão se der por crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 04 anos; ou quando o acusado for reincidente, ressalvado o período quinquenal depurador (artigo 64, inciso I, do Código Penal); ou se o crime envolver violência doméstica ou familiar contra mulher, criança, idoso,enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas.

Por fim, o artigo 315 do CPP prevê que a decisão que decretar, substituir ou denegar a prisão preventiva será sempre motivada. Como corolário lógico do artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal (que versa que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (...)”), as decisões sobre a prisão preventiva deverão ser fundamentadas, não se admitindo a generalidade, mas a análise dos requisitos supracitados com o caso concreto. 

Como bem anota Rogério Sanches:

A decisão que decreta, substitui ou denega a prisão preventiva deve ser convincentemente motivada, mesmo que de forma concisa, indicando, com base nos elementos dos autos, a existência (ou não) da materialidade do fato, indícios suficientes (ou insuficientes) da autoria, sua imprescindibilidade (ou não) para a garantia da ordem pública, da ordem econômica, preservação da instrução criminal e o asseguramento da aplicação da lei penal. Jamais deve se basear em proposições abstratas, mas resultar de fatos concretos. Mera repetição das palavras da lei não caracteriza fundamentação.[46]

E como também se manifesta a jurisprudência:

Habeas Corpus. 1. "Operação Navalha". Inquérito no 544/BA, do Superior Tribunal de Justiça. 2. Alegação de falta de fundamentação do decreto de prisão preventiva. 3. Decreto prisional fundamentado em supostas conveniência da instrução criminal e garantia da ordem pública e econômica. 4. Segundo a jurisprudência do STF, não basta a mera explicitação textual dos requisitos previstos pelo art. 312 do CPP, mas é indispensável a indicação de elementos concretos que demonstrem a necessidade da segregação preventiva. Precedentes. 5. A prisão preventiva é medida excepcional que demanda a explicitação de fundamentos consistentes e individualizados com relação a cada um dos cidadãos investigados (CF, arts. 93, IX e 5º, XLVI). 6. A existência de indícios de autoria e materialidade, por si só, não justifica a decretação de prisão preventiva. 7. A boa aplicação dos direitos fundamentais de caráter processual, principalmente a proteção judicial efetiva, permite distinguir o Estado de Direito do Estado Policial. 8. Não se justifica a prisão para a mera finalidade de obtenção de depoimento. 9. Ausência de correlação entre os elementos apontados pela prisão preventiva no que concerne ao risco de continuidade da prática de delitos em razão da iminência de liberação de recursos do Programa de Aceleracao do Crescimento (PAC). 10. Motivação insuficiente. 11. Ordem deferida para revogar a prisão preventiva decretada em face do paciente.[47](grifo nosso)

HABEAS CORPUS. ROUBO CIRCUNSTANCIADO. PRISÃO PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. ILEGALIDADE MANIFESTA. 1. Consoante o preceituado na Súmula 691/STF, este Tribunal Superior têm entendimento pacificado no sentido de não ser cabível a impetração de habeas corpus contra decisão de relator que indefere medida liminar em ação de igual natureza, ajuizada nos Tribunais de segundo grau, salvo hipótese de teratologia ou ilegalidade manifesta. 2. Tal entendimento deve ser mitigado, de forma a possibilitar o conhecimento do writ, quando houver o superveniente julgamento do mérito da impetração originária, sobretudo em razão do princípio da celeridade processual. 3. A prisão preventiva constitui medida excepcional ao princípio da não culpabilidade, cabível, mediante decisão devidamente fundamentada, quando evidenciada a existência de circunstâncias que demonstrem a necessidade da medida extrema, nos termos dos arts. 312 e seguintes do Código de Processo Penal. 4. Na espécie, a decisão que decretou a prisão preventiva do paciente não indicou sequer um fato concreto apto a justificar a medida extrema, estando fundamentada na gravidade abstrata do delito cometido, o que caracteriza nítido constrangimento ilegal. 5. Novas razões aduzidas pelo Tribunal de origem para justificar a custódia cautelar, por ocasião do julgamento do writ originário, não suprem a falta de fundamentação observada no decreto prisional. 6. Ordem concedida para deferir ao paciente a liberdade provisória, salvo se preso por outro motivo, sem prejuízo da decretação de nova prisão, desde que fundamentada em dados concretos, e da aplicação das medidas cautelares previstas no art. 319 do Código de Processo Penal.[48](grifo nosso)

HABEAS CORPUS. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO (ARTIGO 35, C/C ARTIGO 40, INCISOS III, IV E I, da LEI 11.343/06). DECRETO DE PRISÃO PREVENTIVA. DECISÃO FULCRADA NA NECESSIDADE DE GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO.MERA REFERÊNCIA AO ARTIGO 312 DO CPP, BEM COMO À GRAVIDADE GENÉRICA DO CRIME E CREDIBILIDADE DA JUSTIÇA. FUNDAMENTAÇÃO QUE NADA DIZ RESPEITO AOS ATOS PERPETRADOS PELA PACIENTE. CUSTÓDIA CAUTELAR QUE PERDURA HÁ MAIS DE DOIS ANOS. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. 2 CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO.ORDEM CONCEDIDA.Para a decretação da prisão preventiva, é indispensável que o magistrado apresente as suas razões para privar alguém de sua liberdade. Tais razões não se limitam a enumerar os requisitos legais (ex.:"Para garantia da ordem pública, decreto a prisão preventiva..."). Exige-se a explicitação fática dos fundamentos da prisão cautelar (ex.: Tendo em vista [fatos], para garantia da ordem pública, decreto a prisão preventiva...).No caso, o fato em tese praticado pela paciente (transporte de droga) não restou evidenciado e individualizado na decisão que decretou sua segregação cautelar, carecendo, portanto, de fundamentação idônea (...).[49](grifo nosso)

Passemos agora ao estudo da prisão temporária.

3.4. Da Prisão Temporária

A prisão temporária não está prevista no Código de Processo Penal, mas sim em legislação extravagante, qual seja, a Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989. Como explica Pacelli:

Foi justamente a preocupação com a complexidade das investigações de determinadas infrações penais, mais gravemente apenadas, a responsável pela elaboração da Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989, que cuida da prisão temporária.

(...)

A prisão temporária não poderia fugira à regra. Trata-se de prisão cuja finalidade é a de acautelamento das investigações do inquérito policial, consoante se extrai do art.1º, I, da Lei nº 7.960/89, no que cumpria a função de instrumentalidade, isso é, de cautela. E será ainda provisória, porque tem a sua duração expressamente fixada em lei, como se observa de seu art. 2º e também do disposto no art. 2º, §3º, da Lei nº 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos).

A citada Lei nº 7.960/89 prevê que a prisão temporária, ao contrário da prisão preventiva, dirige-se exclusivamente à tutela das investigações policiais, daí por que não se pode pensar na sua aplicação quando já instaurada a ação penal.[50]

O artigo 1º da referida Lei traz as hipóteses do cabimento da prisão temporária. In verbis:

Art. 1° Caberá prisão temporária:

I - quando imprescindível para as investigações do inquérito policial;

II - quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade;

III - quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes:

a) homicídio doloso (art. 121, caput, e seu § 2°);

b) seqüestro ou cárcere privado (art. 148, caput, e seus §§ 1° e 2°);

c) roubo (art. 157, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°);

d) extorsão (art. 158, caput, e seus §§ 1° e 2°);

e) extorsão mediante seqüestro (art. 159, caput, e seus §§ 1°, 2° e 3°);

f) estupro (art. 213, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único);

g) atentado violento ao pudor (art. 214, caput, e sua combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único);

h) rapto violento (art. 219, e sua combinação com o art. 223 caput, e parágrafo único);

i) epidemia com resultado de morte (art. 267, § 1°);

j) envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte (art. 270, caput, combinado com art. 285);

l) quadrilha ou bando (art. 288), todos do Código Penal;

m) genocídio (arts. 1°, 2° e 3° da Lei n° 2.889, de 1° de outubro de 1956), em qualquer de sua formas típicas;

n) tráfico de drogas (art. 12 da Lei n° 6.368, de 21 de outubro de 1976);

o) crimes contra o sistema financeiro (Lei n° 7.492, de 16 de junho de 1986).

O rol dos crimes que admitem a prisão temporária é taxativo, não sendo possível interpretação extensiva. Ainda mais, como assinalou Pacelli, somente terá cabimento na fase inquisitorial.

O artigo 2º prevê que a prisão temporária será decretada pelo Juiz, em face da representação da autoridade policial ou a requerimento do Ministério Público. Traz ainda o prazo de 05 dias para a duração da prisão, prorrogável por igual período, desde que comprovada a extrema necessidade da manutenção da prisão processual.

A Lei nº 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) prevê, em seu artigo 2º, §4º, que nos crimes hediondos teremos o prazo da prisão processual de 30 dias, prorrogáveis por igual período, em caso de extrema e comprovada necessidade.

Assim, diferente da prisão preventiva, nesta prisão temos um prazo estabelecido para sua duração, seja de 05 dias, seja de 30 dias nos crimes hediondos, somente cabendo a prorrogação, em igual período, e por única vez, caso demonstrada a extrema necessidade.

Decorrido tal prazo, deverá o indiciado ser posto em liberdade, consoante o artigo 2º, §7º, da Lei em comento, salvo ser for expedida prisão preventiva.

Persistindo a prisão temporária, ou não preenchida seus requisitos, o relaxamento se impõe. Como se manifestou o Tribunal de Justiça de São Paulo:

HABEAS CORPUS - PRISÃO TEMPORÁRIA -PRORROGAÇÃO - LIMINAR - DEFERIMENTO -Despacho de admissão da ação constitucional, deferindo-se o pedido de liminar para sustar os efeitos da r. Decisão impugnada que prorrogou a segregação temporária -Hipótese em que, a rigor, não pode o paciente permanecer custodiado além do prazo legal por falta de condições de exequibilidade das diligências que autorizaram a sua custódia- LIMINAR DEFERIDA PARA RELAXAR A PRISÃO TEMPORÁRIA, PROCESSANDO-SE O HABEAS CORPUS,COMDETERMINAÇÃO.[51]

Conceituada as prisões cautelares, e demonstrada a imprescindível necessidade da fundamentação para sua decretação, resta agora o estudo da aplicação do princípio da razoável duração do processo nestas modalidades de prisão.


4. DO RELAXAMENTO/REVOGAÇÃO DAS PRISÕES CAUTELARES POR EXCESSO DE PRAZO

4.1. Da definição de relaxamento e de revogação

Antes do efetivo estudo acerca do excesso de prazo sobre as prisões cautelares, importante diferenciar relaxamento de revogação, tratando-se da aplicação destes institutos nas prisões cautelar.

Sobre o relaxamento, segundo Pacelli, “significa unicamente uma via de controle da legalidade da prisão, independentemente da modalidade, não se restringindo à hipótese de flagrante delito, embora sua aplicação prática, em regra, ocorra em relação a essa.”[52]

O relaxamento da prisão está consagrado na Constituição Federal, no artigo 5º, inciso LXV, que afirma que “prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”.

Assim, a prisão será ilegal quando não seguir os preceitos legais a que está vinculada. Como exemplo, temos uma conversão de flagrante em prisão preventiva em crimes culposos, sendo o agente primário; uma prisão em flagrante sem que o agente esteja em situação flagrancial, conforme o artigo 302 e 303 do CPP; da decretação de prisão temporária, fora das hipóteses do artigo 1º da Lei nº 7.960/89.

Já a revogação das prisões cautelares se dará quando não estiverem mais presentes os motivos ensejadores da prisão. A exemplo, cita-se a revogação da prisão preventiva, já que não estão mais presentes os requisitos do artigo 312 do CPP.

Assim, podemos afirmar que o relaxamento será cabível nas prisões ilegais, em qualquer das três espécies, enquanto o revogação será a medida cabível nas prisões legais, mas que já não preenchem os motivos ensejadores, sendo aplicadas na prisão preventiva e temporária.

Quanto ao tema deste trabalho, em respeito aos entendimentos contrários, seguindo o doutrinado por Pacelli, acreditamos que uma prisão cautelar, quando viciada pelo excesso de prazo, é ilegal e, por isso, passível de relaxamento. Como o festejado autor explica:

De outro lado, vale registrar que, havendo excesso de prazo na prisão preventivamente decretada, o tribunal, por via de habeas corpus ou mesmo de recurso nominado, deverá cassar a decisão, determinando o relaxamento da prisão, cuja continuidade já seria ilegal. É de se observar, ainda, que, ao contrário do relaxamento, a revogação da prisão preventiva, que tanto pode ser decidida pelo juiz que decretou quanto pelo tribunal, em grau de revisão (reforma), deverá ter por fundamento a falta do motivo para que subsista, nos termos do art. 316 do CPP. Nessa oportunidade, entendendo o juiz ou o tribunal que o caso não é de revogação, mas de substituição da cautela, poderá ser imposta outra medida cautelar do art. 319, CPP.

Como se trata de controle judicial da ilegalidade na imposição de restrição da liberdade individual, o relaxamento será cabível, como é óbvio, em qualquer procedimento e para quaisquer crimes, quando houver excesso de prazo ou outra irregularidade na constrição da liberdade (ver Súmula 697, STF).[53]

Assim, definida a conceituação de relaxamento e revogação nas prisões cautelares, passemos agora a definição de excesso de prazo.

4.2. Do excesso de prazo e dos prazos processuais previstos no Código de Processo Penal como base para a sua definição

Primeiramente, importante apontar que a definição de tempo é extremamente subjetiva.

Aury Lopes Júnior, comparando a noção de tempo, traz a baila os estudos de Einsten:

Com EINSTEIN e a Teoria da Relatividade, opera-se uma ruptura completa dessa racionalidade, com o tempo sendo visto como algo relativo, variável conforme o deslocamento do observador, pois ao lado do tempo objetivo está o tempo subjetivo.

Sepultou-se de vez qualquer resquício dos juízos de certeza ou verdades absolutas, pois tudo é relativo: a mesma paisagem podia ser uma coisa para o pedestre, outra coisa totalmente diversa para o motorista, e ainda outra coisa diferente para o aviador. A percepção do tempo é completamente distinta para cada um de nós. A verdade absoluta somente poderia ser determinada pela soma de todas observações relativas.[54]

Assim também ocorre em um processo. A definição do tempo, e ainda mais se este é razoável, é diferente para cada uma das partes, para seus advogados, para os membros do Ministério Público, e para o próprio Magistrado. Um processo com duração de 06 meses pode ser razoável para aqueles que estão “acostumados” aos trâmites jurisdicionais, mas certamente será demasiadamente demorado para as partes, que aguardam ansiosas seu desfecho.

E o caso se agrava para aqueles que estão presos cautelarmente. Diferente daqueles que já foram condenados e cumprem prisão-pena, com prazo já estabelecido, os primeiros aguardam julgamento sem terem a certeza se serão absolvidos ou condenados, e muito menos com prazo previamente estabelecido para a sua liberdade.

A legislação brasileira não traz parâmetros do que seria um processo de razoável duração. Mas, como afirma o professor Luis Guilherme da Costa Wagner Júnior, “se não sabemos ainda ao certo qual o prazo razoável para a duração de um processo, por certo temos clara condições de identificar o inverso, ou seja, o que não é razoável em termos de demora processual.”[55]

Vivemos, como afirma Aury Lopes Júnior, a doutrina do não-prazo, tendo que se recorrer à construção doutrinária e jurisprudencial para, ao menos, temos por base a definição de excesso de prazo.

É certo que na prisão em flagrante (24 horas para manifestação do juízo sobre o relaxamento, liberdade provisória ou conversão em preventiva) e na prisão temporária (05 ou 30 dias, nos crimes hediondos, prorrogáveis por igual período), temos um prazo determinado que, não cumprido, dá ensejo ao relaxamento da prisão cautelar. Contudo, não temos na prisão preventiva não na lei qualquer definição de prazo para sua duração.

Para definição de um prazo razoável, Aury Lopes Júnior aponta quatro vetores, quais sejam: complexidade do caso; atividade processual do interessado (imputado), que obviamente não poderá se beneficiar de sua própria demora; a conduta das autoridades judiciárias como um todo (polícia, Ministério Público, juízes, servidores etc); princípio da razoabilidade.[56]

Ainda mais, não podemos deixar de basilar os prazos previstos no Código de Processo Penal como vetores para a caracterização de um processo em tempo razoável. Com as alterações trazidas pela Lei nº 11.719/08, o prazo, anteriormente de 81 dias, por construção doutrinária e jurisprudencial, passou a ser de 86 dias, no rito ordinário. Como melhor explica Pacelli:

A contagem do prazo terá início com a prisão do acusado, seja ela preventiva, seja ela decorrente de flagrante delito, convertida (em preventiva) em razão da existência de seus requisitos (art.310,II, parágrafo único, CPP). É que, a partir da prisão, terá início a contagem de prazo para o encerramento do inquérito policial (dez dias na Justiça Estadual; 15 dias, prorrogáveis, na Justiça Federal), seguindo-se os demais atos processuais (oferecimento da denúncia e início da instrução criminal).

A nosso aviso, a nova contagem, no rito ordinário, chegará aos 86 dias, como regra (e de 107 dias, na Justiça Federal), ressalvadas circunstâncias específicas de cada caso concreto:

a) 10 (dez) dias, ou 15 (quinze) na Justiça Federal, prorrogáveis, para a conclusão das investigações;

b) 5 (cinco) dias para o oferecimento da denúncia;

c) 10 (dez) dias para a resposta escrita (art. 396, CPP);

d) Até 60 (sessenta) dias para a audiência de instrução (art. 400, CPP), a serem acrescidos do prazo de 24 horas para a decisão de recebimento da peça acusatória, e, eventualmente, do prazo de prisão temporária (Lei nº 7.960/89).

No processo do Tribunal do Júri, o prazo de conclusão do procedimento reservado à acusação e à instrução preliminar é de 90 dias (art. 412, CPP), aos quais se somaria o prazo de prisão anterior (preventiva e temporária, se houver) ao recebimento da denúncia ou queixa.

Eventuais atrasos na conclusão da instrução, se não imputáveis à defesa, não deverão ter o condão de ampliar o aludido prazo.

Todavia, quando se tratar de instrução complexa ou de pluralidade excessiva de réus, o rito ordinário poderá ser ampliado em mais 20 dias, sendo 5 para cada parte e 10 para o juiz sentenciar. Pensamos, porém, que mesmo nessas situações, ressalvadas casos excepcionais (gravidade do crime e dificuldade comprovada de produção da prova), não se deverá ampliar o prazo de 86 dias.[57]

Sentenciado o acusado, terminando assim a instrução, não há mais de se falar em excesso de prazo, como afirma a Súmula 21 (Pronunciado o réu, fica superada a alegação do constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo na instrução) e 52 (Encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangimento por excesso de prazo) do Superior Tribunal de Justiça. Contudo, ante aos princípios constitucionais em jogo, e principalmente com o estado atual do Poder Judiciário, deficitário para cumprir a função que lhe fora outorgada, é de se reanalisar tais enunciados. Como afirma Luis Flávio Gomes:

Essa súmula, no entanto, não pode ter validade absoluta. Bem andou o STJ que a reinterpretou no RHC 20.566-BA. Réu que aguarda julgamento há mais de 3 anos evidentemente tem que ser posto em liberdade. A súmula não condiz, em muitos casos, com o princípio da proporcionalidade. Mostra-se inconstitucional, portanto, em muitas situações.

(...)

Cuidando-se de processo da competência do Tribunal do Júri, depois da pronúncia não se reconhecia o excesso de prazo (STJ, Súmula 21). Essa súmula deve merecer nova leitura para que seja adequada ao quadro axiológico constitucional. Na verdade, qualquer tipo de excesso de prazo não justificado ou desarrazoado deve sempre dar ensejo à revogação da prisão. As súmulas 52 e 21 do STJ foram elaboradas sob a visão eminentemente legalista. Não passaram pelo crivo de dos controles de constitucionalidade e convencionalidade. O valor de tais súmulas deve ser relativizado. O excesso de prazo e o abuso não se compatibilizam com o princípio da proporcionalidade. São inconstitucionais e inconvencionais. Tais súmulas deveriam ser canceladas. Toda medida cautelar que dura muito tempo deveria ser revisada obrigatoriamente pelo juiz. Esse dever de revisão das medidas cautelares ainda não existe.[58]

Ainda, há discussão doutrinária se tais prazos processuais deveriam ser contados isoladamente (onde o desrespeito a um deles já caracterizaria o excesso de prazo) ou globalmente (pela soma de todos os prazos processuais, onde ficaria caracterizada o excesso quando o total fosse ultrapassado). Pacelli bem explica o tema:

Por se tratar de somatório de prazos específicos, isto é, estipulados para a prática de atos processuais isolados, é perfeitamente ponderável a observação segundo a qual o excesso de prazo estaria caracterizado pelo descumprimento de qualquer um deles. Em outros termos: a contagem seria feita de modo isolado, e não globalmente.

Anota, porém, o já citado Delmanto Júnior, em obra obrigatória sobre o tema (1998, p. 218), que o entendimento francamente majoritário é no sentido da contagem global. Por contagem global deve-se reconhecer a possibilidade de manutenção da prisão, ainda que superado determinado prazo processual pela acusação, durante a instrução, ao entendimento de que, em tese, seria possível a compensação do prazo então superado, nas etapas seguintes.

Estamos em que semelhante ponto de vista pode até ser aceitável, mas unicamente como exceção, nunca como regra. Determinadas infrações penais, quando, por exemplo, praticadas com violência e/ou grave ameaça, envolvendo um número elevado de autores e partícipes, sobretudo quando reunidos em quadrilha, certamente poderiam justificar a superação de um excesso de prazo, desde que ainda possível a sua recuperação nas etapas procedimentais posteriores. Nessa situação, a complexidade da investigação e o risco potencial decorrente da soltura dos agentes reclamariam a adoção de critérios de maior flexibilidade na interpretação da lei.[59]

Por fim, impossível não trazer a crítica de Aury Lopes Júnior sobre a inércia do Poder Legislativo em estipular um prazo para a conclusão do processo penal:

Mas, concretamente, não existe nada em termos de limite temporal das prisões cautelares. Infelizmente, a cada dia, alastra-se mais no processo penal uma praga civilista, chamada de relativismo das garantias processuais.Isso vai da relativização da teoria da nulidade, passando pelas garantias processuais e fulminando até mesmo direito fundamentais. O mais interessante é a alquimia de ‘relativizar’ o que deveria ser radicalizado no viés da intagibilidade, e manter a lógica newtoniana naquilo que, sim, deveria ser relativo (tempo, verdades etc.).

Inexiste um referencial de duração temporal máxima e, cada vez mais, os Tribunais avalizam a (de)mora judicial a partir dos mais frágeis argumentos, do estilo: complexidade (apriorística?) do fato, gravidade (in abstrato), clamor público (ou seria opinião publicada?), ou a simples rotulação de ‘crime hediondo’, como se essa infeliz definição legal se bastasse, autolegitimando qualquer ato repressivo.

É óbvio que o legislador deve, sim, estabelecer de forma clara os limites temporais das prisões cautelares (e do processo penal, como um todo), a partir dos quais a segregação é ilegal, bem como deveria consagrar expressamente um ‘dever de revisar periodicamente’ a medida adotada.

No mesmo sentido, DELMANTO JUNIOR é categórico ao afirmar a necessidade de a lei estipular prazos claros e objetivos para a prisão cautelar.

Cumpre esclarecer que não basta fixar limites de duração da prisão cautelar. Sempre destacamos a existência de penas processuais, para além da prisão cautelar (punição processual mais forte, mas não única), e que resultam de todo o conjunto de coações que se realizam no curso do processo penal. Essa é uma questão inegável e inerente ao processo penal.

Estabelecida existência de uma coação estatal, devemos recordar que ela deve esta precisamente estabelecida em lei. É a garantia básica da nullacoactiosine lege, princípio basilar de um Estado Democrático de Direito, que incorpora a necessidade de que a coação seja expressamente prevista em lei, previamente e com contornos claramente definidos. Nisso está compreendido, obviamente, o aspecto temporal.

Como ensina CLAUDIO BRANDÃO, se é através da Legalidade que se limita a intervenção penal, é porque ela tem a função de garantir o indivíduo do próprio Direito Penal (e processual), delimitando o âmbito de atuação do Estado na inflição da pena. Neste espeque, podemos fazer a iliação de que é a Legalidade que torna o homem a figura central de todo o Ordenamento Penal, valorizando-o em sua dignidade.

Então, as pessoas têm o direito de saber, de antemão e com precisão, qual é o tempo máximo que poderá durar um processo concreto. Essa afirmação com certeza causará espanto e até um profundo rechaço por algum setor atrelado ainda ao paleopositivismo e, principalmente, cegos pelo autismo jurídico. Basta um mínimo de capacidade de abstração para ver que isso está presente – o tempo todo – no Direito e fora dele. É inerente às regras do jogo. Por que não se pode saber, previamente, quanto tempo poderá durar, no máximo, um processo? Porque a arrogância jurídica não quer esse limite, não quer reconhecer esse direito do cidadão e não quer enfrentar esse problema.

Além disso, dar ao réu o direito de saber previamente o prazo máximo de duração do processo ou de uma prisão cautelar é uma questão de reconhecimento de uma dimensão democrática da qual não podemos abrir mão.[60]

Como continua Aury Lopes Júnior, o Paraguai trouxe um bom exemplo de duração de um processo. Neste país, um processo penal que ultrapasse 03 anos será extinto. Explicando melhor o doutrinador:

Um bom exemplo de limite normativo interno encontramos no Código de Processo Penal do Paraguai (Ley 1286/1998), que, em sintonia com a CADH, estabelece importante instrumento de controle para evitar a dilação indevida.

O prazo máximo de duração do processo penal será de 3 anos, após o qual o juiz o declarará extinto (adoção de uma solução processual extintiva).Também fixa um limite para a fase pré-processual (a investigação preliminar), que, uma vez superado, impedirá o futuro exercício da ação penal pela perda do poder de proceder contra alguém (ius ut procedatur).

Por fim, cumpre destacar a resolução ficta, insculpida nos arts. 141 e 142 do CPP paraguaio, através do qual, em síntese, se um recurso contra uma prisão cautelar não for julgado no prazo fixado no Código, o imputado poderá exigir que o despacho seja proferido em 24h. Caso não o seja, se entenderá que lhe foi concedida a liberdade.

Igual sistemática resolutiva opera-se quando a Corte Suprema não julgar um recurso interposto no prazo devido. Se o recorrente for o imputado, uma vez superado o prazo máximo previsto para a tramitação do recurso, sem que a Corte tenha proferido uma decisão, entender-se-á que o pedido foi provido. Quando o postulado for desfavorável ao imputado (recurso interposto pelo acusador), superado o prazo sem julgamento, o recurso será automaticamente rechaçado.

O Código de Processo Penal paraguaio é, sem dúvida, um exemplo a ser seguido, pois em harmonia com as diretrizes da CADH. Trata-se, como o Brasil, de um país sul-americano, com graves deficiências na Administração da Justiça, especialmente na Justiça Penal, mas com um importante diferencial: em vez de reformas pontuais, inconsistentes e eivadas de dicotomias (uma verdadeira colcha de retalhos), muito mais sedantes e simbólicas do que realmente progressistas, partiram para um novo código, norteado pela CADH. São vantagens de uma codificação que, além de corajosamente avançada, possui um princípio unificador.[61]

Assim, tomando por base os ensinamentos esposados, afirmamos que o excesso de prazo estará caracterizado quando feridos os prazos previstos no Código de Processo Penal, observados os vetores apontados por Aury Lopes Júnior, e principalmente o princípio da proporcionalidade, caso a caso.

4.3. Da dilação indevida da prisão cautelar: manifesto constrangimento ilegal

Definido no tópico anterior o excesso de prazo, podemos afirmar que uma prisão cautelar que esteja viciada por tal excesso, na verdade, trata-se de uma dilação indevida, caracterizando manifesto constrangimento ilegal.

Por dilação indevida, têm-se, na definição de Aury Lopes Júnior:

Por dilação entende-se a (de)mora, o adiamento, a postergação em relação aos prazos e termos (inicial-final) previamente estabelecidos em lei, sempre recordando o dever de impulso (oficial) atribuído ao órgão jurisdicional (o que não se confunde com poderes instrutórios-inquisitórios). Incumbe às partes o interesse de impulsionar o feito (enquanto carga no sentido empregado por James Goldschmidt) e um dever jurisdicional em relação ao juiz.

Já o adjetivo ‘indevida’, que acompanha o substantivo ‘dilação’, constitui o ponto nevrálgico da questão, pois a simples dilação não constitui o problema em si, eis que pode estar legitimada. Para ser ‘indevida’, deve-se buscar o referencial ‘devida’, enquanto marco de legitimação, verdadeiro divisor de águas.[62]

Os principais motivos ensejadores do excesso de prazo, trazendo a dilação indevida, segundo Luis Flávio Gomes, são o excesso de trabalho do órgão jurisdicional, a defeituosa organização da Administração da Justiça, sua carência material e de pessoal, o comportamento da autoridade judicial, a conduta processual das partes, a complexidade do assunto, servindo ainda de base a duração média dos processos de mesma espécie.[63]

Contudo, o próprio doutrinador faz críticas a esses motivos:

Duas observações mais merecem citação: o excessivo volume de trabalho pode isentar o juiz pessoalmente de responsabilidade, mas de modo algum escusa o atraso da prestação jurisdicional; de outro lado, os defeitos de estrutura e de organização da Justiça não podem ser invocados como desculpa para a morosidade, o que significaria desconhecer o próprio conteúdo essencial do direito a um processo sem dilações indevidas.

O dever judicial constitucionalmente fixado de assegurar a liberdade, a justiça e a segurança dentro de um prazo razoável traz implícita a necessidade de um dotação orçamentária que possibilite o exercício da função jurisdicional com certo grau de satisfação, tal como exige o Estado Constitucional e humanista de direito.[64]

Aury Lopes Júnior também critica o excessivo volume como “desculpa” para o excesso de prazo, já que “não constitui causa de justificação a sobrecarga de trabalho do órgão jurisdicional, pois inadmissível transformar em ‘devido’ o ‘indevido’ funcionamento da Justiça.”[65]

Assim, caracterizado o excesso de prazo e a dilação indevida, fica evidenciado o constrangimento ilegal do paciente, podendo ser sanado, exofficio, pelo Magistrado, ou através do manejo de habeas corpus.

Sobre este último, o chamado remédio heroico está previsto tanto na Constituição Federal (art. 5º, LXVII) quanto no Código de Processo Penal (art. 647 e seguintes). Esta ação autônoma será cabível quando o paciente sofre violência ou coação em sua liberdade de coação, por ato ilegal ou abuso de poder.

 Ainda mais, o artigo 648, inciso II, é claro ao prever a impretação de habeas corpus “quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a lei”.

Assim, com o manifesto ato ilegal (dilação indevida do processo), causando constrangimento ilegal ao paciente (que é tolhido de sua liberdade sem um prazo definido), o relaxamento se impõe.

4.4. Do entendimento jurisprudencial sobre o tema

Superada a definição de excesso de prazo, e demonstrado que sua caracterização traz a dilação indevida do processo e, por corolário lógico, constrangimento ilegal, impondo-se o relaxamento (ou revogação) da prisão cautelar, vejamos agora o entendimento jurisprudencial sobre o tema.

O Supremo Tribunal Federal sumulou entendimento sobre a problemática em análise.

A Súmula 697 desta Colenda Câmara afirmava que “a proibição de liberdade provisória nos processos por crime hediondos não veda o relaxamento da prisão processual por excesso de prazo.”.

Tal entendimento, conforme exposto anteriormente, afirmava a possibilidade da ilegalidade pelo excesso de prazo, independente do tipo de crime imputado ao agente. Contudo, tal súmula restou prejudicada, com a edição da Lei nº 11.464, de 28 de março de 2007, que suprimiu a vedação de liberdade provisória nos crimes hediondos.

Sobre o tema em análise, o STF já se manifestou pelo relaxamento da prisão, quando evidenciado o excesso de prazo, mesmo se tratando, como autoridade coatora, o próprio Superior Tribunal de Justiça:

HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL PENAL. DEMORA NO JULGAMENTO DE HABEAS CORPUS PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. EXCESSO INJUSTIFICADO. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL. AFRONTA À GARANTIA CONSTITUCIONAL DA DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO. ORDEM CONCEDIDA. 1. É direito público subjetivo do Paciente que o julgamento de habeas corpus impetrado no Superior Tribunal de Justiça ocorra em prazo razoável. O reconhecimento da razoabilidade reclama o exame pormenorizado das peculiaridades que envolvem a situação, não havendo meios de se estabelecer, aprioristicamente, um prazo definido para a totalidade dos casos. Precedentes. 2. A determinação ao Superior Tribunal de Justiça para que aprecie habeas corpus deve ocorrer em situações excepcionais, caracterizadas por uma injustificável dilação, evitando que se estabeleça um critério discriminatório na ordem de julgamentos daquela instância. Precedente. 3. A inexistência de justificativa plausível para a excessiva demora na realização do julgamento de mérito do habeas corpus impetrado no Superior Tribunal de Justiça configura constrangimento ilegal por descumprimento da norma constitucional da razoável duração do processo (art. 5º, inc. LXXVIII, da Constituição da República), viabilizando, excepcionalmente, a concessão de habeas corpus. 4. Ordem concedida para determinar à autoridade impetrada que apresente o habeas corpus para julgamento até a quinta sessão da Turma subsequente à comunicação da presente ordem (art. 245, parágrafo único, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça).[66]

Mas podemos afirmar, haja sua competência constitucional de protetor das leis federais, que foi o Superior Tribunal de Justiça quem mais se manifestou sobre o tema, seja através de súmulas, seja através de jurisprudências.

Como anteriormente citada, a Súmula 21 afirma que “pronunciado o réu, fica superada a alegação do constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo na instrução”.

Juntamente com a Súmula 52, que afirma que “encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação de constrangimento por excesso de prazo”, ambas as súmulas, a primeira de 06/12/1990, e a segunda de 17/09/1992, trazem o entendimento que seria incabível o excesso de prazo quando encerrada a instrução. Como afirmado no tópico 5.2, para que se evite a tautologia, tais súmulas merecem revisão sobre o crivo do Direito Processual Penal e Constitucional moderno.

Já a Súmula 64 do STJ afirma que “não constitui constrangimento ilegal o excesso de prazo na instrução, provocado pela defesa”. Por óbvio, sendo a própria defesa e o acusado os responsáveis pelo excesso, impossível o relaxamento da prisão, sob pena de “premiar” a ação destes que vão de encontro ao princípio da razoável duração do processo.

No mais, o STJ tem entendido pelo cabimento do relaxamento da prisão por excesso de prazo, como demonstram os recentes julgadosabaixo colacionados:

PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO DUPLAMENTEQUALIFICADO E RESISTÊNCIA. PRISÃO PREVENTIVA. EXCESSO DE PRAZO.RECONHECIMENTO. PRISÃO QUE PERDURA POR QUASE 5 ANOS. AUSÊNCIA DERESPONSABILIDADE DA DEFESA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. OCORRÊNCIA.ORDEM CONCEDIDA. 1. A celeridade processual é ideia-força imanente ao EstadoDemocrático de Direito. Hipótese em que a prisão processual searrasta por quase 5 anos.2. Por mais que os fatos envolvam 6 réus, com expedição de cartasprecatórias e interposição de recursos, tais particularidades, persi, não são suficientes para justificar a delonga de quase 5 anospara a prolação da sentença.3. Ordem concedida para relaxar a prisão do paciente, mediante termode comparecimento a todos os atos do processo.[67]

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. ROUBO CIRCUNSTANCIADO E QUADRILHA ARMADA. PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA NOS AUTOS DE RECURSO EM SENTIDO ESTRITO INTERPOSTO PELO PARQUET. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. REITERAÇÃO DELITIVA. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. TESE DE EXCESSO DE PRAZO NA FORMAÇÃO DA CULPA. DEMORA INJUSTIFICÁVEL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. RECURSO ORDINÁRIO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. A imposição da custódia cautelar encontra-se suficientemente fundamentada, em face das circunstâncias do caso que, pelas características delineadas, retratam, in concreto, a periculosidade do agente, a indicar a necessidade de sua segregação para a garantia da ordem pública, considerando-se, sobretudo, a existência de indicativos nos autos no sentido de que a atividade delituosa era reiterada, o que evidencia a perniciosidade da ação ao meio social. Precedentes. 2. É certo que o julgamento da ação penal não tem prazo fixado na lei processual. Todavia, em se tratando de réu preso, a demora injustificável e desarrazoada para a formação da culpa, considerando-se, sobretudo, a data da prisão cautelar do Recorrente (09/09/2009), sem previsão para a conclusão do feito, consubstancia constrangimento ilegal sanável pela via do habeas corpus. 3. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade não podem ser invocados para justificar a evidente ineficiência do Estado-Juiz, que, decorridos quase quatro anos da prisão cautelar do Acusado, sequer iniciou a instrução criminal. 4. Recurso ordinário parcialmente provido para determinar a expedição de alvará de soltura em favor do Recorrente, se por outro motivo não estiver preso, a fim de que responda ao processo-crime em liberdade, sem prejuízo de que outras medidas cautelares sejam adotadas pelo Juízo condutor do feito, conforme salientado no voto.[68]

Ambos os casos colacionados trazem prisões que se arrastaram por prazo totalmente inadmissível com as garantias constitucionais inerentes a cada pessoa. Veja-se ainda que os crimes, apesar de serem graves (no primeiro caso, homicídio qualificado, e no segundo, roubo em concurso com quadrilha), não impediram o reconhecimento do excesso de prazo na prisão cautelar.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, apesar de a temática em análise não ser recente, têm se mostrado relutante para o reconhecimento do constrangimento ilegal pelo excesso de prazo. Como na jurisprudência trazida:

Habeas corpus: Impetração que tem por objetivo a revogação da prisão preventiva por excesso de prazo na formação da culpa e pela ausência dos requisitos necessários para a manutenção da custódia cautelar. Inadmissibilidade. Demora que não pode ser imputada à desídia do Juízo. Caso de notória complexidade. Observância do princípio da razoabilidade. Afastamento da alegação de excesso de prazo. Paciente denunciado porque, em tese, teria infringido o artigo 180, § 1º, por três vezes, c.c. o artigo 288, caput, e 311, todos do Código Penal. Indícios de autoria e prova da existência dos crimes. Gravidade em concreto dos delitos imputados. Necessidade da custódia para garantia da ordem pública e da paz social. Constrangimento ilegal não caracterizado. Ordem denegada, com recomendação.[69]

No caso supracitado, o paciente estava preso cautelarmente desde 01/03/2012, continuando detido até a data do writ, em 22/11/2012, ou seja, há mais oito meses, sem que o feito tivesse encerrado. Em que pese os fundamentos esposados pelo Doutos Desembargadores, entendemos que caracterizado o excesso de prazo.

Trazemos também outro recente julgado do Tribunal de Justiça Paulista:

Habeas corpus - Formação de quadrilha, receptação e adulteração de sinal identificador de veiculo. Prisão preventiva analisada em impetração anterior. Reiteração.Não conhecimento. Relaxamento da prisão preventiva, por excesso de prazo na formação da culpa. Constrangimento ilegal não caracterizado. Processo complexo, com vários réus, razoável número de testemunhas e necessidade de expedição de cartas precatórias. Aplicação do princípio da razoabilidade. Ordem conhecida em parte, com denegação na parte conhecida.[70]

Neste caso, os pacientes foram presos cautelarmente, em 22/03/2012, continuando encarcerados até a data do julgamento do habeas corpus, em 13/12/2012, ou seja, há mais de 08 meses, sem que também houvesse o fim da instrução processual. Contudo, diferente do outro acórdão colacionado, neste a votação não foi unânime, conforme o voto do Desembargador Relator Otávio Henrique. Trazendo a baila parte de seu brilhante voto:

Nas informações prestadas pela Autoridade Judiciária apontada como coatora, Sua Excelência indicou que foram expedidas cartas precatórias para oitiva das testemunhas arroladas pelas partes, aguardando-se o retorno das mesmas.

Tais Cartas Precatórias foram expedidas com o prazo de trinta (30) dias (fls. 215/218), na data de 13.06.12 e, até agora, cerca de seis meses, nada foi apresentado quanto ao cumprimento das mesmas, exceto o informe de fls. 148, que dá conta de que uma delas será cumprida à 23.04.13, ou seja, muito além do prazo fixado e também da agilidade necessária em se tratando de PACIENTES presos desde 22.03.12.

A falta de estrutura do Poder Judiciário não pode causar dano à liberdade dos PACIENTES, que, sem nada contribuir para este excesso, ficarão presos por mais de um ano e seis meses sem qualquer solução de culpabilidade dirimida.

No mesmo sentido, diante do exposto, não se pode falar na presença da razoabilidade temporal para o seguimento normal da Ação Penal, posto que tal requisito inexiste no caso em pauta, na minha ótica, em detrimento dos PACIENTES.

Este excesso de prazo viola o principio constitucional da Dignidade Humana e a ultrapassagem do tempo deve servir como fundamento para a sua preservação e as solturas ora determinadas, na minha ótica.

Os crimes podem ser graves (artigos 180, § 1º, 71 e 288, do Código Penal), situação que exige maior desempenho na elucidação dos mesmos, fato que aqui não ocorreu.[71]

Como bem apontou o I. Desembargador, a demora do Poder Judiciário não pode trazer prejuízo aos cidadãos, sob pena de ofensa ao princípio maior, qual seja, o da Dignidade da Pessoa Humana.

Lembra-se que o que se discute não é a gravidade do caso, mesmo porque nem ao menos houve eventual condenação, ainda que de primeiro grau, mas sim a dilação indevida do processo, utilizando os parâmetros anteriormente citados, e o consequente constrangimento ilegal.

Ainda que em menor quantidade quando comparada as denegações do writ impretados, ainda encontramos entendimentos no TJSP reconhecendo o constrangimento ilegal gerado pelo excesso de prazo, conforme recente julgado:

HABEAS CORPUS FURTO QUALIFICADO EXCESSO DE PRAZO CARACTERIZAÇÃO CONSTRANGIMENTO ILEGAL OCORRÊNCIA Delonga injustificada para o deslinde do feito Encerrada a audiência de instrução, determinou-se a realização de diligências, com a expedição de ofício para requisitar o laudo pericial do local do crime Depois de sucessivas requisições, cobrando a vinda do estudo técnico, não há notícia da juntada aos autos do laudo pericial, à qual se condicionou a prolação da sentença Violação ao princípio da duração razoável do processo APLICAÇÃO DAS NOVAS MEDIDAS CAUTELARES DIVERSAS DA PRISÃO CABIMENTO Presentes os pressupostos autorizadores da segregação provisória, impõe-se a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, previstas na novel Lei 12.403, de 2011, para garantia da ordem pública Imposição de compromisso de comparecimento periódico em juízo ORDEM DE HABEAS CORPUS CONCEDIDA, COM DETERMINAÇÃO.[72]

Nesta decisão, o paciente havia sido preso em flagrante em 16/02/2012, por um furto qualificado, sendo reincidente. A primeira audiência de instrução e julgamento ocorreu em 10/07/2012, sendo requerida diligência para a cobrança de laudo pericial acerca do rompimento do obstáculo. Tal laudo não foi juntado até o dia de 05/11/2012. Assim, o paciente ficou quase quatro meses encarcerado da data da audiência, não havendo justificativa para tal excesso de prazo, sendo evidenciado o constrangimento ilegal e sendo concedida a ordem do writ.

Assim, confirmando todo o acima exposto, pouco importa as condições subjetivas e a gravidade em abstrato do crime, mas sim, a demonstração do excesso de prazo, quando feridos os prazos previstos no CPP e observado os vetores apontados por Aury Lopes Júnior, quais sejam, a complexidade do caso, atividade processual do interessado (imputado), a conduta das autoridades judiciárias, e, principalmente, o princípio da razoabilidade, impõe-se o relaxamento da prisão cautelar.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ficou evidenciado que a dilação indevida do processo, caracterizada pela inobservância dos prazos processuais do Código de Processo Penal, bem como observados os vetores de Aury Lopes Júnior, quais sejam, a complexidade do caso, a atividade processual do interessado (imputado), a conduta das autoridades judiciárias, e principalmente o princípio da razoabilidade, fere mortalmente os princípios da razoável duração do processo, do devido processo legal e de sua efetividade, da presunção de inocência, da proporcionalidade e, última instância, o próprio princípio da dignidade da pessoa humana.

Tal ilegalidade impõe o relaxamento da prisão cautelar, já que caracteriza inequívoco constrangimento ilegal.

Impossível fechar os olhos, como nas decisões apontadas no tópico 5.4, para a problemática do excesso de prazo. Com pensamento diverso, estaríamos tornando letra morta o artigo 5º,LXXVIII, da CRFB/88.

Por óbvio, não perdemos de vista que é cada caso concreto que indicará se está ou não caracterizado o excesso de prazo, cabendo ao Juiz da causa a sua determinação.

Contudo, não é possível mais se conformar com prisões cautelares que perduram por anos a fio, sem que haja sequer uma previsão do término do feito para que, ao menos, o agente possa, caso condenado, ter descontado na sua execução penal, ainda que provisória, o tempo da prisão processual.

Tomando por base os dados da obra de Luiz Flávio Gomes, no ano de 1990, tínhamos 18%, ou 16.200, presos provisórios, enquanto o restante do sistema carcerário brasileiro (82%, 73.800 presos) eram condenados. Já no ano de 2010, temos 44%, ou 220.886, presos provisórios, e 277.601, ou 56%, de presos condenados.[73]

Não há dúvidas que tal número de presos provisórios é extremamente alto, o que mostra um desrespeito do princípio da presunção de inocência. Ainda mais, restam dúvidas se todas as prisões apontadas estão devidamente fundamentadas e em respeito à razoável duração do processo.

Recorrendo novamente aos ensinamentos de Luis Flávio Gomes:

“O sistema carcerário brasileiro retrata uma das maiores atrocidades de todos os tempos em nosso país. A história do horror das penas supera em muito o horror dos crimes (Ferrajoli). A desumanidade indescritível das prisões só é suportada pela sociedade brasileira, de forma resignada, em razão da irracionalidade da nossa forma (alienada) de viver na era da globalização da riqueza (para alguns) e da miséria (para milhões).

O Brasil conta com mais de meio milhão de presos (de acordo com os dados do Departamento de monitoramento e Fiscalização do Conselho Nacional de Justiça – CNJ) e é o 4º do ranking mundial de encarceramento, atrás apenas dos Estados Unidos (2.292.133), China (1.620.000) e Rússia (825.400).

(...)

Enquanto o número de presos condenados cresceu 278%, entre 1990 a 2010, o número de presos provisórios simplesmente explodiu, aumentando 1.253% no mesmo período. Em outras palavras, significa dizer que o número de presos provisórios aumentou 13,5 vezes, ao passo que os condenados apenas 4 vezes.

O sistema brasileiro e, dentro dele, a prisão provisória (também chamada de prisão cautelar ou preventiva), é um dos problemas e dos entraves mais chocantes da nossa evolução civilizatória. Não existe prisão no nosso país que atenda todas as exigências internacionais, constitucionais e legais.”[74]

Se causa horror a quantidade de prisões cautelares, muito o mais aquelas que estão viciadas pelo excesso de prazo, mas que não são devidamente relaxadas.

E, infelizmente, tais constrangimento ilegais por excessos de prazo não se tratam de meros debates acadêmicos, distantes de nossa realidade, mas sim fatos que, todos os dias, se concretizam a cada instante

Aury Lopes Júnior cita o caso de Marcos Mariano da Silva, que como ele mesmo afirma, foi um inocente que ficou 13 anos preso sem sentença. Conforme decisão do STJ, no REsp 802435, o Estado Brasileiro foi condenado a pagar dois milhões de reais à Marcos, a título de danos morais e materiais, por ser mantido preso, por treze anos, no presídio Aníbal Bruno, em Recife/PE. No período, ficou cego dos dois olhos. Sua prisão foi em 27/07/1985, somente conseguindo êxito em seu habeas corpus em 25/08/1998.

O presente trabalho não têm o condão, nem poderia, de apontar uma solução para o caso. Contudo, conforme apontado anteriormente, se faz extremamente necessária uma resposta legislativa a fim de apontar o prazo razoável de um processo no âmbito penal.

Talvez, por nossa própria cultura e estado social, impossível, neste momento, a aplicação da pena estatal do Código de Processo Penal Paraguaio, que prevê a extinção do processo se decorridos três anos. Todavia, impossível ficarmos silentes a tantas ilegalidades efetuadas pela própria inércia do Poder Judiciário.

Por todo o exposto, para que não mais ocorram casos como o de Marcos Mariano da Silva, não mais persistindo a temível ilegalidade do excesso de prazo, entendemos pela plena aplicação da razoável duração do processo no processo penal e nas prisões cautelares. E, existindo a dilação indevida, o relaxamento deve se impor, por muito mais do que questão de Direito, mas sim, pela observância do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.


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Notas

[1] NUCCI, Manual de processo penal e execução penal, 4º Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, pág.56

[2] GOMES, Normas, regras e princípio, artigo jurídico no sítio http://jus.com.br/revista/texto/7527/normas-regras-e-principios, acesso em 01/05/2013

[3] FILHO. Manual de Processo Penal, 13º Ed, São Paulo: Saraiva, 2010, pág. 69

[4] BONFIM. Curso de processo penal, 4º Ed., São Paulo: Saraiva, 2009, pág. 39

[5] BONFIM, Op. cit. , pág.39/40

[6] BONFIM, Op. cit., pág.41

[7]LENZA.Direito constitucional esquematizado, 13º Ed., São Paulo: Saraiva, 2009, pág.97

[8] LENZA.Op. Cit., pág.97

[9] BEDAQUE. Efetividade do processo e técnica processual, São Paulo: Malheiros, 2007

[10] JÚNIOR. Processo Civil – curso completo. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, pág.65

[11] NUCCI.Op. Cit., pág. 75

[12] NUCCI.Op. Cit., pág.75 e 76

[13] PACELLI. Curso de Processo Penal, 16º Ed., São Paulo: Atlas, 2012, pág. 491

[14] LENZA. Direito Constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva,16º Ed., 2012, pág.1265

[15] MENDES.Curso de direito constitucional.  2º Ed.– São Paulo: Saraiva, 2008, pág.500

[16] JÚNIOR. Razoável duração do processo – A celeridade como fator de qualidade na prestação da tutela jurisdicional, artigo jurídico do sítio http://jus.com.br/revista/texto/12483/razoavel-duracao-do-processo, acesso em 06/07/13

[17] BECCARIA. Edição RidendoCastigat Moraes, versão para ebook, pág.74

[18] BARBOSA. Edição RidendoCastigat Moraes, versão para ebook, pág.43

[19] GOMES. Prisão e medidas cautelares: comentários à Lei 12.403, de 4 de maio de 2011, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pág.56

[20] ALEXANDRINO. Direito Constitucional descomplicado, 3º Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2008, pág.90

[21] SILVA. Curso de direito constitucional positivo, 10º Ed., São Paulo: Malheiros, 1994, pág.24

[22] FILHO. Breves comentários à reforma do poder (com ênfase à justiça do trabalho): emenda constitucional n.45/2004. São Paulo: LTr, 2005, pág.24

[23] FILHO. Op. Cit., pág.24

[24] NUCCI. Op. cit., pág.96

[25] MENDES.Op. Cit., pág.501

[26] NUCCI.Op. Cit., pág.554

[27] PACELLI.Op. Cit., pág.490

[28] PACELLI.Op.Cit., pág.490

[29] GOMES, Luiz Flávio. Prisão decorrente de pronúncia: revogação tácita. Disponível em http://www.lfg.com.br - 14 de abril de 2010, acesso em 13/10/2013

[30] PACELLI.Op. Cit., pág. 533 e 534

[31] PACELLI. Op. Cit., pág.534

[32] GOMES. Prisão e medidas cautelares: comentários à Lei 12.403, de 4 de maio de 2011, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pág. 89 e 90

[33] BRASIL. TJ-PI - HC: 201200010032593 PI , Relator: Des. Erivan José da Silva Lopes, Data de Julgamento: 01/12/2011, 2a. Câmara Especializada Criminal

[34] PACELLI. Op. Cit., pág.542

[35] PACELLI. Op. Cit., pág.542

[36] PACELLI. Op.Cit., pág.543 e 544

[37] PACELLI.Op.Cit., pág.499

[38] PACELLI.Op. Cit., pág.546

[39] CUNHA In Prisão e medidas cautelares: comentários à Lei 12.403, de 4 de maio de 2011, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pág.144

[40] CUNHA. Op.Cit., pág.144

[41] PACELLI. Op.Cit., pág.549

[42] CUNHA. Op.Cit., pág.145

[43] CUNHA. Op.Cit., pág.146

[44] Id., pág.146 e 147

[45] PACELLI. Op.Cit., pág.547

[46] CUNHA.Op.Cit., pág.158

[47] BRASIL. STF - HC: 91513 BA , Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 04/03/2008, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-107 DIVULG 12-06-2008 PUBLIC 13-06-2008 EMENT VOL-02323-03 PP-00545

[48] BRASIL. STJ - HC: 262775 SP 2013/0000063-7, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Julgamento: 07/05/2013, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 16/05/2013

[49] BRASIL. TJ-PR - Habilitação: 9880446 PR 988044-6 (Acórdão), Relator: Jefferson Alberto Johnsson, Data de Julgamento: 24/01/2013, 3ª Câmara Criminal, Data de Publicação: DJ: 1039

[50] PACELLI. Op.Cit., pág.536 e 537

[51] BRASIL. TJ-SP - HC: 1015575020118260000 SP 0101557-50.2011.8.26.0000, Relator: Amado de Faria, Data de Julgamento: 26/05/2011, 15ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 10/06/2011

[52] PACELLI.Op.Cit., pág.579

[53] PACELLI.Op. Cit., pág.580

[54] JÚNIOR. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pág.135 e 136

[55] JÚNIOR, Luis Guilherme da Costa Wagner. Op. Cit., pág.71

[56] JÚNIOR.Op.Cit., pág.157

[57] PACELLI.Op. Cit., pág.558

[58] GOMES.Op. Cit., pág.58

[59] PACELLI. Op. Cit., pág.559

[60] JÚNIOR.Op.Cit., pág.160/163

[61] JÚNIOR.Op.Cit., pág.163/165

[62] JÚNIOR.Op.Cit., pág.156

[63] GOMES. Op.Cit., pág.60

[64] Id., pág.60

[65] JÚNIOR. Op.Cit., pág.156

[66] BRASIL. STF - HC: 117326-SP, Relator: Min. CÁRMEN LÚCIA, Data de Julgamento: 24/04/2013, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe-089 DIVULG 13-05-2013 PUBLIC 14-05-2013

[67] BRASIL. STJ,HC nº 226.198-PE, Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Julgamento: 16/02/2012, T6 - SEXTA TURMA

[68] BRASIL. STJ, RHC nº 31.958-PI, Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 18/06/2013, T5 - QUINTA TURMA

[69] BRASIL. TJ-SP - Habeas Corpus: 2061457420128260000 SP 0206145-74.2012.8.26.0000, Relator: Sérgio Coelho, Data de Julgamento: 22/11/2012, 9ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 28/11/2012

[70] BRASIL. TJ-SP - HC: 1834485920128260000 SP 0183448-59.2012.8.26.0000, Relator: Sérgio Coelho, Data de Julgamento: 13/12/2012, 9ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 18/01/2013

[71] BRASIL. TJ-SP - HC: 1834485920128260000 SP 0183448-59.2012.8.26.0000, Relator: Sérgio Coelho, Data de Julgamento: 13/12/2012, 9ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 18/01/2013, pág.3 e 4

[72] BRASIL. TJ-SP - HC: 1966328220128260000 SP 0196632-82.2012.8.26.0000, Relator: Amado de Faria, Data de Julgamento: 08/11/2012, 8ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 12/11/2012

[73] GOMES. Op.Cit., pág.27

[74] GOMES. Op.Cit., pág.28



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RUIZ, Caio Henrique Machado. Da razoável duração do processo penal. Do relaxamento/revogação das prisões cautelares por excesso de prazo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6201, 23 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83315. Acesso em: 25 abr. 2024.