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O delegado de polícia e a cadeia de custódia

O delegado de polícia e a cadeia de custódia

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A observância da cadeia de custódia é fundamental para a idoneidade da futura prova penal e para permitir que a Justiça seja feita sem interferência de provas ilícitas.

O tema da cadeia de custódia, embora a regulamentação legal tenha se dado apenas em 2019 por meio da Lei federal nº 13964/19, já é discutido há algum tempo. Com efeito, ainda em 2014, a Secretaria Nacional de Segurança Pública publicou a Portaria nº 82 que estabeleceu os procedimentos que deveriam ser observados no tocante à cadeia de custódia dos vestígios.

Tal temática traz em si, ao menos, duas funções principais: A primeira de trazer segurança ao investigado por se revestir de garantia no que se refere à observância das regras processuais e de investigação; A segunda relaciona-se com a transparência com que a investigação se desenvolve na medida em que marca os vestígios coletados com um selo de origem e destinação. Nesta linha, aliás, é a lição da mais abalizada doutrina sobre o tema:

[...]não é razoável que apenas ao momento da sentença caiba examinar a confiabilidade dos elementos probatórios, sob pena de se transigir que sejam realizadas uma série de interferências aos direitos fundamentais do imputado a partir de questionáveis bases probatórias.[1] (sic)

Nesse contexto, o Inquérito Policial passa a assumir um papel de destaque no sistema de persecução penal brasileiro vez que se transforma no primeiro mecanismo de controle da futura prova penal. Daí a necessidade dos operadores do Direito (delegados, promotores e juízes) atuarem com ainda mais zelo e atenção já na fase pré-processual, pois, embora se saiba que a prova somente é formada num contexto que assegure o pleno contraditório, o legislador se preocupou com o controle da genuinidade dos elementos probatórios desde o primeiro contato com o corpo de delito, no que se refere aos momentos da descoberta, coleta, análise, armazenamento e descarte dos vestígios.

Assim, qualquer falha no tocante a esse procedimento pode prejudicar tanto a investigação quanto a futura ação penal, ainda que a 6ª turma do STJ tenha decidido se tratar de um prejuízo relativo (HC 653515). Nesta linha, veja-se a lição abaixo transcrita:

[...] Especificamente no que tange a atuação policial, o aperfeiçoamento dos servidores e a criação de uma estrutura para que se consiga atender à demanda técnica e formal exigidas pela lei é medida imediata e imprescindível para se evitar a nulidade de processos criminais posteriores à sua edição. Uma das maiores referências sobre a importância da higidez probatória por meio da inviolabilidade da cadeia de custódia é o caso do jogador de futebol americano O. J. Simpson, investigado, acusado e processado por um duplo homicídio consumado em 1994, no estado da Califórnia. Simpson foi absolvido das acusações, em função da forte argumentação de sua defesa no sentido de que a preservação do local do crime e os procedimentos de coleta de vestígios foram realizados de forma incorreta e inadequada, evidenciando verdadeira falha na cadeia de custódia.[2] (sic. destacamos).

Como se sabe, no Brasil, incumbe ao delegado de polícia a presidência da investigação criminal e, portanto, é dele a responsabilidade por zelar pela segurança e idoneidade dos vestígios coletados no curso da investigação, devendo adotar mecanismos para exigir o fiel cumprimento das normas legais, inclusive da cadeia de custódia, pelos agentes de sua autoridade, vale dizer, investigadores, escrivães, médicos legistas e peritos criminais. Neste sentido, compete ao delegado de polícia observar, e determinar seja observado pelos seus agentes, a nova sistemática de gestão de materiais apreendidos vinculados a uma investigação criminal, nos termos dos artigos 158-A a 158-F do CPP.

Antes da entrada em vigor das alterações promovidas pela Lei federal nº 13964/19, a qual implementou a nova sistemática de cadeia de custódia, na maioria esmagadora das vezes os materiais relacionados a um crime eram arrecadados no local do evento criminoso e levados a uma delegacia de polícia de plantão. Neste local passavam pelo procedimento de apreensão formal e, posteriormente, eram encaminhados à unidade de área responsável pela investigação, antes passando pelo Departamento e/ou delegacia regional. Após isso, com a chegada na delegacia de área os materiais eram remetidos ao setor de perícia para serem submetidos ao exame pericial e, por fim, retornavam à unidade de área (delegacia de polícia), local onde eram armazenados, restituídos ou remetidos ao depósito forense.

Como se vê, tratava-se de um procedimento burocrático, caro e ineficiente e, o pior, sem qualquer documentação cronológica do vestígio e sem padronização na coleta deles.

Com a entrada em vigor das alterações promovidas no CPP pela citada lei, o que se deu em 24/01/2020, além da implementação de mecanismos mais seguros para preservação da futura prova penal, estabeleceu-se uma racionalização naquela sistemática apresentada acima, vale dizer, assim que ocorre o reconhecimento, coleta e acondicionamento do material (vestígio), ele deveria ser transportado até a central de custódia (art. 158-C do CPP), local vinculado ao órgão de perícia criminal oficial, e onde ficaria acondicionado até que fosse determinada sua perícia, ocasião então que seria transportado até o setor de perícia e, após ela, retornar à central de custódia (art. 158-F do CPP) para ali permanecer até o seu descarte que, nos termos do inciso X, do art. 158-B do CPP é o [...] procedimento referente à liberação do vestígio, respeitando a legislação vigente e, quando pertinente, mediante autorização judicial. (sic).

Importante ressaltar, ainda, que o agente responsável, preferencialmente, por realizar essa coleta e transporte do material até a central de custódia seria o perito criminal, vejamos:

Art. 158-C. A coleta dos vestígios deverá ser realizada preferencialmente por perito oficial, que dará o encaminhamento necessário para a central de custódia, mesmo quando for necessária a realização de exames complementares. (sic).

Essa sistemática, por óbvio, além de proporcionar uma maior preservação da futura prova penal, traz mais racionalidade e eficiência no tratamento desses materiais, reduzindo os deslocamentos de servidores e uso de recursos públicos (carros, combustível, tempo, etc), propiciando uma melhor gestão dos recursos públicos, humanos e materiais, postos à disposição do trabalho da Polícia investigativa.

Não bastasse isso, da leitura dos novos arts. 158-A a 158-F do CPP percebe-se que a intenção do legislador era condicionar, o máximo possível, o manuseio de vestígios (materiais) por peritos oficiais, desde a sua coleta (art. 158-C) até o seu descarte, uma vez que após encerrada a perícia o vestígio (material) deveria permanecer armazenado na central de custódia (art. 158-F), unidade vinculada aos Institutos de Criminalística e com gestão realizada pelo órgão oficial de perícia criminal (art. 158-E).

Além disso, a própria legislação estabeleceu que nas centrais de custódia devem funcionar serviços de protocolo que serão responsáveis por conferir, recepcionar e devolver os materiais, vide §1º, do art. 158-E do CPP, sendo certo que numa leitura conjugada com o inciso X, do art. 158-B, tem-se que essa devolução deve ocorrer, inclusive, dentro da etapa de descarte da cadeia de custódia, o que compreende a eliminação do material (por exemplo a incineração de drogas) e a devolução propriamente dita (por exemplo a restituição do material ao seu proprietário quando não mais interessar à investigação criminal ou ação penal, mediante prévia autorização do delegado ou do juiz).

Ocorre, porém, que algumas Policias Civis ainda não deram cumprimento ao mandamento legal de criar/instituir as centrais de custódia em suas estruturas internas e, em razão disso, passaram a editar normas administrativas que destoam completamente do quanto estabelecido nos arts. 158-A a 158-F do CPP. À título de exemplo, citamos a Resolução nº 8160/21 da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais que, dentre outros pontos, determina que os materiais, após a realização do exame pericial, devem ser remetidos às delegacias de polícia para ali serem armazenados, senão vejamos os termos do §5º, do art. 6º e do § 4º, do art. 8º da Res. 8160/21 da PCMG e o texto legal do art. 158-F do CPP, respectivamente:

[...] Enquanto não implantadas a Central de Custódia da PCMG e as Unidades Regionais de Custódia, o envio de que trata o § 3º será realizado para as respectivas unidades de perícia em todo o Estado, devendo, após o exame pericial, serem devolvidos os vestígios para a unidade de origem. (sic. destacamos);

[...] Concluída a perícia requisitada, nas hipóteses em que o Delegado de Polícia ou Juiz de Direito decidir pela restituição ou depósito do objeto periciado, aquele providenciará a retirada na Central de Custódia da PCMG ou na Unidade Regional de Custódia, mediante registro na Ficha de Acompanhamento de Vestígio. (sic. destacamos);

[...] Após a realização da perícia, o material deverá ser devolvido à central de custódia, devendo nela permanecer. (sic. destacamos).

Colocando o texto legal do art. 158-F do CPP de frente aos textos da norma administrativa (Resolução nº 8160/19) torna-se evidente a violação da legislação de regência da matéria em questão (cadeia de custódia). Isso tudo, acreditamos, em razão de não ter sido criada a central de custódia. Porém, lembremos, ainda que ela não tenha sido criada, com a entrada em vigor dos arts. 158-A a 158-F do CPP a gestão dos materiais apreendidos (vestígios) foi transferida para os servidores da carreira de perito criminal e que estejam vinculados ao respectivo Instituto de Criminalística ou unidade de perícia criminal oficial do Estado (art. 158-C, c/c art. 158-E, ambos do CPP).

Demais a mais, a não criação da central de custódia, tal qual determinado pelo art. 158-E do CPP, não autoriza a consequente violação de todo o procedimento da cadeia de custódia estabelecido pela Lei nº 13964/19, devendo o delegado de polícia, como presidente da investigação criminal e responsável pela observância dos procedimentos legais a ela relacionados, adotar soluções que visem, o máximo possível, assegurar o cumprimento da vontade do legislador e da finalidade da legislação, o que no caso específico se traduz em submeter a gestão dos materiais (vestígios) ao órgão central de perícia oficial do Estado, de forma a garantir a higidez da futura prova penal.

Sobre o tema em questão (observância irrestrita da cadeia de custódia), confira-se a lição abaixo destacada em artigo produzido no ano de 2017, portanto, antes mesmo da Lei nº 13964/19:

[...]Nesse sentido, a cadeia de custódia é de suma importância para garantir a autenticidade e a idoneidade da prova pericial[...]rastreamento da evidência desde o local de crime até o tribunal[...]A cadeia de custódia é o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte. A finalidade desses procedimentos é fornecer segurança técnica e legal, quanto à certificação da origem dos vestígios, como dos níveis de confiança e excelência dos exames periciais. A ausência ou até mesmo erros nos procedimentos relacionados à cadeia de custódia geram imensos prejuízos ao processo por causar dúvidas sobre a autenticidade da coisa submetida a exame, abrindo espaços para obtenção de provas por métodos ilícitos[...] (sic; destacamos)[3].

Vê-se, assim, que a observância da cadeia de custódia é de fundamental importância para a idoneidade da futura prova penal e, em última análise, permitir que a Justiça seja feita sem qualquer tipo de interferência (no caso, das provas ilícitas), sendo certo que cabe ao delegado de polícia, como responsável por conduzir a investigação criminal, tanto observar como garantir a observância de tal sistemática por todos aqueles que tenham contato com os materiais/vestígios vinculados a uma investigação criminal, devendo, inclusive, diante da ausência de centrais de custódia, zelar para que a gestão dos materiais por parte da perícia criminal oficial do Estado se dê da melhor maneira possível, visando cumprir a legislação de regência.


  1. BADARÓ, Caio; MATIDA Janaína. Exame da cadeia de custódia é prejudicial a todas as decisões sobre fatos. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-ago-13/limite-penal-exame-cadeia-custodia-prejudicial-todas-decisoes-fatos. Acesso em Nov. de 2021.
  2. BELCHIOR, Daniel Ferreira de Melo. ARCOS, Eduardo Santo. Delegado enquanto agente de controle epistêmico dos elementos de prova. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-mai-12/belchiore-arcos-inquerito-instrumento-respeito-cadeia-custodia , acesso no dia 20/05/2022 às 099:30h.
  3. MACHADO, Michelle Moreira. Importância da cadeia de custódia para prova pericial. REVISTA CRIMINALÍSTICA E MEDICINA LEGAL V.1 | N.2 | 2017 | P. 8 12. Disponível em chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/http://revistacml.com.br/wp-content/uploads/2018/04/RCML-2-01.pdf.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONSECA, Gabriel Ciríaco. O delegado de polícia e a cadeia de custódia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6947, 9 jul. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98778. Acesso em: 19 abr. 2024.