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O conteúdo jurídico da igualdade nas relações privadas:

o problema do casamento homoafetivo

16/11/2014 às 12:13
Leia nesta página:

Examina-se a possibilidade constitucional do casamento entre pessoas do mesmo sexo, esmiuçando-se o conteúdo jurídico da igualdade à luz das lições de Celso Antônio Bandeira de Mello.

PROCESSO: XXXXX/2014

PARECER: XXXXX/2014

INTERESSADOS: Srs. Mário e Jorge

ASSUNTO: Habilitação para o casamento de pessoas do mesmo sexo

EMENTA: Habilitação para o casamento de pessoas do mesmo sexo. Possibilidade constitucional. Inteligência dos arts. 1º, III, 3º, IV, 5º, caput, 226, caput, todos da Constituição Federal de 1988. 

A habilitação para o casamento homoafetivo encontra abrigo no texto constitucional, pois está em inteira harmonia com os interesses fundamentais da República, mormente a dignidade da pessoa humana, a proibição de preconceito, a isonomia, e a proteção da família.


PARECER

Excelentíssimo Sr. Juiz da  Vara de Família e Sucessões, cumprindo o teor do despacho acostado às fls., este membro do Ministério Público do Estado, com fulcro no art. 82, II, da Lei n.º 5.869/73 – Código de Processo Civil –, vem, por meio de parecer circunstanciado, manifestar-se acerca da possibilidade da habilitação para o casamento dos interessados acima identificados.


Relatório

Trata-se de impugnação ajuizada pela Sra. Dorotéia, representante do Clube das Mães da Igreja de São Sebastião, em face da habilitação para o casamento dos Srs. Mário e Jorge, realizada pelo Oficial de Registro do 1º Cartório de Registro Civil de Pessoas.

A impugnante, em suma, alega que os nubentes não podem se habilitar para o casamento, já que são pessoas do mesmo sexo.

Ato subseqüente à impugnação, o Oficial de Registro do referido cartório procedeu à colheita da defesa dos noivos, para, logo em seguida, com respaldo no art. 1.526, pár. único, do Código Civil de 2002, submeter o caso à apreciação do MM. Juiz de Direito da Vara de Família e Sucessões.

Considerando a relevante missão de defesa da ordem jurídica desempenhada por este Órgão Ministerial, o d. Juiz de Direito abriu vistas dos autos a esta promotoria, a fim de que se pronuncie acerca da possibilidade, no ordenamento jurídico vigente, da habilitação para o casamento dos Srs. Mário e Jorge.

É o que basta relatar.


Fundamentação

De imediato, cumpre consignar a legitimidade de intervenção do Ministério Público do Estado do Piauí no feito, tendo em vista que os interesses em rota de colisão, embora sejam individuais, possuem natureza homogênea. Decerto, as pretensões jurídicas aqui deduzidas transbordam a esfera individual dos interessados para alcançar um sem número de cidadãos homossexuais igualmente ávidos pela celebração do casamento. Resvalam, outrossim, nas convicções de grande parcela da sociedade que ainda enxerga no casamento um instituto sagrado, destinado a unir homem e mulher “até que a morte os separe”.

Desta feita, considerando que o objeto do processo sub examine reveste-se de inegável relevância social, passa-se, em estreita obediência aos contornos do art. 127 da Constituição Federal de 1988 (CF/88), a analisar o mérito da vertente demanda.

Alega a parte impugnante que, ao par homoafetivo interessado, não é dada a possibilidade de habilitação para o casamento, ante a inteira incompatibilidade desse instituto civil com a natureza da relação de afeto entre dois homens.

Deveras, a doutrina civilista brasileira, na esteira de Lafayette, ensina que o casamento civil é “um ato solene pelo qual duas pessoas de sexo diferente se unem para sempre, sob promessa recíproca de fidelidade no amor e da mais estreita comunhão de vida”. Saliente-se que a possibilidade de casamento por pessoas do mesmo sexo não está tratada pelo atual do Direito objetivo brasileiro.

Todavia, na contramão da amedrontada legislação pátria, a jurisprudência e os juristas, concatenados com o espírito da Constituição da República, avançam paulatinamente no sentido de viabilizar direitos de família àqueles que em nada se diferenciam dos ditos “normais”, a não ser pelo fato de dispensarem amor a alguém que a natureza deu o mesmo sexo.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º132/RJ, assentou entendimento segundo o qual o art. 1.723 do Código Civil de 2002 (CC/2002), a despeito da literalidade do dispositivo abrigar apenas a união entre homem e mulher, deve ser interpretado conforme a CF/88, para que dele seja excluído “qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família”.

Ninguém pode desconhecer a relevância da evolução hermenêutica praticada pelo Pretório Excelso no aludido julgado, superando jurisprudência anterior que conferia apenas direitos patrimoniais às uniões homoafetivas, reconhecendo-as como meras sociedades de fato. Entretanto, aclare-se, o passo dado pelo STF, na ADPF 132/RJ, ainda não alcançou o instituto do casamento civil. Justificado, portanto, o inconformismo da impugnante.

Nesse passo, a inquietação deste parecerista redunda nas seguintes indagações: por que não cominar aos pares homoafetivos os mesmos direitos dos casais heteroafetivos, decorrentes do casamento? O sexo pode ser considerado elemento de discrímen para fins de casamento? Ainda que o seja, tal correlação lógica, sexo-casamento, coaduna-se com os interesses primaciais da CF/88?

No afã de solucionar os problemas acima suscitados, impõe-se a doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello, expressa na obra “O conteúdo jurídico do princípio da igualdade”. Ensina o celebrado jurista que “as leis nada mais fazem senão discriminar situações para submetê-las à regência de tais ou quais regras”, devendo-se indagar, impreterivelmente, “quais as discriminações juridicamente intoleráveis”.

A discriminação, portanto, mesmo quando correlata ao sexo, à raça ou ao credo religioso, pode ser válida desde que justificada pelas peculiaridades apresentadas pelo caso concreto. Assim, por exemplo, o fato de determinado religioso ser desobrigado a se incorporar às Forças Armadas, facultando-lhe o cumprimento de atividades alternativas, não viola o princípio da isonomia, pois esta não é hipótese de uma discriminação gratuita ou injustificada.

Noutras palavras, o que se quer afirmar é que o fator erigido como critério de discrímen deve guardar correlação lógica com a disparidade de tratamento jurídico dispensado a um ou outro indivíduo. No caso hipotético acima apresentado, o vínculo racional entre a preservação da convicção religiosa e a desobrigação à incorporação às Forças Armadas justifica, em princípio, a discriminação.

 Revolve-se, então, a indagação supra transcrita: há correlação lógica entre o sexo e o casamento civil, para fins de justificar racionalmente a discriminação dos pares homoafetivos?

A solução para tal questionamento reclama um breve escorço histórico. No passado, o casamento destinava-se, precipuamente, a constituição da prole, para que os filhos, quando os pais quedassem em estado senil, pudessem solver a necessidade de alimentos da família. Os integrantes da família – pai, mãe e filhos – possuíam traços bastante nítidos dentro da estrutura familiar, de sorte a padronizá-la nos seguintes contornos: sobre os ombros do pai, estava o fardo da responsabilidade de ser o chefe da casa, cabendo à mãe e aos filhos uma posição subalterna, de estreita obediência aos comandos do patriarca.

Esse modelo patriarcal de família sustentou-se firme por muitos séculos, encontrando seu ápice na Idade Média, robustamente impregnada pelos valores cristãos, segundo os quais o padrão de família deveria seguir o exemplo dos primogênitos da Terra: Adão e Eva, homem e mulher juntos na missão de povoar o mundo. Sobre os homossexuais deveria descer “fogo e enxofre do céu”, como no episódio da destruição de Sodoma e Gomorra, relatado pela Bíblia Sagrada, no livro de Gênesis.

Séculos após o período medieval, eclode a Revolução Industrial. O estereótipo de família, até então construído, começa a ruir. É que, a partir desse momento da História, a mulher passa, timidamente, a se libertar das amarras domésticas, alterando, gradativamente, a estrutura familiar. Com a conquista do mercado de trabalho, ainda precário nesse interregno histórico, o tamanho da prole diminui, notadamente, por conta da disparidade entre os custos que demandava uma família extensa e a escassez dos recursos percebidos como contraprestação do labor exercido. A família, definitivamente, não era mais a mesma.

O Ministro do STF Marco Aurélio de Melo, em seu voto na ADPF 132/RJ, lembra que, na mesma toada do resto do mundo, o Brasil, já no século XX, experimentou alguns reflexos dessa transição paradigmática. Exemplificando tal afirmação, cita a edição, em 1962, do Estatuto da Mulher Casada (Lei n.º 4.121/62), o qual estabelecia a capacidade de fato da mulher e a possibilidade de administração de bens reservados, e a introdução do instituto do divórcio no ordenamento jurídico até então vigente, por meio da EC n.º 9/77 e da Lei n.º 6.515/1977.

É de se destacar, por fim, o tratamento dispensado à família pela CF/88, haja vista ser esse o diploma normativo situado no ápice do estudado processo evolutivo. Com efeito, na Carta Cidadã, o ser humano foi deslocado ao centro do sistema, reclamando especial cuidado da interpretação e da aplicação do Direito. À mulher foram conferidos os mesmos direitos e deveres dos homens, afastando-se a posição de subserviência que, outrora, lhe era reservada. Os filhos, frutos de relações extraconjugais, deixaram de carregar a pecha de “adulterinos”, para gozarem de igual proteção do Direito. Já as relações homoafetivas, intencionalmente, ficaram no “limbo”, ou seja, não foram expressamente tratadas, nem para se permitir, tampouco para se proibir.

Portanto, dessa breve investida histórica, é possível notar que as modificações, pelas quais passou a família, conquanto tenham impactado fortemente as bases da sociedade, não foram fortes o bastante para eliminar definitivamente alguns ranços. Nesse sentido, o casamento, entendido como um instrumento à construção da família, atravessou milênios tendo como sujeitos o homem e a mulher. Para os homossexuais, a história destinou o pecado, a imoralidade, a clandestinidade, ou, no máximo, o silêncio. O Direito, como produto das experiências sociais, não poderia enxergar esse fato de modo distinto: os relacionamentos fora da normalidade matrimonial “estavam fadados à invisibilidade jurídica”, para citar novamente o voto do Ministro Marco Aurélio de Melo, ainda na ADPF 132/RJ. 

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Enfim, tendo em mente o substrato histórico produzido, é possível responder a indagação suso acerca do vínculo lógico entre a distinção de sexo e o casamento civil. Saliente-se que, em havendo motivos para a desigualação, ainda não se pode cogitar de afronta à isonomia.

Destarte, ajuíza-se que, historicamente, não restam dúvidas sobre a existência de uma forte correlação lógica entre o sexo (fator de discriminação) e o casamento, pois, conforme explanado acima, quem sempre ocupou a posição jurídica de marido foi “Adão”, e a de esposa, “Eva”. Atualmente, contudo, a função do casamento não se exaure simplesmente na produção da prole, tampouco se está diante de uma sociedade homogênea quanto aos credos religiosos.

Ao contrário, o Brasil, país de dimensões continentais, é uma nação de heterogeneidade que lhe peculiariza, sobretudo, quando os temas concernem à religião e ao comportamento humano. Dessa maneira, a postura ética ideal a ser adotada em relação ao casamento está longe do consenso, pois, consoante assinala Luís Roberto Barroso, discorrendo acerca da gestação de fetos anencéfalos e pesquisas com células-tronco, “o senso moral de cada um envolve elementos diversos, que incluem a) a consciência de si, a definição dos próprios valores e da própria conduta; e b) a percepção do outro, o respeito pelos valores do próximo e a tolerância com sua conduta.” Por isso, justifica-se o silêncio do constituinte ao estabelecer o “direito de não ter dever” no que atine à disposição sexual da pessoa humana, pois, em situações de profundo dissenso sobre dado tema, ou de “desacordo moral razoável”, como prefere Jeremy Waldron, o papel do Estado deve ser o de assegurar a autonomia privada, de respeitar a valoração ética de cada um, sem a imposição externa de condutas imperativas.

Pois bem. Ressalvado entendimento pessoal em contrário, pode se admitir, também, que a concepção, amparada por valores católicos, da Sra. Dorotéia sobre o casamento civil é racionalmente defensável, eis que o substrato histórico a habilita a defender que o sexo é sim fator de discrímen apto a promover a desigualação de tratamento, merecendo o casamento apenas os casais heterossexuais.     

No entanto, ainda que possa haver correlação lógica entre o sexo e o casamento, para efeitos de se estabelecer tratamento diversificado aos pares homoafetivos, a última e mais importante indagação se impõe: o vínculo de correlação referido é pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos?

A resposta, parece-me, negativa. Eis as razões.

Com efeito, o modelo adotado pela CF/88 está fincado, sobremaneira, na pessoa humana, constituindo a sua dignidade fundamento da República Federativa do Brasil. Ressalte-se que não se quer empregar, aqui, tal fundamento de modo vazio, mas, sim, dando-lhe a significação substantiva condizente com o livre desenvolvimento da personalidade, ou com a “busca da plenitude existencial”, como acentua o Ministro Relator da ADPF 132/RJ Carlos Ayres Britto. Ainda citando o Ministro poeta, é dizer que a preferência sexual, como emanação direta da dignidade da pessoa humana, é “poderoso fator de afirmação e elevação pessoal. De auto-estima, de sua parte, a aplainar o mais abrangente caminho da felicidade”. Arremata, com a maestria que lhe é característica: “Afinal, se as pessoas de preferência heterossexual só podem se realizar heterossexualmente, as de preferência homossexual seguem a mesma toada: só podem se realizar ou ser felizes homossexualmente”.

Por sua vez, o comando inserto no art. 3º, IV, da CF/88, corrobora o direito subjetivo de optar por dada preferência sexual, na medida em que veda expressamente o preconceito em razão do sexo. Do texto constitucional referido, extrai-se a norma de acordo com a qual promover o bem de todos, fechando-se os olhos às distinções inerentes à pessoa, é objetivo fundamental do Brasil, devendo, por isso, ser perseguido por todas as esferas de Poder.   

Ainda investindo nas normas constitucionais, impera mencionar a especial proteção concedida à família pela cabeça do art. 226 da CF/88, cujo teor merece transcrição: “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. E, nesse ponto, pede-se vênia àqueles que ainda conservam o modelo tradicional de família, para evoluir o entendimento sobre o que caracteriza realmente família. Decerto, sobretudo após a decisão do STF na ADPF 132/RJ, a família assumiu feições contemporâneas, de sorte a sintonizar-se com a realidade factual, que há muito saltava aos olhos.

Assim, a formatação tradicional da estrutura familiar, outrora reputada fator essencial à qualificação da família, cede espaço ao elemento acertadamente apontado como seu diferenciador: o afeto. Isto é dizer que, desde que haja afeto, e que tal afeto seja visivelmente traduzido aos olhos da sociedade e do Estado como um sentimento de companheirismo duradouro, contínuo, as características estruturais da família, bem como as preferências de seus integrantes, são irrelevantes.

Portanto, em obediência ao mandamento constitucional inserto na cabeça do art. 226, da CF/88, também merece especial proteção do Estado a família homoafetiva. E, diga-se, “especial proteção” quer significar a utilização de todos os meios e institutos de Direito destinados a salvaguardá-la, a família, dos mais corriqueiros contratempos da vida moderna, o que inclui, induvidosamente, o casamento, haja vista ser esse o instituto que melhor desempenha tal função protetiva.

Igualmente sensível à leitura constitucional que aqui se pretendeu desenvolver acerca do casamento e da família, o Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, nas palavras do brilhante Desembargador Francisco Paes Landim, elaborou o Provimento 24/2012, cujo teor dispõe sobre a escrituração da união estável homoafetiva nas Serventias Extrajudiciais do Estado do Piauí, para regulamentar a conversão da união estável homoafetiva em casamento e autorizar o processamento dos pedidos de habilitação de casamento entre pessoas do mesmo sexo. 

Por essas razões, no terreno constitucional, não se sustenta a desequiparação de tratamento pretendida pela Sra. Dorotéia, posto estar em altissonante discordância com os interesses protegidos na Constituição. No caso de que se cuida, a correlação lógica entre sexo e casamento, conquanto possa existir, é insuficiente a legitimar a discriminação dos pares homoafetivos, eis que os pilares em que se funda a Lei Maior não podem ser objeto de vilipêndio.


Conclusão

Pelos fundamentos acima invocados, conclusivamente, opina o Ministério Público do Estado pelo regular processamento do casamento dos Srs. Mário e Jorge.

É como me parece.

Teresina (PI), 10 de novembro de 2014

CAIO VÍNICIUS SOUSA E SOUZA

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Sobre o autor
Caio Vinícius Sousa e Souza

Estudante de Direito da Universidade Federal do Piauí. Estagiário de Direito da 4ª Vara Cível de Timon/MA. Ex-estagiário de direito do Ministério Público do Trabalho (22ª Região) e da Defensoria Pública do Estado do Piauí.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Caio Vinícius Sousa. O conteúdo jurídico da igualdade nas relações privadas:: o problema do casamento homoafetivo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4155, 16 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/33774. Acesso em: 2 nov. 2024.

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