Assunto: Procedimentos administrativos para a realização de evento (carnaval)
Ementa: Realização de evento. Procedimento prévio. Interesse local. Segurança Pública. Competência estadual. Licença estadual. Desnecessidade. A realização de evento temporário pelo Município independe de licença estadual, devendo-se, contudo observar a legislação municipal pertinente e a Lei estadual nº 14.130, de 2001, no que couber.
1. Indaga a Consulente sobre os procedimentos juridicamente exigíveis para a realização de evento público temporário. Especifica, ainda, que tal evento é o “carnaval 2013” e que, tendo apresentado ao Corpo de Bombeiros Militar solicitação de isenção de “projeto para evento temporário de baixo impacto”, a mesma não foi recebida por intempestividade.
2. O ponto jurídico em questão reside nas medidas administrativas que a Consulente deve observar para a realização do citado evento, entre as quais a necessidade de eventual licença a ser concedida pela corporação militar estadual sobredita.
3. Cumpre, inicialmente, verificar as competências incidentes sobre a questão, tendo em vista esclarecer a que normas e instâncias administrativas está sujeita a Consulente para a satisfação de seu intento.
Trata-se de objeto simples, qual seja a realização de evento temporário, o carnaval 2013. A matéria é tradicionalmente inscrita na legislação municipal de regulação urbana1, nomeadamente na normatização das posturas municipais e do zoneamento urbano2. Sobressai, neste caso, o interesse local, a implicar a competência municipal, legiferante e administrativa, sobre o tema, nos termos do art. 30, I, da Constituição da República.
Não obstante, verifica-se que parcela da competência para regular o tema reside em sede federal, consoante dispõe o art. 220, § 3º, I, da Constituição da República, segundo o qual lei federal deverá “regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao poder público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada”.
Tratando da matéria relativamente à proteção da criança e do adolescente, a Lei federal nº 8.069, de 1990, estabelece o seguinte:
Art. 74. O poder público, através do órgão competente, regulará as diversões e espetáculos públicos, informando sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada.
Parágrafo único. Os responsáveis pelas diversões e espetáculos públicos deverão afixar, em lugar visível e de fácil acesso, à entrada do local de exibição, informação destacada sobre a natureza do espetáculo e a faixa etária especificada no certificado de classificação.
Outra norma federal não há, estando, atualmente, em discussão, a possibilidade da edição de norma federal tratando do assunto3.
No âmbito estadual, remanesce competência para a edição de legislação e o exercício da função administrativa no que tange a aspectos de segurança pública envolvidos em eventos.
Assim, há a Lei estadual nº 14.130, de 2001, que dispõe sobre a prevenção contra incêndio e pânico, e seu regulamento, Decreto nº 44.746, de 2008, os quais, embora não tratem especificamente de segurança em eventos – norma inexistente –, contêm norma aplicável ao caso.
3.1. A questão está, portanto, sob a égide do interesse local, impondo reconhecer a competência do Município para legislar e exercer poder de polícia em eventos e espetáculos em geral. Isso porque, tradicionalmente, tem-se entendido que em situações como essa predomina o impacto do fato na esfera local.
Sobre o tema, Hely Lopes Meirelles já afirmava que "o assunto de interesse local se caracteriza pela predominância (e não pela exclusividade) do interesse para o Município, em relação ao do Estado e da União. Isso porque não há assunto municipal que não seja reflexamente de interesse estadual e nacional. A diferença é apenas de grau, e não de substância”4.
3.2. A matéria é, via de regra, encontrada na normatização de posturas municipais. Trata-se de um conjunto de regras destinado a regular a vida na sociedade urbana.
“Posturas” é termo usado desde fins da Idade Média, fruto da urbanização que marcará a modernidade, a exigir das autoridades das cidades uma regulação mais intensa e um controle mais rígido sobre as várias atividades que ocorrem na “urbis”5.
No Brasil, desde o período colonial há as legislações de posturas nas cidades, a incidir sobre procedimentos de conduta dos cidadãos, uso dos bens urbanos, padrões de higiene e salubridade das áreas públicas e das construções, controle de animais soltos, vendedores de ruas, comércio e circulação de mercadorias e serviços, policiamento da cidade, trânsito e tráfego, saúde pública, organização de cemitérios, disposição de resíduos nas ruas, licença para construir, entre tantos outros.
Posturas municipais compreendem, assim, um conjunto de normas que regulam a utilização do espaço público, delas decorrendo o exercício do poder de polícia “a abranger o vasto campo das questões relativas às lesões ou ameaça à saúde e à segurança pública”6.
Assim, deve-se, inicialmente, observar os procedimentos determinados na legislação municipal pertinente, especialmente o Código de Posturas Municipais. Nessa norma há disposições quanto a higiene, costumes, segurança e ordem pública a serem observadas. Cumpre ressaltar, entre outros dispositivos, o relativo ao sossego público, os específicos sobre comportamento em eventos, assim como os que tratam do licenciamento do evento.
3.3. Cumpre recordar, a propósito, que o Supremo Tribunal Federal tem mantido posição no mesmo sentido do esposado neste parecer, podendo-se citar os julgados a seguir:
“Os Municípios são competentes para legislar sobre questões que respeite a edificações ou construções realizadas no seu território, assim como sobre assuntos relacionados à exigência de equipamentos de segurança, em imóveis destinados a atendimento ao público”
(AI 491.420-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ de 24/3/2006).
“COMPETÊNCIA MUNICIPAL. C.F., art. 30, I, art. 192. I. - Competência municipal para legislar sobre questões que digam respeito a edificações ou construções realizadas no município: exigência, em tais edificações, de certos componentes. Numa outra perspectiva, exigência de equipamentos de segurança, em imóveis destinados ao atendimento do público, para segurança das pessoas. C.F., art. 30, I. II. - R.E. conhecido, em parte, mas improvido.”
(…) “Ademais, a matéria – colocação de porta eletrônica numa edificação local – é de interesse local: exigência, nas edificações, de certos componentes que, sem os quais, será negado o “habite-se”; ou, numa outra perspectiva, exigência de equipamentos de segurança, em certas edificações, em certos imóveis destinados ao atendimento do público – no que as agências bancárias aí se incluem – sem os quais o “alvará de funcionamento” não será fornecido. Ora, tudo isso situa-se na competência do município, pois constitui assunto de interesse local (C.F., art. 30, I)”.
(STF, 2ª Turma, RE nº. 240.406/RS, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ em 27/2/2004).
4. No plano da competência estadual, aspectos atinentes a segurança pública devem ser observados. Não existe, todavia, norma estadual que discipline, de maneira específica, a segurança pública em eventos temporários. Há, apenas, menção a tais eventos na Lei estadual nº 14.130, que cuida de prevenção a incêndio e pânico e se dirige a edificações e espaços de uso coletivo. Tal norma, todavia, obriga, no art. 6º, a que evento público, como o carnaval nas ruas do Município, tenha a presença de Responsável Técnico, conforme regulamento. O decreto regulamentar, por seu turno, dispõe da seguinte forma:
Art. 18. Os eventos públicos, como espetáculos, feiras e assemelhados, deverão contar com profissional habilitado como responsável pela segurança do evento e dos sistemas preventivos existentes ou projetados.
§ 1º O disposto no “caput” aplica-se na realização de eventos em construções provisórias, nas de recepção de público e nas demais onde ocorrerem tais eventos, sendo aquele profissional o responsável técnico pela segurança e pelas instalações, objeto da respectiva Anotação de Responsabilidade Técnica perante o Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura de Minas Gerais - CREA-MG.
§ 2º As atividades a cargo do profissional nos eventos e os procedimentos serão estabelecidas em Instrução Técnica específica.
Verifica-se, portanto, a necessidade de haver, a serviço da Prefeitura consulente no evento, responsável técnico com registro em órgão profissional, sendo suas atividades sujeitas a instrução específica. Note-se que compete à Prefeitura Municipal tão somente constituir responsável técnico. Não há, outrossim, qualquer previsão legal a impor outro procedimento qualquer.
Reafirme-se que a fiscalização do evento é matéria afeta ao Município. Note-se que o próprio legislador estadual, apreciando matéria análoga, reconheceu a prerrogativa municipal no caso:
“(...) o conteúdo do projeto ofende o princípio constitucional da autonomia municipal. (…) A fiscalização das casas de festas infantis e dos estabelecimentos análogos está intimamente relacionada com a cláusula constitucional do interesse local, cabendo ao próprio Município tomar as medidas legislativas e administrativas necessárias para garantir a segurança das pessoas que frequentam esses estabelecimentos. Se o assunto, pela sua peculiaridade, enquadra-se no interesse da municipalidade, tal fato exclui a competência do Estado e da União.
Veja que cabe ao Município autorizar e fiscalizar os estabelecimentos que pretendam se instalar, ainda que temporariamente, dentro de sua circunscrição; para isso, deve editar as normas pertinentes às suas particularidades, relativas, por exemplo, às regras sanitárias, de higiene, de segurança, meio ambiente, bem como as relativas ao local e horário de funcionamento. Se o particular preencher os requisitos previstos nessa legislação, deverá a municipalidade expedir o alvará de funcionamento, permitindo, assim, que um determinado estabelecimento se instale e funcione regularmente dentro do Município”
(ALMG. CCJ. Parecer sobre o PL 2643/2011. Relator: dep. Sebastião Costa. 26/10/2012).
5. Perceba-se, portanto, que deve ser obtida, no setor competente da Prefeitura Municipal, e conforme o Código de Posturas, autorização para que seja realizado o pretendido evento. Afinal, a Consulente se sujeita às leis municipais como qualquer pessoa. Não se confundem a Prefeitura, expressão administrativa do ente federativo, e o Município em sua feição de ordem jurídica7. Pelo contrário, enquanto sujeito de direito o poder público está não apenas sob a legalidade ordinária, a que se refere o art. 5º da Constituição da República, mas à legalidade estrita prevista no art. 37. do mesmo Diploma.
Deve, bem assim, haver a indicação do responsável técnico para a finalidade específica de prevenção a situações de incêndio e pânico, em obediência à Lei estadual nº 14.130 e seus regulamentos. Assinale-se, adicionalmente, que eventual ato administrativo normativo estadual que imponha à Consulente outro comportamento, deve ser tido por ilegal. Este entendimento vale para fins de interpretação e aplicação da Instrução Técnica nº 33, do Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Minas Gerais, no que toca à necessidade de o interessado na realização de evento temporário obter daquele órgão qualquer tipo de autorização específica. A Lei estadual nº 14.130 impõe, nesses casos, apenas a necessidade do responsável técnico e nada mais, cumprindo recordar que é incabível inovação normativa em sede de regulamentação, sendo certo que nossa ordem jurídica repudia o regulamento autônomo8.
6. Em face do exposto, concluímos o seguinte:
a) A realização do evento em espaço público deve obedecer, essencialmente, o Código de Posturas Municipal e a legislação municipal pertinente;
b) Adicionalmente, deve observar as regras aplicáveis previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Lei estadual nº 14.130;
c) A realização do carnaval 2013 independe de licença ou autorização de órgão federal ou estadual, mas deve ser licenciado nos termos da legislação municipal.
Este o nosso parecer.
Belo Horizonte, 6 de fevereiro de 2013.
Wladimir Rodrigues Dias
NOTAS
CORRALO, Giovani da Silva. Curso de Direito Municipal. São Paulo: Atlas, 2011.
PONTES, Daniele Regina e FARIA. José R. V. Direito Municipal e Urbanístico. Curitiba: Iesde, 2009, p. 63.
“Após tragédia, chefe de comissão defende lei federal para evitar incêndios”. https://www.bbc.co.uk /portuguese/noticias/ 2013/01/130123_lei_federal_jf.shtml.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
GARCIA, Romay Conde. Uma questão de posturas: Crise e Renovação do Poder de Polícia Municipal. In: Revista Municípios, n. 248, Rio de Janeiro, Jul/Ago, 2004.
COSTA, Nelson Nery. Curso de Direito Municipal Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1ª Edição, p. 173.
Ver a distinção em NAWIASKI, Hans. Teoria General del Derecho. Madrid: Rialp, 1962.
DIAS, Wladimir Rodrigues. A Administração Pública na Ordem Jurídico-Constitucional. In: Curso Prático de Direito Administrativo. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.