Devolução de prêmio de seguro para cobertura de risco na carteira de empréstimo a participantes

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30/11/2016 às 10:36
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O parecer analisou a situação jurídica em que uma seguradora se recusou a continuar uma prática contratual de quase duas décadas, deixando de devolver parte do prêmio pago sob a alegação de que tal prática seria vedada pela legislação de seguros

Determinada entidade de previdência (Fundação) contratou, na condição de estipulante,2 seguro para cobertura de risco de morte em sua carteira de empréstimos a participante junto à certa companhia de seguros (Seguradora).

Tal contrato vigorou por quase vinte anos. Na hipótese de haver a liquidação antecipada do empréstimo, a Seguradora efetuava a devolução proporcional do seguro em relação ao prazo remanescente, mediante compensação quando do repasse mensal dos prêmios da apólice.

Quando a Fundação decidiu criar um fundo de solvência, encerrou o contrato. Entretanto, a Seguradora negou-se a proceder à devolução de valores, alegando, em síntese, que a legislação impediria a devolução de prêmio quando estruturado o seguro na forma de regime de caixa ou de repartição simples, como é o caso. Além disso, a própria apólice firmada entre as partes conteria cláusula impeditiva à devolução de prêmio.

Assim postos os fatos, passemos à análise da questão.


1. CARACTERÍSTICAS DO CONTRATO DE SEGURO

O contrato de seguro é um negócio jurídico que visa garantir determinado risco, mediante o pagamento de um prêmio ao segurador. Na lição de Arnoldo Wald: “Seguro é o contrato pelo qual o segurador, mediante recebimento de um prêmio, se obriga a pagar certo valor convencionado, ao segurado ou a terceiro (beneficiário) geralmente no caso de ocorrência de sinistro.” 3

O Código Civil assim conceitua o contrato de seguro:

Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados. 4

O contrato em questão configura seguro de pessoas5, eis que o risco segurado era o de morte do mutuário durante o período de pagamento do empréstimo. Maria Helena Diniz esclarece que “nosso Código Civil permite que a pessoa humana seja objeto de seguro contra os riscos de morte, comprometimento de saúde, incapacidade ou de acidentes.”6

Tal seguro é da categoria prestamista, definido como sendo: “aquele no qual os segurados convencionam pagar prestações ao estipulante para amortizar dívida contraída ou para atender a compromisso assumido. O primeiro beneficiário é o próprio estipulante pelo valor do saldo da dívida ou do compromisso. A diferença que ultrapassar o saldo será paga ao segundo beneficiário, indicado pelo segurado. O seguro prestamista, geralmente, apresenta as coberturas de morte, invalidez e desemprego”.7

Os seguros em nosso país são regulados pelo Decreto-Lei nº 73, de 21.06.1966, que criou, em seu art. 8º, um Sistema Nacional de Seguros Privados, tendo à frente o Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP), órgão normativo, e a Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), órgão de execução e fiscalização, ambos vinculados ao Ministério da Fazenda.

O instituto do seguro é fruto de uma evolução histórica de séculos, constituindo, atualmente, uma imperiosa necessidade em todos os setores da vida, eis que, conforme aponta J.J. Calmon de Passos8, “a sociedade contemporânea caracteriza-se pela diminuição do perigo e incremento do risco”. O seguro, na visão do ilustre professor, “institucionaliza, em termos técnicos, o imperativo da solidariedade numa sociedade de riscos”.

O seguro é um contrato bilateral, ou sinalagmático porque depende da manifestação de vontade de ambos os contratantes (segurador e segurado), que se obrigam reciprocamente. De acordo com Orlando Gomes9, ao segurador “compete pagar a quantia estipulada para a hipótese de ocorrer o risco previsto no contrato”. Ao segurado “assiste o direito de recebê-la, se cumprida a sua obrigação de pagar a contribuição prometida, que se denomina prêmio”.

Além de bilateral, o contrato de seguro é aleatório, eis que o risco pode ocorrer ou não; oneroso, “por criar vantagens ou expectativa de vantagens patrimoniais para ambas as partes10; consensual, porque deve haver consentimento recíproco das partes; e de adesão, haja vista que o contratante apenas adere às cláusulas em bloco.

Além dessas características, possui o contrato de seguro um elemento fundamental que é o da boa-fé. Sérgio Cavalieri Filho11 chega a dizer que a boa-fé é a “alma do seguro” e “seu elemento jurídico”.

De fato, tamanha é a importância da boa-fé no contrato de seguros, que no Código Civil anterior, havia a seguinte menção expressa:

Art. 1.443. O segurado e o segurador são obrigados a guardar no contrato a mais estrita boa-fé e veracidade, assim a respeito do objeto, como das circunstâncias e declarações a ele concernentes.

O atual Código Civil prescreve a boa-fé como condição para os contratos de modo geral, em seu art. 422:

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Neste norte, Maria Helena Diniz12 explana sobre o princípio da boa-fé, objetiva e subjetiva, aduzindo que:

A boa-fé subjetiva é atinente ao fato de se desconhecer algum vício do negócio jurídico. E a boa-fé objetiva, prevista no artigo sub examine, é alusiva a um padrão comportamental a ser seguido baseado na lealdade, impedindo o exercício abusivo de direito por parte dos contratantes, no cumprimento não só da obrigação principal, mas também das acessórias, inclusive do dever de informar, de colaborar e de atuação diligente. Ressalta-se que em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 222. do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa. Esse artigo não inviabiliza a aplicação, pelo julgador, do princípio da boa-fé nas fases pré e pós-contratual. A cláusula geral contida no art. 422. do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes, incompatível com conduta abusiva, tendo por objetivo gerar, na relação obrigacional, a confiança necessária e o equilíbrio das prestações e da distribuição de riscos e encargos, ante a proibição do enriquecimento sem causa. E na, interpretação da cláusula geral da boa-fé, deve-se levar em conta o sistema do Código Civil e as conexões sistemáticas com outros estatutos normativos e fatores metajurídicos (Enunciados n. 24, 25, 26 e 27, aprovados na jornada de direito civil, promovida, em setembro de 2002, pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal). Para Miguel Reale a boa-fé é condição essencial à atividade ético-jurídico, caracterizando-se pela probidade dos seus participantes. A boa-fé, continua ele, é forma de conduta e norma de comportamento, sendo ainda, na lição de Judith Martins-Costa, um ‘cânone hermenêutico integrativo do contrato; como norma de criação de deveres jurídicos e como norma de limitação ao exercício de direitos subjetivos’”.

Para Washington de Barros Monteiro13 a boa-fé decorre do princípio da probidade nas relações jurídicas:

“o princípio de probidade versa sobre um conjunto de deveres, exigidos nas relações jurídicas, em especial, os de veracidade integridade, honradez e lealdade. Desse princípio decorre logicamente o da boa-fé, que reflete não apenas uma regra de conduta, mas consubstancia a eticidade orientadora da construção jurídica do Código Civil de 2002. A boa-fé juntamente com a probidade oferece a segurança das relações jurídicas, ou seja, dependem da confiança e respeito mútuos, da lealdade e da equivalência das prestações e contraprestações. A ausência desses princípios basilares torna o negócio jurídico viciado, pois deturpa o consentimento das partes. Apesar das contraposições de interesses, as condutas das partes subordinam-se a regras comuns da honestidade, reconhecida perante a boa-fé, que foram com o Código Civil de 2002 positivadas no art. 422.”

Segundo Sílvio de Salvo Venosa14:

a idéia central é no sentido de que, em princípio, contratante algum ingressa em um conteúdo contratual sem a necessária boa-fé. A má-fé inicial ou interlocutória em um contrato pertence à patologia do negócio jurídico e como tal deve ser examinada e punida. Toda a cláusula geral remete o intérprete para um padrão de conduta geralmente aceito no tempo e no espaço. Em cada caso o juiz deverá definir quais as situações nas quais os partícipes de um contrato se desviaram da boa-fé.”

Arnaldo Rizzardo15, ao analisar a probidade e a boa-fé nos contratos, destaca que:

“são estes dois princípios básicos que orientam a formação do contrato. As partes são obrigadas a dirigir a manifestação da vontade dentro do interesse que as levaram a se aproximar, de forma clara e autêntica, sem o uso de subterfúgio ou intenções outras que as não expressas no instrumento formalizado. A segurança das relações jurídicas dependem, em grande parte, da probidade e da boa-fé, isto é, da lealdade, da confiança recíproca, da justiça, da equivalência das prestações e contraprestações, da coerência e clarividência dos direitos e deveres.”

Orlando Gomes16 ensina:

“o princípio da boa-fé entende mais com a interpretação do contrato do que com sua estrutura. Por ele significa que o literal da linguagem não deve prevalecer sobre a intenção manifestada na declaração de vontade, ou dela indeferível. Ademais, subentendem-se, no conteúdo do contrato, proposições que decorrem da natureza das obrigações contraídas, ou se impõem por força do uso regular e da própria equidade. Fala-se na existência de condições subentendidas. Admite-se enfim que as partes aceitam essas conseqüências, que realmente rejeitariam se as tivessem previsto.”

No campo específico dos seguros, a Resolução CNSP nº 117, de 2004, que “altera e consolida as regras de funcionamento e os critérios para operação das coberturas de risco oferecidas em plano de seguro de pessoas, e dá outras providências”, estabelece, em seu art. 59. que:

Art. 59. Não poderão constar das condições gerais ou especiais cláusulas coercitivas, desleais, abusivas, impostas, incompatíveis com a boa-fé e com a eqüidade ou que estabeleçam obrigações iníquas, que coloquem o segurado, beneficiário ou assistido em desvantagem, ou que contrariem a regulação em vigor. 17

Ressalte-se que a boa-fé deve existir em todos os momentos da relação contratual, inclusive quando do seu término, conforme leciona a já citada Maria Helena Diniz18:

O princípio da probidade e o da boa-fé estão ligados não só à interpretação do contrato, pois, segundo eles, o sentido literal da linguagem não deverá prevalecer sobre a intenção inferida da declaração de vontade das partes, mas também ao interesse social de segurança das relações jurídicas, uma vez que as partes têm o dever de agir com honradez, lealdade, honestidade e confiança recíprocas, isto é, proceder de boa-fé tanto na tratativa negocial, formação e conclusão do contrato como em sua execução e extinção, impedindo que uma dificulte a ação da outra.

O negócio jurídico entre Seguradora e Fundação foi regido por um contrato escrito (apólice), mas não se conteve nos limites de suas cláusulas, como se verifica na prática reiterada de permitir-se a devolução parcial do prêmio para o período não mais coberto do risco, por quase duas décadas.

Assim sendo, mesmo que não tenha constado explicitamente do contrato entre as partes, a vontade das partes foi exercida de maneira consensual, límpida e na mais absoluta boa-fé, significando, pura e simplesmente, que a cláusula contratual que impedia devolução de prêmio de seguros foi derrogada pelo exercício soberano da vontade das partes.

E isto não tem nada de extraordinário no universo do Direito das Obrigações e dos Contratos, eis que a vontade sempre prevalece sobre o sentido literal do contrato e como tal deve ser interpretado, como, de resto, determina o Código Civil:

“Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.”

Miguel Reale afirma que:

“desde que haja manifestação de vontade, por parte de quem tenha legitimação para fazê-lo, constitui-se o negócio jurídico.....

.................

Donde poder-se dizer que negócio jurídico é ato jurídico pelo qual uma ou mais pessoas, em virtude de declaração de vontade, instauram uma relação jurídica, cujos efeitos, quanto a elas e às demais, se subordina à vontade declarada, nos limites consentidos pela lei.

..............

Em virtude da declaração ou manifestação da vontade – o que pressupõe, por conseguinte, o reconhecimento da autonomia da vontade pelo ordenamento jurídico do País, - podemos constituir, modificar ou extinguir determinados tipos de relações jurídicas, disciplinando os nossos interesses, nos limites e em função do interesse social.” 19

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Assim, portanto, prática de devolução parcial do prêmio integra, para todos os fins de direito, a apólice havida entre as partes.

A conseqüência desse cristalino fato é que, ao negar devolução de parte do prêmio do seguro, a Seguradora está descumprindo o contrato com a Fundação.

Age a Seguradora com violação ao princípio do Direito expresso no brocardo venire contra factum proprium non valet, que reporta à vedação de a parte agir contra fato próprio a que deu causa.

O princípio da vedação do comportamento contraditório (ou princípio da tutela da confiança legítima ou, ainda, nemo potest venire contra factum proprium) se relaciona diretamente à boa-fé objetiva e decorre do valor constitucional da dignidade da pessoa humana.

Caio Mário da Silva Pereira20 tece considerações sobre o princípio, ensinando que:

“A boa-fé referida no art. 422. do Código é a boa-fé objetiva, que é característica das relações obrigacionais. Ela não se qualifica por um estado de consciência do agente de estar se comportando de acordo com o Direito, como ocorre com a boa-fé subjetiva. A boa-fé objetiva não diz respeito ao estado mental subjetivo do agente, mas sim ao seu comportamento em determinada relação jurídica de cooperação. O seu conteúdo consiste em um padrão de conduta, variando as suas exigência de acordo com o tipo de relação existente entre as partes.

A boa-fé objetiva serve como elemento interpretativo do contrato, como elemento de criação de deveres jurídicos (dever de correção, de cuidado e segurança, de informação, de cooperação, de sigilo, de prestar contas) e até como elemento de limitação e ruptura de direitos (proibição do venire contra factum proprium, que veda que a conduta da parte entre em contradição com conduta anterior, do inciviliter agere, que proíbe comportamentos que violem o princípio da dignidade humana, e da tu quoque, que é a inovação de uma cláusula ou regra que a própria parte já tenha violado).

A positivação do princípio da boa-fé objetiva como cláusula geral do Código de 2002 certamente em muito contribuirá para o seu desenvolvimento na doutrina e jurisprudência brasileira. Na apuração da conduta contratual, em face da probidade e boa-fé, exigidos pelo artigo, o juiz não pode deixar de se informar dos usos, costumes e práticas que os contratantes normalmente seguem, no tocante ao tipo contratual.”

Nelson Nery Junior21, acerca do assunto, expõe que

“não se admite que alguém venha a negar seus próprios atos, ou como já proclamava a glosa do direito romano: venire contra factum proprium non valet. Trata-se da identificação da boa fé objetiva como fundamento normativo do princípio de proibição do comportamento contraditório, com a finalidade de tutelar-se a confiança. Destarte, como ressalta Washington de Barros Monteiro, ‘a melhor interpretação de um contrato é a conduta das partes, o modo pelo qual elas o vinham executando anteriormente, de comum acordo; a observância do negócio jurídico é um dos melhores meios demonstrativos da interpretação autêntica da vontade das partes; serve de guia indefectível para a solução da dúvida levantada por qualquer delas’”.

Judith Martins Costa22 aduz que:

O princípio postula, pois, dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém contrariado pelo segundo. Por esta definição e pelos requisitos que contém já se vê que duas dificuldades, pelo menos, cercam a sua operatividade. A primeira diz respeito ao seu âmbito de delimitação e a segunda concerne à articulação com a boa-fé objetiva.

(...)

O que o princípio proíbe como contrário ao interesse digno de tutela jurídica é o comportamento contraditório que mine a relação de confiança recíproca minimamente necessária para o bom desenvolvimento do tráfico negocial.

Nessa medida, o venire contra factum proprium serve como modelo ensejador do estabelecimento de certos requisitos de conduta. Estes são revelados no caso concreto, à luz de suas circunstâncias, em especial da finalidade do contrato, mas, como regra geral, admite-se incidirem quando já surge uma situação jurídica ocorrida pelo factum proprium, situação da qual decorre benefício, ou a expectativa de benefício, para a contraparte, à qual se segue-se uma contradição, originada por um segundo comportamento pelo autor do factum proprium.

Pode ocorrer tanto quando uma pessoa manifeste a intenção, em termos que não a vinculem, de não vir a praticar determinado ato, e depois o praticar quando na situação inversa, qual seja o de declarar a pessoa, também em termos que não a vinculem especificamente, que praticaria determinado ato e, posteriormente, não o praticar. Contudo, a proibição do venire contra factum proprium não tem por escopo preservar a conduta inicial, mas antes sancionar a própria violação objetiva do dever de lealdade para com a contraparte.

O seu fundamento técnico-jurídico – e daí a conexão com a boa-fé objetiva – reside na proteção da confiança da contraparte, a qual se concretiza, neste específico terreno, mediante a configuração dos seguintes elementos, objetivos e subjetivos: a) a atuação de um fato gerador de confiança, nos termos em que esta é tutelada pela ordem jurídica; b) a adesão da contraparte – porque confiou – neste fato; c) o fato de a contraparte exercer alguma atividade posterior em razão da confiança que nela foi gerada; d) o fato de ocorrer, em razão de conduta contraditória do autor do fato gerador da confiança, a supressão do fato no qual fora assentada a confiança, gerando prejuízo ou iniqüidade insuportável para quem confiara.

Na análise do venire contra factum proprium, conveniente ainda expor as lições de Aguiar Júnior:23

"A teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium protege uma parte contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte. Aquele que vende um estabelecimento comercial e auxilia, por alguns dias, o novo comerciante, inclusive preenchendo pedidos e novas encomendas, fornecendo o seu próprio número de inscrição fiscal, não pode depois cancelar tais pedidos, sob alegação de uso indevido de sua inscrição. O credor que concordou, durante a execução do contrato de prestações periódicas, com o pagamento em lugar ou tempo diverso do convencionado, não pode surpreender o devedor com a exigência literal do contrato. Para o reconhecimento da proibição é preciso que haja univocidade de comportamento do credor e real consciência do devedor quanto à conduta esperada."

Pela teoria do venire, portanto, aquele que adere a uma determinada forma de proceder, não pode opor-se às conseqüências dela advindas, justamente pelas expectativas legítimas que emergem para a outra parte que, de boa-fé, supõe-lhe presentes os efeitos.

Esta é, precisamente, a posição em que se encontra a Fundação. Após ininterrupta prática contratual por quase vinte anos, contava a entidade que, ao término do contrato, o saldo proporcional dos prêmios eventualmente existente seria devolvido pela Seguradora, como vinha ocorrendo consensualmente. E tal não ocorreu por ato próprio desta última, completamente contraditório à prática anteriormente adotada e, portanto, inválido juridicamente.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em consonância com a doutrina, não têm aceito práticas jurídicas contraditórias, aplicando integralmente a teoria do venire contra factum proprium non valet. Confiram-se os seguintes julgados:

PROCESSUAL CIVIL - RECURSO ESPECIAL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - IMPUGNAÇÃO AO VALOR DA CAUSA - PRAZO DA FAZENDA PÚBLICA - NECESSIDADE DE PERÍCIA.

..................................................

5. A agravante foi alcançada por sua própria conduta anterior. Venire contra factum proprium, como bem definiram os antigos romanos, ao resumir a vedação jurídicas às posições contraditórias. Esse princípio do Direito Privado é aplicável ao Direito Público, mormente ao Direito Processual, que exige a lealdade e o comportamento coerente dos litigantes. Essa privatização principiológica do Direito Público, como tem sido defendida na Segunda Turma pelo Min. João Otávio de Noronha, atende aos pressupostos da eticidade e da moralidade.

6. Não poderia a agravante, sob o color de uma perícia, desejar o melhor dos dois mundos . Ajuizar ações é algo que envolve risco (para as partes) e custo (para a Sociedade, que mantém o Poder Judiciário). O processo não há de ser transformado em instrumento de claudicação e de tergiversação. A escolha pela via judiciária exige de quem postula a necessária responsabilidade na dedução de seus pedidos.

Agravo regimental improvido. 24

No voto, o relator, Min. Humberto Martins, assevera, sobre a vedação de comportamentos contraditórios, que:

É o que Karl Larenz e a moderna doutrina alemã têm precisado. A vedação aos comportamentos contraditórios infirma a conduta ofensiva à boa-fé, de modo especial quando a contradição deve ser considerada abusiva à luz das circunstâncias do caso específico

(SINGER, Reinhard. Das Verbot widersprüchlichen Verhaltens [A interdição dos comportamentos contraditórios] München: Münchener Universitäts-Schriften, Reihe der Juristischen Fakultät,Band 95, C.H. Beck, 1993).

Em outro acórdão, vê-se, mais uma vez a posição do STJ em relação a fato ocorrido no âmbito da Administração Pública:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. TÍTULO DE PROPRIEDADE OUTORGADO PELO PODER PÚBLICO, ATRAVÉS DE FUNCIONÁRIO DE ALTO ESCALÃO. ALEGAÇÃO DE NULIDADE PELA PRÓPRIA ADMINISTRAÇÃO, OBJETIVANDO PREJUDICAR O ADQUIRENTE: INADMISSIBILIDADE. ALTERAÇÃO NO PÓLO ATIVO DA RELAÇÃO PROCESSUAL NA FASE RECURSAL: IMPOSSIBILIDADE, TENDO EM VISTA O PRINCÍPIO DA ESTABILIZAÇÃO SUBJETIVA DO PROCESSO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. INSTITUIÇÃO DE PARQUE ESTADUAL. PRESERVAÇÃO DA MATA INSERTA EM LOTE DE PARTICULAR. DIREITO À INDENIZAÇÃO PELA INDISPONIBILIDADE DO IMÓVEL, E NÃO SÓ DA MATA. PRECEDENTES DO STF E DO STJ. RECURSOS PARCIALMENTE PROVIDOS.

I – Se o suposto equívoco no título de propriedade foi causado pela própria administração, através de funcionário de alto escalão, não há que se alegar o vício com o escopo de prejudicar aquele que, de boa-fé, pagou o preço estipulado para fins de aquisição. Aplicação dos princípios de que nemo potest venire contra factum proprium e de que nemo creditur turpitudinem suam allegans. 25

...................

Neste outro acórdão, o STJ se debruçou sobre matéria relativa a consentimento para venda de imóvel, entendendo ter havido consentimento tácito pela falta de oposição por cerca de 17 (dezessete) anos seguidos:

PROMESSA DE COMPRA E VENDA. CONSENTIMENTO DA MULHER. ATOS POSTERIORES. VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. BOA-FÉ. PREPARO. FÉRIAS.

1. ...................

2. A mulher que deixa de assinar o contrato de promessa de compra e venda juntamente com o marido, mas depois disso, em juízo, expressamente admite a existência e validade do contrato, fundamento para a denunciação de outra lide, e nada impugna contra a execução do contrato durante mais de 17 anos, tempo em que os promissários compradores exerceram pacificamente a posse sobre o imóvel, não pode depois se opor ao pedido de fornecimento de escritura definitiva. Doutrina dos atos próprios. Art. 132. do CC. Recurso conhecido e provido.” 26

Nas razões de decidir, o Min. Ruy Rosado de Aguiar deixou consignado que o sistema jurídico nacional

"deve ser interpretado e aplicado de tal forma que através dele possa ser preservado o princípio da boa-fé, para permitir o reconhecimento da eficácia e validade de relações obrigacionais assumidas e lisamente cumpridas, não podendo ser a parte surpreendida com alegações formalmente corretas, mas que se chocam com os princípios éticos, inspiradores do sistema.".

Assim sendo, verifica-se que o Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou de maneira categórica no sentido de que a parte não pode se opor a fato a deu causa, pois seria infringir a boa-fé objetiva que é uma obrigação acessória das relações jurídicas.

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Sobre o autor
Alexandre Maimoni

Alexandre Brandão Henriques Maimoni, Advogado especializado em Direito Administrativo e previdência complementar fechada, Membro titular da Câmara de Recursos da Previdência Complementar, Possui graduação em Direito pela Universidade de São Paulo(1993), graduação em Comunicação Social - Jornalismo pelo Centro Universitário de Brasília(1999), especialização em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra(2014), especialização em Health Strategic Management for the Executive Manager (HESTRAM) pela University of Miami(2015) e aperfeicoamento em Curso Avançado de Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público(2001). Atualmente é Sócio em escritório de advocacia da Maimoni Advogados Associados. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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