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A presunção de inocência é princípio absoluto?

A presunção de inocência é princípio absoluto?

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Para a execução provisória da sentença penal, que requer certeza, necessária se faz uma condenação proferida por tribunal. Para decretar a prisão provisória, para a qual bastam indícios, não há essa exigência. Não há um disparate?

A Constituição da República, em seu art. 5º, inc. LVII, estipula como direito fundamental o fato de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Referida regra, ou princípio, é conhecida por presunção de inocência ou presunção de não-culpabilidade, ainda que não haja consenso sobre qual seria o termo mais correto.

Outrossim, com base no supracitado preceito constitucional, o Supremo Tribunal Federal, nas ADCs nº 43, 44 e 54, em 07/11/2019, considerou inconstitucional a execução imediata da sentença após a condenação pelos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais.

Contudo, desde o julgamento do HC nº 126.292-SP em 17/02/2016, a Suprema Corte entendia possível a execução provisória da sentença condenatória enquanto se aguardava o julgamento dos apelos extremos.

Eis o que ficou assentado nessa oportunidade, verbis,

CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (CF, ART. 5º, LVII). SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA CONFIRMADA POR TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU DE JURISDIÇÃO. EXECUÇÃO PROVISÓRIA. POSSIBILIDADE. 1. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado.

Ademais, assim também já vinha entendendo o Superior Tribunal de Justiça, conforme enunciado nº 267 de sua súmula: A interposição de recurso, sem efeito suspensivo, contra decisão condenatória não obsta a expedição de mandado de prisão.

Aliás, o entendimento sumulado vai ao encontro do disposto no art. 637 do Código de Processo Penal, segundo o qual o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença.

Nada obstante, o próprio STJ não admitia a execução provisória da pena restritiva de direitos, em aparente contradição com a súmula nº 267, nos termos do enunciado nº 643: A execução da pena restritiva de direitos depende do trânsito em julgado da condenação.

De seu turno, o STF também permitia a execução provisória da sentença condenatória confirmada por tribunal de segundo grau, nos termos do enunciado nº 716: Admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.

Entretanto, conforme doravante demonstraremos, o suporte utilizado pelo Tribunal Constitucional para o julgamento das ADCs nº 43, 44 e 54[1] não encontra guarida no ordenamento jurídico, haja vista que não existem direitos e garantias absolutos.

Nesse diapasão, conforme ensina Pedro Lenza, dentre as características dos direitos e garantias fundamentais está a limitabilidade, segundo a qual[2]

Os direitos fundamentais não são absolutos (relatividade), havendo, muitas vezes, no caso concreto, confronto, conflito de interesses. A solução ou vem discriminada na própria Constituição (ex.: direito de propriedade versus desapropriação), ou caberá ao intérprete, ou magistrado, no caso concreto, decidir qual direito deverá prevalecer, levando em consideração a regra da máxima observância dos direitos fundamentais envolvidos, conjugando-a com a sua mínima restrição; (g. n.)

No mesmo sentido ensina o Ministro do STF Alexandre de Moraes, para quem[3]

Os direitos humanos fundamentais, dentre eles os direitos e garantias individuais e coletivos consagrados no art. 5º da Constituição Federal, não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito. Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas). (g. n.)

Outrossim, seguindo na mesma linha, o também Ministro do STF Luis Roberto Barroso escreve que[4],

Direitos fundamentais podem ser expressos, normativamente, sob a estrutura de princípios ou de regras. Pela teoria dos princípios, que serve de marco teórico para as ideias aqui desenvolvidas, uma mesma disposição constitucional pode ser lida, conforme o caso e as circunstâncias, como uma regra ou um princípio. Nada obstante, como a regra geral é que não existam direitos ilimitados ou absolutos, o tratamento dogmático e jurisprudencial mais comum é que direitos fundamentais sejam tratados como princípios. Essa premissa é relevante para a demarcação de seu conteúdo, limites e possibilidades de restrições. Relembrando o que já foi dito em capítulo anterior, princípios são mandados de otimização a serem aplicados pelo intérprete na maior extensão possível, mas que podem ceder diante de razões jurídicas ou fáticas que lhe sejam contrárias. Trata-se, portanto, de um comando prima facie, e não de um comando definitivo. (g. n.)

Destarte, conforme podemos observar, a doutrina constitucionalista é unânime em reconhecer como característica marcante dos direitos e garantias fundamentais a limitabilidade ou relatividade.

Entretanto, conforme assevera o Advogado da União Marcelo Novelino, existem doutrinadores que defendem a existência de direitos absolutos, como por exemplo, a dignidade da pessoa humana e os princípios a ele correlatos. Eis os seus escritos:[5]

Por encontrarem limitações em outros direitos constitucionalmente consagrados, os direitos fundamentais não podem ser considerados absolutos, razão pela qual a relatividade (ou limitabilidade) costuma ser apontada como uma de suas características. A harmônica convivência das liberdades públicas exige que sejam exercidas dentro de determinados limites fixados pela constituição, a qual deve compatibilizar encargos de unidade e integração com uma base material pluralista (ZAGREBELSKY, 1992). A tese da existência de direitos absolutos é incompatível com a ideia de que todos os direitos são passíveis de restrições impostas por interesses coletivos ou por outros direitos também consagrados na constituição. A impossibilidade de prevalência simultânea de dois direitos colidentes, sem que haja uma cedência reciproca, impõe o reconhecimento da relatividade desses direitos. Ainda nesta linha de raciocínio, nem mesmo a existência de um único direito com caráter absoluto poderia ser admitida, tendo em vista a possibilidade deste direito ser invocado, em um mesmo caso, por titulares distintos, hipótese na qual um deles necessariamente teria que ceder. Há quem defenda, todavia, a existência de alguns direitos com valor absoluto", em especial, a dignidade da pessoa humana e alguns direitos que a concretizam mais diretamente. Para Norberto Bobbio (2004), por exemplo, existe um estatuto privilegiado, aplicável a pouquíssimos direitos fundamentais que não estão em concorrência [leia-se: colisão] com outros direitos igualmente fundamentais", dentre eles, o direito a não ser escravizado, que implica a eliminação do direito a possuir escravos, e o direito de não ser torturado, que implica a eliminação do direito de torturar. (g. n.)

Destarte, conforme ficou assentado pela doutrina especializada, a ideia da existência de direitos absolutos é incompatível com a ideia de que todos os direitos são passíveis de restrições impostas por interesses coletivos ou por outros direitos também consagrados na constituição.

Ademais, nas penas de Eduardo dos Santos, a relatividade[6],

Deriva do princípio da unidade da Constituição, pelo qual se reconhece que não há hierarquia entre direitos constitucionais, de modo que não é possível falar em direitos fundamentais absolutos, vez que um direito fundamental sempre pode sofrer limitações/restrições por outros direitos tão fundamentais quanto ele, assim os direitos fundamentais são relativos e não absolutos. Tomando como exemplo o direito à vida, tem-se que esse direito sofre restrições por normas constitucionais (há previsão de pena de morte em caso de guerra declarada, nos termos do art. 5º, XLVII, a, da CF/88) e por normas infraconstitucionais, como no caso de alguém que mate uma pessoa em legítima defesa de sua vida (direito à vida de Fulano restringido pelo direito à vida e pelo direito de defesa de Beltrano) ou mesmo de seu patrimônio (direito à vida de Fulano restringido pelo direito à propriedade e pelo direito de defesa de Beltrano), nos termos dos arts. 23, II, e 25, do Código Penal. (g. n.)

Ora, se nem mesmo o direito à vida é absoluto, quiçá a presunção de inocência!

Nesse sentido, temos que um dos direitos sociais assegurados a todos na Constituição da República é o direito à segurança (art. 6º).

Portanto, deve haver um sopesamento entre o princípio da presunção de inocência e o direito à segurança pública.

Aliás, mais à frente, a Constituição garante, em seu art. 144, que a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos.

Por essa razão é o que o ordenamento jurídico prevê as prisões processuais, como a preventiva e a temporária, a primeira no Código de Processo Penal e a segunda na Lei Federal nº 7.960/1.989.

Em relação à prisão preventiva, o artigo 312 do CPP prescreve que será decretada para garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado.

De outro vértice, a decretação da prisão temporária, será possível quando for imprescindível para as investigações do inquérito policial, quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade e quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos crimes elencados na lei.

Destarte, para a decretação judicial das prisões provisórias, basta a presença do fumus commissi delicti (fumaça do cometimento do crime) e do periculum libertatis (perigo de liberdade do imputado).

De seu turno, para a execução provisória da sentença penal, necessária se faz a existência de uma condenação proferida por órgão colegiado do Poder Judiciário.

Ora, para a condenação de qualquer pessoa é necessário mais do que o fumus commissi delicti e o periculum libertatis, sob pena de absolvição do acusado por falta de provas, nos termos do art. 386 do CPP.

Portanto, aqui reside o disparate: para a decretação da prisão processual de alguém bastam os indícios do cometimento da infração penal, e veja-se que a prisão preventiva não possui prazo determinado (art. 316, parágrafo único, CPP); porém, para a execução de uma sentença condenatória baseada numa certeza e proferida por órgão colegiado, composto por juízes em tese mais experientes, não é permitido o encarceramento.

Por essa razão, vemos que o artigo 283 do CPP, com redação dada pela lei federal nº 13.964/2019, viola o princípio da proporcionalidade.

Por conseguinte, entendemos que a razão está no voto proferido pelo ministro Luís Roberto Barroso na ADC nº 43, pelos vários argumentos despendidos. Entretanto, os que se amoldam ao presente trabalho são os seguintes:

Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E PENAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA OU DA NÃO CULPABILIDADE. POSSIBILIDADE DE EXECUÇÃO DA PENA APÓS JULGAMENTO DE SEGUNDO GRAU. INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO DO ART. 283 DO CPP. () 2. A prisão, nessas circunstâncias, justifica-se pela conjugação de três fundamentos jurídicos: (ii) a presunção de inocência é um princípio, e não uma regra absoluta, que se aplique na modalidade tudo ou nada. Por ser um princípio, precisa ser ponderada com outros princípios e valores constitucionais. Ponderar é atribuir pesos a diferentes normas. Na medida em que o processo avança e se chega à condenação em 2º grau, o interesse social na efetividade mínima do sistema penal adquire maior peso que a presunção de inocência; (iii) depois da condenação em 2º grau, quando já não há mais dúvida acerca da autoria e da materialidade delitiva, nem cabe mais discutir fatos e provas, a execução da pena é uma exigência de ordem pública para a preservação da credibilidade da justiça. (g. n.)

Por esses motivos, a despeito da presunção de inocência ou de não-culpabilidade ser um direito fundamental, cláusula pétrea (art. 60, § 4º, inc. IV, da CRFB), não é absoluta, e deve ser sopesada com outros valores constitucionais de igual envergadura.

Dentre esses outros direitos fundamentais, está a segurança pública, que é dever do Estado e direito e responsabilidade dos cidadãos.

Concluindo, entendemos que o norte adotado pela maioria da Corte Suprema nas ADCs nº 43, 44 e 54, e agora o art. 283 do CPP com a redação alterada pelo Pacote Anticrime, transformam a garantia da presunção de inocência em direito absoluto, e afastam o direito social à segurança dirigido a toda a sociedade, em contradição com a unanimidade da doutrina constitucionalista.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional. 26. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 36. ed. São Paulo: Atlas, 2020.

NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional.16. ed. - Salvador: JusPodivm, 2021.

SANTOS, Eduardo dos. Direito constitucional sistematizado. Indaiatuba: Editora Foco, 2021.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORMENA, Celso Bruno. A presunção de inocência é princípio absoluto?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6943, 5 jul. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98958. Acesso em: 18 abr. 2024.