4. PRESCRIÇÃO
Tanto a prescrição como a decadência derivam dos mesmos fenômenos: a influência do tempo no exercício ou aquisição de direitos e a necessidade de segurança jurídica.
Conforme anota Silvio Rodrigues “existe um interesse da sociedade em atribuir juridicidade àquelas situações que se prolongaram no tempo” 33.
Os institutos da prescrição e da decadência constituem fator de segurança jurídica e paz social, como assevera Caio Mário da Silva Pereira:
“O direito exige que o devedor cumpra o obrigado e permite ao sujeito ativo valer-se da sanção contra quem quer que vulnere o seu direito. Mas se ele se mantém inerte, por longo tempo, deixando que se constitua uma situação contrária ao seu direito, permitir que mais tarde reviva o passado, é deixar em perpétua incerteza a vida social. Há pois, um interesse de ordem pública no afastamento das incertezas em torno da existência e eficácia dos direitos, e este interesse justifica o instituto da prescrição em sentido genérico.” 34
Assim, a prescrição35 e a decadência são modos de extinção de direitos subjetivos pelo decurso de determinado prazo. A diferença entre os dois institutos está em que “na decadência, é o próprio direito que se extingue, na prescrição, o que se perde é apenas a respectiva ação, tornando-se, assim, inócuo o direito”, de acordo com a lição de Limongi França36.
As hipóteses de prescrição ou decadência estão contidas no Código Civil e num sem número de outras leis e normas esparsas, tornando a análise do caso concreto imprescindível para averiguar-se qual o prazo prescricional para a Fundação eventualmente cobrar em juízo os valores indevidamente retidos pela Seguradora.
Nosso entendimento é o de que a situação fática entre as partes não se coaduna com a prescrição ânua prevista no art. 206, § 1º, II, do Código Civil para demanda de segurado contra segurador.
E pela simples razão de que o que a Fundação almeja não é o pagamento de seguro, mas receber de volta soma de dinheiro relativa à diferença de prêmio, dentro da prática contratual mantida com a Seguradora.
Também não se busca complementação de indenização paga a menor pela companhia de seguros, para a qual também se aplicaria a referida prescrição anual, conforme já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça37.
Assim sendo, a situação se amolda ao prazo prescricional geral de que trata o art. 205. do Código Civil, sendo de 10 (dez) anos para a ação de cobrança dos referidos valores.
De acordo com o art. 189. do Código Civil, a prescrição começa a correr do momento da violação de um direito. Desta forma, a partir do término da apólice sem que tenha havido o pagamento pela Seguradora das diferenças de prêmios proporcionalmente aos prazos não mais cobertos, violou-se o direito da Fundação de recebimento de tais valores, dada a sua condição de estipulante da apólice, nascendo, para esta, a pretensão.
Maria Helena Diniz38 registra que o Enunciado 14, aprovado pela Jornada de Direito Civil promovida em setembro de 2002 pelo Centro de Estudos do Conselho da Justiça Federal estipulou que:
“a) o início do prazo prescricional ocorre com o surgimento da pretensão, que decorre da exigibilidade do direito subjetivo;
b) o art. 189. diz respeito a casos em que a pretensão nasce imediatamente após a violação do direito absoluto ou de obrigação de não fazer.”
A Notificação Extrajudicial realizada em face da devedora Seguradora constituiu esta definitivamente em mora, para todos os fins de direito, conforme art. 397, parágrafo único do Código Civil.
Em tal hipótese, responderá a devedora Seguradora pelo que dispõe o art. 395. do Código Civil:
“Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.”
No dizer de Maria Helena Diniz, tal dispositivo consagra o princípio da perputuatio obligationis, eis que:
“A mora do devedor acarretará a sua responsabilidade pelos danos causados ao credor, mediante pagamento de juros moratórios legais ou convencionais, indenização do lucro cessante, reembolso das despesas efetuadas em consequência da mora e satisfação da cláusula penal, havendo, ainda, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos e pagamento de honorários advocatícios.” 39
CONCLUSÕES
Pelo que se buscou demonstrar no presente trabalho, pode-se concluir que:
a devolução durante quase vinte anos ininterruptos, pela Seguradora à Fundação, de parte do prêmio correspondente ao período sem cobertura do risco integra o contrato de seguro entre as partes, pelo princípio da prevalência da vontade sobre o sentido literal do contrato;
quando do término do contrato, a negativa de devolução da verba retro mencionada por parte da Seguradora configura descumprimento contratual e enriquecimento ilícito, sujeitando o devedor em mora;
a Seguradora está descumprindo o princípio da boa-fé nos contratos, alegando em seu favor fato a que deu causa, sendo isto vedado pelo princípio venire contra factum proprium non valet;
não há infringência à legislação própria dos seguros na prática contratual vivenciada consensualmente pelas partes, eis que os dispositivos invocados pela Seguradora não se referem à hipótese em análise;
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é possível a devolução de parcela de prêmio para cobertura de risco futuro, quando findo o contrato de seguro, não sendo vedada pela legislação;
a Seguradora, ao alegar nulidade do contrato e a consequente possibilidade de repetir o indébito, age em afronta ao princípio segundo o qual ninguém pode se beneficiar alegando a própria torpeza (nemo auditur propriam turpitudinem allegans);
não se aplica ao presente caso a prescrição anual prevista no art.206, § 1º, II, do Código Civil, eis que não se trata de cobrança do pagamento do seguro em si ou de sua complementação, mas de verba contratualmente pactuada entre as partes;
a prescrição para ação de cobrança em face da Seguradora é de 10 (dez) anos contados da sua inadimplência, conforme artigos 189 e 205 do Código Civil.
Notas
2 De acordo com o art. 1º da Resolução CNSP No 107, de 2004: “Estipulante é a pessoa física ou jurídica que contrata apólice coletiva de seguros, ficando investido dos poderes de representação dos segurados perante as sociedades seguradoras, nos termos desta Resolução”.
3 WALD, Arnaldo. Obrigações e Contratos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, pág 491
4 O Código Civil de 1916, assim classificava o contrato de seguro:
Art. 1.432. Considera-se contrato de seguro aquele pelo qual uma das partes se obriga para com a outra, mediante a paga de um prêmio, a indenizá-la do prejuízo resultante de riscos futuros, previstos no contrato. (Redação dada pelo Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de 15.1.1919).
5 CARLOS ROBERTO GONÇALVES esclarece “O seguro de pessoa tem por finalidade beneficiar a vida e as faculdades humanas. Diferentemente do seguro de dano, não tem caráter indenitário”. Vide GONÇALVES, Carlos Roberto. Contratos e Atos Unilaterais. São Paulo: Saraiva, 2004, pág 490.
6 DINIZ. Maria Helena. Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 474
7 vide: httt://www.supsep.gov.br/meuatendimento/seguro_pessoas_606.asp
8 PASSOS, J.J. Calmon de. O risco na sociedade moderna e seus reflexos na teoria da responsabilidade civil e na natureza jurídica do contrato de seguro. Jus Navigandi, Teresina, ano 6. nº 57, jul. 2002. Disponível em <https://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2988>
9 GOMES, Orlando. Contratos. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 410-411
10 MARTINS, Fran. Contratos e obrigações comerciais. 14ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 360.
11 CAVALIERI FILHO, Sérgio. A trilogia do seguro. In: Anais do 1º Fórum de Direito do Seguro “José Sollero Filho” / Instituto Brasileiro de Direito do Seguro. São Paulo: Max Linonad, 2000, apud, REVISTA ÂMBITO JURIDICO, disponível em https://www.ambito-juridico.com.br/pdfsGerados/artigos/3099.pdf
12 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 10. ed. rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10.01.202. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 354-355.
13 MONTEIRO ,Washington de Barros. Curso de direito civil: direito das obrigações: 2ª parte: dos contratos em geral, das várias espécies de contrato, dos atos unilaterias, da responsabilidade civil. 35. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 11
14 VENOSA. Silvio de Salvo. Direito Civil – Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral do Contratos. 3ª Ed. Atlas, 2003, vol. 2, p. 379.
15 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 32.
16 GOMES, Orlando. Contratos. 10ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 43.
17 Tal dispositivo é repetido em sua essência no art. 67. do mesmo diploma, que trata dos contratos coletivos de seguro.
18 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 10. ed. rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n. 10.406, de 10.01.202. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 354-355.
19 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 220.
20 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 20-21
21 NERY JUNIOR, Nelson. Revista de Direito Privado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais: 2009, p. 163-164.
22 COSTA, Judith Martins. A boa-fé no direito privado. 1ª edição, 2ª tiragem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 470-471.
23 A extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: Aode, 1991.
24 AgRg no RESP Nº 946.499. 2ª Turma. Rel: Ministro HUMBERTO MARTINS. Julg. 18/10/2007. DJ 05.11.2007.
25 RESP 47.015, 2ª Turma, Rel. Min. ADHEMAR MACIEL. Julg. 16.10.1997. DJ 09.12.1997.
26 RESP 95.539-SP, 4ª Turma, Rel. Mins. RUY ROSADO DE AGUIAR. Julg. 03.09.1996. DJ. 14.10.1996.
27 POVOAS, Manuel Sebastião Soares. Previdencia Privada. Filosofia, Fundamentos Técnicos, Conceituação Jurídica. 2ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 175.
28 COMPARATO, Fábio Konder. Seguro de garantia de obrigações contratuais, in Novos ensaios e pareceres de direito empresarial. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 353, apud PASSOS, J.J. Calmon de. O risco na sociedade moderna e seus reflexos na teoria da responsabilidade civil e na natureza jurídica do contrato de seguro. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, nº 57, disponível em <https://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2988>
29 AgRg no Agravo de Instrumento nº 800.429-DF, 3ª Turma, Rel. Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS, Julg. 03.12.2007, DJ 12.12.2007.
30 Superior Tribunal de Justiça, RESP 547.196/DF, Rel. Min. LUIZ FUX, 1ª Turma, julg. 06.04.2006, DJ 04.05.2006.
31 Tribunal Regional Federal da 1ª Região, AC 2000.01.00.037666-0/MA, Rel. Juiz Federal Marcelo Dolzany da Costa (conv), 1ª Turma Suplementar, DJ de 04/08/2005.
32 Tribunal Regional Federal da 1ª Região, AC 2001.42.00.000203-5/RR. 5ª Turma, Relatora Des. Fed. SELENE MARIA DE ALMEIDA, Julg. 04.06.2008, DJ 20.06.2008
33 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. V. 1. Parte Geral. 34ª ed. atual. de acordo com o Código Civil (Lei 10.406, de 10.01.2002). São Paulo: Saraiva, 2003, p.323.
34 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 1. Introdução ao Direito Civil. Teoria Geral de Direito Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1966, p. 404.
35 Estamos tratando aqui da chamada prescrição extintiva. Há, ainda, a denominada prescrição aquisitiva cujo exemplo é o usucapião. Neste caso, a passagem de tempo gera um efeito contrário, ou seja, faz nascer um direito ao invés de extingui-lo.
36 FRANÇA, Limongi. Instituições de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 173.
37 "DIREITO CIVIL. CONTRATO DE SEGURO. PRETENSÃO DO SEGURADO EM RECEBER DA SEGURADORA COMPLEMENTAÇÃO DE INDENIZAÇÃO. PRAZO PRESCRICIONAL. TERMO INICIAL. BOA-FÉ. I - As partes contratantes devem agir norteadas pela boa-fé na conclusão e,especialmente, na execução do contrato de seguro. II - O termo inicial da fluência do prazo prescricional para a cobrança de saldo de indenização securitária devido por pagamento incompleto é a data em que o segurado tem conhecimento da incompletude do pagamento. II - Entendimento diverso iria de encontro aos princípios mais comezinhos da justiça contratual, e premiaria a seguradora desleal e inadimplente, com o reconhecimento da ocorrência da prescrição. Recurso especial conhecido em parte e, nessa, provido." (REsp 684831/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJU de 21.03.2005).
38 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 10ª ed., rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10.01.2002. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 200.
39 DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 10ª ed., rev. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10.01.2002. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 332/333.