Devolução de prêmio de seguro para cobertura de risco na carteira de empréstimo a participantes

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30/11/2016 às 10:36
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O parecer analisou a situação jurídica em que uma seguradora se recusou a continuar uma prática contratual de quase duas décadas, deixando de devolver parte do prêmio pago sob a alegação de que tal prática seria vedada pela legislação de seguros

Determinada entidade de previdência (Fundação) contratou, na condição de estipulante,[2] seguro para cobertura de risco de morte em sua carteira de empréstimos a participante junto à certa companhia de seguros (Seguradora).

Tal contrato vigorou por quase vinte anos. Na hipótese de haver a liquidação antecipada do empréstimo, a Seguradora efetuava a devolução proporcional do seguro em relação ao prazo remanescente, mediante compensação quando do repasse mensal dos prêmios da apólice.

Quando a Fundação decidiu criar um fundo de solvência, encerrou o contrato. Entretanto, a Seguradora negou-se a proceder à devolução de valores, alegando, em síntese, que a legislação impediria a devolução de prêmio quando estruturado o seguro na forma de regime de caixa ou de repartição simples, como é o caso. Além disso, a própria apólice firmada entre as partes conteria cláusula impeditiva à devolução de prêmio.

Assim postos os fatos, passemos à análise da questão.

1. CARACTERÍSTICAS DO CONTRATO DE SEGURO

O contrato de seguro é um negócio jurídico que visa garantir determinado risco, mediante o pagamento de um prêmio ao segurador.  Na lição de Arnoldo Wald: Seguro é o contrato pelo qual o segurador, mediante recebimento de um prêmio, se obriga a pagar certo valor convencionado, ao segurado ou a terceiro (beneficiário) geralmente no caso de ocorrência de sinistro.”[3]

O Código Civil assim conceitua o contrato de seguro:

Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados.[4]

O contrato em questão configura seguro de pessoas[5], eis que o risco segurado era o de morte do mutuário durante o período de pagamento do empréstimo. Maria Helena Diniz esclarece que “nosso Código Civil permite que a pessoa humana seja objeto de seguro contra os riscos de morte, comprometimento de saúde, incapacidade ou de acidentes.”[6]

Tal seguro é da categoria prestamista, definido como sendo: aquele no qual os segurados convencionam pagar prestações ao estipulante para amortizar dívida contraída ou para atender a compromisso assumido. O primeiro beneficiário é o próprio estipulante pelo valor do saldo da dívida ou do compromisso. A diferença que ultrapassar o saldo será paga ao segundo beneficiário, indicado pelo segurado. O seguro prestamista, geralmente, apresenta as coberturas de morte, invalidez e desemprego”.[7]

Os seguros em nosso país são regulados pelo Decreto-Lei nº 73, de 21.06.1966, que criou, em seu art. 8º, um Sistema Nacional de Seguros Privados, tendo à frente o Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP), órgão normativo, e a Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), órgão de execução e fiscalização, ambos vinculados ao Ministério da Fazenda.

O instituto do seguro é fruto de uma evolução histórica de séculos, constituindo, atualmente, uma imperiosa necessidade em todos os setores da vida, eis que, conforme aponta J.J. Calmon de Passos[8], “a sociedade contemporânea caracteriza-se pela diminuição do perigo e incremento do risco”. O seguro, na visão do ilustre professor, “institucionaliza, em termos técnicos, o imperativo da solidariedade numa sociedade de riscos”.

O seguro é um contrato bilateral, ou sinalagmático porque depende da manifestação de vontade de ambos os contratantes (segurador e segurado), que se obrigam reciprocamente. De acordo com Orlando Gomes[9], ao segurador “compete pagar a quantia estipulada para a hipótese de ocorrer o risco previsto no contrato”. Ao segurado “assiste o direito de recebê-la, se cumprida a sua obrigação de pagar a contribuição prometida, que se denomina prêmio”.

Além de bilateral, o contrato de seguro é aleatório, eis que o risco pode ocorrer ou não; oneroso, “por criar vantagens ou expectativa de vantagens patrimoniais para ambas as partes[10]; consensual, porque deve haver consentimento recíproco das partes; e de adesão, haja vista que o contratante apenas adere às cláusulas em bloco.

Além dessas características, possui o contrato de seguro um elemento fundamental que é o da boa-fé. Sérgio Cavalieri Filho[11] chega a dizer que a boa-fé é a “alma do seguro” e “seu elemento jurídico”.

De fato, tamanha é a importância da boa-fé no contrato de seguros, que no Código Civil anterior, havia a seguinte menção expressa:

Art. 1.443.  O segurado e o segurador são obrigados a guardar no contrato a mais estrita boa-fé e veracidade, assim a respeito do objeto, como das circunstâncias e declarações a ele concernentes.

O atual Código Civil prescreve a boa-fé como condição para os contratos de modo geral, em seu art. 422:

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Neste norte, Maria Helena Diniz[12] explana sobre o princípio da boa-fé, objetiva e subjetiva, aduzindo que:

A boa-fé subjetiva é atinente ao fato de se desconhecer algum vício do negócio jurídico. E a boa-fé objetiva, prevista no artigo sub examine, é alusiva a um padrão comportamental a ser seguido baseado na lealdade, impedindo o exercício abusivo de direito por parte dos contratantes, no cumprimento não só da obrigação principal, mas também das acessórias, inclusive do dever de informar, de colaborar e de atuação diligente. Ressalta-se que em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 222 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa. Esse artigo não inviabiliza a aplicação, pelo julgador, do princípio da boa-fé nas fases pré e pós-contratual. A cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes, incompatível com conduta abusiva, tendo por objetivo gerar, na relação obrigacional, a confiança necessária e o equilíbrio das prestações e da distribuição de riscos e encargos, ante a proibição do enriquecimento sem causa. E na, interpretação da cláusula geral da boa-fé, deve-se levar em conta o sistema do Código Civil e as conexões sistemáticas com outros estatutos normativos e fatores metajurídicos (Enunciados n. 24, 25, 26 e 27, aprovados na jornada de direito civil, promovida, em setembro de 2002, pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal). Para Miguel Reale a boa-fé é condição essencial à atividade ético-jurídico, caracterizando-se pela probidade dos seus participantes. A boa-fé, continua ele, é forma de conduta e norma de comportamento, sendo ainda, na lição de Judith Martins-Costa, um ‘cânone hermenêutico integrativo do contrato; como norma de criação de deveres jurídicos e como norma de limitação ao exercício de direitos subjetivos’”.

Para Washington de Barros Monteiro[13] a boa-fé decorre do princípio da probidade nas relações jurídicas:

“o princípio de probidade versa sobre um conjunto de deveres, exigidos nas relações jurídicas, em especial, os de veracidade integridade, honradez e lealdade. Desse princípio decorre logicamente o da boa-fé, que reflete não apenas uma regra de conduta, mas consubstancia a eticidade orientadora da construção jurídica do Código Civil de 2002. A boa-fé juntamente com a probidade oferece a segurança das relações jurídicas, ou seja, dependem da confiança e respeito mútuos, da lealdade e da equivalência das prestações e contraprestações. A ausência desses princípios basilares torna o negócio jurídico viciado, pois deturpa o consentimento das partes. Apesar das contraposições de interesses, as condutas das partes subordinam-se a regras comuns da honestidade, reconhecida perante a boa-fé, que foram com o Código Civil de 2002 positivadas no art. 422.”

Segundo Sílvio de Salvo Venosa[14]:

a idéia central é no sentido de que, em princípio, contratante algum ingressa em um conteúdo contratual sem a necessária boa-fé. A má-fé inicial ou interlocutória em um contrato pertence à patologia do negócio jurídico e como tal deve ser examinada e punida. Toda a cláusula geral remete o intérprete para um padrão de conduta geralmente aceito no tempo e no espaço. Em cada caso o juiz deverá definir quais as situações nas quais os partícipes de um contrato se desviaram da boa-fé.”

Arnaldo Rizzardo[15], ao analisar a probidade e a boa-fé nos contratos, destaca que:

“são estes dois princípios básicos que orientam a formação do contrato. As partes são obrigadas a dirigir a manifestação da vontade dentro do interesse que as levaram a se aproximar, de forma clara e autêntica, sem o uso de subterfúgio ou intenções outras que as não expressas no instrumento formalizado. A segurança das relações jurídicas dependem, em grande parte, da probidade e da boa-fé, isto é, da lealdade, da confiança recíproca, da justiça, da equivalência das prestações e contraprestações, da coerência e clarividência dos direitos e deveres.”

Orlando Gomes[16] ensina:

“o princípio da boa-fé entende mais com a interpretação do contrato do que com sua estrutura. Por ele significa que o literal da linguagem não deve prevalecer sobre a intenção manifestada na declaração de vontade, ou dela indeferível. Ademais, subentendem-se, no conteúdo do contrato, proposições que decorrem da natureza das obrigações contraídas, ou se impõem por força do uso regular e da própria equidade. Fala-se na existência de condições subentendidas. Admite-se enfim que as partes aceitam essas conseqüências, que realmente rejeitariam se as tivessem previsto.”

No campo específico dos seguros, a Resolução CNSP nº 117, de 2004, que “altera e consolida as regras de funcionamento e os critérios para operação das coberturas de risco oferecidas em plano de seguro de pessoas, e dá outras providências”, estabelece, em seu art. 59 que:

Art. 59. Não poderão constar das condições gerais ou especiais cláusulas coercitivas, desleais, abusivas, impostas, incompatíveis com a boa-fé e com a eqüidade ou que estabeleçam obrigações iníquas, que coloquem o segurado, beneficiário ou assistido em desvantagem, ou que contrariem a regulação em vigor.[17]

Ressalte-se que a boa-fé deve existir em todos os momentos da relação contratual, inclusive quando do seu término, conforme leciona a já citada Maria Helena Diniz[18]:

O princípio da probidade e o da boa-fé estão ligados não só à interpretação do contrato, pois, segundo eles, o sentido literal da linguagem não deverá prevalecer sobre a intenção inferida da declaração de vontade das partes, mas também ao interesse social de segurança das relações jurídicas, uma vez que as partes têm o dever de agir com honradez, lealdade, honestidade e confiança recíprocas, isto é, proceder de boa-fé tanto na tratativa negocial, formação e conclusão do contrato como em sua execução e extinção, impedindo que uma dificulte a ação da outra.

O negócio jurídico entre Seguradora e Fundação foi regido por um contrato escrito (apólice), mas não se conteve nos limites de suas cláusulas, como se verifica na prática reiterada de permitir-se a devolução parcial do prêmio para o período não mais coberto do risco, por quase duas décadas.

Assim sendo, mesmo que não tenha constado explicitamente do contrato entre as partes, a vontade das partes foi exercida de maneira consensual, límpida e na mais absoluta boa-fé, significando, pura e simplesmente, que a cláusula contratual que impedia devolução de prêmio de seguros foi derrogada pelo exercício soberano da vontade das partes.

E isto não tem nada de extraordinário no universo do Direito das Obrigações e dos Contratos, eis que a vontade sempre prevalece sobre o sentido literal do contrato e como tal deve ser interpretado, como, de resto, determina o Código Civil:

“Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.”

Miguel Reale afirma que:

“desde que haja manifestação de vontade, por parte de quem tenha legitimação para fazê-lo, constitui-se o negócio jurídico.....

.................

Donde poder-se dizer que negócio jurídico é ato jurídico pelo qual uma ou mais pessoas, em virtude de declaração de vontade, instauram uma relação jurídica, cujos efeitos, quanto a elas e às demais, se subordina à vontade declarada, nos limites consentidos pela lei.

..............

Em virtude da declaração ou manifestação da vontade – o que pressupõe, por conseguinte, o reconhecimento da autonomia da vontade pelo ordenamento jurídico do País, - podemos constituir, modificar ou extinguir determinados tipos de relações jurídicas, disciplinando os nossos interesses, nos limites e em função do interesse social.” [19]

Assim, portanto, prática de devolução parcial do prêmio integra, para todos os fins de direito, a apólice havida entre as partes.

A conseqüência desse cristalino fato é que, ao negar devolução de parte do prêmio do seguro, a Seguradora está descumprindo o contrato com a Fundação.

Age a Seguradora com violação ao princípio do Direito expresso no brocardo venire contra factum proprium non valet, que reporta à vedação de a parte agir contra fato próprio a que deu causa.

O princípio da vedação do comportamento contraditório (ou princípio da tutela da confiança legítima ou, ainda, nemo potest venire contra factum proprium) se relaciona diretamente à boa-fé objetiva e decorre do valor constitucional da dignidade da pessoa humana.

Caio Mário da Silva Pereira[20] tece considerações sobre o princípio, ensinando que:

“A boa-fé referida no art. 422 do Código é a boa-fé objetiva, que é característica das relações obrigacionais. Ela não se qualifica por um estado de consciência do agente de estar se comportando de acordo com o Direito, como ocorre com a boa-fé subjetiva. A boa-fé objetiva não diz respeito ao estado mental subjetivo do agente, mas sim ao seu comportamento em determinada relação jurídica de cooperação. O seu conteúdo consiste em um padrão de conduta, variando as suas exigência de acordo com o tipo de relação existente entre as partes.

A boa-fé objetiva serve como elemento interpretativo do contrato, como elemento de criação de deveres jurídicos (dever de correção, de cuidado e segurança, de informação, de cooperação, de sigilo, de prestar contas) e até como elemento de limitação e ruptura de direitos (proibição do venire contra factum proprium, que veda que a conduta da parte entre em contradição com conduta anterior, do inciviliter agere, que proíbe comportamentos que violem o princípio da dignidade humana, e da tu quoque, que é a inovação de uma cláusula ou regra que a própria parte já tenha violado).

A positivação do princípio da boa-fé objetiva como cláusula geral do Código de 2002 certamente em muito contribuirá para o seu desenvolvimento na doutrina e jurisprudência brasileira. Na apuração da conduta contratual, em face da probidade e boa-fé, exigidos pelo artigo, o juiz não pode deixar de se informar dos usos, costumes e práticas que os contratantes normalmente seguem, no tocante ao tipo contratual.”

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Nelson Nery Junior[21], acerca do assunto, expõe que

“não se admite que alguém venha a negar seus próprios atos, ou como já proclamava a glosa do direito romano: venire contra factum proprium non valet. Trata-se da identificação da boa fé objetiva como fundamento normativo do princípio de proibição do comportamento contraditório, com a finalidade de tutelar-se a confiança. Destarte, como ressalta Washington de Barros Monteiro, ‘a melhor interpretação de um contrato é a conduta das partes, o modo pelo qual elas o vinham executando anteriormente, de comum acordo; a observância do negócio jurídico é um dos melhores meios demonstrativos da interpretação autêntica da vontade das partes; serve de guia indefectível para a solução da dúvida levantada por qualquer delas’”.

Judith Martins Costa[22] aduz que:

O princípio postula, pois, dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém contrariado pelo segundo. Por esta definição e pelos requisitos que contém já se vê que duas dificuldades, pelo menos, cercam a sua operatividade. A primeira diz respeito ao seu âmbito de delimitação e a segunda concerne à articulação com a boa-fé objetiva.

(...)

O que o princípio proíbe como contrário ao interesse digno de tutela jurídica é o comportamento contraditório que mine a relação de confiança recíproca minimamente necessária para o bom desenvolvimento do tráfico negocial.

Nessa medida, o venire contra factum proprium serve como modelo ensejador do estabelecimento de certos requisitos de conduta. Estes são revelados no caso concreto, à luz de suas circunstâncias, em especial da finalidade do contrato, mas, como regra geral, admite-se incidirem quando já surge uma situação jurídica ocorrida pelo factum proprium, situação da qual decorre benefício, ou a expectativa de benefício, para a contraparte, à qual se segue-se uma contradição, originada por um segundo comportamento pelo autor do factum proprium.

Pode ocorrer tanto quando uma pessoa manifeste a intenção, em termos que não a vinculem, de não vir a praticar determinado ato, e depois o praticar quando na situação inversa, qual seja o de declarar a pessoa, também em termos que não a vinculem especificamente, que praticaria determinado ato e, posteriormente, não o praticar. Contudo, a proibição do venire contra factum proprium não tem por escopo preservar a conduta inicial, mas antes sancionar a própria violação objetiva do dever de lealdade para com a contraparte.

O seu fundamento técnico-jurídico – e daí a conexão com a boa-fé objetiva – reside na proteção da confiança da contraparte, a qual se concretiza, neste específico terreno, mediante a configuração dos seguintes elementos, objetivos e subjetivos: a) a atuação de um fato gerador de confiança, nos termos em que esta é tutelada pela ordem jurídica; b) a adesão da contraparte – porque confiou – neste fato; c) o fato de a contraparte exercer alguma atividade posterior em razão da confiança que nela foi gerada; d) o fato de ocorrer, em razão de conduta contraditória do autor do fato gerador da confiança, a supressão do fato no qual fora assentada a confiança, gerando prejuízo ou iniqüidade insuportável para quem confiara.

Na análise do venire contra factum proprium, conveniente ainda expor as lições de Aguiar Júnior:[23]

"A teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium protege uma parte contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte. Aquele que vende um estabelecimento comercial e auxilia, por alguns dias, o novo comerciante, inclusive preenchendo pedidos e novas encomendas, fornecendo o seu próprio número de inscrição fiscal, não pode depois cancelar tais pedidos, sob alegação de uso indevido de sua inscrição. O credor que concordou, durante a execução do contrato de prestações periódicas, com o pagamento em lugar ou tempo diverso do convencionado, não pode surpreender o devedor com a exigência literal do contrato. Para o reconhecimento da proibição é preciso que haja univocidade de comportamento do credor e real consciência do devedor quanto à conduta esperada."

Pela teoria do venire, portanto, aquele que adere a uma determinada forma de proceder, não pode opor-se às conseqüências dela advindas, justamente pelas expectativas legítimas que emergem para a outra parte que, de boa-fé, supõe-lhe presentes os efeitos.

Esta é, precisamente, a posição em que se encontra a Fundação. Após ininterrupta prática contratual por quase vinte anos, contava a entidade que, ao término do contrato, o saldo proporcional dos prêmios eventualmente existente seria devolvido pela Seguradora, como vinha ocorrendo consensualmente. E tal não ocorreu por ato próprio desta última, completamente contraditório à prática anteriormente adotada e, portanto, inválido juridicamente.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em consonância com a doutrina, não têm aceito práticas jurídicas contraditórias, aplicando integralmente a teoria do venire contra factum proprium non valet. Confiram-se os seguintes julgados:

PROCESSUAL CIVIL - RECURSO ESPECIAL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - IMPUGNAÇÃO AO VALOR DA CAUSA - PRAZO DA FAZENDA PÚBLICA - NECESSIDADE DE PERÍCIA.

..................................................

5. A agravante foi alcançada por sua própria conduta anterior. Venire contra factum proprium, como bem definiram os antigos romanos, ao resumir a vedação jurídicas às posições contraditórias. Esse princípio do Direito Privado é aplicável ao Direito Público, mormente ao Direito Processual, que exige a lealdade e o comportamento coerente dos litigantes. Essa privatização principiológica do Direito Público, como tem sido defendida na Segunda Turma pelo Min. João Otávio de Noronha, atende aos pressupostos da eticidade e da moralidade.

6. Não poderia a agravante, sob o color de uma perícia, desejar o melhor dos dois mundos . Ajuizar ações é algo que envolve risco (para as partes) e custo (para a Sociedade, que mantém o Poder Judiciário). O processo não há de ser transformado em instrumento de claudicação e de tergiversação. A escolha pela via judiciária exige de quem postula a necessária responsabilidade na dedução de seus pedidos.

Agravo regimental improvido.[24]

No voto, o relator, Min. Humberto Martins, assevera, sobre a vedação de comportamentos contraditórios, que:

É o que Karl Larenz e a moderna doutrina alemã têm precisado. A vedação aos comportamentos contraditórios infirma a conduta ofensiva à boa-fé, de modo especial quando a contradição deve ser considerada abusiva à luz das circunstâncias do caso específico (SINGER, Reinhard. Das Verbot widersprüchlichen Verhaltens [A interdição dos comportamentos contraditórios] München: Münchener Universitäts-Schriften, Reihe der Juristischen Fakultät,Band 95, C.H. Beck, 1993).

Em outro acórdão, vê-se, mais uma vez a posição do STJ em relação a fato ocorrido no âmbito da Administração Pública:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. TÍTULO DE PROPRIEDADE OUTORGADO PELO PODER PÚBLICO, ATRAVÉS DE FUNCIONÁRIO DE ALTO ESCALÃO. ALEGAÇÃO DE NULIDADE PELA PRÓPRIA ADMINISTRAÇÃO, OBJETIVANDO PREJUDICAR O ADQUIRENTE: INADMISSIBILIDADE. ALTERAÇÃO NO PÓLO ATIVO DA RELAÇÃO PROCESSUAL NA FASE RECURSAL: IMPOSSIBILIDADE, TENDO EM VISTA O PRINCÍPIO DA ESTABILIZAÇÃO SUBJETIVA DO PROCESSO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. INSTITUIÇÃO DE PARQUE ESTADUAL. PRESERVAÇÃO DA MATA INSERTA EM LOTE DE PARTICULAR. DIREITO À INDENIZAÇÃO PELA INDISPONIBILIDADE DO IMÓVEL, E NÃO SÓ DA MATA. PRECEDENTES DO STF E DO STJ. RECURSOS PARCIALMENTE PROVIDOS.

I – Se o suposto equívoco no título de propriedade foi causado pela própria administração, através de funcionário de alto escalão, não há que se alegar o vício com o escopo de prejudicar aquele que, de boa-fé, pagou o preço estipulado para fins de aquisição. Aplicação dos princípios de que nemo potest venire contra factum proprium e de que nemo creditur turpitudinem suam allegans.[25]

...................

Neste outro acórdão, o STJ se debruçou sobre matéria relativa a consentimento para venda de imóvel, entendendo ter havido consentimento tácito pela falta de oposição por cerca de 17 (dezessete) anos seguidos:

PROMESSA DE COMPRA E VENDA. CONSENTIMENTO DA MULHER. ATOS POSTERIORES. VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. BOA-FÉ. PREPARO. FÉRIAS.

1.....................

2. A mulher que deixa de assinar o contrato de promessa de compra e venda juntamente com o marido, mas depois disso, em juízo, expressamente admite a existência e validade do contrato, fundamento para a denunciação de outra lide, e nada impugna contra a execução do contrato durante mais de 17 anos, tempo em que os promissários compradores exerceram pacificamente a posse sobre o imóvel, não pode depois se opor ao pedido de fornecimento de escritura definitiva. Doutrina dos atos próprios. Art. 132 do CC. Recurso conhecido e provido.”[26]

Nas razões de decidir, o Min. Ruy Rosado de Aguiar deixou consignado que o sistema jurídico nacional

"deve ser interpretado e aplicado de tal forma que através dele possa ser preservado o princípio da boa-fé, para permitir o reconhecimento da eficácia e validade de relações obrigacionais assumidas e lisamente cumpridas, não podendo ser a parte surpreendida com alegações formalmente corretas, mas que se chocam com os princípios éticos, inspiradores do sistema.".

Assim sendo, verifica-se que o Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou de maneira categórica no sentido de que a parte não pode se opor a fato a deu causa, pois seria infringir a boa-fé objetiva que é uma obrigação acessória das relações jurídicas.

2. INEXISTÊNCIA DE AFRONTA À LEGISLAÇÃO DE SEGUROS

A posição da Seguradora é a de que a prática convencionada entre as partes de devolução de parte do prêmio seria nula por infringir a legislação própria dos seguros, em especial o art. 91 da Circular SUSEP nº 302, de 19 de setembro de 2005, que assim dispõe:

Art. 91. Caso o plano seja estruturado em regime financeiro de repartição, deverá constar das condições gerais que não haverá devolução ou resgate de prêmios ao segurado, ao beneficiário ou ao estipulante.

Isto porque o seguro em questão foi estruturado no regime de repartição. Trata-se esse sistema, também chamado de regime de caixa, de um método de financiamento que se utiliza das entradas obtidas pelos prêmios para pagamento do seguro. Não há propriamente capitalização dos recursos, simplesmente calcula-se quanto será necessário aportar para estipular o capital necessário para cobertura dos riscos assumidos.

Manuel Sebastião Soares Póvoas, explica que o regime de repartição simples

tem que ser organizado de forma a que o cálculo atuarial determine uma expressão para as contribuições que vão ser cobradas e capitalizadas num exercício econômico, corresponda à expressão dos benefícios que se prevê sejam constituídos e pagos nesse mesmo exercício.” [27]

Assim, portanto, no regime de repartição simples, o atuário estipula o nível de contribuição (prêmio) necessário à cobertura do risco para o período contratado. Findo o período, tendo ou não ocorrido o sinistro, estipular-se-á novo prêmio para período subseqüente.

A ninguém escapa a complexidade da estruturação de uma operação de seguro, bem como o seu caráter coletivo e mutualista, para a qual cabe citar o registro de Fábio Konder Comparato:

“... a operação de seguro implica a organização de uma mutualidade, ou o agrupamento de um número mínimo de pessoas submetidas aos mesmos riscos, cuja ocorrência e tratamento são suscetíveis de tratamento atuarial, ou previsão estatística segundo a lei dos grandes números, o que permite a repartição proporcional das perdas globais, resultante dos sinistros, entre os seus componentes. A atividade do segurador consiste, justamente, na organização dessa mutualidade, segundo a exigência técnica de compensação do conjunto de sinistros previsíveis pela soma total de contribuições pagas pelos segurados.”[28]

Entretanto, a interpretação que se deve dar ao citado art. 91 da Circular SUSEP nº 302/05 deve ser integrativa com a realidade contratual vivenciada no caso concreto e aos demais dispositivos da própria norma.

No nosso entender, o que está vedado pelo citado art. 91 é a devolução integral de prêmio, mas não a devolução proporcional ao período em que a cobertura não mais ocorrerá. No regime de repartição simples, o prêmio é necessário para fazer frente ao risco pelo período contratado. Se não haverá mais risco a ser coberto para aquele período, também não é necessária a parcela do prêmio correspondente a tal período.

Não há, tecnicamente, impeditivo para que, no meio do contrato de seguro, em havendo sua rescisão, seja devolvida a parcela do prêmio não mais necessária à cobertura do risco pelo período restante.

Há uma relação entre o prêmio e o prazo de cobertura do risco no seguro de pessoas, de acordo com o que deixa assente a mesma Circular SUSEP 302/05 em seu artigo 38:

Art. 38. Respeitado o período correspondente ao prêmio pago, a cobertura de cada segurado cessa automaticamente no final do prazo de vigência da apólice, se esta não for renovada.

Outro exemplo está no pagamento do prêmio quando este for parcelado. Em havendo inadimplência, o prazo da cobertura será reajustada na razão do valor pago do prêmio, conforme art. 46, § 4º.

Mas o maior exemplo está na hipótese de resilição do contrato de seguro. A sociedade seguradora deverá reter “a parte proporcional ao tempo decorrido”, de acordo com o contido no art. 87 da citada Circular SUSEP 302/05:

Art. 87. Deverão ser estabelecidos critérios para a resilição contratual.

Parágrafo único. No caso de resilição total ou parcial do seguro, a qualquer tempo, por iniciativa de quaisquer das partes contratantes e com a concordância recíproca, deverão ser observadas as seguintes disposições:

I – a sociedade seguradora poderá reter do prêmio recebido, além dos emolumentos, a parte proporcional ao tempo decorrido.

II – quando adotado o fracionamento do prêmio e na hipótese de resilição a pedido do segurado, a sociedade seguradora reterá, no máximo, além dos emolumentos, o prêmio calculado de acordo com a tabela de prazo curto disposta no § 4º do art. 46 desta Circular.

Veja-se, portanto, que a norma permite a retenção do prêmio relativo ao período passado de cobertura do risco, mas não impede a devolução do valor do prêmio relativo ao período futuro, para o qual não mais haverá cobertura do seguro, eis que está sendo resilido. E nem poderia impedir, sob pena de premiar o enriquecimento ilícito da sociedade seguradora.

O que a legislação, portanto, quer vedar é a situação muitas vezes verificada, e repelida pelo Judiciário, de que o segurado, findo o contrato e sem que tenha havido o risco, querer de volta o valor do prêmio pago. Mas não veda a devolução de prêmios relativos ao futuro. A jurisprudência já se assentou no sentido de que não cabe devolução de prêmio para cobertura de risco passado. Veja-se, como exemplo, o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:

AGRAVO REGIMENTAL. SEGURO. PRÊMIO. RESTITUIÇÃO. RISCO. CONTRATO ALEATÓRIO. PRECEDENTES.

Os valores pagos a título de prêmio pelo seguro por invalidez ou morte não são passíveis de restituição, uma vez que a entidade suportou o risco, como é próprio dos contratos aleatórios.”[29]

Assim, a legislação, a doutrina e a jurisprudência repelem, com toda a razão, quem pleiteia devolução de prêmio por risco já coberto no passado. Mas é evidente que não se pode evitar a devolução de prêmio por risco futuro, não mais coberto.

O mesmo se pode dizer da vedação constante do art. 30 do DL 73/66, assim disposta:

Art 30. As Sociedades Seguradoras não poderão conceder aos segurados comissões ou bonificações de qualquer espécie, nem vantagens especiais que importem dispensa ou redução de prêmio.

Tal dispositivo diz respeito à obrigatoriedade de cobrança de prêmio, impedindo que haja até mesmo desconto. Mas, mais uma vez, o caso em tela diverge do sentido da norma. Esta não abrange a situação em comento, na qual houve interrupção da vigência do seguro. Assim, a parcela do prêmio relativa ao futuro (não mais coberto) não está impedida de ser devolvida.

Admitir o contrário seria, repita-se, premiar o enriquecimento ilícito, eis que o prêmio garantiu o risco do período pretérito, sobre o qual não se pleiteia devolução, mesmo não tendo havido o sinistro. O que se pretende é a devolução proporcional do prêmio para cobertura de risco de situação futura não mais necessária pela interrupção da apólice antes do prazo.

Em suma, a construção dos argumentos que supostamente impediriam a devolução dos prêmios à Fundação parte de premissa equivocada, prendendo-se à literalidade de dispositivos legais sem atentar-se para a realidade concreta posta à análise.

3. NINGUÉM PODE SE BENEFICIAR ALEGANDO A PRÓPRIA TORPEZA

Nesse diapasão não se pode admitir que exista um direito à repetição de indébito dos valores ressarcidos pela Seguradora à Fundação ao longo de toda a relação contratual mantida entre as partes, pela suposta nulidade dessa prática à luz da legislação. Primeiro porque, como visto, não há tal nulidade, e, segundo, porque, mesmo que houvesse, seria negar validade ao princípio segundo o qual não é lícito se beneficiar alegando a própria torpeza (nemo auditur propriam turpitudinem allegans).

A jurisprudência tem repelido com ênfase tais iniciativas, do que são exemplos as decisões abaixo:

1. Demanda envolvendo contrato administrativo firmado entre o extinto Instituto Brasileiro do Café – IBC e empresas exportadoras para uma operação de compra de lotes de café em grãos do tipo “robusta” no mercado de Londres, denominada “Operação Patrícia” ou “Operação London Terminal”, concebida pelo governo federal como forma de contra-atacar manobras especulativas que estavam mantendo em baixa a cotação do café brasileiro no mercado internacional, gerando prejuízos para a receita cambial do país. Pretensão de afastar o ressarcimento ao contratado ante a nulidade da avença.

2. Alegação de invalidade pela própria parte que o engendrou, resultando na violação do princípio que veda a invocação da própria torpeza ensejadora de enriquecimento sem causa

3. Acudindo o terceiro de boa-fé aos reclamos do Estado e investindo em prol dos desígnios deste, a anulação do contrato administrativo quando o contratado realizou gastos relativos à avença, implica no dever do seu ressarcimento pela Administração. Princípio consagrado na novel legislação de licitação (art. 59, Parágrafo Único, da Lei n.º 8.666/93).

4. Os pagamentos parciais revelam o reconhecimento da legitimidade do débito.

5. À luz da prova dos autos, em essência, a contratada coadjuvou o Estado-Soberano numa operação de defesa do produto nacional, cujo contrato de sindicabilidade restrita pelo STJ (Súmula n.º 05), manteve-se hígido, posto não invalidado por ação autônoma própria.

6. Indenizabilidade decorrente da presunção de legalidade e legitimidade dos atos administrativos, gerando a confiabilidade em contratar com a entidade estatal.

7. O dever de a Pessoa Jurídica de Direito Público indenizar o contratado pelas despesas advindas do adimplemento da avença, ainda que eivada de vícios, decorre da Responsabilidade Civil do Estado, consagrada constitucionalmente no art. 37, da CF.

8. Deveras, "... se o ato administrativo era inválido, isto significa que a Administração, ao praticá-lo, feriu a ordem jurídica. Assim, ao invalidar o ato, estará, ipso fato, proclamando que fora autora de uma violação da ordem jurídica. Seria iníquo que o agente violador do direito, confessando-se tal, se livrasse de quaisquer ônus que decorreriam do ato e lançasse sobre as costas alheias todas as conseqüências patrimoniais gravosas que daí decorreriam, locupletando-se, ainda, à custa de que, não tendo concorrido para o vício, haja procedido de boa-fé. Acresce que, notoriamente, os atos administrativos gozam de presunção de legitimidade. Donde quem atuou arrimado neles, salvo se estava de má-fé (vício que se pode provar, mas não pressupor liminarmente), tem o direito de esperar que tais atos se revistam de um mínimo de seriedade. Este mínimo consiste em não serem causas potenciais de fraude ao patrimônio de quem neles confiou – como, de resto, teria de confiar.” (Celso Antônio Bandeira de Mello, in “Curso de Direito Administrativo”, Malheiros, 14ª ed., 2002, p. 422-423).

9. Assim, somente se comprovada a má-fé do contratado, uma vez que veda-se-lhe sua presunção, restaria excluída a responsabilidade da União em efetivar o pagamento relativo à “Operação Patrícia”, matéria cuja análise é insindicável por esta Corte Superior, ante a incidência do verbete sumular n.º 07, tanto mais quando o Tribunal de origem, com cognição fática plena, afastou a sua ocorrência.

10. Recurso que implica na análise não só do contrato como também dos fatos, violando as Súmulas n.ºs 05 e 07, do E. STJ.

11. Deveras, é princípio assente no ordenamento que "Tendo havido intuito de prejudicar a terceiros, ou infringir preceito de lei, nada poderão alegar, ou requerer os contratantes em juízo quanto à simulação do ato, em litígio de um contra o outro, ou contra terceiros" (art. 104, do Código Civil de 1916), motivo pelo qual, veda-se à União, beneficiando-se da própria torpeza, consubstanciada na simulação perpetrada com a finalidade de manipular o mercado do café, alegar a nulidade do contrato sub examine.

12. Ademais, caberia à União, uma vez verificada a suscitada ilegalidade do contrato, responsabilizar os agentes públicos que se diz terem exorbitado de seus poderes bem como pleitear, pela via judicial própria, a anulação da avença, destaque-se, firmada há mais de 20 (vinte) anos.

13. Recurso especial conhecido, mas desprovido.[30]

ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. VIGILANTE. HORAS EXTRAORDINÁRIAS EXCEDENTES A DUAS HORAS POR JORNADA (ART. 74 DA LEI 8.112/90).

1- .................

2 - Prestação de horas extraordinárias demonstrada mediante o empréstimo de prova testemunhal produzida em ação símile evidências suficientes que confirmavam o pedido dos autores, e admita pela apelante, em sua contestação, que se viu "diante de temporária e imperativa necessidade de recorrer ao serviço extraordinário, embora com rigorosa observância de legislação vigente, inclusive no que respeita aos pagamentos devidos". A tese de ofensa ao art. 74 da Lei 8.112/90 é consectário lógico de sua admissão da efetiva prestação do serviço, porém com a ressalva da impossibilidade legal da remuneração respectiva.

3 - Sobre a impossibilidade legal de pagamento, não pode a Administração opor veto do art. 74 da Lei 8.112/90 porque não lhe é licito argüir a própria torpeza. "A energia humana, uma vez despendida, não pode ser devolvida, assim, deve ser remunerada para evitar o enriquecimento da Administrativa que deu causa à nulidade" (trecho da sentença - f. 57).

4 - Apelação e remessa não providas.[31]

AÇÃO ORDINÁRIA DE COBRANÇA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS EM CARÁTER EMERGENCIAL PARA A FUNASA-RR. AQUISIÇÃO SEM PRÉVIA LICITAÇÃO. OBRIGAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO EM ADIMPLIR COM A OBRIGAÇÃO. TENTATIVA DE EXIMIR-SE DA OBRIGAÇÃO BENEFICIANDO-SE DA PRÓPRIA TORPEZA. VEDAÇÃO LEGAL.

1. Hipótese em que a Fundação Nacional de Saúde - FUNASA para resolver questões emergenciais entabulou com o autor contrato de fornecimento de medicamentos, que foram prontamente entregues a Casa do Índio no Distrito Yanomami, consoante provas documentais e testemunhal carreadas aos autos, após o que a Administração sonega pagamento (R$ 12.077,11), sob a alegação de que tal contrato não atendeu os comandos da Lei 8.666/93, portanto ilegal.

2. Do ato ilícito praticado pela Administração Pública - que deve estrita obediência ao princípio da legalidade -, não pode decorrer prejuízo para terceiro, estabelecimento comercial de pequeno porte que atendeu prontamente ao pleito da FUNASA, fornecendo-lhe os medicamentos solicitados, uma vez que constitui princípio geral de direito o de que ninguém pode se beneficiar sem justa causa. Precedente do STJ.

3. Apelo da FUNASA e remessa oficial improvidos.[32]

4. PRESCRIÇÃO

Tanto a prescrição como a decadência derivam dos mesmos fenômenos: a influência do tempo no exercício ou aquisição de direitos e a necessidade de segurança jurídica.

Conforme anota Silvio Rodrigues “existe um interesse da sociedade em atribuir juridicidade àquelas situações que se prolongaram no tempo[33].

Os institutos da prescrição e da decadência constituem fator de segurança jurídica e paz social, como assevera Caio Mário da Silva Pereira:

“O direito exige que o devedor cumpra o obrigado e permite ao sujeito ativo valer-se da sanção contra quem quer que vulnere o seu direito. Mas se ele se mantém inerte, por longo tempo, deixando que se constitua uma situação contrária ao seu direito, permitir que mais tarde reviva o passado, é deixar em perpétua incerteza a vida social. Há pois, um interesse de ordem pública no afastamento das incertezas em torno da existência e eficácia dos direitos, e este interesse justifica o instituto da prescrição em sentido genérico.” [34]

Assim, a prescrição[35] e a decadência são modos de extinção de direitos subjetivos pelo decurso de determinado prazo. A diferença entre os dois institutos está em que “na decadência, é o próprio direito que se extingue, na prescrição, o que se perde é apenas a respectiva ação, tornando-se, assim, inócuo o direito”, de acordo com a lição de Limongi França[36].

As hipóteses de prescrição ou decadência estão contidas no Código Civil e num sem número de outras leis e normas esparsas, tornando a análise do caso concreto imprescindível para averiguar-se qual o prazo prescricional para a Fundação eventualmente cobrar em juízo os valores indevidamente retidos pela Seguradora.

Nosso entendimento é o de que a situação fática entre as partes não se coaduna com a prescrição ânua prevista no art. 206, § 1º, II, do Código Civil para demanda de segurado contra segurador.

E pela simples razão de que o que a Fundação almeja não é o pagamento de seguro, mas receber de volta soma de dinheiro relativa à diferença de prêmio, dentro da prática contratual mantida com a Seguradora.

Também não se busca complementação de indenização paga a menor pela companhia de seguros, para a qual também se aplicaria a referida prescrição anual, conforme já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça[37].

Assim sendo, a situação se amolda ao prazo prescricional geral de que trata o art. 205 do Código Civil, sendo de 10 (dez) anos para a ação de cobrança dos referidos valores.

De acordo com o art. 189 do Código Civil, a prescrição começa a correr do momento da violação de um direito. Desta forma, a partir do término da apólice sem que tenha havido o pagamento pela Seguradora das diferenças de prêmios proporcionalmente aos prazos não mais cobertos, violou-se o direito da Fundação de recebimento de tais valores, dada a sua condição de estipulante da apólice, nascendo, para esta, a pretensão.

Maria Helena Diniz[38] registra que o Enunciado 14, aprovado pela Jornada de Direito Civil promovida em setembro de 2002 pelo Centro de Estudos do Conselho da Justiça Federal estipulou que:

“a) o início do prazo prescricional ocorre com o surgimento da pretensão, que decorre da exigibilidade do direito subjetivo;

b) o art. 189 diz respeito a casos em que a pretensão nasce imediatamente após a violação do direito absoluto ou de obrigação de não fazer.”

A Notificação Extrajudicial realizada em face da devedora Seguradora constituiu esta definitivamente em mora, para todos os fins de direito, conforme art. 397, parágrafo único do Código Civil.

Em tal hipótese, responderá a devedora Seguradora pelo que dispõe o art. 395 do Código Civil:

“Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.”

No dizer de Maria Helena Diniz, tal dispositivo consagra o princípio da perputuatio obligationis, eis que:

“A mora do devedor acarretará a sua responsabilidade pelos danos causados ao credor, mediante pagamento de juros moratórios legais ou convencionais, indenização do lucro cessante, reembolso das despesas efetuadas em consequência da mora e satisfação da cláusula penal, havendo, ainda, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos e pagamento de honorários advocatícios.”[39]

5. CONCLUSÕES

Pelo que se buscou demonstrar no presente trabalho, pode-se concluir que:

  1. a devolução durante quase vinte anos ininterruptos, pela Seguradora à Fundação, de parte do prêmio correspondente ao período sem cobertura do risco integra o contrato de seguro entre as partes, pelo princípio da prevalência da vontade sobre o sentido literal do contrato;
  2. quando do término do contrato, a negativa de devolução da verba retro mencionada por parte da Seguradora configura descumprimento contratual e enriquecimento ilícito, sujeitando o devedor em mora;
  3. a Seguradora está descumprindo o princípio da boa-fé nos contratos, alegando em seu favor fato a que deu causa, sendo isto vedado pelo princípio venire contra factum proprium non valet;
  4. não há infringência à legislação própria dos seguros na prática contratual vivenciada consensualmente pelas partes, eis que os dispositivos invocados pela Seguradora não se referem à hipótese em análise;
  5. é possível a devolução de parcela de prêmio para cobertura de risco futuro, quando findo o contrato de seguro, não sendo vedada pela legislação;
  6. a Seguradora, ao alegar nulidade do contrato e a consequente possibilidade de repetir o indébito, age em afronta ao princípio segundo o qual ninguém pode se beneficiar alegando a própria torpeza (nemo auditur propriam turpitudinem allegans);
  7. não se aplica ao presente caso a prescrição anual prevista no art.206, § 1º, II, do Código Civil, eis que não se trata de cobrança do pagamento do seguro em si ou de sua complementação, mas de verba contratualmente pactuada entre as partes;
  8. a prescrição para ação de cobrança em face da Seguradora é de 10 (dez) anos contados da sua inadimplência, conforme artigos 189 e 205 do Código Civil.

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Sobre o autor
Alexandre Maimoni

Possui graduação em Direito pela Universidade de São Paulo(1993), graduação em Comunicação Social - Jornalismo pelo Centro Universitário de Brasília(1999), especialização em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra(2014), especialização em Health Strategic Management for the Executive Manager (HESTRAM) pela University of Miami(2015) e aperfeicoamento em Curso Avançado de Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público(2001). Atualmente é Sócio em escritório de advocacia da Maimoni Advogados Associados. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público (Texto gerado automaticamente pela aplicação CVLattes)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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