2. INEXISTÊNCIA DE AFRONTA À LEGISLAÇÃO DE SEGUROS
A posição da Seguradora é a de que a prática convencionada entre as partes de devolução de parte do prêmio seria nula por infringir a legislação própria dos seguros, em especial o art. 91. da Circular SUSEP nº 302, de 19 de setembro de 2005, que assim dispõe:
Art. 91. Caso o plano seja estruturado em regime financeiro de repartição, deverá constar das condições gerais que não haverá devolução ou resgate de prêmios ao segurado, ao beneficiário ou ao estipulante.
Isto porque o seguro em questão foi estruturado no regime de repartição. Trata-se esse sistema, também chamado de regime de caixa, de um método de financiamento que se utiliza das entradas obtidas pelos prêmios para pagamento do seguro. Não há propriamente capitalização dos recursos, simplesmente calcula-se quanto será necessário aportar para estipular o capital necessário para cobertura dos riscos assumidos.
Manuel Sebastião Soares Póvoas, explica que o regime de repartição simples
“tem que ser organizado de forma a que o cálculo atuarial determine uma expressão para as contribuições que vão ser cobradas e capitalizadas num exercício econômico, corresponda à expressão dos benefícios que se prevê sejam constituídos e pagos nesse mesmo exercício.” 27
Assim, portanto, no regime de repartição simples, o atuário estipula o nível de contribuição (prêmio) necessário à cobertura do risco para o período contratado. Findo o período, tendo ou não ocorrido o sinistro, estipular-se-á novo prêmio para período subseqüente.
A ninguém escapa a complexidade da estruturação de uma operação de seguro, bem como o seu caráter coletivo e mutualista, para a qual cabe citar o registro de Fábio Konder Comparato:
“... a operação de seguro implica a organização de uma mutualidade, ou o agrupamento de um número mínimo de pessoas submetidas aos mesmos riscos, cuja ocorrência e tratamento são suscetíveis de tratamento atuarial, ou previsão estatística segundo a lei dos grandes números, o que permite a repartição proporcional das perdas globais, resultante dos sinistros, entre os seus componentes. A atividade do segurador consiste, justamente, na organização dessa mutualidade, segundo a exigência técnica de compensação do conjunto de sinistros previsíveis pela soma total de contribuições pagas pelos segurados.” 28
Entretanto, a interpretação que se deve dar ao citado art. 91. da Circular SUSEP nº 302/05 deve ser integrativa com a realidade contratual vivenciada no caso concreto e aos demais dispositivos da própria norma.
No nosso entender, o que está vedado pelo citado art. 91. é a devolução integral de prêmio, mas não a devolução proporcional ao período em que a cobertura não mais ocorrerá. No regime de repartição simples, o prêmio é necessário para fazer frente ao risco pelo período contratado. Se não haverá mais risco a ser coberto para aquele período, também não é necessária a parcela do prêmio correspondente a tal período.
Não há, tecnicamente, impeditivo para que, no meio do contrato de seguro, em havendo sua rescisão, seja devolvida a parcela do prêmio não mais necessária à cobertura do risco pelo período restante.
Há uma relação entre o prêmio e o prazo de cobertura do risco no seguro de pessoas, de acordo com o que deixa assente a mesma Circular SUSEP 302/05 em seu artigo 38:
Art. 38. Respeitado o período correspondente ao prêmio pago, a cobertura de cada segurado cessa automaticamente no final do prazo de vigência da apólice, se esta não for renovada.
Outro exemplo está no pagamento do prêmio quando este for parcelado. Em havendo inadimplência, o prazo da cobertura será reajustada na razão do valor pago do prêmio, conforme art. 46, § 4º.
Mas o maior exemplo está na hipótese de resilição do contrato de seguro. A sociedade seguradora deverá reter “a parte proporcional ao tempo decorrido”, de acordo com o contido no art. 87. da citada Circular SUSEP 302/05:
Art. 87. Deverão ser estabelecidos critérios para a resilição contratual.
Parágrafo único. No caso de resilição total ou parcial do seguro, a qualquer tempo, por iniciativa de quaisquer das partes contratantes e com a concordância recíproca, deverão ser observadas as seguintes disposições:
I – a sociedade seguradora poderá reter do prêmio recebido, além dos emolumentos, a parte proporcional ao tempo decorrido.
II – quando adotado o fracionamento do prêmio e na hipótese de resilição a pedido do segurado, a sociedade seguradora reterá, no máximo, além dos emolumentos, o prêmio calculado de acordo com a tabela de prazo curto disposta no § 4º do art. 46. desta Circular.
Veja-se, portanto, que a norma permite a retenção do prêmio relativo ao período passado de cobertura do risco, mas não impede a devolução do valor do prêmio relativo ao período futuro, para o qual não mais haverá cobertura do seguro, eis que está sendo resilido. E nem poderia impedir, sob pena de premiar o enriquecimento ilícito da sociedade seguradora.
O que a legislação, portanto, quer vedar é a situação muitas vezes verificada, e repelida pelo Judiciário, de que o segurado, findo o contrato e sem que tenha havido o risco, querer de volta o valor do prêmio pago. Mas não veda a devolução de prêmios relativos ao futuro. A jurisprudência já se assentou no sentido de que não cabe devolução de prêmio para cobertura de risco passado. Veja-se, como exemplo, o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:
“AGRAVO REGIMENTAL. SEGURO. PRÊMIO. RESTITUIÇÃO. RISCO. CONTRATO ALEATÓRIO. PRECEDENTES.
Os valores pagos a título de prêmio pelo seguro por invalidez ou morte não são passíveis de restituição, uma vez que a entidade suportou o risco, como é próprio dos contratos aleatórios.” 29
Assim, a legislação, a doutrina e a jurisprudência repelem, com toda a razão, quem pleiteia devolução de prêmio por risco já coberto no passado. Mas é evidente que não se pode evitar a devolução de prêmio por risco futuro, não mais coberto.
O mesmo se pode dizer da vedação constante do art. 30. do DL 73/66, assim disposta:
Art 30. As Sociedades Seguradoras não poderão conceder aos segurados comissões ou bonificações de qualquer espécie, nem vantagens especiais que importem dispensa ou redução de prêmio.
Tal dispositivo diz respeito à obrigatoriedade de cobrança de prêmio, impedindo que haja até mesmo desconto. Mas, mais uma vez, o caso em tela diverge do sentido da norma. Esta não abrange a situação em comento, na qual houve interrupção da vigência do seguro. Assim, a parcela do prêmio relativa ao futuro (não mais coberto) não está impedida de ser devolvida.
Admitir o contrário seria, repita-se, premiar o enriquecimento ilícito, eis que o prêmio garantiu o risco do período pretérito, sobre o qual não se pleiteia devolução, mesmo não tendo havido o sinistro. O que se pretende é a devolução proporcional do prêmio para cobertura de risco de situação futura não mais necessária pela interrupção da apólice antes do prazo.
Em suma, a construção dos argumentos que supostamente impediriam a devolução dos prêmios à Fundação parte de premissa equivocada, prendendo-se à literalidade de dispositivos legais sem atentar-se para a realidade concreta posta à análise.
3. NINGUÉM PODE SE BENEFICIAR ALEGANDO A PRÓPRIA TORPEZA
Nesse diapasão não se pode admitir que exista um direito à repetição de indébito dos valores ressarcidos pela Seguradora à Fundação ao longo de toda a relação contratual mantida entre as partes, pela suposta nulidade dessa prática à luz da legislação. Primeiro porque, como visto, não há tal nulidade, e, segundo, porque, mesmo que houvesse, seria negar validade ao princípio segundo o qual não é lícito se beneficiar alegando a própria torpeza (nemo auditur propriam turpitudinem allegans).
A jurisprudência tem repelido com ênfase tais iniciativas, do que são exemplos as decisões abaixo:
1. Demanda envolvendo contrato administrativo firmado entre o extinto Instituto Brasileiro do Café – IBC e empresas exportadoras para uma operação de compra de lotes de café em grãos do tipo “robusta” no mercado de Londres, denominada “Operação Patrícia” ou “Operação London Terminal”, concebida pelo governo federal como forma de contra-atacar manobras especulativas que estavam mantendo em baixa a cotação do café brasileiro no mercado internacional, gerando prejuízos para a receita cambial do país. Pretensão de afastar o ressarcimento ao contratado ante a nulidade da avença.
2. Alegação de invalidade pela própria parte que o engendrou, resultando na violação do princípio que veda a invocação da própria torpeza ensejadora de enriquecimento sem causa
3. Acudindo o terceiro de boa-fé aos reclamos do Estado e investindo em prol dos desígnios deste, a anulação do contrato administrativo quando o contratado realizou gastos relativos à avença, implica no dever do seu ressarcimento pela Administração. Princípio consagrado na novel legislação de licitação (art. 59, Parágrafo Único, da Lei n.º 8.666/93).
4. Os pagamentos parciais revelam o reconhecimento da legitimidade do débito.
5. À luz da prova dos autos, em essência, a contratada coadjuvou o Estado-Soberano numa operação de defesa do produto nacional, cujo contrato de sindicabilidade restrita pelo STJ (Súmula n.º 05), manteve-se hígido, posto não invalidado por ação autônoma própria.
6. Indenizabilidade decorrente da presunção de legalidade e legitimidade dos atos administrativos, gerando a confiabilidade em contratar com a entidade estatal.
7. O dever de a Pessoa Jurídica de Direito Público indenizar o contratado pelas despesas advindas do adimplemento da avença, ainda que eivada de vícios, decorre da Responsabilidade Civil do Estado, consagrada constitucionalmente no art. 37, da CF.
8. Deveras, "... se o ato administrativo era inválido, isto significa que a Administração, ao praticá-lo, feriu a ordem jurídica. Assim, ao invalidar o ato, estará, ipso fato, proclamando que fora autora de uma violação da ordem jurídica. Seria iníquo que o agente violador do direito, confessando-se tal, se livrasse de quaisquer ônus que decorreriam do ato e lançasse sobre as costas alheias todas as conseqüências patrimoniais gravosas que daí decorreriam, locupletando-se, ainda, à custa de que, não tendo concorrido para o vício, haja procedido de boa-fé. Acresce que, notoriamente, os atos administrativos gozam de presunção de legitimidade. Donde quem atuou arrimado neles, salvo se estava de má-fé (vício que se pode provar, mas não pressupor liminarmente), tem o direito de esperar que tais atos se revistam de um mínimo de seriedade. Este mínimo consiste em não serem causas potenciais de fraude ao patrimônio de quem neles confiou – como, de resto, teria de confiar.” (Celso Antônio Bandeira de Mello, in “Curso de Direito Administrativo”, Malheiros, 14ª ed., 2002, p. 422-423).
9. Assim, somente se comprovada a má-fé do contratado, uma vez que veda-se-lhe sua presunção, restaria excluída a responsabilidade da União em efetivar o pagamento relativo à “Operação Patrícia”, matéria cuja análise é insindicável por esta Corte Superior, ante a incidência do verbete sumular n.º 07, tanto mais quando o Tribunal de origem, com cognição fática plena, afastou a sua ocorrência.
10. Recurso que implica na análise não só do contrato como também dos fatos, violando as Súmulas n.ºs 05 e 07, do E. STJ.
11. Deveras, é princípio assente no ordenamento que "Tendo havido intuito de prejudicar a terceiros, ou infringir preceito de lei, nada poderão alegar, ou requerer os contratantes em juízo quanto à simulação do ato, em litígio de um contra o outro, ou contra terceiros" (art. 104, do Código Civil de 1916), motivo pelo qual, veda-se à União, beneficiando-se da própria torpeza, consubstanciada na simulação perpetrada com a finalidade de manipular o mercado do café, alegar a nulidade do contrato sub examine.
12. Ademais, caberia à União, uma vez verificada a suscitada ilegalidade do contrato, responsabilizar os agentes públicos que se diz terem exorbitado de seus poderes bem como pleitear, pela via judicial própria, a anulação da avença, destaque-se, firmada há mais de 20 (vinte) anos.
13. Recurso especial conhecido, mas desprovido. 30
ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. VIGILANTE. HORAS EXTRAORDINÁRIAS EXCEDENTES A DUAS HORAS POR JORNADA (ART. 74. DA LEI 8.112/90).
1- .................
2 - Prestação de horas extraordinárias demonstrada mediante o empréstimo de prova testemunhal produzida em ação símile evidências suficientes que confirmavam o pedido dos autores, e admita pela apelante, em sua contestação, que se viu "diante de temporária e imperativa necessidade de recorrer ao serviço extraordinário, embora com rigorosa observância de legislação vigente, inclusive no que respeita aos pagamentos devidos". A tese de ofensa ao art. 74. da Lei 8.112/90 é consectário lógico de sua admissão da efetiva prestação do serviço, porém com a ressalva da impossibilidade legal da remuneração respectiva.
3 - Sobre a impossibilidade legal de pagamento, não pode a Administração opor veto do art. 74. da Lei 8.112/90 porque não lhe é licito argüir a própria torpeza. "A energia humana, uma vez despendida, não pode ser devolvida, assim, deve ser remunerada para evitar o enriquecimento da Administrativa que deu causa à nulidade" (trecho da sentença - f. 57).
4 - Apelação e remessa não providas. 31
AÇÃO ORDINÁRIA DE COBRANÇA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS EM CARÁTER EMERGENCIAL PARA A FUNASA-RR. AQUISIÇÃO SEM PRÉVIA LICITAÇÃO. OBRIGAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO EM ADIMPLIR COM A OBRIGAÇÃO. TENTATIVA DE EXIMIR-SE DA OBRIGAÇÃO BENEFICIANDO-SE DA PRÓPRIA TORPEZA. VEDAÇÃO LEGAL.
1. Hipótese em que a Fundação Nacional de Saúde - FUNASA para resolver questões emergenciais entabulou com o autor contrato de fornecimento de medicamentos, que foram prontamente entregues a Casa do Índio no Distrito Yanomami, consoante provas documentais e testemunhal carreadas aos autos, após o que a Administração sonega pagamento (R$ 12.077,11), sob a alegação de que tal contrato não atendeu os comandos da Lei 8.666/93, portanto ilegal.
2. Do ato ilícito praticado pela Administração Pública - que deve estrita obediência ao princípio da legalidade -, não pode decorrer prejuízo para terceiro, estabelecimento comercial de pequeno porte que atendeu prontamente ao pleito da FUNASA, fornecendo-lhe os medicamentos solicitados, uma vez que constitui princípio geral de direito o de que ninguém pode se beneficiar sem justa causa. Precedente do STJ.
3. Apelo da FUNASA e remessa oficial improvidos. 32